Trecho de GRAEBER, D. Toward an Anthropological Theory of Value. Nova Iorque: Palgrave, 2001. p. 50-53.
A filosofia ocidental […] começa de fato com a briga entre Heráclito e Parmênides; uma briga que Parmênides venceu. Como resultado, desde quase o início, a tradição ocidental foi marcada pela imaginação de objetos que existem como que fora do tempo, alheios à ideia de transformação. Tanto que a óbvia realidade que as mudanças são sempre foi meio que um problema.
Pode ser útil revisar essa briga, ainda que rapidamente.
Heráclito basicamente via a fixidez que os objetos comumente pareciam ter como uma ilusão; sua realidade última era uma de constante fluxo e transformação. O que presumimos que sejam objetos são na verdade padrões de mudança. Um rio (seu exemplo mais famoso) não é simplesmente um corpo de água; na verdade, se alguém passa por um rio duas vezes, a água fluindo por ele provavelmente será completamente diferente. O que permanece no tempo é simplesmente o padrão de seu fluxo. Parmênides, por outro lado, pensava exatamente o oposto: para ele, a mudança é que era uma ilusão. Para que objetos sejam compreensíveis, eles precisam existir em alguma medida fora do tempo e da transformação. Há um nível de realidade, talvez um que humanos nunca consigam perceber completamente, em que as formas são fixas e perfeitas. De Parmênides, é claro, você pode traçar uma linha direta até ambos Pitágoras (e assim à matemática e à ciência ocidentais) e Platão (com suas formas ideais), e portanto até praticamente qualquer escola subsequente de filosofia ocidental.
A posição de Parmênides era obviamente absurda; e de fato, a ciência desde então demonstrou que Heráclito estava mais correto do que ele jamais poderia imaginar. Os elementos que constituem objetos sólidos estão, na verdade, em constante movimento. Mas pode-se defender que se a filosofia ocidental não tivesse rejeitado essa posição em favor da ideia errada de Parmênides, nunca teria sido possível descobrir isso. O problema com essa abordagem dinâmica, de Heráclito, é que embora ela seja obviamente verdadeira é impossível desenhar limites precisos entre as coisas e assim medi-las. Se objetos são apenas processos, não sabemos suas reais dimensões – isto é, se eles ainda existem – porque não sabemos quanto irão durar. Se objetos estão em constante fluxo, até mesmo medidas espaciais precisas são impossíveis. É possível medir um objeto em um momento particular e então tomar isso como representativo, mas mesmo isso é uma construção imaginária, porque tais “momentos” (no sentido de pontos no tempo, sem duração, infinitamente pequenos) não existem de fato – eles, também, são construções imaginárias. Foi precisamente tais construções imaginárias (“modelos”) que permitiram a ciência moderna. Como Paul Ricoeur já observou:
É incrível que Platão tenha contribuído com a construção da geometria euclidiana através da denominação de conceitos como linha, superfície, igualdade, semelhança entre figuras, etc., que estritamente proibia todo recurso e toda alusão a manipulações, à transformação física de figuras. Esse ascetismo da linguagem matemática, ao que devemos, em última análise, todas as nossas máquinas desde a origem da era mecânica, teria sido impossível sem o heroísmo lógico de Parmênides negando todo o mundo do devir e da praxis em nome de uma auto-identidade de significações. É a essa negação do movimento e do trabalho que devemos as conquistas de Euclides, Galileu, o mecanicismo moderno, e todos os nossos equipamentos e aparelhos […]
Há obviamente uma grande ironia nisso tudo. O que Ricoeur está sugerindo é que nós conseguimos criar um mundo de tecnologias capazes de nos dar um poder inimaginável de transformar o mundo, em grande medida porque primeiro fomos capazes de imaginar um mundo sem poderes ou transformações. É bem possível que isso seja verdade. A questão crucial, no entanto, é que ao fazê-lo, também perdemos algo. Porque uma vez que alguém se acostuma a um esquema básico de observação do mundo partindo de um mundo externo imaginário e estático, conectar os dois se torna um enorme problema. Poder-se-ia até dizer que os últimos dois mil anos de filosofia e pensamento social ocidentais foram tentativas infindáveis e cada vez mais complicadas de lidar com as consequências disso. Sempre você tem a mesma presunção de formas fixas e o mesmo fracasso de saber onde de fato encontrá-las. Como resultado, o conhecimento em si se torna o grande problema. Roy Bhaskar tem argumento por alguns anos já que desde Parmênides, a filosofia ocidental tem sofrido do que ele chama de uma “falácia epistêmica”: uma tendência a confundir a questão sobre como podemos saber de coisas com a questão sobre se essas coisas existem.
Em sua forma extrema, esta tendência se abre para o positismo: a presunção de que dado tempo suficiente e instrumentos precisos o bastante, deveria ser possível fazer os modelos e a realidade se corresponderem completamente. De acordo com seus avatares mais extremos, não só deveríamos poder produzir uma descrição completa de qualquer objeto no mundo físico, mas – dada a natureza previsível das “leis” físicas – prever precisamente o que aconteceria com ele sob condições conhecidas de forma igualmente precisa. Uma vez que ninguém jamais foi capaz de fazer qualquer coisa do tipo, essa postura tem a tendência de gerar seu oposto: um tipo de niilismo agressivo (hoje em dia mais frequentemente identificado com vários tipos de pós-estruturalismo) que em sua forma mais extrema argumenta que uma vez que não se pode nunca gerar tais descrições perfeitas, é completamente impossível falar sobre “realidade”.
