Como incentivar e como não incentivar a leitura no Brasil

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 7 de outubro de 2015. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

O tempo todo vemos dados alarmantes sobre o estado da leitura no Brasil. Precisamos urgentemente discutir estratégias para transformar essa realidade.

Afinal, a leitura é importante: ela nos deixa mais “inteligentes”, sem dúvida, e todos queremos um país mais inteligente, agora e no futuro. Só que, quando colocamos isso em evidência no contexto de incentivo ao hábito de leitura, confundimos algumas consequências da leitura com o que nos faz ler. Fazendo isso, erramos o alvo.

Ler faz bem à saúde

Leia mais ficção e você vai se sair melhor em provas e concursos – sua habilidade de interpretação textual vai melhorar; as palavras serão mais familiares, e textos de não-ficção, mais facilmente compreendidos. Logo você será capaz de solucionar problemas com mais eficiência. Desenvolver seu cérebro é o tipo de coisa que não tem efeitos colaterais negativos: sua lógica fica melhor, mas também sua memória, sua paciência, sensibilidade artística, perspectiva histórica, empatia, inteligência emocional, resistência a Alzheimer… Ler é como a melhor combinação de remédios e complementos vitamínicos, só que ministrada principalmente para suas habilidades intelectuais e profissionais.

Só que investir nessa visão (“ler é bom para você, então leia!”) pode ser um mau investimento, posto que apenas marginalmente efetivo, quando muito (mesmo que não conte como prejuízo, seria um desperdício de oportunidade). Se simplesmente saber que algo é ruim, danoso ou errado fosse o suficiente para que as pessoas não fizessem tais coisas – em suma, se Aristóteles estivesse certo quanto à origem do comportamento mau – o mundo seria substancialmente diferente do que é. Por mais que haja valor na conscientização (que  origem a atitudes; só não o faz exclusivamente), as coisas não são tão simples.

Do ponto de vista administrativo, a leitura é uma questão de “habilidade acadêmica”. Como dito acima, queremos um país de leitores. Se é a falta de leitura que ameaça nos “emburrecer”, então temos que fazer as pessoas entenderem que a leitura é boa para elas até elas lerem mais.

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Photo by CarbonNYC [in SF!] CC

O que escapa a essa lógica é que a leitura não é algo utilitário. A leitura é um prazer que, coincidentemente, traz benefícios a quem lê (e, trickle-down style, a todo mundo em volta desse bendito leitor). A matemática sofre do mesmo problema: ela é a manipulação da lógica; é arte com formas e abstrações. Mas, ensinada como uma ferramenta, e extraído dela todo o prazer da descoberta, tudo que os alunos veem é uma coisa que 50% das pessoas nunca vão usar no futuro (“e, de qualquer forma, existem calculadoras para quê, diabos?”). Você pode até convencer algumas pessoas a começar a ler por causa dessa questão “utilitária”, mas 1) não serão muitos; e 2) os resultados não serão duradouros, porque ao se aproximar da leitura com esse viés (“busca-se” alguma coisa, racionalmente; algum resultado, algum lucro, essa “inteligência” que é prometida) as pessoas logo vão se frustrar e… Bem, vão abandoná-la com o tempo, dando prioridade a outras coisas.

Um livro, mesmo um livro bom, não é a causa absoluta de seus efeitos; se fosse assim, todo mundo teria a mesma opinião sobre um livro. A forma como a pessoa encara a leitura vai influenciar enormemente suas impressões sobre ela. Harry Potter, As Crônicas de Gelo e Fogo, os livros de Augusto Cury, de Dan Brown, de Nicholas Sparks, os 50 malditos tons… É possível que eles possam sensibilizar alguém que entre na literatura “por obrigação”, essa conveniência interessada. Mas também é possível que, lendo “por obrigação”, a pessoa não consiga entrar num mindset que permita que o prazer aflore através desses livros, ou de quaisquer outros.

Ficar enchendo o saco de alunos que não leem, fazendo um, digamos, non-reader shaming (como já vi professor fazer) só vai associar a leitura a sensações de vergonha, inferioridade, humilhação – a coisa de “escolhidos”. “Como eu não gosto muito de ler e até hoje nunca gostei, e eu não sou mesmo a pessoa mais brilhante do mundo, esse negócio de ler simplesmente não deve ser para mim…”

Tudo começa pelo hábito

Ler é uma questão de prazer – mas isso tampouco ajuda nossa causa. A leitura exige mais. Prazer por prazer, existem muitos; se posso ver um filme, beber e dançar, ou ouvir música no Youtube, por que eu deveria ler? Filmes e músicas também desenvolvem o cérebro e podem fazer pensar. A dança é também uma arte muito importante, e a corporalidade não pode ser desprezada. Tentar começar uma briga em relação a qual arte é mais prazerosa, ou (de volta ao argumento anterior) qual traz mais benefícios técnicos, não é interessante.

