Da teoria a… Que prática?

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Meu professor de história contemporânea comentou certa vez o quanto um professor é valorizado na Dinamarca e, em contraste, o quanto a profissão tem pouco ou nenhum “glamour” no Brasil. A seguir fez uma comparação: um químico está sempre louco pra sair da teoria da sala de aula e ir para o laboratório; um dentista, sempre feliz com a possibilidade de arrancar um dente com sucesso, colocando à serviço o conhecimento que, de uma maneira um tanto enfadonha, adquire. Se o mercado de trabalho para o cientista social é, com frequência, o magistério, podemos imaginar com facilidade as razões pelas quais o estudante das Ciências Sociais não anseia tanto por ir da teoria à prática.

A aula daquele dia terminou. Saí da UFSC, peguei carona até o centro e de lá fui pegar o ônibus para a casa. Na fila, uma mulher à minha frente e um homem depois de mim. Ambos já de meia idade; eu arriscaria uns cinquenta anos cada um, com larga margem de erro. Olham-se com um sorriso e já começam a falar sobre uma palestra que acabaram de presenciar na faculdade de direito que cursam, ministrada (vejam só) por um membro das altas cortes da justiça nacional – algo como o Supremo Tribunal Federal; minha memória me falha.

Aparentemente o palestrante falou sobre os desafios do Brasil e como o governo estava  enfrentando os mesmos. Um deles era a educação, e a conversa logo se esgueirou para a condenação da forma como os professores eram pouco valorizados no Brasil.

Tudo muito semelhante à aula que eu tinha acabado de ter.

Perguntei a eles algumas coisas, me fiz presente na conversa, mas não falei muito: tal qual um antropólogo (de certo modo), deixei que falassem: não porque fui condescendente, não; não me tomem por arrogante ou pretensioso – o que quis dizer é que queria fazer tantas perguntas! Me interessei muito por aqueles personagens do TICEN, engajados em tão rara conversa aberta, substituindo com louvor a praga dos celulares sem fones de ouvido. Mesmo interessado, não ousei me intrometer. Eles sequer falavam para mim ou comigo; despejavam em tom de indignação e denúncia casos e mais casos de quem já viu muito e sabe analisar o que viu porque muito pensou e continua pensando. Falavam entre si. Eu estava fascinado.

Se falavam, antes, da situação dos professores no país, logo falavam da situação deles mesmos, funcionários públicos: em seis anos a mulher não ganhou um único reajuste salarial. O homem disse que o único reajuste ganho do governo Lula foi dado na gratificação, não no salário. A mulher comenta que com o salário dela, há nove anos, ela pagava escola particular para os filhos e os planos de saúde. Com o salário atual, ela não conseguiria sequer pagar a escola.

Eles prosseguiam: como é que se permitiu que a região da Grande Florianópolis crescesse tanto sem a construção de um novo hospital? No posto de saúde do bairro de um deles, consulta só se marca na quinta-feira. Se há um problema mais urgente, apesar de a pessoa poder ser atendida na hora, é pedido que o paciente volte à noite, no horário de plantão. Por quê? Porque assim fica registrado um maior número de atendimentos no plantão, que foi criado há pouco tempo e provavelmente logo (leia-se: depois que as eleições acabarem) vai se extinguir. O que sobra? As estatísticas, para os políticos.

É conveniente o sucateamento de todo aparato público (seja de educação, seja de saúde), já que as redes de plano de saúde e as fundações privadas de instrução só fazem crescer. O capitalismo, em sua face mais predatória, também foi abordado: na cidade natal de um deles, descobriu-se uma mina de uma substância importante para a indústria farmacêutica. A propaganda foi que aquilo traria o progresso e a geração de empregos para a cidadezinha. O resultado foi que eles vieram, consumiram o que podiam como gafanhotos, e foram embora deixando miséria para trás. Na cidade do outro, a construção de uma hidrelétrica fez dezenas de milhares de pessoas migrarem para uma cidade despreparada, causando um aumento vertiginoso no custo de vida e na taxa de criminalidade do local.

