As soluções não são individuais porque nossa vida não é individual

Quem tem um mínimo de noção sabe que comentários em postagens raramente adicionam muito – especialmente em sites de maior circulação. Não sei, comentários podem ser bons, mas dependem de tantas variáveis que nem sei quais são. E acho que uma variável pode não ter nem a ver com a política de comentários, mas com o fato de que se está comentando sempre uma coisa muito delimitada.

Outro dia estava no The Guardian lendo um texto sobre como a relação das crianças com a música está mudando. Antigamente havia mais autonomia para explorar o cenário musical, enquanto hoje as barreiras para a autonomia musical são maiores – em vez de CDs ou rádio a garotada precisa pedir o spotify dos pais pra ouvir música, e aí há mais vigilância, menos oportunidade, mais inconveniência, mais algoritmo, etc. etc.

A maioria dos comentários, no entanto, martelava sempre o mesmo ponto: ora, mas a solução é muito fácil. Basta você comprar pra criança um ipod velho, um mp3 player. Basta continuar ouvindo o rádio. Basta isso. Basta aquilo. Basta os pais da criança em questão quererem.

Mas o autor do artigo original estava falando sobre uma tendência social geral, não sobre as escolhas de um Fulaninho. E isso é relevante porque se trata das soluções ofertadas, diante do cenário social e tecnológico, e seus custos e benefícios, o que produzem uma nova “situação” sobre a qual podemos inferir certas consequências.

O que é irritante nesses comentários é que se esse fosse o único problema que uma família enfrenta, bom – em primeiro lugar caramba, que mundo perfeito pra se viver, mas enfim, aí talvez essas soluções com muita calma seriam encontradas, obviamente. Mas a cada momento estamos lidando com 20, 30 situações diferentes, e nós não temos tempo, energia, atenção, dinheiro, recursos, pra parar, pensar detidamente no assunto, e bolar uma política personalizada para cada coisa. Isso nunca vai acontecer. Nós temos foco; algumas coisas, seja por força das circunstâncias (p. ex. uma doença) seja pela nossa própria personalidade, nossos objetivos mais valorizados (p. ex. mudar de emprego), vão receber mais foco e reflexão e vamos chegar a alguma coisa mais elaborada pra fazer quanto a isso. Mas isso não vai deixar de ser um problema para pessoas com outros focos, que por falta de atenção vão adotar as soluções “padrão” mais facilmente disponíveis. E aí criticamos essas soluções padrão pelo que elas estão fazendo na medida em que são, compreensivelmente, adotadas.

No fim das contas, nossa vida não é individual porque há poucas coisas sobre as quais podemos focar, um certo espaço limitado de agência individual que leva às situações peculiares das nossas vidas. No resto do tempo, a nossa vida é construída de padrões obtidas a partida da cooperação e da interação com outras pessoas, cujas atividades focadas vão tecendo padrões mais amplos que só podemos esperar interferir através de atividade coordenada – social, política, como inclusive essa intervenção reflexiva do artigo em questão. Assim, tem gente que vai fazer suas próprias roupas, mas nem todo mundo vai fazer isso, e é de rolar os olhos tentar fazer uma crítica quanto a, por exemplo, a forma como a maioria das roupas é produzidas só pra ter que ouvir que “a solução é fácil, é só fazer suas próprias roupas”. Talvez até seja se essa for a única coisa que tivermos que fazer na vida. Mas como não é, temos que olhar pras coisas de uma forma mais nuançada, porque abarcando uma situação mais complexa. A questão é: se esperamos da seção de comentários que produzam inteligência sobre uma única questão, não seria o próprio formato do “artigo” um tipo de mídia que convida, que engendra, uma inteligência limitada?

Mas como poderíamos fazer de outro modo, a não ser escrevendo textos malucos que levam o argumento em tudo quanto é direção? Talvez só transformando mesmo cada tema em uma conversa mais ampla, com mais tempo, em que no vai e vem de comentários possa ir conectando um assunto a outros, e contextualizando-o para diferentes realidades e para a realidade da limitação de cada perspectiva individual. Mas aí isso significa que vamos ter sempre que partir de comentários que ignoram a necessidade dessas conexões? Teremos sempre que aguentar isso, passar por essa inutilidade retórica pra chegar a algo que preste?

A vida às vezes exige mesmo muita paciência, viu.

Sonhos, sonhar acordado, sonhos lúcidos

Eu não sei qual é o estado da arte em pesquisas científicas sobre as “funções” dos sonhos – desses que a gente tem ao dormir. Da última vez que ouvi falar algo sobre, cogitava-se uma espécie de “desfragmentação do disco”, em que experiências do dia eram meio que analisadas e compactadas para que a nossa cognição continuasse fazendo sentido de tudo, inclusive ocorrendo aquele esquecimento básico de coisas irrelevantes ou repetidas (muito semelhantes às que acontecem em outros dias, como a memória exata de como foi trancar a porta de casa ao sair). Isso explicaria, por exemplo, como que elementos aleatórios de um dia entrariam nos cenários e nas tramas de um sonho.

Fico me perguntando se há por aí alguma teoria de sonhos baseada em ansiedade. Assim como a ansiedade teria uma função “evolutiva” no sentido de nos fazer imaginar cenários terríveis para que nos preparemos para eles, os sonhos poderiam ser apenas uma forma mais conveniente de fazer isso – afinal, já que não estamos fazendo nada naquele momento, melhor fazer essas projeções de possibilidades terríveis então do que quando estamos acordados e precisamos pensar em outras coisas ao mesmo tempo.

Por exemplo, acabei de ter um sonho em que estava me preparando para uma cirurgia ortodôntica. Mas esse foi um pesadelo – um filme de terror, ainda que mais cult e focado na ambientação do que em jump scares. E nem todos os sonhos são pesadelos. É verdade, mas – e se os próprios sonhos positivos, bons, forem essa bifurcação de um caminho que se enraíza num medo? Sim, as coisas podem dar errado – mas podemos imaginá-las dando certo. É um jeito evolutivamente inteligente de lidar com as consequências negativas da ansiedade. Afinal de contas, seria terrível se tudo que a nossa imaginação pudesse produzir fosse um conjunto de péssimas possibilidades. Sonhos bons ainda poderiam estar enraizados em medos; são apenas respostas otimistas a eles, jeitos de fazermos ecoar pela consciência a perspectiva de que conseguiremos lidar com eles.

Se este modelo tiver algo de verdade – e ele não é de todo incompatível com a ideia de “análise do dia pregresso”, pois este pode ter trazido suas próprias doses de medos e incertezas – será que ele pode ser aplicado à ideia de “sonhar acordado”? Isto é, chamamos nossas aspirações de “sonhos”. Fazemos isso, no mínimo, no ocidente – em inglês, português, espanhol… E, assim, chuto que em mais uma penca de outras línguas. Não sei quão universal é isso, mas se a associação foi feita uma vez me pergunto que verdades ela pode revelar.

Estou pensando essas coisa em parte inspirado em “The Liquidation of Belief”, um livro que Jesse Cohn está escrevendo, e que ele fez a gentileza de me enviar na fase em que quer receber críticas antes de enviar pra publicação. Em uma parte dele, ele discute a ressonância entre distúrbios de saúde mental, como delírios, incluindo a síndrome de Capgras, e o pensamento – ou a visão de mundo, talvez – de extrema direita contemporânea (“pós-fascista”). Ele não faz isso pra dizer algo simplista como “fascistas são doentes mentais”, até porque seria redundar numa compreensão empobrecida dos distúrbios mentais. Eu acho que ele analisa de forma mais sofisticada esses fenômenos da cognição, como se eles pudessem nos dizer algo mais profundo sobre a situação humana do que simplesmente “são problemas”.

A inspiração vem do fato de que, se podemos analisar “delírios” de uma forma mais produtiva, podemos estender essa análise também para os sonhos, até porque, não só linguisticamente como conceitualmente, socialmente, é muito fácil que uma coisa escorregue para a outra a depender da perspectiva. Um sonho de revolução anarquista, por exemplo, para muita gente é exatamente, precisamente, um delírio. Mas aí a diferença, é claro, é que estamos falando de uma projeção para o futuro, reconhecida mais como um desejo que precisa de ação prática para acontecer, do que um delírio típico que se refere a fatos do passado / presente que na verdade não são fatos, não aconteceram, não são assim, etc. Mesmo assim, um desejo que é colocado como projeto, e não como uma hipótese fantástica (“ah, como seria bom poder comer sem engordar nem sujar os dentes…”), imbrica também uma leitura do passado e, principalmente, do presente: se achamos que vale a pena fazer coisas que seriam consequentes para um projeto – um sonho – de revolução anarquista, é porque achamos que a realidade suporta esse projeto; que isso é, em algum nível, possível. E aí está a leitura do presente, elemento que pode ser lido por outrem como delírio.

Se é possível entender o delírio como função – como uma resposta cognitiva, se não razoável, funcional – o sonho, o sonhar acordado, poderia ocupar esse mesmo espaço, a partir da mesma ideia que levantei acima sobre o sonho que se tem dormindo: sonhos têm raízes nos medos. O sonho de ficar podre de rico, no medo da pobreza; o sonho de se casar, no medo da solidão; o de casar na igreja, com uma festa de arromba, no medo de não ser levado a sério por seus círculos sociais se não se conformar a certos rituais; o de morar no mato, nos medos da cidade; o de morar fora do país, no medo de nunca se descobrir se se deixar ser engolido pela cultura local, com a qual tão pouco se é congruente.

Se essa parte da leitura foi “autorizada” por ideias ressonantes que encontrei em Cohn, elas na verdade me vieram de uma ideia que tenho há tempos sobre como a esquerda em geral lida com os “sonhos” neoliberais. Sobre a narrativa do empreendedor de si que conquista tantos imaginários, eu fico pensando que a esquerda tem muitas respostas “estatísticas”, “sociológicas”, que, embora corretas, são também pessimistas – ou, talvez na linguagem de Cohn, tragam consigo um “afeto triste”. Elas são sempre no sentido de desestimular sonhos, de dizer: mas isso é um delírio. Não vai dar certo. São apenas instrumentos de controle capitalista. Acorde!

Demandar para que alguém acorde é uma coisa que me chama a atenção, uma peça inesperada da metáfora que estou tecendo. Primeiro: ninguém gosta de ser acordado com um berro. Segundo: ser acordado com um berro se a pessoa está tendo um sonho bom é ainda pior. Terceiro: qual o propósito de acordar? Para que a pessoa possa “viver na realidade”; viver com os outros, ter efeitos reais no mundo. Mas aí, também, depende de qual é o projeto de vida real. “Poxa, você foi me acordar pra isso?”. Assim como Cohn depois discute sobre a importância da construção de confiança e em projetos “lentos” de transformação, seria preciso acordar com carícias? Mais que isso, importa quem acorda, e para quê. Porque no âmbito da discussão ideológica pública com adversários que não compartilham um laço social minimamente relevante, um chamado para que a pessoa acorde é basicamente um chamado à conformidade. No âmbito de uma discussão desafixada de um projeto que energiza porque se trata de transformar, de melhorar, é uma exigência que o outro capitule-se aos fatos duros, ruins, nos quais o sonho se enraíza: aceite que as coisas são assim. Levante, não porque temos que lutar por esse sonho, mas porque você tem que pegar o ônibus pra trabalhar.