Isso tudo é um belo exemplo de por que a maior parte de nós meros mortais acham debates filosóficos tão sem sentido. Essa lógica está em direta contradição com a experiência da vida comum. A maioria de nós está acostumada a descrever certas coisas como “realidades” precisamente porque não podemos entendê-las completamente, não podemos controlá-las completamente, não sabemos exatamente como elas vão nos afetar, mas mesmo assim não podemos tirar elas do caminho com a força do pensamento. É o que não sabemos sobre elas que nos dá a certeza de que são reais.
Como eu digo, uma veia alternativa, heracliteana de pensamento sempre existiu – uma que vê objetos como processos, definidos por seus potenciais, e a sociedade como construída primariamente por ações. Sua manifestação mais conhecida é sem dúvida a tradição dialética de Hegel e Marx. Mas seja lá qual formato ela tome, sempre foi quase impossível integrá-las com a filosofia mais convencional. Há uma tendência a vê-la como algo que existe meio que de lado, uma coisa esquisita ou meio mística. Certamente, ela parece assim em comparação com o que parece ser um realismo cabeça-dura da parte das abordagens mais positivistas – o que é um pouco irônico, considerando que se você consegue superar a linguagem frequentemente complicada, você geralmente percebe que se tratam de perspectivas bem alinhadas com percepções de senso comum sobre a realidade.
Roy Bhaskar e aqueles que desde então tomaram para si alguma versão de sua abordagem “crítica realista” […] têm tentado por anos agora desenvolver uma ontologia mais razoável. Os argumentos resultantes são notoriamente difíceis, mas pode ser útil descrever algumas de suas conclusões[…]:
- Realismo. Bhaskar defende um “realismo transcendental”: isto é, em vez de limitar a realidade ao que pode ser observado pelos sentidos, devemos nos perguntar “o que tem que ser verdade” para que nossas experiências tenham uma explicação. Em particular, ele busca explicar “por que experimentos científicos são possíveis?”, e também, ao mesmo tempo, “por que experimentos científicos são necessários?”.
- Potencialidade. Sua conclusão: embora nossas experiências sejam de eventos no mundo real, a realidade não se limita ao que podemos experimentar (“o empírico”), ou sequer à soma total de eventos que se possa dizer que ocorreram […]. Em vez disso, Bhaskar propõe um terceiro nível (“o real”). Para entendê-lo, é preciso entender “poderes” – isto é, definir as coisas parcialmente em termos de seus potenciais ou suas capacidades. A ciência em grande medida procede por meio de hipóteses acerca de quais “mecanismos” precisam existir para explicar tais poderes, e então ela procura por eles. A busca provavelmente não tem fim, porque há sempre níveis mais profundos e fundamentais (por exemplo, de átomos a prótons, de prótons a quarks, e por aí vai), mas o fato de que não há um fim à busca não significa que a realidade não exista; em vez disso, ela simplesmente significa que ninguém conseguirá entendê-la completamente.
- Liberdade. A realidade pode ser dividida em estratos emergentes: assim como a química pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à física, a biologia pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à biologia. Diferentes tipos de mecanismos estão operando em cada nível. Além disso, cada um adquire certa autonomia daqueles abaixo; seria impossível sequer falar sobre liberdade humana se esse não fosse o caso, uma vez que nossas ações seriam simplesmente determinadas por processos químicos ou biológicos.
- Sistemas abertos. Outro elementos da indeterminação vêm do fato de que eventos do mundo real ocorrem em “sistemas abertos”; isto é, há sempre diferentes tipos de mecanismos, derivados de diferentes estratos emergentes de realidade, atuando em qualquer um deles. Como resultado, nunca se pode prever exatamente como qualquer evento do mundo real vai acontecer. Essa é a razão pela qual experimentos científicos são necessários: experimentos são maneiras de criar “sistemas fechados” temporários em que os efeitos de todos os outros mecanismos são, tanto quanto possível, anulados, para que seja possível examinar de fato um único mecanismo em ação.
- Tendências. Como resultado, é melhor não falar de “leis” científicas inquebráveis mas de “tendências”, que interagem de maneiras imprevisíveis. É claro, quanto mais alto os estratos emergentes com os quais se está lidando, menos previsíveis as coisas se tornam, com o envolvimento de seres humanos se tornando o fator mais imprevisível de todos.
[…] A posição heracliteana, que observa as coisas em termos de seus potenciais dinâmicos, não significa abandonar a ciência mas, em vez disso, a única esperança de dar à ciência uma base ontológica sólida. Mas isso também significa que para fazê-lo, quem deseja fazer afirmações científicas terá que abandonar alguns de seus sonhos mais ambiciosos – totalitários, até – sobre conhecimento absoluto ou total, e aceitar um certo grau de humildade em relação ao que é possível saber. A realidade é o que não se pode conhecer completamente. Se um objeto é real, qualquer descrição que fazemos dele será necessariamente parcial e incompleta. É assim, aliás, que podemos saber que ele é real. As únicas coisas sobre as quais podemos esperar saber tudo são as coisas que existem só nas nossas imaginações.
O que é verdadeiro acerca da ciência natural é ainda mais verdadeiro acerca da ciência social. Embora Bhaskar tenha adquirido uma reputação como filósofo da ciência, seu interesse em última instância é social; ele está tentando embasar filosoficamente uma teoria de emancipação humana, uma forma de aliar o conhecimento científico com a ideia de liberdade humana. Aqui, também, a mensagem é humildade: realistas críticos alegam ser possível preservar a noção de uma realidade social e, portanto, de uma ciência capaz de fazer afirmações verdadeiras sobre ela – mas apenas se ela abandona o tipo de obsessão estatística positivista que faz as vezes de ciência em meio à maioria dos sociólogos ou economistas atuais, e se ela desiste da ideia de que a ciência social será um dia capaz de estabelecer leis preditivas.