Por que um real planejamento disso não foi feito? Porque o tipo de planejamento que “salvaria” essa cidade implicaria, a grosso modo, o cuidado com as pessoas; a preocupação com o bem estar social que não é prioridade para quem lucra quando a situação se dá como tudo ocorreu.

Isso, aliás, estava prestes a se repetir em Biguaçu com o estaleiro de Eike Batista. Comenta o homem que os responsáveis pela desistência (temporária, afirmou o homem) quanto ao terreno da região são os moradores poderosos de Jurerê Internacional, que teriam sua rica praia poluída se o projeto saísse do papel. Os “pobres” e os ambientalistas? Bem, esses não teriam nenhuma chance de parar nada. A tragédia comunista de George Orwell em que “todos são iguais, mas uns são mais iguais que os outros” se aplica sem muitas modificações, praticamente como uma luva, a essa reflexão.

Na aula que eu acabara de ter meu professor explicava qual era, afinal, o objeto de estudo de sua matéria: as consequências da Revolução Francesa – Dentre outras, o modo como passamos a priorizar o pensamento republicano, antitético ao monárquico. A ideia central da Monarquia é que existe um grupo de pessoas que merece naturalmente mandar, e um outro, que tem que obedecer. A ideia central da República, mesmo que se argumente que ela nunca foi de fato alcançada, é que todos sejam essencialmente iguais.

Saí do ônibus no meu ponto, agradecendo a eles por me deixarem ouvir à conversa e sentindo pesar em ter que partir quando o assunto era a justiça social. Me senti enriquecido pela conversa. É como um arqueólogo que encontra um osso de um novo dinossauro, ou um médico que descobre que diabos um paciente complicado tem, ou mesmo um minerador de séculos passados olhando para estonteantes pepitas de ouro.

Se de certa forma a “prática” para o cientista social é o magistério ou a pesquisa, as duas coisas não estão desconectadas; tampouco o “ensinar” precisa estar ligado às escolas e universidades. O “ensinar” não pode ficar só lá. O trabalho do cientista social, a missão até certo ponto ingrata que tem dentro da sociedade, é se fazer ouvir para agendar e informar as discussões da sociedade para a construção de um mundo melhor – já que este está mergulhado em discordâncias que só fazem gerar miséria, aborrecimento, tempo perdido… Ou, em situações outras, guerras, fome e genocídio.

Eu não ouvi meus dois “informantes urbanos” como profetas; ouvi suas opiniões como parte de algo maior. Ideias que se integram a uma rede de conceitos, ações e militâncias de cada brasileiro. Não é que eles estejam completamente certos, muito menos completamente errados; mas é naquilo que eles acreditam. Há um motivo para eles acreditarem naquilo, e há algo que eles vão fazer com essas crenças. Essas ações terão reflexos no futuro do Brasil. Entender o que pode levar hoje as pessoas a acreditar em algo amanhã, e que resultados podemos esperar disso, é crucial para planejarmos um futuro melhor.

Esse homem e essa mulher estão quase aposentados, mas estão cursando Direito. O motivo? Eles não acham que a aposentadoria conseguirá garantir um futuro estável para eles. Quantos outros brasileiros são iguais a eles? O que essa mudança de atitudes, o que essas práticas estão fazendo com a nossa cultura, com a nossa política, com as nossas expectativas sociais?

Justiça é só uma dentre tantas coisas que tantos grupos de brasileiros querem para o país; como fazer sentido dessa malha de vontades e intenções? Se dispor a entender e traduzir essa malha é importante, bem como levar essa tradução para quem muitas vezes só consegue ler (por uma questão de tempo e espaço) a tradução que uma mídia comprometida com o lucro faz.

Se for possível ajudar a sintonizar, informar, fortalecer e fazer debater a leitura que tantas pessoas fazem do mundo, é possível motivá-las – e até mesmo fazer com que concordem em algo; numa direção, numa decisão, num futuro responsável. Para o que tantas pessoas veem como uma solução para a corrupção, por exemplo, que nenhum político deveria receber salário, trabalhando voluntariamente apenas aqueles que querem o melhor para a nação, um clássico da sociologia vem lembrar que, se não houver salário, apenas os ricos participarão da política. Como resolver isso? Um pouco de filosofia política dá embasamento a essas questões pragmáticas, mas normativas.