Mas tem outra coisa aí. Porque o próprio chamado a acordar – ou seja, considerar o “sonho” do outro menos projeto que delírio, e atar a respeitabilidade deste outro à condição que aceite uma versão da realidade que exige a aceitação daquilo que ele não acha justo ou bom – cria a própria análise deste projeto como sonho. As coisas podem ser discutidas de outra forma, mas se uma decisão é tomada de caracterizar as coisas de tal forma que terminam com você dizendo (com todas as letras ou não) que o outro tem que acordar, é aí que entramos no reino retórico do onírico. E nesse caso – e eis o pulo do gato – se estamos abordando os sonhos, estaríamos abordando também os medos. Rir do sonho do outro – o que é efetivamente o que fazemos, mesmo se estamos sérios, ao caracterizar o projeto como delírio – é o mesmo que rir de seus medos. Alguém rir do meu sonho é duplamente ultrajante, porque não só a pessoa julga minha cognição, meu entendimento do que é ou não possível no mundo; o sonho é uma exposição, uma vulnerabilidade, porque acaba comunicando também meus medos. E alguém que ri dos meus medos passa a vibe de um vilão que descobre o ponto fraco do herói. Quem ri do medo dos outros – não o riso leve, por exemplo, que vem quando a gente superestimou o medo, e agora fica tranquilo que é algo fácil de ajudar; um riso ácido, perfurante, pesado – quer diminuir o outro, reduzi-lo a seus medos; indignificar a pessoa.

Não quero transformar esse texto em algo muito mais longo do que precisa ser, e certamente haveria uma avenida pra isso aqui se agora eu quisesse estender essa metáfora ao infinito de todas as “mais indicadas” formas de luta social. Ainda assim, acho que uma saída útil aqui, nesse nível interpessoal, é a ideia de sonhos lúcidos. Não precisamos que a pessoa acorde. Não precisamos diminuir ninguém. Há que se compreender, e respeitar, medos. Mas é necessário estabelecer conexões. E nesse sentido, é possível conversar com a pessoa levando seus sonhos a sério, mas pensando em suas consequências. O que vai acontecer se você realmente concretizá-lo? Você consegue imaginar possíveis consequências ruins disso? Quais são os custos, para você e para os outros, de concretizar esse sonho? Você consegue imaginar como tudo isso afetaria sua relação com os outros? Qual é o seu objetivo, realmente, na vida – ter boas relações e experiências com os outros, ou chegar sozinho a algum lugar ou situação que idealizou? É possível recalibrar um pouco nossas expectativas, ter um pouco de coragem pra aceitar que, quanto a alguns medos, não vale a pena tentar neutralizá-los de todos, em nome de um sonho que não é só seu, mas um sonho de vivermos melhor uns com os outros, de formas menos destrutivas, mais saudáveis?

Talvez o objetivo não seja acordar ninguém, até porque no fundo o melhor mesmo, para qualquer ciclo de sono, é a pessoa acordar no seu próprio tempo. Talvez o melhor objetivo seja fomentar a transformação de sonhos em sonhos lúcidos: lentamente introduzir estímulos, a partir de uma posição de cuidado, e portanto confiança, de modo a fazer com que a pessoa controle seu sonho, em vez de ser controlada por ele.

“Agora digo ‘eu’: Por que agora?”, por Lucía Sánchez Saornil

____Sempre disse: “nós”…
E a palavra tinha a amplitude do coro,
Soava como um órgão de mil registros.
____“Nós” era uma multidão
de cálidas mãos estendidas,
pão compartilhado,
almofada acolhedora;
era um coração unânime,
o intercambio da lágrima e do sorriso.
Era um campo de espigas
que o vento inclina em uma única direção.
–Cada letra uma gota de humanidade entranhável –.
Dizer nós era apurar um vinho
de cordialidade até a embriaguez.
____Sempre disse “nós”,
por que agora, digo, “eu”,
um “eu” solitário e erguido,
alto como uma torre só cingida de ar?
____Digo, “eu”, elevando-o
sobre tudo que me rodeia;
e este “eu” tem um áspero
estalar de chicote.
____Sim, agora digo “eu”.
É que o caminho que eu ei de andar
não é senão para este “eu” só e amargo,
que não compartilha com ninguém.
____Nesta hora,
cada um está só e espera;
é uma espera que ninguém confunde
com uma esperança,
porque está feita
de desesperanças, precisamente.
Sim, agora digo “eu”. Todos
Dizemos “eu” algum dia…

SAORNIL, Lucía Sánchez. Siempre puede volver la esperanza. Madrid: Fundación Emilio Hurtado. Edición, introducción y notas de Jesús Gallego Montero. Tradução de Thiago Lemos Silva. 2022.

Tudo que não é inverno, por Margaret Killjoy

Editado por Diana M. Pho
Traduzido por Peterson Silva – leia o original aqui

Será que, num mundo renovado, ainda há espaço para quem só sabe destruir? Defendendo uma comuna produtora de chá nas florestas do noroeste dos Estados Unidos, uma pessoa busca uma resposta.

