Existe ainda algo de novo para dizer sobre O Pequeno Príncipe?

Se tem uma coisa que adoro (e não sabia) é ser surpreendido por um livro clássico: digo, todo mundo já ouviu falar do Pequeno Príncipe. E quando a gente ouve falar demais em alguma coisa temos a impressão de saber muito sobre aquilo e, mesmo que eu não fosse capaz de fazer pra ninguém um resumo da obra, achava que já tinha uma noção do que me esperava. Mas não! A narrativa surpreendeu, e o que eu achava que era um prefácio acabou tornando-se silenciosa introdução. Well played, Exupéry, well played.

Safadinho.

Que livro mais encantador! É muito, muito legal – achei que fosse cheio de “lições de moral” (e, de certa forma, é), mas não é de forma alguma enfadonho ou bobo, mesmo nas partes mais melosas. No meio de sua fantasia descompromissada, de traços fofos – das aquarelas às letras – dá para se emocionar sem deixar de rir. Nem de pensar.

O primeiro detalhe que me surpreendeu foi a hostilidade (leve, claro) com os baobás. É que na pesquisa para o livro conheci as árvores e, devo dizer, são impressionantes! Tadinhas, seu Exupéry, por que tanta raiva em relação a elas? Saiba que no deserto (tudo bem, não cresce no deserto do Saara, mas mesmo assim) teriam sido fonte fácil de água para você. Teria sido uma ÓTIMA inserção na história – mas não se pode ter tudo, não é?

“Sou foda” – Baobá

Negócio legal do livro clássico também é que você fica procurando o tempo todo pelo “momento” famoso; é como saber que alguém vai tentar te assustar e você fica imaginando a cada esquina quando vai acontecer. Ou como ver Matrix e ficar esperando pela hora que Neo para as balas com a mão, ou ver Titanic e esperar pela hora… E agora, qual é a cena mais icônica? De qualquer forma, o que foi legal de refletir foi justamente a relação entre o famoso momento do “cativar” (que foi mais longo do que eu imaginava) e a forma como vivemos em sociedade (em oposição, talvez, a ‘em comunidade’?).

Porque cativar é criar laços – e outra coisa que a leitura de verdade desse livro me proporcionou é clareamento quanto a isso. Eu sempre fui um pouco ranzinza quanto a essa frase feita (tu és responsável por quem cativas, etc) – ora, pensava eu, cativar é criar um afeto, mas eu também não sou culpado se alguém se afeiçoa a mim. Tira essa responsabilidade de mim! Tira!

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Photo by elbfoto “Não demores assim, que é exasperante. Tu decidiste partir. Então vai!” – Adorei essa linha.

Mas a verdade é que esse é um posicionamento ético consistente com um ser-no-mundo que vivencia a empatia; que percebe que vive necessariamente em conjunto com outros seres humanos tão merecedores de carinho e atenção quanto qualquer outro. Veja, a responsabilidade é algo grande – ainda mais se for por alguém. Podemos não sentir dessa forma o tempo todo, mas às vezes podemos perceber isso (especialmente, e isso é triste, quando falhamos nessa responsabilidade). Então dá para ver o caminho que nós, avessos ao apego comunitário, trilhamos: eu não quero ser responsável por ninguém. Portanto, não posso concordar que essa criação de laços me faça responsável. Em último caso até evitamos a construção de laços; é mais fácil assim, que nem nos justificarmos teoricamente precisamos.

Temos sim responsabilidade. E isso dá medo. De certa forma podemos até ter pena dos personagens tão julgados pelo Pequeno Príncipe: todos à volta ou com a impossibilidade de criar laços ou com mecanismos para lidar com essa responsabilidade: o homem de negócios, o bêbado (e achei meio cruel zombar de um dependente químico dessa forma; não lhe ocorreu perguntar por que bebia? Foi a única parte que achei verdadeiramente triste, tanto na superfície do papel como por detrás dele), o rei, o vaidoso…

E aí chegamos à política, afinal de contas: a criação dos laços nos dota de responsabilidades sim, mas deveríamos mesmo querer criar laços (ou nos sentir enlaçados) com mais de 200 milhões de pessoas? Não é essa – se esses laços são a condição para uma virada cultural que nos faça sentir essa responsabilidade pelo rumo do país – uma expectativa nada razoável? Derrida reclama que Rousseau prioriza a fala à escrita quando repete a hierarquia metafísica básica da nossa cosmologia ocidental, mas Rousseau tinha sim um pouco de razão ao dizer que de fato as comunidades menores é que são boas, rapaz – quer dizer, não só ele: de Montesquieu a qualquer teórico anarquista vemos isso. Ademais, de que serve (para além da utilidade militar mesmo, coisa de “gente grande”, pra usar o linguajar do livro) nossa preocupação com a responsabilidade nacional se o máximo que isso acarreta é a influência que pessoas do Rio Grande do Sul exercem sobre outras, do Rio Grande do Norte, e vice-versa, sem nunca terem se falado, sem nunca terem se cativado? Não quer dizer que Derrida esteja errado em querer reabilitar a escritura, e o trabalho dele é essencial, mas… Nesse ponto Rousseau não estava idealizando nada não. Estava era bem lúcido.

Falei.

Por outro lado, essa pode ser só mais uma vontade de tirar de nós a responsabilidade – já vemos isso ser feito tantas e tantas vezes, não é mesmo? Todas as vezes que nossos flagelos sociais são relegados à delegacia isso é posto em marcha: temos que prender, matar, execrar, etc. Somos um pouquinho esse Príncipe, essa figura da nobreza que, mesmo que tenha se arrependido depois (acontecerá isso frequentemente entre nós?) abandonou a Rosa por causa de seus defeitos; que julgou aqueles que não estavam prontos para os laços, sem querer se envolver muito com eles, e foi embora. Só se quer ter responsabilidade com quem não precisa de cuidado: deseja-se que sobre só gente que mereça ser cativado, sem se importar (de novo, tira essa responsabilidade de mim!) com toda a conjuntura estrutural que leva a desigualdades, injustiças, etc. Mas, por outro lado, qual é o limite? Temos que nos deixar cativar só pelos brasileiros, ou pelo mundo todo? Ou só mesmo por aqueles próximos de nós (que é o que dá pra fazer), e o resto que se exploda, de modo que se todo mundo se tornasse esse Príncipe da noite para o dia mesmo assim não alcançaríamos a paz na Terra? A atitude adulta, ao invés de própria de um infante de classes privilegiadas, não seria assumir a responsabilidade de combater a injustiça e o sofrimento, especialmente o estrutural, onde quer que ele se encontre, ao invés de tornar-se responsável apenas por aquilo que se cativa?

Ou não?

E perdoar, diria Derrida, não seria somente perdoar o imperdoável? Pense nisso.

Outras coisinhas:

  • Me preocupa um pouco uma certa preocupação com o “ser único”. O autor-narrador vai ser o único que terá “estrelas que sabem rir”. Mas se ele não fosse o único, isso mudaria de alguma maneira o que ele sentiria? Digo, se houvesse outro sentindo essa conexão também, com outras estrelas? Cada um tem que ter a sua relação única com algo especial, pelo que entendi; mas compartilhar essa fonte de felicidade não é possível, ou ela só existe enquanto há exclusividade?
  • Aquele rei pode ser visto sob a ótica da antropologia anarquista de Graeber / ou dos trabalhos de Pierre Clastres e, ao mesmo tempo, de um aforismo muito bom de Nietzsche, o número 124 do livro Aurora. O cara manda, manda, manda, mas não pode ser obedecido – porque não tem, é claro, um aparelho coercitivo para fazer valer suas decisões. Aliás, é bom mesmo que o Príncipe não tenha dado muita bola para ele, porque toda essa conversinha de que o Rei tem direito de mandar porque manda com sabedoria, porque não exige de ninguém mais do que a pessoa pode dar, etc, é uma bela de uma bosta. Ah, e quanto a Nietzsche, aqui vai o que ele tinha a dizer:

O que é querer? – Rimos daquele que saiu de seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele, e diz: “Eu quero que o Sol se ponha”; e daquele que não pode parar uma roda e diz: “Eu quero que ela rode”; e daquele que no ringue de luta é derrubado, e diz: “Estou aqui deitado, mas eu quero estar aqui deitado!”. No entanto, apesar de toda a risada, agimos de maneira diferente de algum desses três, quando usamos a expressão “eu quero”?

