Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.
No meu retorno ao curso de ciências sociais depois da greve de professores e servidores da UFSC, recebo como texto para leitura uma entrevista com Steven Shapin, professor de história da ciência na Universidade de Harvard. Ele é um historiador e sociólogo renomado, que deu uma entrevista lúcida e intrigante, mas que, como a maioria das entrevistas, não oferece uma explicação completa de uma ideia (geralmente apenas uma extensão para quem já conhece as ideias).
Interessado, busquei saber mais. Descobri que nenhuma de suas obras está disponível em português, e só um exemplar no original em inglês (de apenas um de seus cinco ou seis trabalhos já publicados) pode ser encontrado na Biblioteca Universitária da UFSC. Não encontrei nenhum livro dele que pudesse ser comprado como e-book (ou sequer baixado!) pela internet.
Em suma, se eu quiser saber mais sobre ele, eu tenho que falar inglês.
Se isso parece uma anedota comercial para o fato de que sou professor de inglês, não estreite os olhos ainda; isso é antes uma reflexão maior sobre as línguas e as realidades que nos cercam – realidades que as línguas ajudam a construir.
Um dos maiores desafios de um professor de línguas é fazer com que os estudantes – especialmente os iniciantes – “pensem” segundo a lógica da língua nova ao invés de traduzir tudo da língua materna. Isso não é apenas uma questão de entendimento, para que o aluno possa participar de uma discussão com o mesmo nível de inteligibilidade e expressão que os outros; aprender uma outra língua é aprender a pensar nela e incorporar sua lógica aos nossos esquemas de pensamento. Qualquer outra coisa é trabalhar com uma língua com diferentes níveis de habilidade, mas não de fato dominá-la como dominamos uma atividade que nos é completamente familiar e (palavra perigosa para um cientista social) natural.
O inglês, por exemplo, possui um tempo verbal estranho ao português, o “present perfect” – e a forma diferente de construir tempos verbais têm um impacto na forma como estruturamos nosso pensamento. Da mesma forma, se muitos exaltam a beleza exclusiva da palavra “saudade” em português, eles ignoram que a palavra “miss” é igualmente poética e versátil, sendo “miss the point” uma expressão difícil de traduzir para a língua de Camões.
Dizem alguns pensadores que toda a filosofia clássica grega teria sido impossível sem a existência de um tempo verbal grego que reflete o mundo ideal de Platão. De forma semelhante, alguns linguistas dizem que o inglês e o francês são línguas pobres na hora de traduzir obras originais do alemão (como as obras de Nietzsche e Heidegger, por exemplo).
A questão em jogo é que, não são só as oportunidades pessoais, profissionais e acadêmicas que são ampliadas ao se aprender uma língua; aprendemos um novo jeito de pensar e entender o mundo que nos cerca. Há quem diga que se você não conhece uma palavra para um sentimento, não é capaz de senti-lo. Será que isso é verdade? Será que quem não conhece o conceito de um sentimento não o sente, já que ele não pode (num primeiro momento) ser encaixado na maneira como a pessoa vê o mundo? Ou sentimos todos as mesmas coisas, mas com frequências diferentes?
É interessante notar que, mesmo que não haja uma palavra para um sentimento, não significa que ela não possa ser aprendida de outra língua ou mesmo inventada. A invenção das palavras e as revoluções na gramática, fonética e ortografia de uma língua são corriqueiras na história da humanidade, e vêm apenas demonstrar uma teoria sociológica que já discutimos (em parte) aqui antes: a de Bourdieu e seu habitus. A língua pode estruturar nosso pensamento, mas para que haja língua é preciso haver falantes. É no uso contínuo da língua que nós a estruturamos, reformando as paredes da labiríntica mansão que nossas mentes, individual e socialmente falando, habitarão por toda a nossa vida.
Ainda assim, para mudar a cabeça de ares e bairros não há nada melhor que aprender várias novas línguas!