A chave está no hábito. Crianças aprendem coisas por causa da mais básica e fundamental dinâmica cultural da humanidade: elas querem fazer o que os adultos fazem. Mais tarde, com mais personalidade e experiência, querem fazer o que alguns adultos fazem (seus modelos e ídolos). Se estamos falando de nossas crianças e adolescentes (o “futuro da nação”), temos que mostrar aos atuais adultos que eles são seus modelos e ídolos. Claro, há outros (como as celebridades), mas estamos falando de coisas que estão ao nosso alcance, não é mesmo?

Não peça a seu filho para ler mais, explicando para ele que isso é importante, se você não lê. Não diga aos seus alunos que ler é importante para passar no vestibular, ou mesmo porque é legal – apareça com uma desgraça de livro debaixo do braço na sala de aula! Comente o que está lendo, compartilhe a experiência. Porque se essa experiência não “veio de casa” na forma de rotina, esse aluno vai precisar ser convencido de que essa é uma experiência em que vale a pena investir considerável tempo, energia, eventualmente dinheiro. Fale da trama, sem spoilers; do que você sentiu durante a leitura, do que achou mais interessante. Compare. Fisgue. Fale até de coisas que já leu, e como aquilo impactou você, pessoalmente. Pessoalmente, sim – a leitura é uma jornada pessoal.

E embora um livro não seja a causa absoluta de seus próprios efeitos, é preciso não tornar a leitura um campo minado. Jovens leitores podem ler coisas complexas; nós tiramos das obras de arte o que estamos preparados para absorver. Se não pudermos entender tudo, tudo bem. O problema não está tanto em ler a versão original ou a adaptada de Dom Casmurro; é achar que é preciso decidir qual é a leitura certa para cada idade ou grupo, ou mesmo eleger esses livros que “todo mundo deve ler”. Cada indivíduo é único em sua relação com a leitura, e deveria seguir a bússola de seus interesses. Obviamente que nem todo leitor pode começar a ler a Odisseia assim que for alfabetizado – mas volto a isso depois.

Fácil acesso

O acesso aos livros é uma pré-condição para o trabalho de incentivo à leitura. Obviamente que em escolas e localidades em que não se achem muitos livros em bibliotecas – ou mesmo sebos – é imprescindível abastecer o local com literatura; mas não se pode pensar que esse era o único problema antes, e que basta investimento em termos de compra de exemplares para que de repente haja uma proliferação miraculosa de leitores. A oferta não gera, automática e magicamente, demanda.

Sem considerar os locais com difícil acesso a livros físicos (onde a internet provavelmente também não é lá essas coisas), o acesso das pessoas em grandes centros urbanos também vem aumentando. Há centenas de escritores independentes publicando suas obras na internet (ahem…) e mesmo os ebooks tornam o caminho da decisão de leitura até a leitura em si uma coisa de 2 minutos; não é preciso nem sair de casa, nem esperar o livro chegar via correios. E só ler.

O problema é que as mesmas mídias que tornam significativamente mais confortável ler em aparelhos eletrônicos (celulares, tablets) também são aquelas que facilitam o acesso a tudo o mais – vídeos, facebook, jogos. Se antes a leitura já entrava em desvantagem na competição com outras forças de prazer e atividade de lazer, essa competição não ficou mais fácil. Ficou pior.

Uma questão humana

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Photo by kevin dooley CC

Isso aponta para uma única conclusão: o acesso mais fácil ajuda, é claro; e ajuda em especial aqueles que tinham um acesso nulo ou quase nulo em relação aos livros. Só que é só pré-condição; o que vai fazer diferença mesmo é o fator humano. Pais, professores e mediadores de leitura.

Sobre os pais e professores já falamos: adultos em geral que, se realmente querem ter uma influência direta sobre os pequenos a que têm acesso, devem começar a ler imediatamente e integrá-los a essa vida de leitor. Integrá-los, sim: já falamos sobre como a jornada do livro é pessoal, e isso às vezes é um problema. A criança só quer brincar, e aí vê o adulto fascinado, fechado em seu próprio mundo do livro. Parece um negócio tão solitário, esse de ler – é preciso mostrar pra essa criança por que alguém escolheria essa atitude solitária de vez em quando; como é legal, e como ela nem precisa ser solitária, na verdade. Boom – contar uma história antes de dormir, compartilhar o que você está lendo, trazer livrinhos infantis pra ir incentivando… Isso tudo conta muito mais que ficar explicando que a leitura é importante para ela tirar 10 na prova. Senhor, infinitamente mais.