Em suma, é um livro super recomendado. Não deixe de ler achando que é uma história manjada ou infantil. É mais complexa do que parece – ainda que seja, talvez, por sua simplicidade que ela tanto nos cative.

Seremos corajosos para aprendermos com animais?

Não sei como cheguei nele, mas recentemente vi um vídeo no Youtube (bem curto, mas muito interessante), chamado “Why hierarchy creates a destructive force within the human psyche” (Por que a hierarquia cria uma força destrutiva dentro da psique humana).

O vídeo trata, na verdade, de macacos. Robert Sapolsky, que o estrela, é um cientista que estudou babuínos dentro das áreas de neurociência e endocrinologia (para citar algumas), por mais de vinte anos. Ele diz, na verdade, que nem gosta dos babuínos – diz que são horríveis uns com os outros. Traidores, violentos, agressivos, vivem sob uma hierarquia sombria que leva a muitas desavenças e a muita tensão social, o que significa (como ele pôde comprovar in loco) altos níveis de hormônios de stress nos macacos – especialmente, é claro, naqueles que estão nos níveis mais baixos da hierarquia.

Só que algo de interessante (cientificamente falando) aconteceu: um dia o grupo de babuínos que ele estudava comeu carne contaminada. Boa parte da população do grupo, especialmente masculina, foi dizimada. Só que, e aqui vem o interessante: quem costuma comer primeiro são justamente os mais fortes, do topo da hierarquia (os que conquistaram com sangue e suor aquelas vagas na pirâmide). Isto é, os que sobraram no grupo foram justamente os mais pacíficos, os macacos alocados nas escalas mais baixas da hierarquia.

A reconstrução daquele grupo foi afetada profundamente por isso: as relações sociais de antes não foram reconstruídas da mesma forma. Na verdade o grupo se organizou de forma muito menos violenta, substituindo toda a tensão social por mais momentos de afinidade e congregação.

Agora, isso nos diz duas coisas: por um lado, a existência de cultura entre os babuínos. Obviamente uma que não se manifesta da mesma forma que a nossa, mas veja bem: entre os babuínos, a prática comum é que os machos, ao atingirem a maturidade, migrem para outros grupos. Os novos machos que chegaram nesse grupo não trouxeram de fora para dentro a violência dos grupos nos quais cresceram: pelo contrário, adaptaram-se a vida diferente. Para além disso, constatamos também que esse comportamento não está “hardwired” no DNA, ou seja, não está pré-determinado, surgindo a partir de todo um contexto social.

Por outro lado, será que isso é capaz de nos dizer alguma coisa sobre nós mesmos? Será que não conseguimos arranjar uma organização social que prescinda da hierarquia, gerando um tipo completamente diferente de sociedade para nós (uma melhor, com menos stress e mais amor, por favor, por que não?)? David Graeber pensa que sim; Louis Dumont diria que não.

Mais do que isso, acho que a pergunta é: podemos aplicar as observações sobre os animais à nossa sociedade? Na minha opinião, a única forma de acreditarmos que não podemos é continuar insistindo nessa separação absurda entre animais e humanos – não que sejamos completamente iguais, mas o grosso de nossa cultura institui uma espécie de “singularidade” nos humanos (somos simplesmente melhores) que escapou na transição de uma visão bíblica de origem da humanidade para uma visão científica (dizem os autores desse livro que todo psicólogo formado nos EUA tenta responder a uma pergunta sobre o que separa os humanos dos animais, afinal). Do mesmo modo que é triste ver Marshall Sahlins falando sobre “gene egoísta” de modo… Sinceramente, errado (ainda escreverei sobre isso aqui), é triste ver, por exemplo, professores meus se referirem aos animais com a separação em questão pressuposta e sem ser questionada; é como se, mesmo tendo lido Viveiros de Castro, não tenham prestado muita atenção ao que os ameríndios tinham a dizer de fato.

Porque se percebermos os animais como tendo suas próprias captações da realidade e manifestações de singularidades, de processos que podemos entender como minimamente análogos aos culturais, vemos que continuar dizendo a nós mesmos que tais respostas não podem ser as nossas são escolhas políticas e simbólicas, e que podemos sim, por opção, seguir o exemplo de animais – isso não é ruim; isso não faz de nós pessoas piores. Seguir o exemplo de bonobos pode ser meio extremo? Talvez (embora o argumento do livro é o de controle da paternidade – extremamente “sociobiológico” pro meu gosto, mas enfim). Mas aprender, por exemplo, com os ratos sobre o que as drogas realmente significam é um passo na direção certa. E aprender com estes babuínos, creio eu do fundo do meu coração humano, também é.

“Idiocracy” e o problema do olhar sobre o indivíduo

O filme “Idiocracy” é fantástico: a premissa é que, como cada vez mais as pessoas inteligentes têm menos filhos, no futuro o QI médio da humanidade vai cair tanto que todos vão ser idiotas completos. Ponha no meio disso um soldado americano (o mais “medíocre” que o exército conseguiu achar) e uma prostituta (tiveram que apelar para a iniciativa privada, no caso da mulher), que serviram como cobaias num experimento de criogenia. Quando eles acordam, 500 anos depois de serem congelados, a Terra está um desastre porque eles não conseguem fazer nada direito.

O caso é que fui ver esse filme depois que ele me foi indicado no contexto de uma discussão em que o argumento de quem o indicou era o de que, caso a realidade que Huxley previu em Admirável Mundo Novo fosse verdadeira, a culpa seria nossa. Nesse sentido, nós não damos valor ao estudo, à educação, à inteligência, e vamos pagar o preço por isso. Não consigo deixar de perceber um certo tom, nessa acusação – posso estar errado, mas sabe quando você fica coçando o queixo com aquela incomodação na cabeça? – de uma visão individualista, de sociedade atomizada, em que quando se diz que a culpa é nossa o que se quer dizer é “a culpa é minha, e a culpa é sua, e a gramática transforma isso em nossa”. O que se defende é transferir a culpa de um “ser” “outro” que não controlamos (porque assim é muito fácil reclamar, de fato) para nós, relacionar as nossas ações com suas devidas consequências e repercussões sociais. Isso é ótimo, e necessário, para não falarmos sempre de um fantasma abstrato – o duro “sistema” – sem revisarmos nosso próprio umbigo.

Só que uma revisão de umbigos por si só nunca é o suficiente, esta é a questão. Especialmente por causa 1) do alcance das nossas ações individuais; e 2) do fato de que elas não existem no vácuo, mas dentro de uma cultura, de expectativas e percepções sobre o funcionamento da sociedade. Sociedade que, pra ser o advogado do diabo durkheimiano, precisa ser construída por nós para que, quando “pré-existir” às crianças do futuro, seja uma boa influência para elas nessa coisa de valorizar a inteligência, etc.

Quando se diz, por exemplo, que o racismo é uma instituição e não um sentimento ou forma de pensar, o que se quer dizer é que se conseguirmos fazer todo mundo deixar de pensar (e sentir, o que é muito importante) de forma racista, não vai adiantar nada se a maioria da população negra mora nas favelas (ou na ordem contrária de palavras); não vai mudar muita coisa se as profissões de prestígio e os cargos de chefia são em sua maioria dos brancos e os negros sempre são os serventes, os faxineiros, os invisíveis que fazem o espetáculo acontecer para quem tem dinheiro para entrar no teatro da vida contemporânea. Isso porque a mudança dessas condições requer uma revisão de umbigos, mas a revisão de umbigos precisa levar ao próximo passo: quando os umbigos se encontram (não muito perto, que aí já é outra coisa) para combinar esforços e agir politicamente. Tomar providências para alterar uma situação que, quando injusta, não é uma coincidência posto que existem raízes históricas para ela (não adianta dizer que hoje não existe racismo [embora ele exista sim], importa é que ainda hoje se sentem os efeitos de sua preponderância absoluta no passado). Da mesma forma o passo de rever a individualidade não é o passo completo – até porque ela depende também de um fator cultural.