O cientista social é aquele que vê longe, vê perto e vê entre as linhas, mas não faz isso sozinho. É para a classe de cientistas sociais que sobra essa tarefa, não para um herói de capa e máscara. Eis o que é capaz de fazer um cientista social inspirado levantar-se das cadeiras e olhar para a rica realidade social buscando colaborar com o mundo em que vive: há muita coisa a ser feita. Feita com planejamento. Com pensamento. Feita coletivamente. E, nesse cenário, o cientista social pode ser útil.

Há tantas coisas que importam…

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Na última coluna falamos sobre como o pragmatismo e uma certa intolerância por aquilo que fica entre o branco e o preto são características de um certo pensamento burguês – e que elas acabam gerando soluções simplistas demais para os problemas sociais que enfrentamos, e que são problemas nossos também. Soluções que fazem a gente pensar que não, esses problemas não são nossos. Mas as coisas não são simples assim.

Se apenas elas fossem…

Por outro lado, tudo na forma como pensamos aponta para isso, não é mesmo? Simplificar. Se nos primórdios da filosofia as coisas eram percebidas já como simples, à medida que a tradição filosófica ocidental segue seu curso vemos que as coisas vão ficando mais complexas – mas nem por isso abandona-se a ideia da simplicidade. Se as coisas são complicadas, tudo bem, não é problema: nossa tarefa, enquanto seres humanos dotados de pensamento racional, é simplificá-las. Entender é reduzir as coisas a um esquema, um modelo que possamos ver por completo, botar para funcionar, e enfim dominar. Entender, ruminava Nietzsche (não com essas palavras), é domesticar a complexidade do que nos é alheio – é domesticar a natureza, botá-la no cabresto do que exige o nosso cérebro. A ciência, esse processo analítico, vai passo a passo separando, isolando, quantificando – deixando mastigável e enfim deglutível uma massa de informação tantas vezes difícil de visualizar em sua totalidade.

Nós, ocidentais, nunca abandonamos o anseio pela simplicidade. Saber que a realidade é complexa parece ter, pelo contrário, nos incitado para o desafio de fazer o projeto simplificador dar certo. E isso não está só nos distantes ícones do pensamento, pessoas que só os “nerds” vão estudar. Se esse fosse o caso, esses ícones não seriam nem ícones em primeiro lugar – não para nós hoje, pelo menos. Isso está na boca do povo. É realmente o nosso jeito de pensar, não apenas uma interpretação bonita de “nosso”, onde “nosso” significa o que uma elite de pensadores raciocina. É só perguntar o que as pessoas em geral acham de arte pós-moderna. O pós-modernismo, aliás, já virou sinônimo de encheção de saco para muitos círculos intelectuais – para a gente comum ao redor do mundo costuma ser algo execrável, completamente incompreensível. E o interessante é que muitas dessas obras não foram feitas para serem compreendidas mesmo.

Mas não precisamos falar de obras de arte. Abram o Facebook, o Twitter, o Youtube. Quais são as grandes joias de sabedoria que vemos compartilhadas? Nem tudo é tão simplista e absolutamente questionável, mas o que dizer de coisas como “ser feliz é o que importa, o resto não interessa”. Será mesmo que o resto não interessa? Podemos ser assim tão simples? O que podemos esperar dessa simplicidade?

O futuro da filosofia, da sociologia, de toda área do pensamento – e, para usar um exemplo já quase rasgado de tanto usado, a própria física e as teorias interessantíssimas da física quântica – é lutar contra as palavras simples. Se podemos fazer do presente um lugar diferente, se podemos não repetir os erros do passado, é preciso começar tendo a coragem de cair de barriga na realidade. Se ela é complexa, que seja: vamos pensá-la, abordá-la, agir sobre ela de maneira complexa, ao invés de procurar encaixá-la numa simplicidade que sabemos não existir. Mudando o método, o jeito de investigar o mundo, mudamos nossa sensibilidade a tudo que ouvimos, vemos, lemos e sentimos. Mudamos muita coisa.

