Existe uma certa resistência bem informada ao anarquismo. Não aquela ligada necessariamente a interesses, poderes, riquezas, status; é a resistência da pessoa comum que, mesmo com os valores forjados no medo particular que nos permeia, ainda julga com mais sinceridade a proposta anarquista e articula um medo social quanto a se perder na indeterminação da vida.
Eu não bebo (álcool). É bem verdade que o cheiro da maioria das bebidas alcoólicas já me dá razões gastronômicas para evitá-las, mas mesmo que pudesse (e disso não duvido) me acostumar aos sabores delas há razões mais profundas, ainda que nada filosóficas, pelas quais as rejeito afirmativamente. Digo que não “filosóficas” porque nada têm de morais ou pretensamente universais. São minhas, bem minhas, mesmo que por acaso as tenha em comum com alguém. E essas minhas razões se resumem ao fato de que gosto muito de minha consciência, muito obrigado. Tenho uma relação de amor e ódio com a anestesia, à qual certamente agradeço o fato de não ter sido obrigado a presenciar minha própria cirurgia de apendicite, mas que ainda certamente temo e prefiro não ter que experimentá-la de novo se possível. O fato é que me perder nos meus próprios descaminhos; soltar-me, confiando nos instintos que supostamente tomam as rédeas na ocasião da bebedeira ou intoxicação alucinógena – isso é algo que não gosto, assim como há quem não goste de baratas, de escuro, de altura, de palhaços.
TRIGGERED
Se essa é uma dinâmica particular, privada, individual, há também a forma como ela toma corpo nas relações com outras pessoas. Um motivo literário (um trope) bastante popular é o da pessoa que “tem medo de se apaixonar” ou “medo de se apegar” – ou, ainda, que tem dificuldades em relacionamentos porque é um “control freak” que não consegue lidar com certa indeterminação, com algum acaso, com o fato de que nem tudo pode ser controlado, previsto, checado e regulado. Os relacionamentos nos bagunçam; isso causa aflição. E essa mesma dicotomia entre regular e deixar viver encontra sua última expressão no campo social.
Certamente que não há nenhuma lógica que leve de A a B linearmente para todas as pessoas. Por mais que eu, por exemplo, não queira largar minha consciência, que pode não ser lá grandes coisas mas é minha, sou anarquista – e a filosofia política do anarquismo é aquela que preconiza o “let it go” grupal em que relaxaríamos de amarras e as interações sociais seriam menos mediadas, mais livres, mais soltas, mais ocasionais e mais casuais.
Isso é fonte de agonia e ansiedade para muitos. É disto que falo quando menciono os valores que podem, ao meu ver, legitimamente causar uma grande rejeição em relação ao anarquismo. E, por outro lado, é aqui que vejo uma grande distinção entre o anarquismo clássico e o contemporâneo – uma que começa com um mal entendimento sobre o anarquismo.
Em certo sentido esse mal entendimento é já um clássico. Anarquismo como bagunça, caos, desorganização. A anarquia é a ordem, já dizia Proudhon, mas já entenderemos como ele queria dizer outra coisa, creio. De qualquer forma, a confusão entre anarquia e caos (por muitas vezes nada ingênua, é claro) está na raiz dessa expectativa de que o anarquismo signifique relações desreguladas entre indivíduos, uma matriz de mônadas comunicantes que viria a substituir aquilo que entendemos por sociedade, Estado, família, etc. A “pulsão” anarquista, seu impulso e sua paixão, estariam na desagregação que forçosamente viria à tona com a dissolução violenta das hierarquias, opressões e tradições. O impulso, digamos, “republicano” (estatal, sim, mas ainda com certa preocupação quanto a uma tentativa de equilibrar diversos fatores da vida individual) ou “fascista” (uma pura vontade de ordem rígida, por mais que pareça uma abominação ressignificar essa palavra de forma tão rápida e leviana), esse quer construir, quer reformar, e quer principalmente regular, amarrar, estruturar.
O problema é que o anarquismo também pretende fazer esse tipo de construção.
