Escrevi esse texto em 2011. Ao revisitá-lo em 2015 muitas partes me pareceram obscuras, e as reformulei ou excluí de todo. Ainda agora não tenho certeza se entendi tudo que escrevi, mas não quis deletar muita coisa porque, bem, vai que faça sentido pra alguém, não é mesmo?
O que achei interessante (e parte do motivo pelo qual decidi seguir em frente e republicá-lo) é como isso se aproxima ao que David Graeber fala sobre a “revolução” contemporânea, mesmo que eu só tenha conhecido Graeber de verdade em 2014, acho. Isso me deixa… Satisfeito.
O labirinto de concepções, pressupostos e estratégias argumentativas que se alimenta do ethos do pós-modernismo nos permite com relativa facilidade – e aí mora o perigo – dispensar possibilidades de transformação. E, à bem da verdade, o pós-modernismo não tem um papel tão importante quanto a ciência, com sua ambição analítica; vemos as partículas, mas esbarramos no todo, e o todo revela-se um rolo compressor (repressor) que nos asfixia à menor menção do agir.
É pensando assim que não formamos grupos para conseguir as coisas porque, bem, grupos nunca dão certo. Os próprios “trabalhos em grupo” com os quais nos acostumamos desde crianças por causa da escola são apenas oportunidades para criar (e mais tarde, reforçar) a certeza de que seres humanos são filhos da puta. De forma semelhante, quem quer que se proponha a defender o anarquismo vai encontrar quem aponte as falhas nas aspirações mais elementares da proposta – e fazem isso porque supõem que apenas o sistema econômico e o político vão mudar, quando na verdade a transformação deve se dar também na ordem do cultural, do social, do simbólico.
A questão é que toda proposta de modificação de um sistema deve necessariamente assumir a tarefa de reformular o sistema inteiro e não apenas uma parte. Seja a proposta reformista ou revolucionária, mudar uma parte da sociedade implica mudá-la por completo no fim das contas. Ser revolucionário significa querer mudar tudo de uma vez, e ser reformista implica agir em um único elemento (de cada vez). Descobrimos, aí, que a reforma pode parecer mais fácil, mas é na verdade tão difícil quanto a revolução, se não mais.
Primeiro porque ela estica a mudança no tempo, e isso por si só já indica maior desgaste. Para explicar a segunda razão podemos partir de uma pergunta fundamental: por que a reforma parece ser mais fácil? Porque quem opta pela reforma geralmente se foca em um setor, e lida indiretamente com as consequências sistêmicas da mudança – ou não lida em absoluto. Sendo assim, a reforma leva a dificuldades, sim, mas dificuldades descentralizadas e distribuídas. Enquanto isso, na revolução, especialmente aquela que têm líderes claramente definidos, carismáticos (um povo que segue suas ideias, que age como massa de manobra e não com autonomia) são eles os responsáveis por impulsionar a transformação, e portanto concentram a dificuldade, tornando-a aparentemente maior.
Como se espera mudar a lei sobre algo importante sem que isso signifique uma mudança nos costumes, nas práticas institucionais, nas reivindicações de determinados setores sociais? Tudo muda, tudo se transforma – mas os reformadores da lei não têm que lidar com todas essas mudanças e microrrevoluções. E, ao mesmo tempo, a transformação não se opera do dia pra noite: leva mais tempo, porque é como se cada setor da sociedade vivesse sua própria revolução, e a vitória de forças conservadoras ou progressistas alavanca ou põe uma barreira no desenrolar da vontade reformista, que vê com pesar seus aliados perdendo em diferentes regiões da sociedade, e com alegria suas pequenas vitórias em outros rincões.
Até na ação reformista – que para a “microescala” dos proponentes da ação parece revolucionária – se faz sentir a grandeza de um mundo que não para pra perguntar aos seus habitantes o que eles querem, porque a vitória depende de tantas vitórias, tantas situações, tantas decisões que simplesmente não lhes pertencem… E isso que nesta análise eu sequer considero a diferença hierárquica entre as decisões que se tomam em uma associação de bairro e o supremo tribunal federal.