Você viu o que estou fazendo aqui, não é, caro leitor [dessa postagem]? Dando uma razão racional, que não tem a ver com o prazer de ler, para que adultos comecem a ler. Bom, estou partindo do pressuposto de que adultos são muito mais propensos a agir com base nas consequências de suas ações, visando fins de mais longo prazo e valorizando coisas para além do calor do momento. Então eu realmente não estou ligando se esses adultos vão gostar de ler tanto assim; eles precisam, pra gerar leitores que, no futuro, vão ter uma relação de amor verdadeiro em relação à experiência de ler. Encare como um pequeno sacrifício que, não sei, vá que os faça abrir o coração e descobrir que também gostam de ler, afinal de contas. E que (esse é um desafio maior ainda), sempre tiveram mais tempo pra investir nisso do que achavam que tinham.

E quanto aos mediadores de leitura? Esses são profissionais importantíssimos também. Sabemos que introduzir alguém à leitura não se trata de jogar qualquer livro para eles lerem. Trata-se de alcançar os interesses deles (com sugestões e convites) quando eles podem ser muito jovens ainda para saber exatamente o que querem ler. E é importante ajudá-los nas primeiras leituras, até que eles se sintam confortáveis para começarem a ler sozinhos. Não é preciso uma formação universitária para fazer isso, claro, mas estudos, e um certo conhecimento pedagógico, ajudam a tornar esse processo mais eficiente.

Capacitação é a palavra-chave: se queremos mais leitores, temos que investir na formação do tipo de profissional que vai ser capaz de tornar a leitura interessante. Ouvi dizer que vai ser gasto bastante dinheiro numa campanha midiática, por parte do governo, em favor da leitura. Pra quê isso, gente? Que impacto real vocês acham que vai ter algum ator global falando algo como “ler é legal para caramba, melhora seu desempenho escolar e é o que o Brasil precisa, um país é feito de homens e livros blá blá blá blá blá blá leia mais!”? Seria melhor se o ator em questão se deixasse fotografar por um paparazzi lendo um livro. É um fenômeno conhecido, especialmente quando envolvem celebridades do mundo infanto-juvenil, como, sei lá, Justin Bieber. Se ele for pego lendo um livro, muitas e muitas fãs que às vezes nem gostavam de ler antes vão ver do que se trata. O fanatismo pop tem um lado bom, também.

Mas, voltando à crítica da tal campanha, e de todo o dinheiro que vai ser jogado nela: o que é preciso é investir na rede grassroots de profissionais que estará no chão da escola, trabalhando com os alunos como indivíduos merecedores de respeito que são – jornada pessoal, sim? Não dá pra transformar o incentivo à leitura em questão de massa, porque a literatura é a experiência artística que mais desafia essa massificação. A relação é pessoal, e o incentivo também deve ser; nisso deve consistir o trabalho do mediador de leitura no dia a dia da escola.

Em tempo, capacitação envolve a valorização dos professores também. Não dá para pedir que eles estejam sempre lendo mais e mais coisas enquanto trabalham de forma intensa para ganhar salários péssimos. É preciso que eles tenham tempo, também, para ler, para poder indicar esses livros que leem, poder relacionar o que estão lendo com as lições em sala de aula (que, aliás, terão mais tempo para planejar…). No fundo, advogo por um modelo educacional radicalmente diferente desse. Mas, se for para trabalhar com o que temos no futuro próximo, acho que esse é o básico do básico.

Conclusão: não é uma questão de preço

E o preço? Sabemos que os livros, no Brasil, não são baratos. Se investigarmos a questão, vamos descobrir que a grande vilã dos altos preços dos livros no Brasil é a tiragem: como temos poucos leitores, vendemos poucos livros e os imprimimos em poucas unidades para que não encalhem e gerem prejuízo.

Nesse sentido, percebam, o preço baixo não é causa de maior leitura; só será possível enquanto consequência. Além do que, comprar um livro nem sempre é a única maneira de ler livros: as bibliotecas estão aí para isso, e a discussão sobre o fácil acesso volta a ser relevante – mas, atendo-me ao preço, é importante notar que enquanto continuarmos reforçando a ideia de que a leitura só vai decolar no Brasil quando os preços baixarem, o que estamos realmente dizendo? Que vale a pena pagar 30 reais por um jantar (40, 50, enfim; depende de quão chique é o restaurante e quão caro é o livro, e o triste é que nós pagamos sim essa quantia por comida quando podemos), mas não por um livro. E veja, há muitas comparações como essas, mas a do jantar é realmente emblemática; uma coisa que dura uma noite, contra uma experiência absolutamente repetível condensada num objeto (físico ou digital) duradouro.

Não se engane: quem está aprendendo as regras do jogo de viver está bem atento a essas hierarquias de valor, e a elas se adaptará. Não diga que os livros são caros – lamente o fato de não ter dinheiro o suficiente para comprar duzentos por mês. Ainda antes disso, separe efetivamente um dinheiro para comprar um capa dura, um livro de bolso, um conto digital por 1,99 na Amazon, qualquer coisa; qualquer coisa que valorize a literatura, para nós que a produzimos e para crianças e adolescentes para os quais você vai mostrar, não com palavras, e sim com gestos e atitudes, que ler é importante. Que é bacana. Que é gostoso. Que é bom.