O céu noturno estava tingido de cinza-primavera, que é diferente do cinza-inverno, e a luz suave que descia por entre as nuvens iluminava o festival. O fogo dançava, as pessoas dançavam, e o meu namorado dançava com uma mulher que estava ali para trabalhar na colheita. Parecia que estavam se dando bem. Estava tudo perfeito no que restava do mundo.
Ali, no Chalé da Passagem, colhemos a maior parte de nossas folhas de chá no festival de Beltane. Tradicionalmente, a primeira colheita ocorria em março e a segunda em junho. Mas, tradicionalmente, o chá era importado da Ásia e, obviamente, há décadas não temos contato com nenhum lugar assim distante. Portanto, embora façamos uma primeira e segunda colheita modestas, a maior parte do que cultivamos é o que se chama de “Darjeeling-da-Passagem”. Mas como nós o cultivamos no meio do que costumava ser chamado de Estado de Washington, não é realmente Darjeeling, só
da-Passagem.
De uma xícara de cerâmica tomei um gole de chá de cogumelo, mas fraco, só o bastante para me deixar mais alerta, para me fazer perceber padrões de corpos e luzes. Eu não estava trabalhando, mas estava de plantão, e meu rifle estava empilhado no posto de guarda perto do portão leste, então não queria ficar alterada, foi só uma xícara mesmo. Havíamos adulterado o cogumelo com oolong da primeira colheita, e uma luta era travada na minha garganta entre os sabores agradáveis e os repugnantes, uma pequena guerra entre a cafeína e a psilocibina.
A banda tocava canções de guerra em violões, violinos e tambores. Os belos homens do coral cantavam as músicas que embalaram as minhas lutas, canções que eu adoro. Canções que nos transportam do mundo dos vivos para o limiar entre a batalha e o sexo, onde fazemos a vida e tiramos a vida. Meus pés descalços na terra, o vento da montanha nos meus cabelos.
A parceira de dança do meu namorado se afastou da multidão, e eu fui até ela.
“Você deve ser a Aiden”. Ela se virou para mim.
“Eu sou”.
“Khalil estava falando de você agora mesmo”.
Khalil ainda dançava, agora sozinho, chutando suas pernas grossas enquanto girava. Ele estava todo desajeitado, bem como ele gostava.
“Eu amo ele”, eu disse.
“É, eu percebi”, disse ela. Ela olhava para ele da mesma forma que eu olhava para ele.
“Você devia dormir com ele”, eu disse.
Ela se virou para mim.
“A faísca se foi”, eu disse. “Já faz anos. Eu me viro sem isso, mas não é tão fácil para ele.”
Ela ficou só me encarando. Eu nunca fui boa em ler rostos. Vi minha imagem dançar à luz do fogo no reflexo dos seus olhos verdes.
“É assim que funciona para mim, pelo menos”, continuei. “Sempre que eu durmo com outra pessoa, me dá mais vontade de ficar com ele. Você deveria dormir com ele”.
Um cheiro de outono interrompeu minha linha de pensamento. Não deveria haver qualquer cheiro de outono no festival Beltane, mas lá estava ele, em meio ao cheiro dos campos de chá, do ferro no suor dos dançarinos, da fumaça de pinheiro.
Uma voz ecoou pelos aromas da noite: “Fogo!”
Folhas de chá queimando. Era cheiro de folhas de chá queimando.
Corri para pegar meu rifle, agarrei-o e fui para as fileiras de plantas em direção à crescente coluna de fumaça. Ela começou como uma coluna dórica, tornou-se Atlas segurando o mundo em seus ombros; quando cheguei diante dela, era Yggdrasil, grossa e viscosa, sustentando cada um dos mundos.
Não havia raios, nenhuma causa provável a não ser incêndio criminoso, e eu corri para a borda da floresta além dos campos à procura de culpados. À noite, vemos movimento. De dia, vemos formas. Mas no anoitecer, não vemos nada. Não vi nada.
Foram necessários cinquenta de nós para evitar que o fogo se espalhasse cortando um aceiro, arrancando as plantas de chá com facões enquanto o fogo destruía nosso sustento. A banda seguiu tocando, porque o que mais se pode fazer.
Dos cem quartos do Chalé, o nosso ficava no canto nordeste, mais próximo dos campos e da floresta. Nossa cama era tão antiga que tinha um dossel; já era antiga antes do apocalipse. Já havia passado por coisas piores do que nós.
O efeito do chá tinha passado, mas as noites de primavera têm uma magia própria que eu nunca entenderei ou perdoarei, e não havia nenhuma célula em meu corpo que estivesse sóbria ou responsável. Khalil estava de lado, olhando pela janela para os campos queimados iluminados pela lua e para os bosques escuros que a lua não conseguia iluminar. Fiquei na porta.
“Desculpa”, ele disse.
“Está bem”, eu disse. Não estava.
“É que é Beltane, sabe. É a primavera. Sexo e flores e tudo o mais. Eu deveria querer você”.
“Está tudo bem”, eu disse. Não estava. “Nunca liguei muito pra primavera”. Essa parte era verdade.
“Você está linda hoje”, ele disse, mas ele estava olhando para a floresta. Ele não me olhava mais muito.
“E aquela mulher, que estava dançando com você?”, perguntei.
“Aquela que começou a me evitar depois que você assustou ela?”
“Essa mesma”.
“Está tudo bem”, ele disse.
Não havia muito mais a dizer. Saí do nosso quarto, deixando-o lá para ir dormir no posto de guarda.
Os primeiros raios de sol me encontraram na floresta com Bartley, nossa batedora. Samambaias-espada cresciam do chão, avencas cresciam nas paredes rochosas dos barrancos, e usneas pendiam de todos os galhos de todas as árvores em belos jorros de verde. Caminhamos ao longo de cedros derrubados em meio à úmida névoa. Eu não seguia os passos da Bartley, não exatamente, porque se uma pessoa deixa rastros, duas deixam uma trilha.
A floresta é algo que eu conheço. Um rifle é algo que eu conheço. Violência, eu conheço.
Paramos para o desjejum sob os galhos de um velho algodoeiro negro que se elevava sobre grande parte do resto da floresta. Comemos carne seca, dura mas fresca, e compartilhamos uma térmica de chá. Só chá.
“Você perdeu a trilha, né?” perguntei.
“Nunca teve trilha nenhuma”, disse Bartley. Bartley tinha um olho preguiçoso, estava sempre olhando para os lados como uma presa. Cinza e branco marcavam presença em seu cabelo outrora negro, e ela tinha idade suficiente para se lembrar do velho mundo. Ela sempre jurava que não, que a primeira coisa de que se lembrava era de estar sozinha na floresta, mal tendo passado da puberdade, cortando um cervo. Sua vida havia começado ao mesmo tempo em que tantas vidas haviam terminado. Muitas pessoas de sua idade são assim.
Khalil e eu, nossas vidas começaram com nossos nascimentos, no ano seguinte, na explosão de nascimentos pós-colapso. Quanto mais perigoso ficavam as coisas, mais crianças nasciam.
“O que estamos fazendo, então?” perguntei.
“Se eu fosse nos atacar, teria acampado nessa colina”, disse Bartley. “Há uma nascente lá em cima para beber água, e alguns penhascos abertos para nos espionar”.
“Por que acha que eles fizeram isso?” perguntei.
Bartley deu de ombros. “As pessoas não gostam quando os outros têm coisas boas”.
O Chalé da Passagem era uma coisa boa, isso era inegável. Éramos um grupo de cinquenta e cinco adultos, quarenta crianças e outras dezesseis pessoas entre as duas categorias. Construímos o chalé há dez anos, assim que o novo mundo se estabeleceu e traçou suas fronteiras políticas, assim que eu deixei minha adolescência. Cultivamos chá e desempenhamos nosso papel na rede de ajuda mútua do novo mundo, composta por algumas cidades-estado, comunas e vilarejos interdependentes. Vendíamos, dávamos ou trocávamos provisões para as pessoas que passavam pelo antigo túnel da ferrovia e protegíamos a Passagem da Fuga, limite leste do novo mundo.
Bem, na maioria das vezes, Bartley e eu protegíamos a Passagem da Fuga. Todos sabiam lutar, todos ficavam de guarda em rodízio, mas Bartley cuidava de questões de terreno e de rastreamento, enquanto eu cuidava de questões táticas.
“Quem fez essa carne seca?” perguntou Bartley. “E que tipo de animal de carne horrorosa mataram para fazer isso?”
“Está de mau humor?” perguntei.
“Óbvio”, disse Bartley. “Estou de ressaca e nem consegui dormir entre a bebedeira e agora”.
Ela chacoalhou a térmica.
“E ainda acabou o chá”.
Pegamos ele com as calças na mão. Não foi sorte – ficamos esperando por quase uma hora que ele fizesse alguma coisa, como cair no sono ou levantar para mijar. Bartley estava certa – ele tinha acampado na beirada, camuflando-se num arbusto, observando o Chalé com binóculos anti-reflexo.
Ele estava subnutrido, ou talvez esse fosse o biotipo dele, e ele coçava o couro cabeludo o tempo todo. Era mais jovem que eu, tinha menos da metade da idade de Bartley, e tinha todo o jeitão de um garoto da cidade. Suas roupas eram inadequadas para o lado oeste das montanhas – muito urbanas, muito velho mundo.
Lá estava ele, mijando no penhasco, quando saí de trás da árvore com um rifle apontado para ele. Eu o vi pensar em pegar seu rifle, e o vi perceber que isso não ia funcionar. Ele colocou as mãos para cima. Se ele fosse esperto e sua gangue tivesse dinheiro, ele teria um rádio configurado para transmissão automática ativada por voz, e haveria alguém ouvindo do outro lado. Mas ele era burro demais para raspar aquele cabelo infestado de piolhos. Eu tinha certeza de que ele estava completamente despreparado.
“Você vai me contar várias coisas”, eu disse. “Se me contar essas coisas, vai ganhar suprimentos e uma viagem de ida em qualquer caravana que você quiser”
“Não te digo nada, filha da puta”
Atirei nele. O rifle bateu no meu ombro, e o barulho afastou pássaros e machucou meus ouvidos. A bala o acertou na nuca e o mandou desfiladeiro abaixo.
“Tá de sacanagem?” Bartley perguntou.
“Bem eu não ia torturar o garoto, e ele não foi bacana”
Bartley balançou a cabeça. “Agora vamos ter que procurar ele, sabe”, disse ela. “Procurar o corpo dele”.
“Talvez ele tenha chá”.
Eventualmente encontramos os destroços do homem na base do penhasco, suas costelas brotando do peito. O sol do meio-dia e eu ficamos de olho na floresta enquanto Bartley vasculhava o corpo.
“Me ajuda a levantar ele”, disse Bartley.
Coloquei minhas mãos sob o que restava das axilas do bandido e o levantei. Suas entranhas pingaram na minha perna.
“Estou ficando velha demais para isso. O novo mundo está ficando velho demais para isso”, eu disse, porque era o que as pessoas deveriam pensar, mas eu realmente não sentia isso. A paz não funcionava para mim. A batalha é uma coisa que me pega fundo, me faz querer viver. O amor me pega fundo, me faz querer morrer.
Bartley vasculhou seus bolsos. Achou um baralho tosco de mulheres peladas e o jogou na floresta. Em outro bolso, encontrou um mapa topográfico. Por último, um rádio. Ela o desligou.
“Inferno”, eu disse. “Eles ouviram tudo”.
“Inferno mesmo”.
“O que tem no mapa?”, perguntei.
“Não tem nada marcado, mas ele é bem limitado, não cobre mais que uns trinta e cinco quilômetros quadrados. Já que o Chalé não está no centro, eles podem estar. Fica no meio do caminho daqui até o túnel”.
“Eles sabem onde estamos”, eu disse, “mas nós não sabemos onde eles estão”.
“Podem atacar hoje à noite”.
“Aposto que o fogo foi pra nos tirar da toca”, eu disse. “Colocaram esse garoto aqui para ver como organizaríamos nossa defesa”.
“Qual é o plano?”
“Eu não gosto da ideia de você ir sozinha…”
“Mas talvez eu tenha que ir sozinha”, disse Bartley.
“Eu vou avisar as pessoas, armar as patrulhas e levar as crianças pro abrigo”.
“E eu volto aqui pro alcance do rádio para falar com vocês quando descobrir onde eles estão”.
Começamos a descer a colina. O sol estava no meio do horizonte; cortava meus olhos e assava o sangue do garoto nas minhas roupas. Saímos da floresta e descemos até os trilhos da ferrovia cerca de um quilômetro a leste do Chalé. Bartley veio comigo no meio quilômetro ou mais em que nossos caminhos se sobrepunham.
“Eu sempre gostei de andar em trilho de trem”, disse Bartley.
“Ah, é?”, perguntei. Eu não estava realmente curiosa, mas preferi ouvir sua voz e não meu coração batendo sem ritmo, como sempre acontecia depois que eu atirava em alguém. O doutor diz que é só nervosismo, o que alguns livros antigos chamam de ansiedade generalizada. Para mim é sorte minha ser só isso que acontece comigo, carmicamente falando.
