Sobre contratos, e o que há além deles

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 18 de janeiro de 2017. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

Na definição de Hobbes do estado de natureza, as pessoas são essencialmente iguais; dessa igual condição de oferecer perigo umas às outras – e de buscar os mesmos recursos limitados, ou seja, do igual direito natural (e vontade) a todas as coisas – surge a desconfiança, e daí, a guerra. Encontrando-se em perene insegurança, o homem deve antecipar-se a seus inimigos e atacá-los; daí a precipitação lógica da guerra.

Existem três principais causas para a luta no estado de natureza hobbesiano: a competição, a desconfiança e a glória. A primeira faz o humano lutar por conquista; a segunda, por segurança, e a terceira, por reputação. Sem um poder comum para manter a paz entre os homens, haverá sempre guerra – talvez não literalmente um cenário de batalhas, afirma Hobbes, mas uma constante “disposição” para o conflito que torna impossível o usufruto da máxima liberadade natural que o homem possui neste estado de natureza.

A guerra é um estado miserável; “não há lugar para a indústria […] ou para a cultura da terra; […] Não há artes, não há letras, não há sociedade”. As paixões não devem ser culpadas por isso, apesar de serem responsáveis: afinal, as ações que advêm delas não são “pecados” conquanto não haja lei que as proíba – e a lei ainda não existe “até que se tenha concordado sobre a pessoa que deverá fazê-la”; “onde não há poder comum, não há lei: onde não há lei, não há injustiça” (HOBBES, 2009, p. 169-171). Os próprios conceitos de “justo” e “injusto”, não existindo independentemente no mundo, necessitam da emergência da lei para serem criados.

Hobbes postula que esse estado de natureza pode jamais ter existido historicamente – embora ressalte que alguns povos selvagens ainda vivam dessa forma nas Américas, além de notar que a política internacional (tratando, assim, Estados como indivíduos) funciona de forma muito semelhante.

Mas o que impele os homens a sair do estado de natureza? O medo da morte, fundamentalmente, mas também o desejo de obter coisas necessárias à vida cômoda, algo que a paz e a colaboração regulada podem trazer. Após definir as leis naturais às quais os homens racionais convergem (com as quais concordam) e discutir noções importantes no projeto filosófico hobbesiano (como “autor”, “autoridade” e a ideia de que uma multidão pode ser una), o autor inglês passa a definir assim o surgimento do Leviatã, o Estado, o Common-wealth. O Estado surge para proteger a vida individual – ou seja, para conservar a “segurança particular”; essa é a “causa final” da “introdução de [uma] restrição sobre si mesmos” (HOBBES, 2009, p. 252). Mesmo que os homens, através da razão, possam descobrir as leis naturais, ainda é preciso a força – a ameaça, o medo – para garantir o cumprimento dos acordos. A estabilidade, inclusive (tanto “interna” quanto a coesão contra um inimigo “externo”), não simplemente vem da quantidade de pessoas que vivem juntas: é preciso um poder acima da “multidão” para gerar a paz, subjugando e dirigindo os indivíduos. Um poder contínuo; não um episódico, que crie uma paz temporária. Hobbes busca uma solução estável ao longo do tempo.

Assim, conclui o autor, os homens que queiram viver em paz e garantir a própria segurança e prosperidade devem “conferir todos os seus poderes e forças a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir todas as suas vontades, pela pluralidade de vozes, em uma vontade” (HOBBES, 2009, p. 259). Existe uma autorização explícita, assim – o contrato – para que o soberano aja em nome dos súditos. Assim forma-se o Leviatã, o “Deus mortal” ao qual se deve a paz e a defesa. A essência do Common-wealth é, assim “uma pessoa cujos atos uma grande multidão, por acordos mútuos uns com os outros, tornaram-se cada um o autor, e ele deve usar a força e os meios de todos, como pensar ser expediente, para a paz e a defesa comum de todos” (HOBBES, 2009, p. 260). A pessoa a incorporar o poder soberano será conhecida como soberana.

Os contratualistas clássicos

Existe uma certa lógica em Hobbes que inaugura a tradição filosófica do contratualismo propriamente dito: imagina-se (ou supõe-se, com alguma base histórica, embora isso seja mais raro) um estado de natureza em que a humanidade se encontra; ao fazer uso da razão, os humanos se organizam politicamente (dão origem ao Estado). Essa passagem é feita através do contrato, e a sociedade resultante é melhor que a anterior.