Mas se definimos o projeto do pós-modernismo como este, vemos que na verdade para alcançar essa nova posição de descobrir e investigar a realidade o que os pós-modernos fizeram até agora foi atacar as bases das estruturas que nos impedem de pensar a realidade de uma maneira mais multifacetada. Muitos são os pensadores que, mesmo que não sejam pós-modernistas, nos ajudam com isso que, num sentido bem amplo, podemos chamar de desconstrução da realidade (para os sociólogos, principalmente da realidade social). O que resta para a nossa geração, e para as vindouras, é desenvolver essa ideia. Como basear uma cultura – e, afinal, nossas vidas – contando diretamente com a diversidade e com a complexidade? Eis uma tarefa complexa.

Quem são os burgueses?

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Às vezes aqui e ali ouvimos expressões como “burgueses” ou “a burguesia”. Os “burgos” eram vilas na Idade Média, locais de muito comércio. Os burgueses, que mais lidavam com compras e vendas, acabaram depois constituindo um grupo extremamente influente: quanto mais a Europa desmanchava relações tradicionais para reconstruir as estruturas da sociedade sobre o dinheiro, fica claro que mais dinheiro significa mais poder.

A burguesia não viu a mudança de braços cruzados; foi antes uma força ativa nessa transformação que os deixou no topo da pirâmide social. Mas todo esse cenário histórico nos ajuda em 2013? Quem são e como vivem os burgueses de nosso tempo? Seriam eles os muito ricos? Os donos dos famosos “meios de produção”? Quem dá, afinal, corpo à máscara flutuante que é esse conceito fantasmagórico?

A burguesia, na época em que foi caracterizada por Marx como classe social, exibia uma série de características marcantes. Burgueses são voltados para a eficiência – pragmáticos, quando vão em busca de conhecimento o fazem porque ele é útil. São individualistas, tanto na prática quanto na filosofia. Daí vêm a mitologia, com os espíritos básicos como trabalho, valor, competição e recompensa, que eles ajudaram a popularizar. Em seus mitos também podemos incluir as ideias de progresso e desenvolvimento, grandes divindades burguesas.

Naquele processo de derrubar tradições que a Europa sofria, o burguês foi se tornando o padrão cultural de excelência – substituindo condes, lordes e duques. Todos querem ser ricos, felizes e prósperos como os burgueses, e isso é, ainda mais em nossos tempos de mídia de massa, internet, globalização, um fenômeno fundamentalmente cultural. O pensamento burguês, quando adotado por toda sorte de pessoas, mostra que não importa tanto quem é o burguês, mas sim como pensa o burguês, porque então podemos enxergar como esses valores direcionam nossa visão e entender as consequências desse jeito de pensar.

O que acontece com o pragmatismo burguês quando ele vira grande valor social? A valorização da técnica, mas também do oblívio: ter mais pessoas que saibam fazer coisas, mas que não necessariamente reflitam sobre o que fazem – pra quê, não é mesmo? O individualismo relaciona-se com a competitividade para descortinar uma sociedade que vê o homem como mera máquina buscadora de lucro – aquela que o burguês instituiu como explicação de dicionário para o verbete “humano”. O burguês tem problemas para confiar nas pessoas, e encontra nos outros – que nasceram dentro de um sistema que estimula em nós esse jeito burguês de ser – razão para tanto. Mas o pior é a combinação disso com a vontade da pureza absoluta, adágio do progresso, que pensadores como Nietzsche e Foucault debateram. A principal característica do pensamento burguês contemporâneo é a vontade de tirar da vida os obstáculos – de maneira mais prática e rápida possível – para que possamos todos dar continuidade à rotina normal, cada um em seu papel (o chefe e o trabalhador, cada qual segundo seu mérito). Assaltos, estupros, homicídios? Pena de morte. Jovens perdendo a vida nos meandros do tráfico de drogas e todas as suas ramificações? Entupam as cadeias. Assaltos? Botem o exército nas ruas. Corrupção para tudo quanto é lado? Ditadura militar. O Brasil está ruim? Eu, que tenho dinheiro, vou morar fora. Soluções simplistas – genuínas não-soluções, onde as pessoas se esforçam para se convencer de que os problemas sociais não são problemas nossos – ou que pelo menos podem ser muito facilmente resolvidos, de forma que eles podem se tornar não-nossos, e é por pura incompetência e podridão humana das autoridades que as coisas não magicamente se encaixam no lugar.