“Estradas são um inferno”, disse Bartley, “porque são fáceis. Não é fácil fazer uma estrada? Pega um monte de gente para andar bastante num mesmo lugar, você tem uma estrada. Você anda por uma estrada, é fácil, você pega no sono, e tem um babaca se escondendo com uma arma e você nem percebe porque está com a cabeça no mundo da lua. Estradas são um inferno”.
“Parece até eu e o Khalil. A gente se acomodou. Abriu uma estrada”.
“Agora, ferrovias, ferrovias são ótimas”, Bartley continuou. “Elas são difíceis de fazer. É difícil andar em cima delas. Elas são tão especializadas, e a melhor parte é que elas são especializadas para uma coisa que não existe mais. Elas não foram feitas pros nossos carrinhos puxados por vacas ou por pedais, elas foram feitas para quilômetros e quilômetros de vagões puxados por pura força de carvão. Quando você usa uma coisa especializada, e usa ela do jeito errado, essa é a beleza da vida”.
“Eu pensei que você estava mal-humorada”, eu disse.
“Eu estava mal-humorada”, Bartley disse. “Mas agora eu estou andando numa ferrovia”.
Nós construímos o chalé num vale estreito perto da Passagem da Fuga. O Rio Verde protegia o nosso norte, e as montanhas, o nosso sul. Uma estrada vinda do oeste terminava na porta do chalé, e uma ferrovia atravessava toda a nossa terra. Nós não tínhamos muros.
Não tínhamos muros por mil razões. Não tínhamos muros porque éramos pacíficos. Não tínhamos muros porque, embora cada vez mais raros, morteiros, granadas e foguetes ainda faziam parte deste mundo. Até mesmo alguns helicópteros, pelo que ouvi falar, sobreviveram às ondas eletromagnéticas que varreram da Terra tanta tecnologia, e helicópteros não respeitam muros. Não tínhamos muros porque um muro de pedra cega tanto o defensor quanto o atacante. Fechamos a estrada e a ferrovia, mas os portões ficavam abertos durante o dia.
Khalil estava me esperando no portão quando voltei. Ele tinha colocado aquela palheta no cabelo afro curto dele, aquela palheta que o comerciante me disse que era de tartaruga, e quem era eu para dizer que não era. Aquela que Khalil dizia que dava sorte, e quem era eu para dizer que não dava.
Ao me ver chegando, um sorriso dividiu sua barba. O sorriso crescia enquanto eu me aproximava, até eu estar em seus braços.
“Ouvimos um tiro”, ele disse. “Horas atrás”.
“Atirei em alguém”, eu disse. Eu era tão pequena no seu abraço. Ele era uma das únicas pessoas no mundo que era grande o bastante pra me fazer sentir pequena.
Ele beijou a minha testa, eu inclinei o pescoço para olhar para os olhos castanho-escuros por trás de seus óculos, aqueles olhos da mesma cor que os meus, e o beijei.
“Você está bem?”, ele finalmente perguntou.
“Estou bem”.
“Você levou horas para voltar. Estou esperando por você há horas”.
Eu me afastei, coloquei meu rifle no posto de guarda. Os corvos estavam de sentinela no portão.
“Eu não consigo lidar com você se preocupando comigo”, eu disse.
Era a coisa certa a dizer, porque era verdade.
Era a coisa errada a dizer, porque eu o amava.
Ele levantou os óculos, esfregou os olhos. “Eu sei”, ele disse. E foi embora.
Meu olhar se demorarou em suas costas, e eu ainda me sentia pequena. O vento uivava pelos campos de chá.
Levei as crianças e os enfermos para o abrigo antiaéreo — uma relíquia centenária de uma geração paranoica que estava certa sobre o apocalipse, mas errada sobre quando ele iria acontecer — e comecei a organizar uma vigília geral. Quinze pessoas estavam de plantão o tempo todo, nenhum adulto fisicamente apto estava isento de fazer um turno. Ninguém gostou, mas ninguém reclamou. Eu não digo aos cozinheiros o que nos dar de comer, não digo ao doutor como nos costurar, e não digo a Khalil ou aos outros horticultores quando nos recrutar para os campos para fazer uma colheita.
Já era tarde o bastante na primavera para que o sol se espraiasse baixo no céu, e acabei limpando rifles e contando balas. O que me deixou sem nada para fazer com meu cérebro a não ser repetir a conversa com Khalil repetidamente em minha mente, como se eu estivesse trancada na sala de computadores do porão com um vídeo repetindo infinitamente — eu podia virar a cabeça, mas ainda conseguia ouvir tudo. Assistindo a um vídeo, no entanto, eu podia esperar até o sol se pôr, a energia solar acabar, e o computador desligar. Não era tão fácil assim sair da minha cabeça.
Há um certo tipo de paz em uma fazenda, e as folhas de chá eram como esmeraldas ao luar. Os pássaros noturnos cantavam na floresta, as árvores se erguiam como corvos no horizonte.
Há um certo tipo de paz em segurar um rifle também. Ele tem a mesma simplicidade, a mesma honestidade. Com aquele rifle, naqueles campos, minhas intenções eram claras — nós trabalhamos a terra e defendemos os frutos do nosso trabalho.
Andei pelo perímetro leste, pelas fileiras de chá e pela cicatriz queimada onde antes havia tantas plantas do nosso chá. À frente, na guarita, luzes elétricas cuspiam uma enchente de vermelho pelos trilhos e pelas colinas. Usávamos vermelho para salvar nossa visão noturna. Usávamos luzes porque elas eram uma boa distração — faziam qualquer atacante em potencial acreditar que nossa atenção estava focada na ferrovia.
Eu tinha aprendido tudo o que sabia sobre táticas do jeito mais difícil. Havia mais corpos enterrados nos nossos campos que pessoas morando no alojamento.
Mas naquela noite, enquanto eu apertava um rádio na mão esperando a voz da Bartley, eles não vieram atrás de nós pelas árvores. Eles não vieram atrás de nós pelos trilhos, ou pelo rio, ou pelas montanhas ou pelas estradas. Eles vieram atrás de nós com artilharia.
Demorou três segundos para dois tiros destruírem o chalé. Eu vi meteoros cruzarem o céu em uma trajetória baixa e reduzirem minha casa a escombros. Eram projéteis traçantes, queimando fósforo pelo céu ajudar o artilheiro a mirar. Eles vieram do leste. Da Passagem da Fuga.
Eu derrubei árvores mais velhas que os meus avós para ajudar a construir aquele chalé. Eu pedalei oitenta quilômetros com vergalhões pelos trilhos das ruínas de Tacoma para reforçar a alvenaria, e matei duas pessoas — uma mulher e um homem — que tentaram me roubar no caminho. Eu gostava de pensar que sabia diferenciar os maus dos desesperados, e aqueles dois eram só desesperados. Deixei os ossos deles na floresta.
Três segundos, dois tiros, e todo o nosso trabalho se foi.
Com adrenalina no sangue, eu não processo som, cheiro ou toque conscientemente. Tudo é visual, tudo é câmera lenta. Corri pelos campos verdes em direção ao chalé destruído enquanto as pessoas saíam dele. Todo mundo gritava. Talvez eu estivesse gritando.
Vi Khalil atravessar a rua, carregando alguém em direção ao abrigo antiaéreo. Aquele homem existia para ajudar as pessoas, para carregar as pessoas, para amparar verdes brotos em sua jornada do solo à luz. Eu existia para outros propósitos. Desisti de voltar ao chalé — eles poderiam reconstruir tudo aquilo sem mim, e Khalil estava vivo, e o que é que eu ia fazer ali, eu era a guarda deles e tinha falhado na minha missão e eu não conseguia olhar Khalil nos olhos — e corri para o portão.
Coloquei um carrinho nos trilhos, sentei nele, coloquei os pés nos pedais e dei uma última olhada por cima do ombro. Khalil estava me observando, com as mãos nos quadris. Seu peito arfava, ele virou a cabeça e foi embora. Seu jeito de andar me disse mais do que qualquer palavra já havia dito. Era o andar de um homem que tinha desistido.
Pedalei para o leste com meu rifle no colo. Pedalei até a adrenalina passar e a névoa da noite ficar cada vez mais espessa e eu ter a chance de perceber o tamanho da confusão em que eu tinha acabado de me meter sozinha, o que era melhor que reconhecer a confusão da qual eu tinha acabado de fugir.
Não fazia sentido destruir o alojamento. Não fazia sentido destruir os campos de chá. Fazia sentido capturar nossas posses. Seja lá quem eu estava perseguindo, eu não os entendia. Se você conhece seu inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você conhece a si mesmo e não seu inimigo, terá tantas derrotas quanto vitórias. Se você não conhece nem a si mesmo nem seu inimigo, jamais conhecerá a vitória.
Eu já tinha pedalado por esses trilhos centenas de vezes. A Cordilheira das Cascatas era o meu lar, eu cresci sob sua sombra. Mas o medo se infiltra no seu sistema e transforma o familiar em alienígena. A névoa era grossa como leite, como sempre fora. Meus olhos rastreavam movimentos que eu sabia ser inconsequentes — o luar se movendo por entre os galhos soprados pelo vento, o brilho da luz no aço dos trilhos.
Passei por uma caixa de junção enferrujada, ainda pintada com pichação de antes do colapso, o que significava que o túnel estava a apenas algumas centenas de metros de distância. Parei de pedalar, acionei o freio para que o carrinho não rolasse de volta ladeira abaixo, e o desmontei o mais silenciosamente que pude.
É difícil disfarçar o som de calcanhar em cascalho. Eu ouvi o meu, mas tinha outro passo, mais fraco, bem atrás de mim. Uma mão apertou meu ombro. Eu me virei e fui pegar a faca no meu cinto.
Bartley.
Ela tinha um dedo sobre os lábios, seus olhos revelando a exaustão de quem não dormiu nada. Subimos o barranco, parando onde quase não podíamos mais ver os trilhos. Minhas mãos repousaram na casca de um pinheiro, seu cheiro inundando meus sentidos, eu me sentia totalmente em foco.
“Eles estão no túnel”, ela disse, murmurando baixinho no meu ouvido. “Eles têm artilharia militar. Duas armas enormes em dois vagões, além de um trem inteiro com armas entrando no túnel.”
“Quem são eles?”
“Não sei. Eu vi uns vinte. A maioria acampando dentro do túnel, pra lá da artilharia. Parece que estão lá há alguns dias”.
“Uniformes?”, perguntei.
“Não”.
“Motivo?”
“Não faço ideia”, disse Bartley. “Deram alguns disparos. Atingiram o quê?”
“Destruíram o chalé”.
Eu nunca tinha visto Bartley ficar emotiva, mas ela respirou fundo. Duas vezes.
“Vítimas?”, ela perguntou.
“Não parei para contar”.
“Bom seria matar eles todos”. Não era um julgamento, e sim uma preocupação estratégica.
“Como?”
“Botei minas no túnel uns anos atrás.”
“O quê?”, perguntei alto demais, trocando o murmúrio por um sussurro por um momento.
“Não contei a ninguém, achei que as pessoas iam ficar bravas. E achei que a assembleia geral não ia aprovar.”
“Quão perto precisa estar para detonar?”, perguntei.
“Perto”, disse Bartley. “Muito perto. Tem um compensado podre na parede sul, uns três metros para dentro do túnel. Atrás eu coloquei uma caixa velha de disjuntores. Tem que ativar os três primeiros e os três últimos, aí temos dois minutos para correr”.
“Isso vai detonar o armamento no trem?”
“Provavelmente não.”
“Como chegar lá?”
“Eu tenho uma ideia”.
“Eu não vou gostar, né?” Eu perguntei.
“Não”.
“Estou aqui para negociar nossa rendição”.
As palavras eram estrangeiras na minha garganta e pairavam estranhamente no ar. Não eram palavras minhas. Não eram palavras que eu realmente sabia como dizer, mas eu as disse em voz alta e atraí a ira de várias mulheres e homens armados. Mulheres e homens que eu esperava que não reagissem muito imediata e violentamente ao rifle que eu ainda carregava nas costas.
A neblina estava mais fina na base do túnel, e fiquei mais calma podendo ver as silhuetas cônicas das árvores e o parco brilho das estrelas acima de mim.
Dois vagões de plataforma se estendiam do túnel, cada um com uma arma do velho mundo, maior que algumas casas. Dentro do túnel, uma fileira de vagões se estendia mais longe do que eu conseguia ver.
Meia dúzia de pessoas se aproximaram de mim, a maioria não mais velha do que o garoto que eu tinha atirado do penhasco. Eu gostava de pensar que sabia diferenciar os maus dos desesperados, e essas pessoas não estavam desesperadas, não à primeira vista. Cada um tinha um rifle apontado para mim, e me observava com uma mistura de indiferença e malícia. O mal não é algo que fazemos uns com os outros, é a maneira como o fazemos, é o porquê de o fazermos.
Havia duas claras autoridades — um homem cerca de dez anos mais velho que eu, com grisalho salpicado em seu cabelo ruivo, e uma mulher com pelo menos vinte anos a mais que ele. Os dois conversaram brevemente, e o homem se aproximou.