O estado de natureza é sempre caracterizado como negativo – isso é quase uma necessidade lógica; seria estúpido ter “saído” dele se ele fosse positivo. Em geral ele é belicoso; em Locke, por exemplo, ele está sempre no limiar de se tornar belicoso uma vez que não há mecanismos para garantir os direitos naturais. Mas para Pufendorf e Spinoza, por exemplo, o que leva os homens a constituir uma sociedade civil é a infelicidade de viverem sozinhos; existe uma necessidade espiritual (para não mencionar a material), mas que de qualquer forma adjetiva como negativo o estado natural. A concepção de Rousseau é um pouco mais complexa, posto que “triádica” em vez de “diádica”; o estado de natureza em si é bom, pois o homem selvagem é bom; a “sociedade o corrompe”, isto é, processos sociais (como o estabelecimento da propriedade privada, este mesmo evento originado por outros) dão origem à sociedade civil, um estado de desigualdade e não-liberdade que é negativo. O estabelecimento da república democrática restabeleceria (o quanto possível) a positividade outrora existente.

Para todos os contratualistas, iluministas ou não, o que importa é o uso da racionalidade: é este o principal ingrediente que modela a passagem para um estado social positivo, e é a ausência dele que caracteriza, por diferentes caminhos, o estado natural como impróprio e indesejável. Parte dessa caracterização pode ser vista na forma como a “sociedade civil” (ou aquilo que vem após o contrato) é entendida. A sociedade politicamente organizada não é uma continuação óbvia, uma progressão orgânica, de unidades “naturais” como a família; ela é uma substituição do estado de natureza. Locke é um dos contratualistas mais claros quanto a isso, pois discorre acerca do poder patriarcal (familiar) e senhorial – nenhum dos quais pode servir de base para a sociedade política. A razão, característica do indivíduo racional livre (como em Kant, ou mesmo em Hobbes e também Rousseau) é a base dessa divisão radical que institui a sociedade contratual – divisão que separa os homens dos cidadãos.

Mas o que é este contrato? Como funciona este dispositivo – ou por que ele foi escolhido como a analogia capaz de explicar filosoficamente os fundamentos da sociedade política e racionalmente ordenada no contexto de um Estado? Em geral, como notou Rousseau, os homens encontram-se em toda parte em uma situação de desigualdade que por vezes se institui como escravidão; empiricamente falando, as sociedades humanas do contexto dos autores são essencialmente desiguais. Mesmo assim, em termos racionais, encontramos uma igualdade essencial entre os homens, seja em sua situação potencial (como em Hobbes, segundo quem por meio de algum artifício qualquer homem é capaz de dominar outrem) ou em sua natureza (como em Kant, em cuja concepção de sujeito Rawls se apoiará mais tarde). Entre iguais, receita o bom pensamento, só pode haver acordos consensuais; e assim, especialmente em Locke, o contrato ganha as funções simultâneas de legitimação e explicação – se indivíduos originalmente livres e iguais se submetem a um poder comum isto só pode ter sido feito através de um acordo recíproco.

Assim, o contrato aparece como a figura perfeita para compreender a situação de uma sociedade política racional, voluntária; ele complementa a noção de cada contratualista sobre o estado de natureza porque estabelece a maneira como a razão vence a natureza humana; o artifício e o engenho homologam a conquista do espontâneo e passional como a alma cristã deve dominar seu corpo. O objeto do contrato, para além do formato comum deste, varia e é mais específico, tratando dos direitos específicos que são barganhados, o que modela a sociedade resultante. Em Hobbes, todos os direitos são cedidos para o soberano, exceto o direito à vida, de modo que o súdito pode assim resistir ao Estado caso esse direito seu (que é, afinal, a razão para a constituição do Leviatã em primeiro lugar) não esteja sendo resguardado. Para Locke, os direitos individuais (o direito à propriedade, que vai além da propriedade de bens materiais mas abarca também a possa da própria vida, do próprio corpo) não são cedidos, mas conservados – no estado de natureza o que falta é apenas um juiz imparcial que possa gerenciar e ajudar a conservar os direitos. Rousseau, o mais totalizante dos contratualistas, busca a transferência completa dos direitos – mas é preciso, para entender seu projeto, compreender que o Estado tem para ele não apenas a função de proteger o indivíduo, mas de transformá-lo.