Marshal Sahlins, em seu belíssimo “A ilusão ocidental da natureza humana“, diz que a ideia de natureza humana no imaginário social corresponde, sutilmente, a um “cenário imaginado de adultos masculinos ativos, excluindo mulheres, crianças e idosos”. Quero focar aqui numa parte fundamental da frase: crianças. Essas decisões que fazemos são feitas em relação a um referencial. Em um maravilhoso vídeo da RSA Animate sobre educação, há uma parte que nota a disjunção atual, em muitas partes do mundo, entre educação acadêmica e um mínimo sucesso na vida – o que faz com que, é claro, mais pessoas busquem primeiro a segurança, e depois o sucesso, sem necessariamente passar por um processo em que adquira coisas como consciência política e social, conhecimentos especializados sobre sua área de atuação, ou coisas como o hábito de leitura, que podem tornar nosso raciocínio mais arguto. Deveriam fazê-lo? Há milhões de formas de argumentar que sim – mas dadas as circunstâncias e nosso ambiente cultural, não fazê-lo não é uma escolha perfeitamente racional? Porque ela é, sim.

Então a questão é que, embora essa possa não ter sido a opinião de quem me indicou o filme, há quem vá interpretar essa ideia como uma questão de consciência “que vai de cada um”: não adianta ficar “enchendo o saco” por causa da falta de protagonismo feminino em Hollywood; não adianta reclamar do tipo de entretenimento que é exibido nas concessões públicas de TV (como BBB – eu tinha um link pra colocar aqui mas o site saiu do ar – ou Malhação, que faz poucos dias vi, numa televisão ligada a esmo por aí, glorificar um beijo à força com música fofinha), e por aí vai; tudo cai na conta da liberdade absoluta de cada agente do campo social fazer o que quiser e dane-se, você que tem que deixar de ver essas coisas. Educação e entretenimento não estão separadas. As pessoas gostam de achar que são porque associam educação à escola, mas as crianças aprendem a agir em sociedade, ou seja, a se tornarem proficientes em viver em meio às pessoas ‘ao redor’ dela, os modelos de humanidade que lhe aparecem como reais e positivos, a cada minuto de suas vidas – e todas as horas que elas passam vendo televisão não são jogadas no lixo, mas são significadas e codificadas de uma maneira muito sutil, mas essencial.

Considero que a ação política, a ação social, a ação que vai além de simplesmente ser um “indivíduo melhor”, resistindo a qualquer “cultura de idiotização”, é a única resposta possível para reverter um quadro desse tipo e evitar uma “Idiocracia”. De um jeito ou de outro, assistam ao filme, que é engraçadíssimo.

Um conselho popular, corporativismo de escritor independente, a descrição do olhar

“Se você não tem nada de bom pra dizer, não diga nada” – que conselho popular mais interessante pra se sentar na sombra debaixo de uma árvore, colocar a mão no queixo, balançar a cabeça pra cima e pra baixo, e pensar. Não pretendo fazer uma análise profunda dele; não sei nem ao certo como me posiciono em relação a ele. Acho que (como tudo nessa vida) depende muito do contexto; entendo que há lugares e situações em que não há benefício para absolutamente ninguém manter um pacto com a honestidade irrestrita e falar tudo o que vem à cabeça. Em outras situações, a sinceridade e a ação de expor uma coisa que se considera ruim é imprescindível.

Mas, independente do julgamento que eu possa vir a formar sobre essa frase, eu admito que a ponho em prática algumas vezes.

Enquanto escritor independente, sei o trabalho que dá. Sei o esforço que é. Por isso, ao ler literatura brasileira independente – coisa que tenho feito um pouquinho mais e mais de cada vez – às vezes me irrito com certas coisas. Seja um completo descumprimento de um pilar básico da boa literatura; sejam os diálogos feitos na verdade de monólogos alternados; seja a linguagem completamente inapropriada para o personagem (jovem paulista contemporânea falando como narrador de trailer de Sessão da Tarde? Ugh). Há muitos motivos pra se irritar, mas… Mas e daí?

Escolho ou não continuar o livro a partir da minha visão; não vou mentir pra mim mesmo no Skoob para ser simpático, deixando a página do livro um pouco mais “bem na foto” (tenho um TOC ENORME com o meu Skoob e jamais marcaria lido um livro que abandonei). Mas por que ir mais longe? Porque fazer uma resenha explicitamente negativa de uma ficção? Uma acusação frontal?

O autor, que já está passando por dificuldades como passa quase todo o autor independente, não precisa lidar com isso – não por parte dos próprios autores, que deveriam estar muito mais juntos do que são na prática (reconheço também a culpa). Os autores aprendem sempre, vivem a aprender – eu sem dúvida alguma também. Parte das críticas (racionalizo eu) tem até a ver com uma certa questão de gosto, de preferência. Abraço, assim, sem muita vergonha, o corporativismo mais baseado na autopiedade canalizada pela “regra de ouro” do que em qualquer outra coisa. Veja bem: blogueiros têm mais é que fazer um bom trabalho lendo e criticando mesmo. Recebi uma resenha muito boa do blog Fantasia BR, que exalta os pontos fortes, mas dá uma opinião sincera sobre o que eles consideraram algo negativo. Achei maravilhoso – mas isso fica pros blogs, que não devem mesmo mentir pra puxar saco, pra evitar falar mal, etc; já eu, como fellow escritor, vou preferir ficar quieto se não tiver nada de bom pra dizer.

Três adendos. Primeiro: com autores grandes, as chances de leitura se multiplicam. Para um autor independente uma crítica negativa pode ser a diferença entre um leitor em potencial (que poderia no fim ter uma visão bem positiva sobre a obra) “se arriscar” e começar a ler ou deixar para lá.

Segundo: Stephen King escreveu um livro, parece, sobre sua jornada para ser escritor (mais um livro dele cujo personagem principal, é, pasmem, um escritor – LOL) e ele dá uma dica muito interessante, razão pela qual ler literatura independente muitas vezes traz esse risco de se ler algo que se parece mais com uma fanfic sem nem uma revisão preliminar: seja pago para escrever. King mandava seus textos para revistas de literatura. Como elas têm que escolher onde investir, a escolha significa algo a mais para o escritor – e o feedback costuma ser brutal, honesto. A diferença, amigos, é que nos EUA a cena de revistas do tipo era efervescente. No Brasil a procura tem de ser com lupa.

Por último: já falei mal de escritor independente e nacional. Mas sabem por quê? Porque os livros são foda. Porque recomendo que você vá lê-los imediatamente. Ainda argumento que o cara escreve mal, mas a história em si, a parte “macro” da coisa, é muito boa e me prendeu o bastante pra me fazer ler 500 páginas A4 em tela de computador em pouquíssimo tempo. E no volume 2 li o digital de novo, as mesmas mais ou menos 500 páginas A4, numa tela de um Galaxy 5. Não, não é S5. É 5 mesmo.

A descrição do olhar

Quando olhamos para os olhos de alguém, especialmente para os olhos de alguém que conhecemos bem, podemos ler muitas coisas. Mas essa leitura, embora só possa ser cognoscida na forma de palavras, só têm sentido em toda a experiência, que às vezes dura milésimos de segundo, de leitura – leitura que é, na verdade, uma experiência visual.

A melhor coisa que escritor tem pra fazer com o olhar é o mecânico, o básico: se está lacrimejado, se está vermelho; se foi pra lá, se foi pra cá. Se está vazio, duro, fixo, piscante, apertado, fechado, fechado por um longo tempo, torto, vesgo, agitado, indeciso (esse já é meio borderline), arregalado, perdido (esse também), aguado, abaixado. A segunda melhor coisa é o reino do poético, do metafórico; o drible da narrativa, o tempero da escrita, mas que tem que ser encaixado num contexto ou pode não ser nem um pouco efetivo – ser, pelo contrário, até brega.

O que não gosto é querer pegar o atalho que já vi por aí (e do qual *gasp* posso até ter sido culpado. Pelo que vi quase fiz isso uma vez) de dizer, por exemplo, “personagem tal olhou com olhos tristes para…”. Isso aí é uma preguiça. É o autor querendo dizer que o personagem estava triste ao invés de fazer o leitor sentir isso através da situação – só que, pra não pegar muito mal, faz o “olhar” ficar triste, não o personagem.