“General Samuel John”, ele disse. Ele não ofereceu sua mão.
“Aiden Jackson”, eu disse. Eu não ofereci minha mão.
“Nossos termos são simples”, o general disse. “Qualquer um que sair entre agora e meio-dia de amanhã não será caçado e morto.”
“Quem é você?”, eu perguntei. “General de qual exército?”
“A Nova República de Washington”, ele disse.
Outro senhor da guerra.
“Por qual motivo você entende que a nossa terra é sua?”, eu perguntei.
Eu sabia o que ele ia dizer. Fiquei mais confiante de que o conhecia, de que eu poderia enganá-lo, ou atirar melhor que ele.
“Pequenas propriedades como a sua e o resto do ‘novo mundo’ são uma relíquia de uma era que pretendemos deixar para trás”, ele disse, bem como o esperado. “Washington já passou tempo demais sem uma autoridade central”.
Mentir para as pessoas é divertido. É até perigoso o quão divertido é. “Você está certíssimo”, eu disse.
“Nós vamos até o fim da linha com esse trem, devastando tudo em nosso caminho, e nosso salvador se erguerá das águas costeiras.”
Isso não era esperado.
“Construiremos novas cidades”, disse o general. Seus olhos se reviraram, e ele segurou as palmas das mãos viradas para cima na frente dele. “Cidades puras, construídas de luz e mana, e viveremos em sua graça”.
“Até os zumbis chegarem”, a mulher mais velha adicionou.
“Até os zumbis chegarem e devorarem quem ainda estiver nas cidades”.
Olhei ao redor, de bandido a bandido. Cada um tinha um sorrisinho na cara.
“Vocês estão de sacanagem”.
“É claro que sim”, disse o general. “Não estamos aqui por moralidade ou religião. Nós temos artilharia e queremos a passagem para cobrar impostos de caravanas, e se vocês tentarem nos impedir vamos matar vocês. Esse é o mundo agora, assim como sempre foi. É um mundo bom para pessoas como eu e os meus, e é o único critério de bem que existe para mim”.
“A gente ia só cobrar impostos de vocês, sabia”, disse a mulher. “Um pouquinho de fogo, mostrar um pouquinho do que a gente é capaz, e aí a gente ia taxar vocês. Mas aí eu ouvi você atirar no meu neto”.
Todos os olhos e todas as armas estavam voltados para mim, e isso era o que eu queria – dentro de uma certa e bem limitada definição da palavra “queria”. Eu os tinha atraído para longe da boca do túnel. Atrás dos bandidões cheios de si, na névoa fina, Bartley rastejava como um lagarto em direção ao detonador.
Eu não queria mais mentir.
“Vocês vão ter o que merecem”, eu disse. “Sempre teve gente que quer poder sobre os outros, e sempre teve gente que não quer. Toda a história do mundo é a história de gente que nem vocês matando gente que nem eu, e de gente que nem eu matando gente que nem vocês. Vocês vão viver uma vida miserável de merda, sem poder confiar em ninguém, cheia de medo, e aí vão ter o que merecem. Eu vou ter o que eu mereço também, no final, a mesma coisa que vocês, mas eu vou ter vivido uma vida em uma sociedade de iguais, entre pessoas que eu amo. Eu vou ter amado eles”.
“Ei!” Um dos bandidos, um homem jovem, se virou a tempo de ver Bartley entrando no túnel. Ele levantou seu rifle e atirou na minha amiga.
Eu me virei e corri morro acima, perpendicular à entrada do túnel. Sempre corra morro acima – ninguém gosta de perseguir ninguém morro acima.
Consegui me esconder atrás de um toco grosso vinte metros acima de onde eles estavam, e balas se encrustaram na carne já morta há décadas da árvore. Peguei e destravei meu rifle para atirar de volta.
Bartley também conseguiu cobertura, no outro lado do trem.
Eles poderiam me encurralar ali, me flanquear, e meter uma bala em mim, para depois se preocupar com Bartley. Eu tinha dois cartuchos extras, uma amiga, e nenhuma esperança de reforço. Eu não tinha nenhuma esperança.
Eu não devia ter sido cruel com o Khalil. O homem tinha deixado sua família, deixado a segurança e a estabilidade da Ilha de Bainbridge, para me seguir montanha adentro até o limiar do novo mundo. Ele tinha seguido seus sonhos.
Nos conhecemos no inverno. Todo inverno desde o primeiro, costumávamos andar ao longo do Rio Verde até sua fonte. Tirávamos uma semana para fazer isso, sessenta quilômetros ida e volta, segurando a mão um do outro e encarando a imensidão do céu e acampando na neve e andando no gelo. Nunca teríamos a chance de fazer isso de novo.
Ele se preocupava comigo. Ele tinha razão de se preocupar. Eu estava prestes a morrer.
Bartley chamou minha atenção, e então começou a bater no aço do trem com a coronha do rifle. Isso tirou todos os olhares de cima de mim, e eles tinham saído da cobertura para tentar me flanquear. Eu me agachei, mirei, e cravei uma bala na bochecha do general. Sua cabeça girou, seu pescoço se partiu, e suas pernas se deram por vencidas.
Os bandidos se afastaram de Bartley, e ela se levantou e atirou na mulher mais velha — a segunda em comando, talvez, ou talvez só a mãe do general. De qualquer forma, ela caiu com um buraco no esterno.
Uma bala me atingiu de raspão. Queimou meu ombro; o sangue jorrou.
“Fiquem pra proteger o trem!”, gritou uma das mulheres restantes para dentro do túnel. Os quatro artilheiros restantes voltaram para se proteger, agachados perto das rodas do trem.
Bartley correu, passou pelo trem e foi na direção das árvores. Ela atraiu tiros, mas não de todos os rifles. Respirei fundo duas vezes, deixei o oxigênio me encher, então rolei para fora da cobertura. Eu tinha aprendido há muito tempo a não me preocupar com tiros individuais depois de decidir o que eu tinha que fazer. O medo é a antítese da ação.
Ouvi um grito, o grito de uma mulher, e corri pelo barranco e entrei na escuridão do túnel. Lá estava o compensado. Atrás dele, a caixa do disjuntor. Estava escuro demais para ver qualquer coisa, mas tateei até encontrar os os disjuntores, e tentei não focar nos clarões de bala vindo de fora e de dentro do túnel.
Balas são perigosas. Sei muito bem disso. Mas a maioria das balas não é mirada de verdade, e balas não miradas são como raios num campo. Se você ficar abaixada, é provável que sobreviva.
Ativei os seis disjuntores.
Dois dos artilheiros do outro lado tinham cruzado os trilhos, e eu vi suas botas enquanto eles desciam para o outro lado do trem. Eu ficaria flanqueada.
Rolei para baixo do trem e atirei nas botas. Acertei uma, fui recompensada com um homem caindo de bruços, atirei na têmpora dele.
Eu rastejei, meus antebraços nos nós e no cascalho, o ferimento no meu ombro começando a protestar.
Eu atirei em outra mulher no pé, e os dois bandidos restantes do lado de fora caíram sem que eu atirasse — Bartley estava viva.
Eu estava quase na boca do túnel quando as cargas explodiram, e apenas o gigante de aço acima de mim me salvou da cascata de pedras que se seguiu. Não adiantava pensar nas vidas que estavam prestes a acabar, sufocadas na escuridão atrás de mim. Não adiantava ficar pensando se eu era má ou não.
Na poeira e na névoa, rastejei para frente, em direção ao fraco luar.
Bartley tinha um buraco na perna, onde antes havia músculo, gordura e pele, e eu a coloquei no carrinho com um torniquete na coxa. Dizem que você não deveria usar um torniquete por mais do que alguns minutos, mas eu aprendi na base de muito sangue que você pode se safar com um por mais tempo se precisar.
“Ei, me faz um favor”, ela disse, quando comecei a pedalar.
“Qual?”
“Não me deixa morrer”, ela disse.
“Só isso?”, perguntei.
“Só isso. Não me deixa morrer”.
“Você não vai morrer”.
“OK, mais um favor, por favor”.
“Qual?”
“Não me deixa morrer. Eu não quero morrer!”
Pedalei com mais força. Era morro abaixo, tranquilo, e entrávamos e saíamos das névoas, com Bartley ganhando e perdendo vontade de falar, entrando e saindo de um estado em que ela parecia que ia sobreviver. Eu só conseguia pensar em Khalil. Em como eu tivera certeza que ia morrer, que eu nunca ia vê-lo de novo. Foi uma longa meia hora até chegarmos às ruínas do Chalé da Passagem.
Três pessoas nos encontraram no portão, incluindo a mulher que havia vindo para a colheita, a que dançara com Khalil. Ela me ajudou a carregar Bartley para a enfermaria improvisada na estrada, qualquer constrangimento entre nós desaparecendo diante de questões mais urgentes. O doutor disse à Bartley que ela não iria morrer.
Falei rapidamente o que aconteceu, e as notícias se espalharam rápido.
Khalil não estava por perto, e um medo me atacou, um medo pior que tiro cruzado. Ele estava bem, eu vi ele escapar do chalé, eu sabia que ele estava bem. Mas ele não estava bem comigo.
Eu o conheci quando nós dois estávamos visitando Tacoma, numa época de morte, quando nenhum de nós achava que viveríamos até os vinte. Eu o amei metade da minha vida, a metade que importava.
Desci os degraus de concreto até o abrigo antiaéreo. Estava cheio de pessoas, e elas estavam feridas e assustadas e queriam falar comigo, mas todas tinham a distinta desvantagem de não serem Khalil.
Fui até o chalé, o que restava do salão que construímos. Havia pessoas que não eram Khalil vasculhando os escombros fumegantes, escorando as paredes que sobreviveram, cavando em busca de sobreviventes e cadáveres.
Fui até os restos da ponte que antigamente, no velho mundo, cruzava o Rio Verde. Mas não havia ninguém lá para me beijar nas sombras das ruínas, ninguém vagando no rio com a mão na curva das minhas costas, ninguém cantando em tons doces e graves. Estava pensando em entrar no rio mesmo assim, até que a água encostou em mim. O rio na primavera é frio como a neve.
Fui até os campos e o encontrei no canto nordeste — o canto que víamos da nossa cama com dossel. Suas mãos varriam as folhas. Ele estava fazendo uma serenata sem letra para o chá.
“Khalil”.
Ele me ouviu, já que seu corpo ficou tenso e ele pausou a canção, mas não se virou.
“Khalil, eu sinto muito”.
“Pelo quê?” Ele estava longe o bastante para eu mal conseguir ouvi-lo.
“Por muitas coisas”.
“Você faz o que tem que fazer”.
Uma brisa veio do rio por entre os campos, sussurrando contra as lágrimas em minhas bochechas, e manter minha voz intacta foi mais difícil que permanecer viva uma hora antes.
“Eu não quero só fazer o que eu faço”, eu falei.
Ele se virou para mim e estava chorando mais que eu. Ele sempre chora mais que eu.
“Está tudo bem se você se preocupa comigo”, eu disse.
“Você fugiu essa noite”, ele disse. Ele não tentou disfarçar a dor em sua voz. “Você foi sozinha. Talvez é demais para mim, que você não esteja aqui quando eu precise de você, que você nunca está segura. Que você corre riscos burros”.
Encurtei a distância entre nós, e ele ficou só um pouco além do meu alcance.
“Eu ia morrer hoje à noite”, eu disse. Sentei no chão, abraçando meus joelhos. “Eu ia morrer e eu nunca mais ia ver você de novo, e agora eu sobrevivi mas e se eu nunca mais ficar com você de novo?”
Ele se sentou à minha frente, espelhando minha pose.
“Você nunca fala comigo”, ele disse.
“Eu sei”.
“Por que você nunca fala comigo?”
“Tenho medo”, eu disse. Mas disse baixinho demais.
“Quê?”
“Tenho medo”, eu disse, mais alto. “Tenho medo. Tenho medo de você e tenho medo de nós e tenho medo desse mundo novo que a gente construiu, que logo não vai ter um lugar para mim aqui, para tudo que eu fiz e tudo que eu sou. Eu tenho medo de tudo que não é inverno e tenho medo de qualquer coisa menos morrer”.
Meus olhos estavam fechados, e eu não conseguia vê-lo, nem ouvi-lo, e tudo que eu ouvia era o meu coração batendo fora de compasso. Por um minuto, ao menos, foi tudo que eu ouvi.
Eu não vi ele se mover, mas seus braços me embalaram por completo. Ele me abraçou. Eu me deixei ser abraçada. Ele beijou a minha cabeça, e eu me aninhei em seu pescoço.
“Você faz o que tem que fazer”, ele disse, “e eu te amo por isso”.
“Me ama? Toda burra? Toda coberta em sangue?”
“Te amo”, ele disse.
Sua mão acariciou meu cabelo, e ele me segurou em seus braços como costumava fazer antigamente. Como se me quisesse. Puxei seu rosto contra o meu pela barba, senti sua boca na minha. Suas mãos chegaram aos meus quadris, e meus dedos buscaram seu peito.
A fumaça flutuava para longe das ruínas do nosso lar, e o amor era algo que me pegava fundo, e me fazia querer viver.