Para Hobbes e Rousseau o poder constituído pelo contrato é “absoluto”, no sentido de que os soberanos, neste caso, não estão presos às mesmas leis civis que os súditos; já para Locke, este não é o caso. Locke também se diferencia dos demais (e pelo mesmo motivo, a saber, de que para ele a tirania é pior do que a desordem e a desagregação) ao pressupor um direito inalienável à revolução caso o governo não cumpra seu papel. Os direitos em Locke não costumam ser cedidos; o direito a fazer os próprios julgamentos é transferido para agentes imparciais justamente para que se conservem e protejam os outros direitos. Caso o governo não cumpra esse papel (proteger os direitos), então ele pode ser resistido, o que não ocorre em Hobbes, Rousseau, Spinoza ou Kant: para Hobbes, apenas o indivíduo pode empregar táticas de resistência caso sua vida esteja em perigo. Para Rousseau, a própria pergunta mal faz sentido, uma vez que na República bem constituída as leis são feitas pelos próprios indivíduos, e a liberdade significa obedecer a uma lei proscrita por si a si mesmo. Já para Spinoza e Kant, a obediência nas ações é imprescindível – a liberdade a qual o Estado não pode alcançar, e assim verdadeira liberdade e potencial de resistência, está no pensamento; embora o direito de agir independentemente tenha sido alienado, o direito de pensar independentemente jamais poderia sê-lo. Quanto à questão da divisibilidade do poder, o dissenso entre os autores é na verdade aparente; nenhum dos contratualistas clássicos vê com bons olhos a divisibilidade do poder, de modo que a separação de tarefas não implica a divisão da soberania, que permanece una (em Hobbes, na figura do Leviatã; em Locke, no poder legislativo; em Rousseau, no povo estruturado para que se possa aferir a vontade geral, e assim por diante).

O contrato de Rawls

A lógica do contrato foi retomada por John Rawls em 1971 com a publicação da densa obra “Uma Teoria da Justiça”, em que se busca usar da analogia contratual não para buscar os fundamentos do Estado, mas sim os princípios da ideia de justiça. Estes princípios são entendidos como aqueles que agentes livres e racionais, preocupados em avançar seus interesses, escolheriam em uma posição inicial de igualdade como definições dos termos fundamentais da associação entre si. Os princípios, conhecidos por um termo cunhado pelo filósofo (justice as fairness, comumente traduzido como “justiça como equidade”), devem regular os contratos posteriores – incluindo, por exemplo, acordos sobre a forma governamental segundo a qual a sociedade deve se organizar. Os princípios da justice as fairness servem para determinar direitos e deveres básicos, além de ajudar a compreender como melhor fazer a divisão dos benefícios sociais, isto é, a riqueza produzida.

Rawls deve muito de sua filosofia a Kant, e para entender seu argumento central é conveniente entender o movimento mais amplo que o autor americano faz em direção ao seu projeto político geral. Sandel classifica Rawls dentro da tradição do “liberalismo deontológico”, segundo o qual o Estado (ou o agrupamento humano – trata-se, aqui, da relação mais elementar entre indivíduo e grupo) não deve impor uma doutrina moral do que é “bom” ou “desejável”, isto é, cada indivíduo deve ser livre para fazer suas próprias escolhas em relação ao que deseja e o que considera positivo. O Estado deve definir apenas o que é justo, e assim organizar a sociedade. Como fundamento dessa ideia está a noção de sujeito, de indivíduo, que é o “eu” racional, livre e possuidor de características – isto é, postula-se uma divisão essencial entre aquilo que se essencialmente é (o “eu” livre racional) e todas as características que se possui (de vontades e ideias a características sociais, corporais, etc).

Pode ser vista, assim, associação entre essa base de seu pensamento e a ideia do “véu de ignorância”, peça-chave da ideia de justice as fairness. A situação em que os indivíduos escolhem o contrato que dá origem aos fundamentos racionais da justiça é chamada de “posição inicial” ou “situação inicial”, circunstância que reúne os atributos necessários, crê Rawls, para que os verdadeiros princípios da justiça possam ser estabelecidos. Na situação inicial, todos os participantes são iguais, tendo os mesmos direitos “políticos” em relação ao procedimento: podem discursar, votar, fazer propostas, etc. O “véu de ignorância”, contudo, é a ideia de que, embora os atores ajam de acordo com seus interesses, eles não saberão quais são esses interesses; ao atuarem na posição inicial, os atores são divorciados das posições que ocuparão na sociedade vindoura, ou a que recursos acidentalmente terão acesso desde o princípio, qual será a situação em termos de prestígio cultural de um ou outro grupo – em geral, são separados de grande parte do conhecimento sobre como será suas vidas particulares. Sendo assim, podem decidir racionalmente sobre os princípios que fundamentarão a ideia geral de justiça.