Isso me lembra um personagem de um livro de Zafón (um dos Semperes) que trabalhava num jornal quando era jovem e o editor sempre dizia para ele: corta os adjetivos, nada de adjetivos! Um exagero, é claro – um estilo peculiar, que particularmente não é o meu favorito, mesmo que eu adore a desértica trilogia Millennium; não é coincidência que a Millennium seja uma história que gire em torno de jornalistas, nem que o autor da Millennium tenha sido um jornalista, nem que seja um editor de jornal que dê esse conselho. Mas enfim, o princípio fica: adjetivar um “olhar” é complicado, por mais que na vida olhemos para alguém e pensemos “taí, esse é um olhar triste”. Ler um livro, por mais que a atividade precise dos olhos, não funciona do mesmo jeito. Precisamos de mais pra sentir essa força do olhar. Ou, nesse caso, de menos.

Resenha de Fragments of an Anarchist Anthropology

Conheci David Graeber já há bastante tempo através de um amigo, e agora finalmente chegou a vez de lê-lo. Só com as sinopses dos livros já o achei fantástico. Resolvi começar leve (ao invés de por “Debt” ou “The Lost People”, com mais de 400 páginas cada um), de modo que escolhi este livro. E que obra! Graeber reacendeu em mim uma paixão pela teoria anarquista que eu já havia transformado em algo que tomo por garantido, mas que eu não tinha mais tanto entusiasmo por não ser para mim algo novo. Mas Graeber pegou o anarquismo e o apresentou de forma tão nova e maravilhosa, tão inteligente e audaciosa, misturando-o a uma antropologia tão honesta e poderosa, que é impossível não sentir o sangue negro da teoria política mais revolucionária do mundo contemporâneo correr de novo pelas veias.

O livro começa discutindo a pouca quantidade de anarquistas no meio acadêmico, fazendo no processo um apunhado maravilhoso da relação entre anarquismo, marxismo, o processo revolucionário proposto por esses galhos teóricos, a universidade e os intelectuais em geral. A exposição passa por muitos “micropontos” discursivos e “micromanifestos”, uma conclusão notável sendo a de que o marxismo tende a ser uma teoria ou discurso analítico quanto à estratégia revolucionária, enquanto o anarquismo tende a ser um discurso ético sobre a prática revolucionária. Logo depois há uma exposição entre as conexões históricas entre a antropologia até o fim da primeira metade do século XX e o anarquismo.

Depois disso vem a ideia de um sistema econômico não baseado num endeusamento dos valores do mercado (Mauss) e a ideia de um sistema político não baseado na coerção (Clastres), ambas encontradas bem vivas e funcionais em sociedades “não ocidentais” estudadas pela antropologia. Elas encorpam uma “teoria antropológica anarquista que quase existe” (uma vez que o argumento é que uma tal teoria ainda não existe). A coisa fica ainda mais pujante quando passa a uma das principais asserções do livro: a ideia do contrapoder imaginário, em que as sociedades igualitárias, baseadas na ideia de comunidade, arranjam as instituições sociais de tal forma a combater o aparecimento de sentimentos e ações que podem despertar tensões destrutivas. O adjetivo “imaginário” vem da observação de que, como todas as sociedades têm tensões internas em que os as pessoas lutam pelo domínio em termos de valores (puxando os membros da sociedade em várias direções diferentes), as sociedades mais pacíficas e que têm mais impulso na direção da manutenção da igualdade são aquelas cujas visões de mundo são as mais sombrias, populosas de monstros e bruxos e magia negra que quer o mal deles. Mas, para além disso, trata-se do campo das ideias, dos mitos do cotidiano, da forma como as grandes instituições e aglomerações humanas (que, afinal, não “existem” num sentido estrito para além do status de abstrações) são entendidas.

Essa ideia é importante, argumenta Graeber, e isso ele demonstra ao mobilizar o exemplo de um povo de Madagascar, que aparentemente “do nada”, de uma hora para outra, gerou formas de auto-organização igualitária e não-hierárquica para gerenciar a si mesmo — uma revolução anarquista que não veio do nada: veio, na verdade, a partir da percepção de que coisas como o sistema de trabalho assalariado, a hierarquia política e militar, etc, eram negativas, e então as pessoas se mobilizaram para criar novas formas de organização. Foi uma revolução pacífica e, talvez por isso, não virou notícia em lugar nenhum. Não foi preciso pegar em armas para confrontar violentamente o governo estabelecido; o governo foi ignorado, e é precisamente esse tipo de estratégia que vai ser exaltada mais tarde no livro (a estratégia do êxodo). Em suma, a ideia do contrapoder imaginário é que é preciso brigar culturalmente pela percepção sobre a sociedade; uma vez que esse contrapoder torna-se importante, é possível reorganizar a sociedade sob princípios anarquistas a despeito do poder do Estado, que pode ser “esvaziado”. Essa questão estratégica é menos desenvolvida no livro, mas é importante — e talvez seja menos desenvolvida precisamente porque estes são “fragmentos” de antropologia anarquista; ele mesmo deixa explícito que é preciso desenvolver uma série de coisas, inclusive uma teoria anarco-antropológica da alienação, do Estado, do contrapoder.

Graeber passa considerável tempo argumentando pela destruição da diferenciação entre os povos tidos como “não-modernos”, “não-ocidentais”, e os modernos, ocidentais. Não vou focar muito nisso, embora a exposição seja brilhante e uma razão pela qual a antropologia é uma área do conhecimento fundamental para basear tal asserção. Junto a isso ele faz uma reflexão valiosa sobre a ideia de revolução, em que ela aparece como um instrumento do pensamento que a lógica humana, tal como é geralmente constituída, não consegue prescindir — mas que não existe estritamente, e tomar sua existência como algo factual acaba levando a uma série de problemas.

Graeber enfim fala sobre o que ele considera serem os elementos essenciais que ainda faltam serem desenvolvidos para que possa haver uma antropologia anarquista: uma teoria do Estado (brilhante exposição esta em que o Estado aparece com sua natureza dual, simultaneamente utopia de poder e mecanismos (menos idealistas) de controle social); uma teoria de entidades políticas que não são Estados; “mais uma teoria do capitalismo” (porque a antiga não é suficiente); uma simetria entre poder e estupidez, ou poder e ignorância (em oposição a poder e conhecimento, como aparece em Foucault. Aliás, a “patada” que ele dá em Foucault é maravilhosa); uma ecologia de associações políticas; uma teoria de felicidade política; uma teoria da hierarquia (sobre como estruturas hierárquicas, por sua própria lógica, necessariamente criam sua contra-imagem ou negação. “They do, you know”, diz ele, com um estilo maroto); uma teoria sobre a individualização do desejo, do sofrimento e do prazer; e, finalmente, uma ou muitas teorias sobre a alienação.

Finalmente, o livro (quase) termina com algumas ações anarquistas do presente. A primeira, do movimento da anti-globalização (muito interessante, por propor que ocorra uma globalização de verdade, em que não existam mais fronteiras nacionais); a segunda, do movimento contra o trabalho assalariado (que se traduz num movimento atual pela diminuição radical do horário padrão de trabalho); e, em letras garrafais, DEMOCRACIA. É interessante notar que, no segundo caso, o argumento todo me lembra muito o Bob Black, e é fantástico em sua simplicidade. No terceiro caso, enfim, várias páginas são dedicadas a uma análise importantíssima, a de que a “democracia” não começou com a Grécia (pois democracia de verdade é o sistema que tenta mediar o consenso, e não a democracia majoritária), e que na verdade a democracia majoritária é um problema porque é a junção de duas coisas que raramente andaram juntas na história da humanidade: a ideia de que todos deveriam ter o direito de se manifestar sobre as decisões da sociedade, e um aparato de força para impôr uma decisão a todos os membros de tal sociedade. Indo ainda mais profundamente, como não poderia deixar de ser, a própria palavra democracia é questionada, por se tratar justamente não da autonomia do povo, mas de sua violência; democracia, palavra criada por elitistas que queriam se resguardar da violência gerada quando o povo não é escutado, não é ouvido, não é considerado.

O livro termina (de verdade) com uma crítica feroz das razões pelas quais os antropólogos, os mais capacitados afinal de contas para fazer uma propaganda das formas de vivência anarquista, mas que não o fazem. Não vou entrar em detalhes aqui tampouco.

Devo dizer, por fim, que o livro é magnífico do início ao fim; instigante, prolífico sem ser prolixo, estimulante, e cheio de jóias que uma resenha, por grande que seja como esta foi, não tem como representar direito. Uma leitura, de fato, de fragmentos: pequenos retalhos que, costurados, podem parecer repetidos vez ou outra mas são coerentes e criam uma colcha intelectual de peso. O argumento anarquista ganha força, e é imprescindível que seja ouvido porque é consistente e está mais bem nutrido do que nunca. Estou mais ansioso ainda pelos próximos livros de Graeber que tenho pra ler.