What the global periphery can learn from David Graeber

Today marks the 4th anniversary of David Graeber’s passing. When reading Fragments of an Anarchist Anthropology I fell in love with his wit, his edge, and his range. But after years of working with his texts, translating a few, and even interviewing him, I still have reservations about some of his ideas. The anarchist scholar in me admires them; the anarchist who grew up in Brazil is conflicted.

Take his stance on the police. In Direct Action, he discusses how “postmodern” they are, as they sneer at the concept of truth in service of authority. But in Brazil, mafias mixing police officers and evangelical zealots – who certainly believe in ultimate truths – are on the rise. One of Graeber’s better known concepts, “bullshit jobs”, describes an issue that most Brazilians – facing high unemployment, platformisation, and the erosion of labour rights – would call a “first world problem”.

The biggest issue might be his stance on tactics for social change. During the global protests against the IMF at the start of the century, Seattle activists came down to Brazil to share their ideas, telling protesters to just “lie on the ground” when the police come. Many, however, laughed in response. Serious harm was far too likely for them to attempt such a stunt.

Graeber, who took part in the protests of that era, similarly wanted to come up with alternatives to “a politics of direct confrontation”, arguing that violence was the “recourse of the stupid”. But such an argument, especially in the context of a country like Brazil, made for a toothless kind of anarchism. For him, “more militant” tactics often relied on broader demilitarization. But it seems that his favoured strategies were the ones which could only be entertained in social environments with much less violence than most countries, let alone those in the global periphery.

Graeber’s preferred solution in the face of such violence was simply “walking away”. It was a tactic that seems to have worked wonders for medieval peasants and South American societies against the state”. However, doing so today is far more difficult than in these contexts. The police keeps the oppressed in line and separated by borders. With fewer resources, starting over somewhere else becomes harder, and bonds to the land are an actually excellent reason to stay. Is not running away – when one can envision alternative forms of resistance – an aggrieving capitulation to the oppressor?

Graeber was aware of all that. He denounced a world of frictionless money but gated people. He understood that “hospitality” is what makes any “right to leave” consequential, and studied how relations of care were perverted to keep us in place. But how to build a world where walking away could fix collective problems, instead of being an individual solution, truly available only when rare conditions can be found?

He put his faith in occupying public spaces (such as Zuccotti Park) to experiment with the way we make decisions: change that and the rest will sort itself out. But without directly attacking structures of economic and social domination, co-option into state politics is to be expected – as in the case of many Brazilians involved in the June journeys” of 2013.

On the other hand, some of the tactics he rejected – because he thought them outdated, morally questionable, or less effective – might be successful in other contexts, and without compromising on principles. Chilean militancy came close to burying neoliberalism in the country; native populations in the Brazilian territory are using force against deforestation; Indian syndicalists have recently helped build the largest strike in human history.

There are still things that global periphery radicals can learn from Graeber, however. His 566-page masterpiece on debt helps us to see through the lies of austerity doctrines, which many countries sidestepped during the coronavirus crisis but Brazil was held hostage to. And while Brazil’s job market may not have been “bullshitised” yet, his reflections on social value and caring work are useful for questioning long-standing, unfair differences between professions in many peripheral countries. What’s more, in the vein of pretty much all anarchists before him, Graeber’s thought was profoundly shaped by the social struggles he took part in. If his experience in Madagascar shaped his earlier thought, his unflinching support for the revolution in Rojava significantly expanded his toolbox.

Finding that the principles of consensus were already rooted in hearts and institutions, he gifted the revolutionaries with much more interesting structural analysis (in other words: don’t just trust the process). For those who cried “imperialism”, he had two words: “loser left!”. In a brilliant essay exploring the dynamics of bullying, he grappled with the responsibility of spectators in every conflict: how can they contribute to emancipatory direct action, in Rojava, Palestine, or anywhere else, even at a distance? To the right to walk away he added the rights to disobey and to change rules. Each one, he emphasised, was a reality we must make and sustain ourselves, not something we ask a sovereign to grant us.

This trajectory, more than any specific tactics, is what he teaches us as a militant. Given time, most manuals become obsolete anyway. As we say in Brazil about unfortunate gifts, “the intention is what counts”. It matters a lot that he intended to live “among rebels” as much as possible, as he used to say. He did it precisely because then he could both help build a freer world and be taken there by others, should he vacillate or make mistakes, as any of us might do.

We cannot defeat domination without practising its alternatives, no matter the limitations of our efforts. Graeber always did what he could to help everyone imagine a more desirable future and live it, as much as possible, in the here and now. Taking the brunt of future-killing repression, global periphery radicals can still find within his work hopeful lessons.

Reflexões sobre a (pré-)venda do Floripa em Dobro de 2024

O Floripa em Dobro é um “tour gastronômico” da grande Florianópolis. Idealizado por alguns “foodfluencers” da região, ele oferece dezenas de cupons de desconto no estilo “pague 1 leve 2”. Utilizei a versão de 2023 e já garanti a versão 2024 na pré-venda – que foi… Um evento interessante.

Esse negócio é muito bom, não só porque os restaurantes costumam ser bons – ruim ruim mesmo não vi nenhum – mas porque financeiramente o negócio é absurdamente compensador. Não lembro do preço da versão de 2023 mas com dois ou três cupons você já recuperava o preço gasto comprando o “carnê” (digital); no período de vigência do tour, usei mais de 40 cupons.

Em 2024, contudo, a estratégia de vendas de acesso ao app (para simplificar, vou chamar de “carnê” mesmo) está sendo um tanto quanto esquisita. Entre outras coisas que serão exploradas abaixo, 15% dos carnês digitais disponíveis foram colocados para “pré-venda” às 20h do dia 13 de junho. A venda ocorreria no próprio aplicativo. A questão é que ocorreram tantos problemas nesse momento, gerando tanta frustração, que o resultado foi uma imensa onda de reclamações no Instagram [ex. 1; ex. 2]. Fiquei pensando sobre o que deu errado e por quê. Achei interessante compartilhar essas reflexões.

O que exatamente é o Floripa em Dobro?

No comentário da imagem acima, um usuário do Instagram chama o Floripa em Dobro de “produto”. Em várias postagens de tom negativo, pessoas demonstram decepção, alegando terem sido desrespeitadas enquanto clientes.

Mas a questão é: o Floripa em Dobro é mesmo um “produto”? A conta não fecha. O pagamento que é feito pro Floripa em Dobro não é uma espécie de adiantamento pros estabelecimentos em troca de alguma vantagem intangível, como, digamos, prioridade na fila pra entrar em um restaurante. A vantagem é monetária mesmo – você economiza muito, mas muito mais do que paga (para o aplicativo). No fundo, o aplicativo está mediando uma promoção entre um restaurante e um cliente. O Floripa em Dobro não é um produto. É uma ação promocional. Você paga pra ter acesso, mas no fim das contas – literalmente; na matemática mesmo – são os restaurantes que, ao oferecer coisas de graça, diminuindo parte da receita, estão pagando pras pessoas irem visitá-los.

Promoção with extra steps

Os restaurantes poderiam simples e individualmente inventar suas próprias formas de distribuir os descontos; maneiras menos sofisticadas poderiam se valer de códigos distribuídos em redes sociais ou coisa parecida – no fundo, se pensar direitinho, não é muito trabalho. Mas o Floripa em Dobro traz algumas vantagens, seja a “distinção” da inclusão, o fato de que uma vez que ele existe pode ser uma desvantagem não participar, a facilidade para gerenciar a promoção, etc. E isso sem ter que gastar nada, já que os custos operacionais são pagos pelos próprios clientes (no momento da compra do carnê).

A questão é que em 2024 isso veio com um custo: a burocracia para possibilitar esse sistema cedeu sob o peso de muitos acessos simultâneos. Mas a esquisitice vai além de um problema pontual:

    1. Aparentemente o carnê será vendido em duas versões: a digital e a física. Por um lado, podemos entender a versão física como uma vantagem para quem não quer usar smartphones ou levá-los para os restaurantes que visitar. Sinceramente, é o único cenário que imagino que justifique a existência de uma versão física, e não consigo levá-lo muito a sério enquanto boa justificativa. Isso simplesmente diminui o conjunto dos carnês digitais, muito mais cômodos.
    2. Tirando os carnês físicos, que serão vendidos em um único ponto da cidade junto com a liberação do primeiro lote dos digitais, o carnê aparentemente é vendido em três fases: a pré-venda, o 1º lote, e o 2º lote. A pré-venda aparentemente só estava disponível para quem entrasse em um grupo de whatsapp. Mas os organizadores criaram quase 100 grupos. O grupo em que estou tem 315 pessoas, então imaginando uma média de 300 por grupo, são 30000 pessoas. Como vou observar depois, eles podem não ter sequer esse número de carnês no total. Por que permitiram tantos grupos de whatsapp, algo especificamente feito para a pré-venda, se nem a metade, provavelmente, acabaria conseguindo fazer a compra?
    3. Uma esquisitice menor, mas curiosa: as pessoas poderiam utilizar o carnê na mesma noite, imediatamente após conseguir fazer a compra. Então não é bem “pré-venda”, certo? É simplesmente o 1º lote.
    4. Há relatos no Instagram de pessoas que não estavam nos grupos e que conseguiram comprar. Isso porque fazer parte do grupo era um requerimento para a pré-venda, e contudo em nenhum momento isso foi operacionalizado. Fazer a compra não exigia alguma espécie de link ou código obtido exclusivamente no grupo; você simplesmente abria o aplicativo no horário combinado e fazia a compra. Ora, se a única vantagem de estar no grupo era receber uma informação, algo facilmente transmitido para quem não estava no grupo, não havia vantagem alguma, nem mesmo, no fim das contas, grande fator limitante de pessoas aptas a comprar na pré-venda.