Os princípios de justiça aos quais tais indivíduos, colocados nessa posição inicial hipotética (a-histórica), chegariam, são aqueles alcunhados como princípios de “justice as fairness“. São dois; segundo o primeiro, cada pessoa deve ter o mesmo direito à maior liberdade básica compatível com uma liberdade semelhante para os outros; no segundo, as desigualdades sociais e econômicas devem ser arranjadas para que sejam razoavelmente entendidas como fonte de vantagens gerais para todos e para que estejam ligadas a posições e cargos disponíveis para todos. Mais adiante no livro o segundo princípio será modificado para acomodar uma noção mais precisa: as desigualdades devem funcionar principalmente para o benefício dos mais desavantajados.

O primeiro princípio é classificado por Rawls como o princípio da igualdade: está relacionado a direitos políticos, como o voto, o direito a assembleia, a consciência, a expressão, etc. O segundo é chamado de princípio da diferença, e se relaciona à hierarquia e à riqueza, sendo regulado em termos de justiça pelo fato de que os cargos e as posições sociais melhores que outras devem estar disponíveis a todos – e que a desigualdade, como visto, deve ser de benefício para os mais desavantajados. É preciso notar que o princípio de igualdade, que define liberdades básicas que se aplicam a todos igualmente, precede o princípio de diferença; a única razão para limitar essas liberdades individuais é a interferência que elas possam exercer sobre as liberdades de outras pessoas. O princípio de igualdade, assim, não pode ser sacrificados em prol do segundo, o princípio de diferença.

As críticas à coerência filosófica de Rawls foram profundas e deixaram marcas; em 1993, o filósofo publica “Political Liberalism”, livro em que aborda uma visão mais “pragmática” de seu projeto ao não tentar embasá-lo em filosofia, mas sim em uma questão prática e organizacional: para Rawls, a melhor forma de promover a sociabilidade em uma sociedade plural é a organização com base em justiça, isto é, com o Estado funcionando como o guardião dos princípios de justiça, não impondo quaisquer valores específicos sobre os indivíduos, fazendo assim com que eles busquem resolver tais assuntos em seus foros privados. Embora a posição inicial tenha sido uma tentativa de estabelecer os princípios de justiça de forma racional, mas ainda mais empiricamente que Kant (pois baseado em uma situação de escolha por parte dos indivíduos), o fato de ela ter sido criticada como inconsistente não impede que o filósofo defenda sua posição política como um projeto meritório – que recupera a noção de contrato uma vez que se funda na razão para estabelecer direitos e deveres em relação ao Estado.

Para além do contrato

Embora Sandel não goste muito de rótulos, é geralmente associado ao “comunitarismo”, uma escola de pensamento social que, no que tange a certas interfaces com o direito, contrapõe-se às ideias de Rawls em ao menos duas formas, uma mais “fundamental” e outra mais “prática”. De forma mais básica, Sandel contende com Rawls a definição de sujeito: somos constituídos essencialmente por uma miríade de características e ideias, de modo que mesmo “fingir” que não somos para praticar a política de uma determinada maneira (no caso, a objeção em termos práticos, programáticos ao corolário das ideias dos liberais deontológicos) não seria benéfico ou justo. A alcunha de “comunitarismo” vem da valorização da participação política na formulação de uma certa identidade coletiva – o que equivaleria, em certo sentido, a atuar sobre a própria identidade também e assim ativamente definir os valores aos quais a comunidade subscreve e pelos quais se organiza.

Essa noção não necessariamente exclui os contratos do horizonte, mas lhes é provocativa por algumas razões. Primeiramente, coloca os valores de volta ao centro da discussão. Os contratos sociais dos contratualistas clássicos são diferentes porque são guiados por valores diferentes. Hobbes se preocupava acima de tudo com segurança e estabilidade; Locke se importava com uma conjunção de valores que o impedia de simpatizar com a ideia de um humano-soberano com poderes ilimitados (o valor do direito à propriedade material aparece, assim, como contra-balanço chave). Em Rawls vemos uma discussão, na definição do ideal de justiça, sobre os valores da igualdade e da liberdade; a liberdade se sobressai e a igualdade (excetuando a forma como o próprio princípio que estabelece as liberdades individuais é em muitos sentidos “igualitário”) pode ser preterida se disso resultarem determinados “benefícios”. Mas em Rawls a questão é outra: os valores estão sendo racionalmente discutidos porque há um critério de avaliação, e este é a justiça (o valor anterior, superior). Os contratualistas argumentam sobre valores e a eles se seguem estruturas contratuais logicamente necessárias. Os comunitaristas questionam a possibilidade do estabelecimento a priori de um determinado valor, um estabelecimento desligado da vida comunitária historicamente situada – com o processo político sendo em parte definido como a participação nas batalhas culturais que envolvem a delineação e adoção de valores por parte dos membros de uma comunidade, isso fragiliza argumentos estruturais mais generalizantes e universais sobre contratos.