Citações maravilhosas (embora existam muitas e muitas; têm que ser poucas aqui ou a resenha acaba virando só citações):

“[…] Most real, tangible violence is [created by inequality]. […] But this hardly means that if all inequalities vanished, then everything, even the imagination, would become placid and untroubled. To some degree, I suspect all this turbulence stems from the very nature of the human condition. There would appear to be no society which does not see human life as fundamentally a problem. However much they might differ on what they deem the problem to be, at the very least, the existence of work, sex, and reproduction are seen as fraught with all sorts of quandaries; human desires are always fickle; and then there’s the fact that we’re all going to die. So there’s a lot to be troubled by. None of these dilemmas are going to vanish if we eliminate structural inequalities (much though I think this would radically improve things in just about every other way). Indeed, the fantasy that it might, that the human condition, desire, mortality, can all be somehow resolved seems to be an especially dangerous one, an image of utopia which always seems to lurk somewhere behind the pretentions of Power and the state.”

“Counterpower is first and foremost rooted in the imagination; it emerges from the fact that all social systems are a tangle of contradictions, always to some degree at war with themselves. Or, more precisely, it is rooted in the relation between the practical imagination required to maintain a society based on consensus (as any society not based on violence must, ultimately, be) – the constant work of imaginative identification with others that makes understanding possible – and the spectral violence which appears to be its constant, perhaps inevitable corollary. […] In egalitarian societies, counterpower might be said to be the predominant form of social power[… It stands] guard over what are seen as certain frightening possibilities within the society itself: notably against the emergence of systematic forms of political or economic dominance. […] Institutionally, counterpower takes the form of what we would call institutions of direct democracy, consensus and mediation; […] ways of publicly negotiating and controlling that inevitable internal tumult and transforming it into those social states (or if you like, forms of value) that society sees as the most desirable: conviviality, unanimity, fertility, prosperity, beauty, however it may be framed. […] In highly unequal societies, imaginative counterpower often defines itself against certain aspects of dominance that are seen as particularly obnoxious and can become an attempt to eliminate them from social relations completely. When it does, it becomes revolutionary.”

“Academics love Michel Foucault’s argument that identifies knowledge and power, and insists that brute force is no longer a major factor in social control. They love it because it flatters them: the perfect formula for people who like to think of themselves as political radicals even though all they do is write essays likely to be read by a few dozen other people in an institutional environment. Of course, if any of these academics were to walk into their university library to consult some volume of Foucault without having remembered to bring a valid ID, and decided to enter the stacks anyway, they would soon discover that brute force is really not so far away as they like to imagine – a man with a big stick, trained in exactly how hard to hit people with it, would rapidly appear to eject them. In fact the threat of that man with the stick permeates our world at every moment; most of us have given up even thinking of crossing the innumerable lines and barriers he creates, just so we don’t have to remind ourselves of his existence.”

“violence, particularly structural violence, where all the power is on one side, creates ignorance. If you have the power to hit people over the head whenever you want, you don’t have to trouble yourself too much figuring out what they think is going on, and therefore, generally speaking, you don’t. Hence the sure-fire way to simplify social arrangements, to ignore the incredibly complex play of perspectives, passions, insights, desires, and mutual understandings that human life is really made of, is to make a rule and threaten to attack anyone who breaks it. This is why violence has always been the favored recourse of the stupid: it is the one form of stupidity to which it is almost impossible to come up with an intelligent response. It is also of course the basis of the state.”

“Ultimately this should lead to a theory of the relation of violence and the imagination. Why is it that the folks on the bottom (the victims of structural violence) are always imagining what it must be like for the folks on top (the beneficiaries of structural violence), but it almost never occurs to the folks on top to wonder what it might be like to be on the bottom? Human beings being the sympathetic creatures that they are this tends to become one of the main bastions of any system of inequality – the downtrodden actually care about their oppressors, at least, far more than their oppressors care about them – but this seems itself to be an effect of structural violence.”

“The history of capitalism moves from attacks on collective, festive consumption to the promulgation of highly personal, private, even furtive forms (after all, once they had all those people dedicating all their time to producing stuff instead of partying, they did have to figure out a way to sell it all); a process of the privitization of desire.”

“[I]t is much easier, in a face-to-face community, to figure out what most members of that community want to do, than to figure out how to convince those who do not to go along with it. Consensus decision-making is typical of societies where there would be no way to compel a minority to agree with a majority decision […]. If there is no way to compel those who find a majority decision distasteful to go along with it, then the last thing one would want to do is to hold a vote: a public contest which someone will be seen to lose. Voting would be the most likely means to guarantee humiliations, resentments, hatreds, in the end, the destruction of communities. What is seen as an elaborate and difficult process of finding consensus is, in fact, a long process of making sure no one walks away feeling that their views have been totally ignored.”

Explicando críticas: por que é preciso ter um mínimo de educação formal para o funcionalismo público e não para cargos políticos eletivos

Aproxima-se a eleição e aumenta-se a quantidade de postagens de teor político compartilhadas na rede. Alguma delas, no entanto, são recicladas de quando em quando; embora já declare antecipadamente de que modo algum isso signifique algum apoio meu ao PT, Lula, Dilma ou o que seja, é interessante responder essa velha tirada dos compartilhamentos em mídias sociais:

Por que para ser funcionário público é preciso segundo grau completo e para ser político, não?

A força retórica dessa pergunta é profunda. A pessoa que a lê tem a impressão de que, ao não levantar a barreira da educação formal, nosso país permite que incompetentes tomem conta do poder – e ao fazer a comparação com o funcionalismo público, sente-se uma espécie de dissonância cognitiva, uma falha, um bug no sistema que buga o nosso cérebro. Na verdade, a força da pergunta é tão grande que as pessoas sequer copiam e colam a pergunta no google. Afinal, ela ainda é uma pergunta, não é?

Ah, as coisas que se acham na internet (mas eu ri, na real).

As respostas que o Google dá  não parecem tão relacionadas a todos os termos-chave simultaneamente – mas um dos resultados (pelo menos para mim) é interessante: uma pergunta no Yahoo! Respostas há 8 anos em que alguém faz uma pergunta com basicamente a mesma estrutura, mas troca o “funcionário público” por “gari”. A maioria das respostas são reações apaixonadas e irrefletidas, mas algumas chegam, na verdade, perto do ponto nevrálgico do assunto.

A educação formal

Se você perguntasse aos políticos atualmente eleitos no Brasil o que é que o conteúdo da educação formal lhes ensinou de relevante e essencial para a profissão pública que eles exercem, a resposta provavelmente seria um envergonhado nada. Se conseguissem lembrar de algo de história, geografia, sociologia ou filosofia (se eles tiveram essas duas últimas à época, e mesmo assim elas não costumam abordar a política de forma tão incisiva enquanto matérias escolares) que lhes fora marginalmente útil, como o momento em que o professor explica a diferença entre capitalismo e socialismo ou o fato de que no Brasil temos uma população idosa crescente, essas são coisas que eles certamente tiveram a chance de aprender muito bem (e melhor) durante a militância e o envolvimento que levam à eleição ou, hoje em dia mais do que nunca, através de uma breve pesquisa no Google.

“E-e-eu não faço ideia do que estou dizendo mas deixa eu só dar uma procurada no Google que preciso lembrar de uma coisa aqui.”

O fato é que, por qualquer ângulo que se veja a função do político eleito, ela muito pouco tem a ver com coisas que se aprendem na escola – não estou falando de professores politizados, ou de eleições para o grêmio estudantil; estou falando do conteúdo programático da escola. Alguém aprende a ser político na prática política. É preciso que fique claro: nenhum nível de educação formal vai transformar, sozinha, alguém em um governante hábil, assim como nenhuma falta de educação formal vai garantir, por si só, a incompetência de um governante.

As três tarefas

A simples afirmação anterior ainda precisa ser sustentada de forma mais convincente. Afinal, como disse um comediante no 9gag que eu realmente não lembro quem é, “não existe isso de ‘uma coisa levou à outra’, isso é pura preguiça! O seu trabalho como escritor é me mostrar como uma coisa levou à outra, não só colocar ‘uma coisa levou à outra’ no meio da história”. Ou mais ou menos isso.