Essas opiniões estão na boca de extremistas nos jornais, mas podiam estar na minha e na sua. Não ser burguês não é vender tudo e ser um mendigo filósofo de Augusto Cury, assim como ser um mendigo filósofo não o impede de filosofar como um burguês. Rejeitar o pensamento burguês é cuidar para pensar além, querer além e viver além de um estereótipo muito, muito velho – mas também muito, muito vivo.

Capitalismo e prioridades

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Para muitos, o capitalismo é para a sociedade o que a alma é para o corpo: não é uma coisa física, então não pode ser tocada, vista ou medida. Apesar disso, anima os corpos. Parece estar atrelada ao que somos, ao modo como funcionamos: o que seria, afinal, um corpo sem alma?

Essa visão é circunstancial: o capitalismo “move” a nossa (nossa, não todas) sociedade, mas ele não pode ser confundido com essência humana. Essa perspectiva costuma vir da falta de uma definição melhor para o capitalismo, mas para isso um estudo básico não serve muito; há quase tantas definições de capitalismo quanto tipos diferentes de estudos sobre ele.

Junto com essa definição vem uma percepção de que há muitos problemas com o capitalismo – um conjunto de efeitos sociais, como a extrema desigualdade econômica entre os podre de ricos e os podre de pobres (não só dentro de um país, mas a nível global), e um conjunto de efeitos pessoais, como a ideia de que nos tornamos mais mesquinhos, que perdemos certas noções de contato com as pessoas, perdemos a preocupação com o bem comum. Seria o capitalismo o grande inimigo da sociedade?

Há controvérsias. O capitalismo é um fenômeno tão cultural quanto econômico, e também político. A alienação e a mais-valia, lá no processo de produção das coisas que consumimos, passando pelo foco na própria ideia de consumo e como isso afeta nossas vidas e nossa relação com o tempo, com os objetos, com as pessoas (a vida líquida de Bauman), tudo isso faz parte do capitalismo. Mas ele necessariamente piora nossa vida? Estaríamos melhores sem o capitalismo? Não se pode esquecer de seu aspecto técnico, afinal. As conveniências da civilização contemporânea, a divisão social de trabalho, a higienização, a grande engenharia, a globalização e tudo o que ela traz de bom – a internet, os computadores! O que quer que o capitalismo venha a gerar de ruim, de qualquer forma, pode ser controlado e minimizado através da ação política e da educação, asseguram seus defensores.

Talvez esses aspectos ditos “técnicos” do sistema é o que não podemos perder de vista. O que importa, acima de tudo, é a eficiência. Tudo pode ser quantificado e traduzido em valor monetário. Com isso, em especial com a questão da eficiência, já não nos surpreendemos: crescemos sendo ensinados que essas duas coisas são mesmo o jeito como as coisas devem ser. Mas o que significa poder alugar pessoas? Isso é muito diferente do modo como o trabalho era conduzido nos tempos que precedem o capitalismo. E note que não há muita escolha: esse “aluguel” é o que gera lucro para uma minoria, e foi forçado garganta abaixo de gerações passadas para abrir caminho para o capitalismo como ele é hoje. Se tudo pode ser quantificado, o que significa poder comprar liberdade, personalidade, felicidade e até, como diria Nelson Rodrigues, amor verdadeiro? a noção de competição é o messias inescapável dessa jornada; aquilo que se deve abraçar como princípio de vida.

Mas, argumenta-se, não há nada melhor para pôr no lugar do capitalismo de qualquer maneira. A questão não é bem essa: é que ao olhar para as coisas com o desejo de que elas sejam “melhores”, perdemos o foco do que realmente importa: nossa experiência e a autonomia de nossos valores. Esperar uma melhoria absoluta é uma armadilha: melhores de acordo com que critério? Podem ser melhores aqui e piores ali; isso vai depender dos valores, os seus e os sociais também.