O “problema pontual”, contudo, foi o travamento multifacetado do aplicativo no momento em que as compras foram permitidas. O número de acessos simultâneos causou uma diversidade notável de problemas: o aplicativo não abria; o aplicativo travava / fechava; a busca da rua pelo CEP (obrigatória) não retornava o endereço para que o processo de compra pudesse continuar; o código PIX não era disponibilizado; o cartão não era cobrado; e, o que ocorreu comigo, a compra dava erro mesmo quando a transferência PIX foi concluída (só conseguimos comprar na terceira tentativa).

A questão toda é que embora a centralização das promoções em um único centro causa também um único ponto de falha (single point of failure). O aplicativo certamente não falhará no dia a dia das operações, mas nesse momento de venda é difícil que não falhe. Várias coisas poderiam ter sido feitas para mitigar o problema – a forma como a venda ocorreu, descrita acima, poderia ter sido melhor pensada. Antes de explorar como, é importante destacar que a questão aqui não é tripudiar em cima desse aplicativo – como eles mesmos admitiram ao cogitar uma solução para próximas edições, “vivendo e aprendendo”. Não pretendo crucificar ninguém. Mas não acho que o problema foi causado não só por algumas decisões ruins, e sim por questões um pouco mais estruturais desse “modelo de negócios”.

Respostas insuficientes

Pouco após a pós-venda, os organizadores usaram stories do Instagram para dar algumas explicações e, em um dado momento, até mesmo cobrar mais respeito nos comentários. Esse pedido provavelmente veio porque as pessoas não só estavam frustradas, mas reagindo com todo tipo de acusação: ninguém conseguiu comprar, e aquilo tudo foi só uma armação para cobrar mais caro depois, ou ainda vender os dados dos potenciais clientes; venderam só para quem conhecia os donos do aplicativo, etc. Às teorias de conspiração somaram-se as acusações mais simples de incompetência e falta de consideração.

A dinâmica da internet é bastante previsível: uma chuva torrencial de ataques, muitas vezes pessoais, leva à defensividade, e assim a respostas que costumam irritar mais ainda que a primeira causa de conflito. Os organizadores basicamente postaram que 1 – Já havia gente usando naquela mesma noite, então sim, várias pessoas compraram, 2 – as pessoas já sabiam (ou deveriam saber) que não haveria para todo mundo, 3 – a organização já havia postado um vídeo avisando que esses problemas aconteceriam, 4 – já haviam inclusive avisado que não seria “por chegada” e sim “por sorte”, uma vez que os problemas provavelmente ocorreriam, e 5 – que ainda há a chance de comprar nos demais lotes.

Essas respostas são insuficientes. Em primeiro lugar, as teorias de conspiração vieram de um lugar de frustração muito momentâneo. As próprias pessoas que conseguiram comprar já estavam respondendo a esses comentários, então isso perderia crédito rápido. Mas o que não se aplacaria é a frustração de quem perdeu tempo num processo que se revelou estúpido (pra quê precisavam pedir o endereço antes de fazer a compra, ou mesmo o CPF do pagador? Que diferença faz quem vai pagar o pix, se o dinheiro cai na conta igual?) pra não ganhar nada no fim das contas – e essa questão emocional não entrou na conta do pessoal da organização, que, ao postar vídeos com pessoas já usando seus cupons, estava (perceba, é isso que alguém frustrado sentiria) basicamente esfregando na cara de quem não conseguiu comprar que eles não conseguiram fazê-lo.

As respostas de 2-4 pioram o problema porque há uma diferença entre alguém de fora avisar que vai dar problema e a própria organização avisar – pois esta última é de fato a única que pode fazer algo quanto a isso. Ou seja, se o problema era tão previsível, por que algo não foi feito? A justificativa dos organizadores foi a de que “os melhores servidores foram contratados”; nomearam especificamente a Amazon. Mas de novo, se isso não os acalmou a ponto de eles acharem que ia dar tudo certo – eles avisaram que ia dar errado – então não foi realmente uma tentativa de boa fé de evitar o problema. Foi uma forma de dizer para si mesmos que fizeram tudo que poderiam fazer, quando na verdade não fizeram. A questão toda estava na dinâmica de vendas.

E isso porque a dinâmica de vendas sempre seria esquisita do jeito como eles planejaram. Ora: por que não por ordem de chegada? Ah, mas o sistema exige que seja na sorte – OK: por que não sortear as pessoas que teriam uma janela de tempo para fazer a compra na pré-venda? Se foi “na sorte”, então poderia ter sido “na sorte” de um jeito que não fizesse ninguém perder tempo. De fato, as próprias tentativas (?) de mitigar o problema provavelmente pioraram as coisas. Os grupos de whatsapp eram para limitar o número de pessoas (de alguma forma que não sabemos), mas foram inchados a tal ponto que todos ficaram com ainda mais medo de não conseguir comprar – o próprio vídeo avisando que haveria problema provavelmente causou ainda mais pânico, e assim estratégias que entupiriam ainda mais os servidores. Aqui em casa, por exemplo, faríamos uma compra só, mas havia dois celulares tentando comprar.

A resposta 5 tampouco é suficiente porque, tirando a questão da venda presencial, os próximos lotes serão vendidos de forma semelhante – as vendas abrem em um determinado horário, previamente combinado, e é o mesmo aplicativo, com os mesmos servidores, que vai ser martelado com a mesma intensidade, talvez até maior (já que não tem mais a miragem de “tinha que estar num grupo de whatsapp). Então isso não assossega, sendo, pelo contrário, até desmotivador. E soa mesmo como descaso.

O problema da quantidade

Teoria da conspiração ou explicação plausível?

A questão é que mesmo que a forma da venda seja melhor – os organizadores já estão falando em fila virtual para as próximas edições – existe uma questão mais específica aqui: simplesmente não há Floripa em Dobro para todo mundo que queira. De fato, em um outro story do Instagram, foi explicado que não há sequer para metade dos 100 mil seguidores do perfil.

A quantidade de carnês disponíveis responde a uma dinâmica curiosa. Todo restaurante participante tem que estar preparado para que todos os seus cupons sejam usados. Nesse sentido, se o desconto oferecido é, sei lá, 40 reais, e há 20 mil cupons, o restaurante está fazendo um investimento potencial de 800 mil reais em marketing (ao longo de um ano).

Esse investimento retorna de algumas formas que são mais perceptíveis – pessoas comprando coisas para além do que está incluído no cupom, aumentando o lucro até mitigar a perda de receita ou mesmo compensá-la – e outras menos – mais pessoas conhecendo o lugar que não viriam nele se não fosse pelo carnê, ou retornando. É verdade que as variáveis são muitas, especialmente afetando as formas menos calculáveis de retorno: por que alguém com o carnê retornaria ao restaurante, se ainda tem 50, 70, 100 outros lugares pra visitar com desconto? O lugar tem que ser muito bom, e num mar de opções destacar-se assim, mesmo com comida boa, não é fácil. Eu retornei (dentro do período de vigência do carnê) a lugares participantes mesmo depois de ter usado o cupom, mas geralmente por causa da conveniência geográfica, ou porque o lugar já era barato, muitas vezes até um lugar que eu já frequentava antes. Por outro lado, a pessoa que usou o cupom pode fazer propaganda para pessoas que não têm o carnê, e aí aumentar a clientela. Mas a mesma pessoa vai conhecer tantos lugares que não há garantia de que haverá tanta conversão assim.

No fim das contas, vai haver um retorno financeiro positivo ou não no local, e um julgamento será feito se valeu a pena ou não – isto é, quão responsável o marketing do Floripa em Dobro foi para esse sucesso (ou para o fracasso). A única questão fixa é o investimento que é preciso garantir, e isso limita a quantidade de carnês disponíveis já de saída. E aqui começa a gangorra: quanto mais carnês se quer vender, menos lugares participarão (pois o custo de investimento será mais alto). Isso tornará o carnê menos atrativo, por esta razão puramente quantitativa e por outras. Nesse sentido, é seguro presumir que nunca haverá Floripa em Dobro para a população inteira da grande Florianópolis – aliás, provavelmente não haverá pra nem um quinto dela, ou mesmo um décimo.

Em suma, Floripa em Dobro é um produto que não escala. E não escala porque nem produto é, é uma ação promocional – isto é, a forma como não escala se deve a essa sua característica. E essa escassez aplicada a uma oportunidade tão boa gera uma demanda alta demais, um hype alto demais, que vai frustrar as pessoas mesmo que as vendas sejam melhor organizadas.

Balançar um “presente” desses na frente das fuças de alguém, destacando tanto todos os seus benefícios, só pra depois arrancar dos seus dedos quanto elas tentarem alcançá-lo, fica parecendo… cruel. Deixa um gosto ruim na boca. Ainda que qualquer um que deu piti no Instagram, se colocasse seus sentimentos dessa forma, reconheceria num instante quão ridículo falar de um carnê de descontos pra refeições supérfluas desse jeito. É “cruel” não conseguir participar de uma promoção pra comer hambúrger com desconto? Claro que não. Mas naquele momento, depois de desmarcar compromissos, como alguém comentou, pra passar 20 minutos de uma quinta à noite tentando argumentar com um sistema burro e mal planejado… E não resultar em nada? Naquele momento a frustração é real. E a questão é se o Floripa em Dobro precisa ser assim.

Possíveis soluções

O fato de que o Floripa em Dobro é muito propagandeado por influencers levou ele a ser bastante conhecido. O problema é querer ser conhecido quando você não tem capacidade pra atender a todo mundo que, ao te conhecer, certamente irá querer ser atendido. Então a dúvida é: pra que essa propaganda toda? O boca a boca de cada edição já seria suficiente pra tornar o programa financeiramente sustentável. Cada potencial cliente adicional – isto é, para além da capacidade do carnê – não causa nada além de dor de cabeça. Uma solução, assim, é só parar de “vender” uma coisa que não é um produto, e sim uma ação promocional.

Essa é a questão fundamental do meu argumento: em nenhum momento as pessoas são lembradas de que se trata de uma promoção. Você só vê na sua frente o preço para acessar um aplicativo que te dá descontos. E quando você não consegue se tornar cliente, parece instintivamente uma quebra de contrato – no caso, o contrato tácito, entre mercador e consumidor, de que se algo está à venda eu vou conseguir comprar se tiver o dinheiro. É revelador que vários comentários mencionaram o PROCON, inclusive naquele tom ameaçador peculiar que tem a expressão “tirei print de tudo”. Meter o PROCON no meio provavelmente (?) não tem mérito jurídico algum, mas é indicativo do fenômeno, da percepção, do que está acontecendo pra deixar essa gente tão nervosa.