A questão é que podemos resumir da seguinte forma as coisas que um político deve atualmente fazer:

  • Representar uma faixa da população; idealmente, sua base eleitoral (que corroborou, portanto, seu programa de governo);
  • Conduzir o governo de forma que o Estado aja respeitando a constituição;

Isso nos leva aos motivos pelos quais alguém costuma ser eleito, isto é, um esquema básico das coisas que as pessoas avaliam na hora de decidir o voto:

  • Seu futuro: o que o candidato pretende fazer quando eleito (isto é, tem boas propostas);
  • Seu passado: o que o candidato fez garante que ele cumprirá suas promessas ao menos em parte; e seus mandatos garantem que ele é capaz de lidar com crises, decisões emergenciais ou problemas que não faziam parte do horizonte de problemas com os quais ele acharia que teria que lidar uma vez que eleito (isto é, é um administrador bom o suficiente para levar a cabo as propostas);

Quando as pessoas clamam pela necessidade de um governante formalmente educado, isso soa lógico porque tem-se a impressão de que a educação formal prepara alguém para ser um bom administrador. O problema está em esquecer de um detalhe importante: ninguém governa sozinho. Não estou falando apenas do fato de que os parlamentares compõem câmaras, ou de que o prefeito de uma cidade tem que estar em sintonia com os prefeitos de outras cidades, com o governador, o presidente, etc; digo isso porque existem assessores.

“Alguém me dá uma help pra entender essa PEC!”

Pode-se argumentar, é claro, que os assessores, ao invés de indicados pelo político, deveriam ter educação formal, até serem concursados. Schumpeter, um elitista com o qual tenho lá minhas rixas (acho que quase todo cientista político hoje em dia tem), já clamava pela necessidade de um funcionalismo público vigoroso, independente e bem formado que auxiliasse os políticos – e com isto concordo parcialmente, mas não desviemos o foco. Todo e qualquer trabalho técnico para o qual um político não esteja preparado pode ser pesquisado e processado por seus ajudantes de tal forma que ele, ao se informar do problema, consiga basear uma opinião para formular uma política pública, um voto, uma decisão.

A questão vai mais além e mais fundo: os assessores ainda podem formar raízes da árvore que seria, nessa analogia, o político, para buscar um diálogo mais amplo com a sociedade.

Isso nos leva a uma classificação que fiz escapar do resumo anterior das atribuições dos políticos. Eles devem representar a população, respeitando a constituição. Mas isso não é tudo. Em uma sociedade democrática (por mais múltiplos sentidos que essa palavra tenha conquistado), os parlamentares devem debaternegociar, persuadir e lutar por um programa de governo, especialmente aqueles pelos quais foram eleitos. Essa é a função dos políticos que se aprende na vida política e na consciência que é, devido ao nossos sistema educacional, dificilmente introduzida e estimulada pela escola em si. Repito: essa é uma função essencial da vida política, e uma que não se aprende no conteúdo curricular da nossa escola (e nem poderia, pela natureza própria de nosso sistema escolar). Temos, portanto, três funções dos políticos: uma que prescinde da escola enquanto instituição provedora de educação formal (posto que não educa para a função), e outras duas que, muito mais técnicas, podem ser desempenhadas por ajudantes do político.

Consequências

Isaiah Berlin, em seu ensaio clássico sobre os dois tipos de liberdade, disse que quando os “fins” da política estão decididos de antemão, só o que sobra pra ser discutido são os meios.

Quando as pessoas falam da necessidade de ter educação formal para ser político, é claro que muitos apenas acham que isso seria benéfico – e de fato pode ser, e isso não disputo. É preferível, realmente, que o nível de erudição de um político seja alto, e quanto mais alto, melhor. Mas o contato com a realidade de sua base eleitoral é importante também: o não “descolar-se da vida prática” de um Platão (aquele babaca) ou dos pensadores que vieram antes da Revolução Francesa, como julgava Tocqueville. O saber conduzir o debate, entendendo na pele o jogo de forças que compõe a sociedade e as possibilidades reais de melhoria do nível de vida, é essencial — mas a erudição e o conhecimento, que, repito, não necessariamente vêm da educação formal, ajudam na conceitualização dessas ideias, na formação de um político com menos preconceito e mais consciência, com uma visão de mundo mais ampla e um sentido de justiça mais aprimorado.

O que argumento é que alçar a educação formal a nível de exigência demonstra, especialmente quando vamos fundo na argumentação de quem o faz, a disposição de colocar o político no pedestal do administrador, do bom burocrata, de mero tecnocrata. Se isso não estava claro quando a comparação era com os garis, fica explícito quando, na versão ressuscitada da crítica velada a Lula, a comparação é com os funcionários públicos.

Políticos são funcionários públicos, mas não “funcionam” da mesma forma. Eles não têm que realizar tarefas definidas, rotineiras, fora de qualquer debate no momento de sua execução, que são de importância sistemática para a “máquina” governamental. Funcionários públicos, e falo isso da maneira mais positiva possível, não me entendam errado, são as engrenagens da máquina: com a educação formal necessária recebem o óleo que precisam para mantê-la girando. Mas se ela deve girar para que o governo seja uma Ferrari e não um Fusca mal cuidado, não devemos esquecer que ainda é preciso pôr a mão no volante e decidir pra onde esse carro metafórico vai.

“‘Não me entendam errado’?! EU ESTUDEI MUITO PRA CONSEGUIR ESSA VAGA NO CONCURSO, Ô SEU BARDERNISTA!”

Entender essa “função” (que é, por que não, essência) da política é entender que reduzir politica a burocracia é perigoso. Não, políticos não devem ser bons burocratas. Devem ser algo a mais: pessoas em busca da implementação de programas que vão melhorar a vida das pessoas. Se tudo o que é preciso para um governante é fazer o carro andar — se nós nos deixamos levar por esse pensamento – então não vamos nos preocupar com a direção que o país toma e vamos esvaziar o debate político. Em tempos de eleições com candidatos grandes já bem esvaziados, isso é perigoso. Além de, sinceramente, entediante.

Se o argumento passa para o lado das propostas e argumenta-se que um candidato deve ter sim educação formal justamente para poder formular boas propostas, deve-se evitar ainda outro perigo: o de que o político não dialoga com a sociedade, nem com outras forças contrárias. A Maria da Padaria pode, a partir de sua convivência com sua comunidade e seu espírito cívico, candidatar-se a vereadora com ideias na cabeça mesmo sem ter segundo grau completo: não só é preciso que os eleitores sofistiquem-se politicamente para saber distinguir as propostas ruins das boas, as impossíveis das possíveis (vendo que as da Maria são das boas), como também acompanhem os debates dentro do mandato dela, que a fiscalizem, e que organizem-se enquanto sociedade civil em grupos de pressão que colaborem com os debates políticos que lhes interessem. Em suma, ao querer uma política pujante, a pessoa que clama pela necessidade da educação formal dos políticos deveria antes interessar-se pelo filtro que não deixaria, caso melhor educado, políticos ruins passarem: a educação política do povo (que inclui também uma revisão da palhaçada que são a educação formal e a mídia de massa brasileira, entre outras propostas de cunho civil que reestruturariam o espaço para uma vida com mais valores democráticos).

Há uma última coisa a se considerar. Num país desigual como o Brasil, é importante notar que esse discurso pode ser, antes de simplesmente tecnocrático, elitista: exigir a educação formal para a vida política significa excluir uma parte da população da vida pública já de antemão. Inserir essa barreira artificial (não é a educação, veja bem, mas a educação formal; não a capacidade constatável no dar-a-cara-ao-tapa do debate, mas o diploma) impediria, a curto e a médio prazo, a participação de uma série de pessoas da política que de outra forma participariam, e participariam bem.

Torçamos para que a melhoria da educação no Brasil se concretize de tal forma que não precisemos discutir esse tipo de coisa — mas caso o ensino fundamental e médio torne-se uma realidade para todos, que não se inicie, por favor, uma discussão sobre a necessidade de ter ensino superior para ser eleito.

Resenha: A doutrina do choque

Terminei de ler há um tempo “A doutrina do choque”, livro da jornalista Naomi Klein. É um livro grande, poderoso, e absolutamente essencial para compreender melhor a história recente (os últimos 50, 60 anos). Eu o recomendo para absolutamente todos.