As lutas contra o capitalismo têm que reconhecer um aspecto fundamental da vida, afastando-se da esperança progressista que pautou as lutas sociais do século XIX: nada nunca será perfeito. Lutamos com as imperfeições esperando ter que lidar com outros tipos de problemas, não na esperança de que um dia recriaremos o paraíso na terra. Se uma maior e efetiva participação política tirar de todos nós mais tempo, tudo bem: qual é o valor que norteará nossa vida? Passar o tempo cuidando da comunidade, decidindo seu futuro para promover bem-estar com igualdade e justiça, ou terceirizar a cidadania, como na política tradicional, para gastar mais tempo trabalhando como cavalo e consumindo como rebanho?

Podemos nos perguntar, por outro lado, se aqueles que lucram com o capitalismo assistiriam, quietos, à ascenção de um cenário mais igual e mais livre. Historicamente, passividade é o que menos sobra nesse caso.

Freud não explica sozinho

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Há algumas colunas falamos sobre a economia. Minha principal bronca é que ela costuma ser mais discurso que ciência, e também por causa de uma certa mania de achar que o mundo econômico pode (e deve) ser investigado de forma separada do mundo social. Com a psicologia não é muito diferente; há três, ao meu ver, três problemas principais com a psicologia.

O primeiro problema da psicologia é a posição do indivíduo na teoria. À parte de uma questão de valores, tenta-se entender a pessoa a partir de uma investigação minuciosa dela mesma. A dificuldade está que essa é uma visão muito limitada, que não leva em conta – ou diminui – o efeito do ambiente e das interações sociais no desenvolvimento da personalidade, do caráter, dos valores e das atitudes de alguém.

Mas o problema – que, pra ser sincero, é mais uma questão da psicologia clássica do que da contemporânea – é quando esse mesmo individualismo é utilizado para entender a sociedade: ou seja, primeiro entendem-se os indivíduos e depois a sociedade composta por eles. A sociologia, ao nascer, teve que se justificar como uma disciplina isolada justamente porque ela não queria ser a psicologia: ela queria estudar a sociedade como uma coisa outra que não o simples resultado de indivíduos se juntando.

O segundo problema é o do universalismo de muitas das pesquisas da área, ou seja, a pretensão de que uma pesquisa envolvendo alguns milhares de moradores dos Estados Unidos resulte em uma verdade universal sobre o funcionamento da mente humana – ou seja, pesquisas que não levam em conta a forma como diferenças culturais podem interferir em processos da mente, do aprendizado, das representações, ou seja, na forma de ver o mundo e de agir sobre ele.

O terceiro problema é a extrapolação, a partir de pesquisas em ambientes controlados, totalmente fora do contexto do dia a dia, de resultados sobre o funcionamento da mente. Como na pesquisa em que pedia-se às pessoas que escolhessem um botão para apertar; descobriu-se que “o cérebro” escolhia o botão alguns segundos antes de a pessoa se mover para apertar o botão. Daí para a conclusão de que não há livre-arbítrio e somos simplesmente movidos por determinismo cerebral é um pulo. Um pulo, na verdade, em que aquele que pula dá com os burros n’água.

É preciso ser justo e reiterar que nem toda psicologia é assim. Mas não se trata de uma generalização, e sim de características presentes numa enorme parte do discurso psicológico – e que temos que entender não apenas no âmbito científico e acadêmico, mas também político: como vimos na coluna passada sobre a noite em que senti pânico, a psicologia quando vira um discurso que privilegia o indivíduo e seus processos mentais (com ares de curinga) como explicação para toda a dinâmica social, são armas poderosas a serviço de toda uma visão do mundo. Afinal, o psicólogo é uma figura legitimada dentre as nossas imagens sociais. Pra sociólogo ninguém dá bola. Agora, pra psicólogo…

Mas os fenômenos que a psicologia estuda são interessantes, e isso torna o seu espírito, a sua visão, indispensáveis: na verdade a sociologia fica pobre sem ela, tanto quanto acho que ela fica pobre sem a sociologia. A sociologia de Bourdieu, por exemplo, passa pelo estudo não apenas do que a cultura faz com o indivíduo, mas também daquilo que o indivíduo faz com a cultura. Fica até meio sem sentido ajudar a reforçar as divisões entre as disciplinas – para parafrasear a frase tantas vezes já parodiada, a psicologia será social… Ou não será nada.