O problema com a interrupção da propaganda ativa é possivelmente a mesma razão pela qual os organizadores não deram qualquer vantagem (p. ex. prioridade de compra) para os apoiadores da edição de 2023, algo que fez muita gente ficar irritada também: para os restaurantes, não é interessante que as mesmas pessoas voltem pra se aproveitar de um desconto que inclusive já tiveram ano passado. A ideia do marketing de descontos é atrair público novo; pessoas que não iriam no lugar, e assim não o conheceriam, se não fosse pela promoção. Imagino que seja legal que pessoas que já conhecem o lugar voltem, especialmente se forem consumir além do prato que concede o desconto; no mínimo dos mínimos, evita que a pessoa não volte por mais um ano por estar visitando outros lugares do carnê. Mas não é o ideal.

Se ampliar o número de carnês é improvável, e fidelizar o mesmo público é indesejável, talvez desse pra manter a mesma base de clientes mudando a base de restaurantes. Isso pode ser indesejável para a equipe do Floripa em Dobro, já que trabalhar com os mesmos parceiros comerciais oferece as vantagens da crescente confiança mútua; provavelmente elimina muita fricção. Além disso, embora eu não imagino que seja muito difícil conseguir outros 180 ou 150 estabelecimentos para um carnê alternativo… Pode ser difícil conseguir outros ótimos 180 lugares para uma terceira edição. E aí entraríamos num equilíbrio interessante entre a quantidade de lugares bons e apelativos disponíveis e a disposição deles de oferecer descontos para a mesma comunidade relativamente homogênea de clientes em um certo período de tempo – quantos anos até que gostariam de fazer isso? 2, 3, 5? Não sei dizer. Não sei se a pergunta faz muito sentido, também; talvez seja mais importante tentar fidelizar que não participar de todo.

A questão da precificação, que apareceu em uma das imagens acima, também não me parece uma boa solução – porque ainda estamos no mesmo ramo de buscar não aumentar demais o número de pessoas que quer o carnê, mantendo-o basicamente estável. Só que fazer isso através do preço (o clássico “ajustar a demanda à oferta”) mexe com o caráter da proposta. Você cobra 500 reais no negócio e de repente não é mais divertido. Faz você pensar dez vezes antes de comprar, mesmo que ainda valha a pena na ponta do lápis – de fato, você elitiza o rolê completamente. Não é bem isso que o Floripa em Dobro parece querer, não só como veículo da vontade do marketing dos restaurantes, mas como “identidade” mesmo, como “proposta” que dá coerência pra experiência. É pra ser uma coisa divertida, evocando a animação de ir conhecer comidinhas novas com pessoas queridas, não 6 bolas de chumbo no cartão de crédito, não uma corrida matemática pra fazer valer a pena o “investimento”.

Contudo, parece que voltamos à estaca zero. Restaurantes querem sangue novo, e a equipe do aplicativo parece genuinamente entusiasmada com a perspectiva de que mais pessoas, e novas pessoas, consigam aproveitar o carnê. Mas pra fazer isso, eles basicamente estão pedindo que a própria “comunidade” em torno do negócio – que em vários comentários parece se sentir “traída” por ter ajudado a fazer o negócio decolar quando era somente uma “aposta” – estão pedindo pra essa galera ficar OK com potencialmente ficar de fora esse ano. E, na verdade, que todo ano será uma loteria pra ver quem vai poder entrar.

Talvez a melhor maneira de resolver o impasse é “fraturar” o carnê, duplicando e em alguns casos até multiplicando a quantidade que pode ser vendida. Há vários critérios a partir do quais isso poderia ser feito:

    • Fazer uma edição “lanche” (hot dog, hambúrger, pizza), outra “frutos do mar” (que poderia incluir os sushis), “café & sobremesas”, “churrasco & italiano”, etc. Mas, também, a variedade é um atrativo do carnê, então talvez não seja lá uma ótima ideia…
    • Fazer dois carnês diferentes, com restaurantes diferentes. Mesmo pagando por 90 cupons em vez de 180 o preço ainda valeria à pena, e a questão de “qual edição você escolheu?” seria interessante.
    • Fazer carnês com vigência menor, com menos restaurantes, ciclando as opções mais rapidamente, e com preço ligeiramente menor. Carnês sazonais, por exemplo: de verão, de inverno, de outono, de primavera. Mesmo quem não conseguiu comprar poderia seguir as redes – forjar mesmo a tal “comunidade” – pra ficar de olho em mini-carnês promocionais para períodos menores. “Microcarnês” de uma semana poderiam ser vendidos para turistas, aliás. Assim, ao não concentrar demais um “tudo ou nada” que dura um ano, a coisa ficaria mais dinâmica e em tese mais pessoas conseguiriam ter acesso.

Uma solução mais fácil e rápida

Escrevi esse texto porque fiquei genuinamente intrigado com o problema que se apresentou ontem na pré-venda. Foi como um quebra-cabeça: eu quis pensar em por que as coisas deram errado, por que as pessoas ficaram tão descaralhadas da cabeça, e como poderiam ser resolvidas.

No fim das contas, a minha conclusão é que faltou transparência.

É difícil entender, por exemplo, por que a equipe faz tanto segredo em relação ao número real de carnês disponíveis. Na pré-venda seriam vendidos não um número absoluto de carnês, mas 15% do total (no final foi 35%, aparentemente). Ao avisar que nem metade dos seguidores da página conseguiriam comprar, eles não deram números – só, de novo, essa coisa vaga de “não temos nem pra metade”. Certo, mas quantos? Quantos são?? O que custa dizer quantos são?

Uma das coisas mais irritantes de argumentos sobre a suposta “eficiência” do capitalismo é que não se considera a autorregulação que não é voltada para a competição, e sim para a cooperação e a compreensão mútua, como um fator essencial de eficiência. A provável resposta para o porquê de números reais não serem revelados é que com isso seria muito fácil descobrir a receita anual da equipe de organização, e com isso fazer todo tipo de julgamento – e, também, para que potenciais competidores entrem no mercado já sabendo de algumas informações sensíveis. A preocupação com competidores não me parece tão justificada nesse momento – não conheço mesmo qualquer alternativa em Floripa – mas ela aparece com relativa frequência; no Instagram é muito comum que repitam sempre “… Floripa em Dobro, o MAIOR tour gastronômico da cidade”, etc. O capitalismo – suas manifestações culturais, também, no que tange aos julgamentos que seriam feitos sobre a receita da equipe – incentiva a opacidade e o segredo, em vez da abertura e honestidade que convida à criatividade cooperativa.

De qualquer forma, que diferença isso realmente faria? Eu acho que a principal coisa é que o aplicativo ficaria muito mais fortemente marcado para o público enquanto uma ação promocional – o que ele efetivamente é – em vez de enquanto produto. E isso faria toda a diferença na forma como as pessoas encaram o prospecto de participar disso.

Veja, promoções têm limites de unidades. Em qualquer encarte de supermercado, mesmo que isso esteja escrito em letras miúdas, você tem lá dizendo que a promoção dura até acabar o estoque ou que se aplica a, sei lá, 500 unidades. Então fica mais tangível que a coisa simplesmente acabe; se você não chegou lá a tempo de comprar, paciência, é a vida – era só uma promoção. Com o Floripa em Dobro, a intangibilidade é um problema; é menos visceral para as pessoas a ideia de que não dá pra comprar mais porque acabou – e a equipe também não se ajuda ao liberar mais 20% de cupons só pra compensar pelos problemas do aplicativo, já que isso só atiça a sensação de que a escassez é manipuladora em vez de ditada pela realidade; por coisas que eles não conseguem controlar. Só que seria menos um problema se eles simplesmente fossem claros: olha, tem x unidades. 10 mil. 20 mil. 15 mil. Seja qual for o número, é isso que tem, e é isso que podemos oferecer, porque é isso que os restaurantes acordaram, porque isso é uma promoção. Quem entrou, parabéns, obrigado, bem-vindo; quem não entrou, paciência.

Eu sinceramente acho que as pessoas seriam mais compreensivas. A clareza, a abertura, diminuiria o apelo das “teorias de conspiração”, colocaria a todos na perspectiva de que isso se trata de uma promoção, no fim das contas, e que embora a experiência de participar dela poderia ser mais confortável, não passa disso. Ninguém é um “cliente lesado”, apenas uma pessoa sem sorte. E é isso.

Esse dado em particular pode nem ser tão importante quanto a postura de abertura. Muitas pessoas comentaram que os grupos de whatsapp só foram feitos para “gerar uma lista de clientes”. Isso se deve à aparente inutilidade deles para a compra do acesso, de modo que mais explicações – mais abertura – quanto ao processo de venda seria interessante. A acusação inclusive é séria; a equipe planeja vender esse banco de dados, compensando por exemplo os aparentes enormes gastos com servidores da Amazon? Por enquanto seria leviano especular sobre isso, porém o fato é que mais transparência gera mais confiança, e mais confiança quanto a uma questão leva a mais confiança quanto a outras – confiança, inclusive, uma coisa que “se ganha em gotas e se perde em baldes”.

Desejo que o Floripa em Dobro aprenda com seus erros e dê certo, mas realmente acho que o maior ajuste a ser feito, até pra própria tranquilidade da equipe tão dedicada a fazer dele uma coisa tão legal, é deixar mais claro para a comunidade que construíram em torno de si o que exatamente esse negócio é: manejar expectativas falando da realidade com todas as letras, pra ver como possibilitar uma coisa bacana pra cada vez mais gente.

Atualização 14/06 16:00

Os organizadores postaram mais algumas explicações nos stories:

    • Finalmente um número tangível! a quantidade de carnês físicos. Serão 800, e limitados a um por pessoa (o plano original seria que cada um poderia comprar 5). Mas, número total de carnês ainda não veio.
    • O grupo de whatsapp teria sido criado para facilitar a comunicação, considerando que as plataformas limitam o alcance orgânico das postagens. Até faz sentido a criação do grupo, mas nem tanto a suposta exigência da presença nele para a “pré-venda” (que operacionalmente não havia). Podiam simplesmente ter explicado sua função real desde o princípio.
    • Não esperavam a imensa repercussão, mas imediatamente emendam que “são influencers, tudo que a gente faz tem um grande alcance”. Bom… Então como não podiam ter antecipado a repercussão? Ao longo do dia ganharam 10 mil seguidores – mas se não havia para metade dos 100 mil, já não havia para 90 (aparentemente não havia nem para quem estava no grupo de whatsapp). A ideia da conclusão do post segue a mesma: seria preciso ter usado esse alcance não para “vender um produto” (que sabiam não haver para muitos) mas para deixar mais claro que se trata de uma ação promocional limitada.

Eles estão claramente tristes com a repercussão negativa e estão tirando bons aprendizados da situação – que é, a essa altura, a coisa mais importante que podem fazer, já que não dá (como avisaram nos stories) para implementar uma fila digital no aplicativo até a venda dos demais lotes.

Até agora parecem estar sendo proativos no suporte e nessas explicações; desejosos de atender as pessoas e de melhorar daqui pra frente. Esse post, mais uma vez, não é para tripudiar sobre uma falha mas para refletir só um tantinho mais fundo sobre suas razões, pra quem sabe haver ainda mais aprendizado.