Capa do livro.
O livro fala sobre as ditaduras militares na América do Sul (embora o Brasil não seja o melhor caso de estudo para os propósitos do livro), sobre a transição da Rússia para o capitalismo, o fim do Apartheid na África do Sul (uma leitura FASCINANTE), a Guerra do Iraque e o furacão Katrina, entre outros.

Resumi-lo seria difícil, dado o seu tamanho e sua complexidade, mas o básico é: existe uma ideologia econômica conhecida por vários nomes (vou chamá-la de neoliberalismo). O neoliberalismo, por vários motivos em potencial, acredita em uma série de medidas econômicas que visam deixar os “mercados” funcionarem sozinhos, por si mesmos, sem intervenção do Estado, o que, segundo eles, levaria a um “equilíbrio”, a uma “harmonia” e ao desenvolvimento econômico, o que seria bom para todos os envolvidos. Os problemas são dois: a consequência historicamente verificada desses tipos de medida é que os (poucos) ricos ficam mais ricos e a maioria da população fica mais pobre. O segundo problema é que, justamente porque esses programas econômicos são impopulares, eles precisam de “choques” para serem facilitados. Guerras, ditaduras, suspensões temporárias de direitos democráticos, imposições não reguladas por debates legislativos que seriam em outras situações procedimento padrão, desastres naturais, entre outros.

Algumas observações:

  • Meu procedimento padrão com tudo que eu goste demais (e rápido demais) é procurar por opiniões negativas; críticas, “refutações” (quanto mais ouço essa palavra do jeito que as pessoas usam hoje em dia, menos eu gosto dela, mas vá lá), e tudo o mais. É quase como um princípio “é bom demais pra ser verdade” aplicado à literatura, especialmente a não-ficção. No caso de Doutrina de Choque, eu encontrei três tipos de crítica: primeiro, uma terminológica, que a acusa de confundir as posições de liberais, neoliberais, conservadores, neoconservadores, apologistas do livre-mercado, e não sei mais o quê. Klein admite já no começo do livro que esses termos dependem muito da região em que são usados e há discordâncias internas entre teóricos, o que significa que esse é um terreno lamacento, mas ela sempre deixa claro exatamente do que está falando – não liguei muito pra isso. Segundo, uma que reclama da forma como ela pinta Milton Friedman, e para mim essa crítica tampouco vai muito longe: apesar de reconhecer que o uso que ela faz de uma citação dele não é exatamente muito apropriada, ela não o responsabiliza por tudo, mas apenas mostra como sua apaixonada defesa dessas ideias tornou-o um símbolo delas, um intelectual que, sendo respeitado, ajudou a legitimá-las apesar de a realidade contrariá-las constantemente. E, em terceiro lugar, que ela comete erros e distorções de ordem histórica em sua reportagem – seu livro, de quase 600 páginas na edição em português, deve ter umas 80 de notas de fim de capítulo, e a pesquisa levou 4 anos. Os argumentos dela são sólidos. Se quiser, veja a entrevista com Johan Norberg sobre um artigo que ele publicou para criticar o livro, e aqui um texto no próprio site da autora respondendo à crítica.
  • Acho válido também recomendar a página do facebook Anarcomiguxos – eles são um pouco sectários e duros nas críticas que fazem, mas quando reclamam dos anarcocapitalistas ou de neoliberais,o fazem justamente por causa do fervor religioso com o qual defendem essa ideia do “livre mercado” de que o livro fala.
  • Há um documentário associado ao livro, para quem tem curiosidade: mas já aviso que ele é MUITO limitado se comparado ao livro (assim como todo filme adaptado, né?) – recomendo demais, demais, o livro.

Miss Representation

Um filme que vi recentemente e recomendo muito é Miss Representation. Embora muitos blogs e espaços feministas na internet já são dedicados a revelar o trabalho mesquinho que a mídia faz ao criar uma certa imagem de mulher e femininidade no nosso consciente coletivo (e fazem um excelente trabalho quanto a isso), ter um filme de referência no assunto, coeso, relativamente pequeno e contundente é uma importante arma na luta de ideias de apoio ao feminismo uma vez que pode servir de referência fácil e rápida a uma série de conceitos cristalizados no movimento.

O filme vai direto ao coração do assunto ao tratar de uma parte importante da questão feminista: a relação entre imagem e poder. A forma como somos “aculturados” a perceber as mulheres causa um ambiente que duvida da potência delas enquanto lideranças políticas. Essa é a mensagem mais forte do filme, e tudo que ele faz é percorrer um caminho variado e bem fundamentado para dar suporte a essa mensagem.

Da maneira como eu o vejo, o movimento feminista cresceu das preocupações no âmbito dos direitos civis para uma questão mais ampla, que é uma batalha cultural que transcende o reino das regulações e leis (que ainda são importantes, tanto quanto a batalha cultural sempre foi o coração do movimento mesmo quando os direitos civis precisavam com urgência serem implementados). As críticas que tolos como Gilberto Moog fazem (conservadores sem noção) ao dizer que o feminismo “verdadeiro” deveria ter acabado quando o sufrágio universal foi conquistado são vazias e destituídas de qualquer contato com a realidade da população feminina que é constantemente alvo da objetificação de que trata o filme.

É um documentário realmente interessante que, embora não traga tantas coisas novas para quem já é do meio e já conhece, pelo menos em tese, o problema, é legal de ver de qualquer forma. Dava pra escrever muito aqui sobre todas as reflexões que ele foi despertando – e também o tipo de coisa que um “masculinista” (ou, mais comum, um popular-igualitarista que nasceu perto de 90 e acha que é imune ao machismo) diria sobre elas e como ele poderia ser respondido, mas não quero alongar essa recomendação com um “rant” longo contra argumentos repetidos ad nauseam pela internet (e talvez, também, não seja meu papel fazer isso de qualquer maneira). E antes que alguém comente algo (no maior estilo 9gag, atualmente o maior antro de apolíticos completamente ignorantes sobre o feminismo professando opiniões misóginas ou voltadas a espantalhos que são “verdade absoluta”), sim, o patriarcado também oprime homens segundo o documentário. E as formas como o faz, embora tenham como principal alvo e pior “receptor” da opressão o público feminino, são discutidas com certa ênfase no filme.

A única coisa negativa, não tanto do filme mas do fato de que é para brasileiros que estou recomendando, é que ele se concentra exclusivamente na situação dos Estados Unidos. É certo que ela nos influencia bastante, mas ainda assim é um pouco frustrante.

Só quero deixar com vocês um trecho que me marcou em particular, e me fez pensar na conexão entre essa luta e a dos negros na questão sobre as cotas raciais nas universidades brasileiras. A frase, que aparece como citação mas logo depois é comentada, é: “você não pode ser o que você não pode ver”. De fato, as mulheres nos Estados Unidos não se veem como líderes, não se veem fazendo política, porque enorme parte das imagens através das quais são aculturadas lidam com estereótipos objetificados, “estupidificados” e ontologicamente submissos do que significa ser uma mulher. Os modelos em quem poderiam estar se inspirando não recebem a mesma publicidade que as garotas fúteis que enchem os reality shows americanos. É uma frase poderosa que, depois de ouvida, pode fazer soar um novo alarme na percepção em relação a “imagens de constatação” como essa:

E você, assistiu o filme? O que achou? O que gostou, com o que concorda, do que discorda? Você conhece documentários semelhantes voltados para a realidade brasileira ou, inversamente, de uma perspectiva mais global? Sente o dedo nos comentários!

Crises

Recentemente li um artigo muito bom chamado “Arendt in Crisis: Political Thought in Between Past and Future”, de Jakob Norberg. O artigo fala sobre a interpretação de Hannah Arendt sobre as crises, e como podemos aprender a lidar com elas. Deixe-me ser mais específico: esse artigo não vai ajudar você a lidar com crises emocionais ou outros dramas pessoais. Estamos falando de coisas maiores, como crises sociais, culturais e políticas. Embora, para ser justo, essas crises maiores são pano de fundo, algumas vezes, de nossos dramas pessoais.

“Só não vá achar que eu tenho alguma fórmula mágica, meu filho.”