O anarquismo clássico está mais próximo dessa aparente vontade de desregular (o “let it go” grupal), por mais “social” que possa ter sido, à medida que seu argumento em grande parte está ligado a um certo “naturalismo” otimista. Como Woodcock bem resumiu, havia essa ideia de que, se deixados sozinhos e sem recurso a uma autoridade, os seres humanos simplesmente se organizariam bem, sem violência. Mesmo anarquistas contemporâneos sentem a erupção desse pensamento, que os trai quando menos se espera. É o “procedimentalismo” que às vezes aflora do nada em Graeber, que diz “tanto faz; deixe as pessoas livres para decidirem por si mesmas e tudo vai dar certo!”. No episódio 27 do Solecast o convidado, membro do Ex-workers, comenta que a democracia é boa para concluir disputas, não mas para resolvê-las. Se nos livrarmos da democracia, ele disse, encontraremos melhores formas de resolver os conflitos.
É nesse sentido que o anarquismo clássico se volta para o objeto do medo daqueles que veem com grande desconfiança uma sociedade desamarrada. Por mais que estejam confortáveis com alguma organização social, essa organização não necessariamente precisa vir de um esforço consciente; ele “surge” como consequência natural de uma liberdade conquistada – naturalmente sem as estruturas de poder das “democracias”, encontraremos uma forma (não-violenta, positiva, não-destrutiva) de resolver nossos conflitos. Promover o anarquismo não seria promover um outro artificialismo, alternativa de vida que também deve ser construída paulatinamente – mas sim apenas devolver as pessoas às suas verdadeiras naturezas, que enfim poderiam se desenvolver sem o constrangimento das instituições de poder.
O que argumento é que o anarquismo contemporâneo entende que esse não é o caso. Que, como diz Graeber ou Nietzsche, temos vários instintos (não apenas os bons, naturais), mas isso não diz nada sobre nós por si só. O que importa são as estruturas que conseguimos construir para dirigir esses instintos, fazendo o possível para canalizá-los, redirecioná-los, mesmo hierarquizá-los.
Mas de que forma, então, separa-se o “controlacionismo” estatista daquele do anarquismo que entendo como contemporâneo? Seguindo a divisão de Graeber entre instituições de poder e de instituições de contrapoder.
O ponto de vista estatista é considerar que o grande perigo são os indivíduos, e assim constroem-se instituições de poder (prisões, polícia, exército, etc) para dominá-los. A visão anarquista é que o grande perigo é justamente esse pensamento, essa cultura, essa lógica, que cria um monstro auto-perpetuador, e desde a origem incontrolável – o Estado. O Leviatã.
A visão estatista é aquela segundo a qual deve-se usar de violência com vistas a manter a coesão social. A visão anarquista é aquela que pretende construir uma coesão social, mas não deseja fazê-lo por meio da violência – mas sim por instituições de contrapoder, isto é, sensibilidades, ideias, culturas. Uma forma compartilhada e deliberada de pensar que nos prepare para resistir à erupção de vontade de dominação entre nós. Formas compartilhadas de viver e conviver que, por meio de incentivos e reprimendas sociais, direcionem a ação estratégica dos indivíduos para o combate a atitudes e estruturas de dominação.
O anarquismo jamais se livra do otimismo – é quase um otimismo metodológico; contudo, há formas de aproveitar essa crença (tão justificável quanto a pessimista) em termos analíticos sem idealizar o ser humano ou desvalorizar a importância do artifício, do engenho na construção de sociedades livres.
Isso me leva a uma bifurcação textual que pretendo aproveitar para publicar dois textos aqui no blog. Uma questão que nasce disso é o papel da análise modelar dentro da teoria anarquista – em outras palavras, a possibilidade de uma teoria política anarquista (em contraposição a, digamos, o que o anarquismo historicamente é: uma filosofia política). É possível, mesmo desejável para anarquistas, discutir modelos abstratos de sociedade? Que valor têm essas discussões? Outra comunicação importante, fruto desse pensamento sobre instituições de contrapoder, é a questão dos direitos, das liberdades individuais (clássicos do liberalismo), num contexto como esse. Faz sentido falar em liberdade de expressão numa sociedade anarquista? Ou em direitos humanos? Como ficaria a questão da “tirania da maioria”? É sobre essas questões que pretendo falar em breve.