Em segundo lugar, colocam a ideia de natureza humana em cheque. Este não é o caso apenas dos comunitaristas – uma crítica contundente à lógica por detrás de Hobbes e que animou também Madison (por exemplo) pode ser encontrada em Sahlins (2014) – mas é importante ressaltar porque essa é uma parte essencial de toda teoria contratualista; uma vez que se pretende falar de “seres humanos em geral”, as pressuposições sobre o estado de natureza são questões que concernem a todos. Toda teoria contratualista é, num primeiro momento, coerente; se os pressupostos são aceitos, podemos confiar que os consagrados autores por séculos estudados na teoria política não cometeram saltos lógicos absurdos ou inválidos na linha traçada entre premissas e consequências. A questão é que, uma vez que os pressupostos sejam questionados, todo o resto da estrutura fica comprometido.

Nesse sentido, o que o uso do dispositivo do “contrato” em geral implica?

Por que um contrato seria necessário em primeiro lugar? Digamos que um grupo de pessoas “se dá bem”; organiza-se e age de maneira benéfica para todos em todos os critérios que considerem relevantes. O que um contrato adicionaria, nesse cenário, que o grupo ainda não alcançou? O contrato seria uma forma de “pôr em escrito” o que se faz, isto é, traduzir em princípios, preâmbulos e principalmente regras aquilo que é feito. Temos assim a aparição da razão como elemento relevante; sai-se da doxa irrefletida e entra-se no campo da racionalidade, e vimos como isso é importante para os contratualistas e para Rawls. O contrato cristaliza a prática social de modo a tornar explícito o que antes se revelava apenas no agir de cada membro do grupo. Nesse sentido, assume um poder que antes se encontrava nos indivíduos; constante, parece atuar como uma garantia de que aquilo que o grupo estava fazendo antes, se respeitado o contrato, continuará a ser feito independente do que os indivíduos do grupo queiram fazer em determinados contextos.

Racionalidade e estabilidade ao longo do tempo: isto é o que o contrato oferece a um grupo que não precisa dele. É mister lembrar que, pelo menos para os contratualistas clássicos, os humanos precisam do contrato, já que, diferentemente do exemplo dos últimos parágrafos, os homens antes do contrato (no estado de natureza – ou, para Rousseau, num estado civil degenerado) estavam em uma situação ruim. A razão não seria etnografia, mas sim ato heroico através do qual a humanidade se liberta de vícios relacionados às paixões e aos instintos (isto é, formas de viver e se relacionar não necessariamente atreladas a uma lógica racional) e consolida práticas consideradas positivas por assegurar a efetivação, na vida social, de determinados valores. É claro que, com os homens tendo acabado de se livrar de uma situação ruim por meio do contrato, não pode-se descartar a possibilidade de que o contrato seja desrespeitado. Sendo assim, justifica-se as medidas de coerção necessárias para garantir um contrato. Afinal, como demonstrou Hobbes, o contrato “requer a espada”.

Mas voltemos à situação hipotética do grupo sobre o qual argumenta-se que não precisaria, em tese, do contrato. O contrato busca garantir que a (boa) situação permanecerá ao longo do tempo. Mas, sem necessidade do contrato, por que pode-se querer tal garantia? O contrato baseia-se numa suspeita fundamental; uma desconfiança elementar. Mais do que isso, uma desconfiança com a qual as paixões – os sentimentos, as emoções – não conseguem lidar; apenas a intervenção racional conseguiria garantir a continuidade de tal situação positiva.

Ao identificar essa especificidade do contrato, pode-se entender que uma sociabilidade para além de sua sombra implica formas de lidar com a desconfiança entre as pessoas que sejam baseadas em estruturas e sensibilidades que não se baseiam primariamente em uma lógica destacada das paixões. Mas até mesmo a desconfiança é problematizada. Em seu estudo seminal sobre a dívida, Graeber conclui que o crédito não surgiu da moeda, que por sua vez teria sido uma evolução do escambo; historicamente falando, o crédito foi a primeira forma humana de economia dentro de uma comunidade. O escambo, elucida o antropólogo, era usado apenas de forma muito circunscrita, entre pessoas ou povos que não se conheciam, que não mantinham nenhuma forma de relação estável ao longo do tempo – em outras palavras, que desconfiavam uns dos outros.