A crise e suas duas dimensões

Para Arendt, a política trata das relações entre seres humanos, da natureza desses laços entre eles, os princípios que os unem, e a moldura que são os projetos locais e temporários que eles realizam juntos. A crise é a dissolução e a possível reconstituição dessas comunidades humanas. Daí que a “crise” é central para a “política”: nossas conexões com os outros humanos são questionadas; nós temos diante de nós a oportunidade de reafirmar ou negar nossos lações que antes eram garantidos. Para Arendt, é na crise que a política torna-se inevitável para todos. Vai ver é por isso que temos a impressão que todos têm algo pra dizer sobre ela o tempo todo.

Só que as crises têm dois efeitos, conectados, mas diferentes. Em primeiro lugar, a crise dá nome a um momento em que as reações habituais não dão mais conta de entender o que se passa; o jeito como fazíamos as coisas não adianta mais, não funciona mais.

Para Arendt, isso é ótimo! A crise derruba noções e falsas e expõe “ideias preconcebidas”. Isso é muito importante: ideias preconcebidas são a base do nosso dia a dia. Nós temos várias experiências iguais, repetidas, e aí esperamos que as coisas sempre aconteçam assim, do mesmo jeito. Paramos de pensar, simplesmente agimos: imagina se tivéssemos que pensar se a gravidade vai sempre funcionar ou não? Não, simplesmente agimos assumindo que o mundo vai funcionar de um certo jeito. A crise é como se de repente a gravidade não funcionasse: a gente não sabe o que fazer, e por isso somos obrigados a pensar. A crise significa, portanto, finalmente ter a oportunidade de pensar o que é alguma coisa de fato.

Mas a crise também tem outro lado. Ela é o desaparecimento do “senso comum”, mas para entender isso é preciso pensar exatamente o que, para Arendt, significa esse senso comum (até porque senso comum é o que mais se reproduz quando gente que nunca pensou em política começa a falar sobre política).

“Em toda crise”, escreve Arendt e traduzo livremente eu, “um pedaço do mundo, alguma coisa que é comum a todos nós, é destruído”. A crise destrói nossas “ideias preconcebidas”, sim, e nos força a olhar com atenção para alguma coisa que sobra depois da destruição; algo com o qual sempre interagimos mas sobre o qual nunca pensamos. Mas ela também destrói certas coisas sem deixar nada no lugar; nada sobra. Só ruínas.

E o que seriam essas coisas? Bem, aquilo que nos liga aos outros; um certo “senso comum”. Senso comum seria, portanto, uma sensação de que temos algo em comum com os outros. O que se perde com a crise é a sensação de que os outros veem o mundo de forma semelhante a nós. Fica difícil se orientar num mundo assim, em que não dá para saber se os outros vão sequer entender do que eu estou falando.

Perder ideias preconcebidas faz a gente perceber as coisas de um jeito mais claro: a crise tira de nós categorias de experiência prontas, empacotadas; preconceitos, mesmo. Mas a perda de senso comum nos deixa completamente sozinhos, porque a crise nos faz perder aquela sensação de que compartilhamos o mundo com semelhantes.

Lidando com as crises – através do julgamento

Em “O que é autoridade?”, Arendt descreve justamente a crise do conceito de autoridade. Para a filósofa, a autoridade sempre exige obediência, e essa obediência tira legitimidade de algum valor transcendental, ou seja, que não pertence ao campo da política mas está acima dele. “Obedeçam-me, porque…” e aí vem uma justificativa para essa obediência, obediência que faz com que acabem-se os questionamentos, as discussões, as decisões coletivas. Para Arendt, portanto, a política só é possível quando os humanos se livram da autoridade transcendental (ou seja, a crise da autoridade).

Só que, se essa é a face interessante da crise (Yeah, agora somos seres políticos!), há também uma face negativa como vimos acima. E ela é, como você já deve ter adivinhado, a perda do parâmetro comum para a vida em comunidade – a autoridade transcendental. A questão da política, portanto, não é nem tanto a “vida humana em comum” como colocamos no começo do post, mas algo mais complicado: Como viver em comum sem que todos vejam o mundo de forma semelhante?

A resposta talvez esteja na ideia de “julgamento”; diz-se até que Arendt, na época em que escrevia sobre Kant (escritos que foram publicados postumamente) tinha um ensaio inacabado sobre isso. Com “julgamento” não se quer dizer necessiramente juízes num tribunal, mas a ideia de escolha, de estabelecer uma análise sobre algo, de tomar uma decisão com base num pensamento cuidadoso.

O julgamento trabalha em duas frentes. Na primeira, ele cobre a destruição de nossas ideias preconcebidas. Quando julgamos algum evento isolado, em geral pensamos ele dentro de uma regra geral; isso se transforma em “ideia preconcebida” quando essa operação vira uma rotina, ou seja, nem julgamos mais, simplesmente olhamos para uma situação que achamos mais ou menos parecida e já pensamos sempre a mesma coisa. Quanto mais nos apegamos a essas regras nos tornamos o que Norberg chama, num termo engraçado, de “mão-de-vaca epistemológico”, pois ele se recusa a “gastar” seu cérebro prestando atenção ao mundo de fato, a cada situação – só aplica a mesma lógica sempre, sem pensar direito. O julgamento vem, depois da crise, formar novos padrões, novas ideias – mas depois que nós pensamos bem o caso; não vale apenas trocar seis por meia-dúzia. Se a crise é a oportunidade para repensar as coisas, temos que efetivamente repensar as coisas. Esse é um julgamento que Arendt, copiando Kant, chama de reflexivo. Um julgamento reflexivo acontece quando, ao contrário do julgamento do começo desse parágrafo, olhamos para um caso isolado e moldamos a regra geral de acordo com ele.

Mas e o problema da dissolução do mundo comum? O julgamento também lida com ele, segundo Arendt. A partir de uma ideia que vem de Kant, Arendt mostra também que julgamentos (especialmente o tipo de julgamento que fazemos sobre situações que geram crises), não são julgamentos técnicos, desses que têm que funcionar de acordo com a lógica ou estão simplesmente erradosEsses julgamentos são como opiniões, sendo sempre feitos tendo os outros em mente; são sempre feitos “antecipando a comunicação com os outros”. Um julgamento tem que tentar entender o problema sem ideias preconcebidas, mas também tem que fazê-lo pensando no que os outros vão pensar, e como eles vão agir na situação. É assim que, enquanto todos julgam as coisas, forma-se uma promessa de uma realidade compartilhada.

Mas é importante notar que a comunidade formada por esse processo não volta a ser o que era antes – formando uma “autoridade transcendental”. A comunidade não fica garantida para o futuro: ela está sempre em transformação, sempre em negociação, sempre dependendo dos indivíduos formarem esses julgamentos comuns para lidar com os projetos que desenvolvem juntos. Na crise o que surge é sempre uma “solidariedade sem solidez”. Para Arendt, ou melhor, para o autor do artigo que a analise, a beleza dessa descoberta é que uma comunidade que pratica a política deve entender que será, sempre, uma comunidade em crise.

Outras passagens interessantes…

“Como o historiador Reinhart Koselleck diz […], a crise e a crítica conspiram para acabar com a estabilidade: a crise é a mudança que nos pega despreparados, enquanto a crítica é a forma como planejamos causar a mudança.

“A política é constituída pelo imprevisível jogo polêmico de posições diferentes, e isso não acontece quando ocorre uma submissão a uma verdade indiscutível, cujo meio é o filósofo [da grécia antiga]. Nós podemos até dizer que “a verdade é a mais perfeita forma de acabar com uma conversa” (Fuller 2005, 51)”. Essa frase de Fuller é maravilhosa: há muitas pessoas que discutem coisas absolutamente discutíveis do ponto de vista da “lógica”, sem perceber (ou querendo esconder) os valores diferentes (as posições básicas diferentes) que estão por detrás da discussão. Se alguém cai no erro de reconhecer o viés da “lógica”, acaba-se a política: não há discussão possível quando se está “errado”, afinal.

“Ideias preconcebidas parecem nos juntar uns aos outros apenas à medida que são um fenômeno coletivo, mas na verdade elas tornam a todos menos conscientes da existência dos outros. […] De acordo com Arendt, dependemos dos outros ao nível da cognição: percebemos o mundo juntos, ou não o percebemos nem um pouco.”

E você?

O que acha da visão de Hannah Arendt sobre as crises? Em que tipo de crises vivemos atualmente? Solte o verbo nos comentários!