E a revolução, o que quer? A tudo transformar de uma vez. Mas existe um modelo que não signifique o exposto acima? O cenário de líderes vanguardistas que tenham a tarefa de reformular o mundo (deles)? É possível que todos queiram a transformação, tenham ideias sobre as transformações, e as ponham em prática, transformando em conjunto e sem hierarquias o conjunto (não de pessoas agora, mas de instituições)?
Ainda assim, se todos têm uma ideia diferente de realidade e de como a sociedade deveria se organizar, talvez o melhor caminho seria tomar como tarefa de tal força revolucionária a construção de mecanismos para a conversão e a interoperabilidade entre grupos de pessoas que decidam se organizar de uma determinada maneira. Isto é, que cada um encontre seus companheiros e forme comunidades de sentido, a cada um conforme sua vontade criativa sobre o tempo que lhe resta, mas que essa atomização não signifique o enfraquecimento dessa comunidade mais ampla que possibilitou isso tudo em primeiro lugar; até mesmo porque a união dessas microcomunidades pode ser, quem sabe, uma condição essencial para seu equilíbrio e continuidade. Então essas comunidades deveriam agir apenas para decidir padrões de comunicação horizontal.
Esse, creio eu, é um objetivo nobre para a revolução. Um objetivo que a reforma demoraria centenas de anos para conseguir; talvez jamais consiga porque o sucesso de uma área de atuação depende do sucesso das outras, e este processo seria tão lento... Mas, principalmente, talvez não consiga por causa da resistência a movimentos contraculturais, seja para fagocitá-los ou atacá-los. Ela é rápida, e os agentes, poderosos em seus campos: esse é o aspecto curioso sobre tanto um processo quanto outro (a revolução e a reforma).
Ser militarmente mais poderosa que outra, ser mais rica, ter mais indústrias, ter maior número de patentes, etc. Nunca se está satisfeito, na tradição ocidental, com a constância dos aspectos externos e materiais de uma sociedade; a estabilidade ganha sempre o nome de estagnação, e a vontade de progredir, crescer e expandir-se – expandir-se como um vírus no limite da vida – suprime toda a vontade das engrenagens da máquina de ter uma vida dobrada sobre si próprio. Isso tudo em troca de uma visão limitada, de requerimentos limitados, de conquistas pessoais limitadas, às vezes de liberdade limitada, de experiências limitadas. É o florescimento da sociedade visto no microscópio: as células vivendo a vida da planta em troca de alguns bocados de oxigênio.
Mas e hoje, o que temos? Vemos que as proposições raramente são a favor de obrigatoriedades. Ao invés disso, tenta-se abrir justamente opções – mas há quem não queira nem mesmo que outras pessoas pensem diferente… A questão, no entanto, é mais profunda, porque o pensamento diferente, como exposto acima, muda muita coisa, mesmo que pareça não mudar tanto assim. Vivemos interligados, às vezes por canais misteriosos. Somos um sistema.
Se pensarmos que aqueles interessados em viver uma vida diferente deveriam simplesmente se organizar para formar uma sociedade independente, à revelia da sociedade mainstream, então teremos uma ação que não é nem revolucionária nem reformista, porque não abarca quem não quer participar dela. O senso comum de estratégia, entretanto, diz que é preciso tomar cuidado, porque a partir do momento em que essa sociedade alternativa se forma, entra em competição ideológica com a outra, já estabelecida e ciosa de domínio sobre as mentes e corações dos humanos — mas entra fundamentalmente em competição por recursos, e aí o negócio se complexifica e velhas análises não parecem mais tão dispensáveis.
A estratégia óptima parece ser a criação de uma sociedade dentro da sociedade normal, utilizando de seus próprios recursos para formar uma rede que vai, pouco aos poucos, recriado os meios de subsistência e de expressão oficiais, substituindo-os por alternativas para conseguir, por fim, uma nova estrutura social que, uma vez completa e fortalecida do próprio sangue da antiga víbora, conseguirá se destacar e enfim viver por si só.