O que ocorreria é uma institucionalização dessa forma de sociabilidade – recuperada, por exemplo, por vários teóricos anarquistas. Kropotkin afirmou que “não é o amor ou mesmo a simpatia sobre o que se sustenta a sociedade na humanidade. É a consciência – seja ela na forma de um instinto – da solidariedade humana”. Ele define melhor: “o reconhecimento inconsciente […] da dependência próxima que a felicidade de cada um tem sobre a felicidade de todos”. Daí não decorre o estado de natureza Rousseauniano segundo o qual as pessoas são “naturalmente boas” – mas sim que há outras formas de lidar com transgressões individuais a práticas tidas como benéficas, o que Graeber denominou “instituições de contrapoder” – e nesse sentido instituições são entendidas de forma bastante ampla, podendo se referir a “hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum” ou ainda, como North diria, “as regras do jogo em uma sociedade ou, mais formalmente,… limitações socialmente projetadas que moldam as interações humanas”. Um comunistarista como Sandel se preocupa com a participação política pois esta (não seguindo um formato autoritário como em Hobbes) é, em certo sentido, uma prática social voltada para a formulação compartilhada de valores – isto é, uma prática social que em certo sentido colabora para uma sociabilidade que desafia a lógica contratual, pois coloca constantemente em questão os próprios valores que fundamentariam quaisquer contratos específicos (inclusive, por exemplo, a “justiça” como valor supremo, ou mesmo a definição de justiça).

Aqui a questão da natureza humana, da natureza do sujeito, volta a ser importante. A visão dos humanos como seres isolados cujas únicas conexões com os outros são mediadas pelo interesse egoísta (como em Hobbes, por exemplo; em reação à ideia de que a sede por poder predomina “nos peitos de todos”, Sahlins pergunta: “o que aconteceu com o leite da bondade humana?”) obviamente parece providenciar justificativa para a lógica do contrato, mas uma vez que ele tenha sido instituído com base em tal visão, ele pode acabar produzindo a realidade que supôs – profecia que cumpre a si mesma, pode institucionalizar atos antissociais.

Estudar a lógica do contrato nos revela que este dispositivo é usado para resolver, a partir da racionalidade, uma desconfiança essencial quanto aos indivíduos; revela que ele depende, seguindo estes mesmos princípios mínimos, a força, e leva assim à fixidez de valores e concepções sobre as pessoas, barganhando autonomia por uma promessa de segurança. Este mesmo esquema não é muito diferente para Rawls – a partir da posição inicial buscam-se princípios de justiça que, embora não ofendam nosso sentido geral e intuitivo do que é justo, buscam definir disputas em questões que não são óbvias (o que ele chama de “equilíbrio reflexivo”), de modo que a justiça não dependerá de circunstâncias parciais mas sim de uma determinação racional geral; ao ser respeitada pelos contratos posteriores, em última instância a sociedade criará mecanismos para garantir a aplicação dos princípios.

Esta resenha não é o contexto para debater a efetividade de tal estratégia, ou mesmo se elas se traduziram mais ou menos fielmente à prática – mas pode-se pensar, a partir desse desenho geral, que lógica social se encontra para além da ideia de contrato; uma dinâmica de institucionalização da confiança, da discussão de valores, do empoderamento de indivíduos e comunidades – o que certamente gera desconfianças e perigos; a ideia de que tais arranjos não são (tão) duradouros (quanto se queira), que não funcionam de todo, que podem acabar provocando exatamente as situações que os contratualistas previram em suas denúncias das guerras precipitadas pelas paixões indomadas. Não se descobre o quanto a lógica do contrato é prevalente no nosso entendimento do mundo social até que se tente pensar o que existe além dela a partir de um ponto de vista contemporâneo em que se busca conservar algumas de suas conquistas (certamente os anarquistas que criticam o contratualismo não desejam uma comunidade que esmague a liberdade individual em nome de um “bem comum maior”). Mas ninguém disse que a vida social poderia ser tornada livre de perigos e problemas; qualquer sociabilidade, qualquer comunidade humana, sempre será problemática. A questão é: como lidar com esses problemas?