Senti pânico

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Na noite do dia 14 de abril, um domingo, fui dormir enojado: o Pânico na TV, programa da Band, exibiu uma matéria em que um homem tenta pôr as mãos por debaixo da saia da entrevistadora, chamada Nicole Bahls. Fotos da cena saíram na imprensa e movimentos sociais se manifestaram contra o episódio.

Uma coisa deve ficar clara: não há palavra ou conceito fácil para explicar o que houve. Cair na armadilha de descrever o episódio de maneira simplista só leva a uma confusão infrutífera – ora, aquilo obviamente não era um “estupro”, assim como não foi “só” uma “piada de mau gosto”. A definição vem em forma de frase, mas é evidente: ele fez com ela o que tinha vontade, mas o que ela não queria. Uma declaração dada mais tarde complementa a idiotice: fez porque estava autorizado pela roupa dela, ou seja, não importa realmente o que ela quer ou não. O modo como ela se veste a define, autorizando automaticamente quaisquer atos a revelia de sua vontade.

O problema tem a ver com uma cultura machista em que as mulheres são feitas de objeto: uma “coisa” sem um determinado direito (nesse caso, sobre seu corpo). O tal cara ainda diz: não fiz nada que outras pessoas não fariam se tivessem a chance. Mesmo que esse seja o caso, isso não justifica o ato – por parte dele ou dos invisíveis agressores hipotéticos.

O sensacionalismo do programa não encontrou limites. Uma manifestação feminista nos portões da emissora foi forjada – pessoas cujo único discurso era repetir fórmulas vazias e chamar o homem de “safado”. Os apresentadores se vitimizam, fingindo ter recebido ameaças de morte (ou simplesmente exagerando ao pé da letra possíveis, mas improváveis, mensagens de ódio). Afirma que as feministas não queriam que o vídeo fosse transmitido para jogar o público, que com razão gosta da liberdade de expressão, contra elas – feministas nunca exigiriam essa censura ridícula. Em geral, uma manipulação grosseira da opinião pública.

Além de se vitimizar e vilanizar movimentos sociais, o programa justifica a atitude do homem em nome do humor: o contexto do programa tudo justifica, tudo salva. Mas a questão vai muito além desse circo. Não se trata daquele episódio isoladamente: nenhum feminista vai perder seu tempo na Band num domingo à noite pra berrar contra um mero exemplo de machismo. Ele não é causa do problema, é pura manifestação. Exemplo de uma ideologia podre, que infelizmente encontra vazão na prática frequentemente no Brasil.

Para piorar, o programa termina com a opinião de um psicólogo, que faz o que a classe historicamente faz de melhor, isto é, internalizar um problema social e transformá-lo em problema do indivíduo. Segundo essa ótica individualista torta, o agressor é um visionário, que quebra barreiras da arte (ele é um diretor de teatro), como se ninguém nunca tivesse desrespeitado as vontades sexuais de uma mulher antes, jamais. Ele é um provocador, inovador. E se você se ofende com a provocação dele, o problema é seu!

Mas o problema é cultural, social (nosso) e bem real. Esse programa não merece a sua audiência, especialmente ao mostrar que faz qualquer coisa por dinheiro: desacreditar movimentos sociais não é só mesquinho, é ameaçar a nascente consciência democrática do Brasil. Os mais sujos expoentes de um capitalismo podre, hoje em dia, não estão nas grandes multinacionais. Estão na televisão.

Mudando as regras do jogo

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Em uma outra coluna comentei que uma das tarefas mais significativas na formação de pessoas é mostrar a elas que nada se consegue a não ser através da conversa, da luta dentro das regras do jogo.

Ensinar a lutar dentro das regras do jogo é basicamente enredar em cultura: é o modo como aprendemos a ser o que somos, o que é permitido ou reprovável nas relações interpessoais, qual o tamanho e os limites da nossa honra. Essa série de regras não escritas, porém mais pervasivas que água, podem decidir a dinâmica de quem brinca com o quê e quem brinca com quem no jardim de infância, mas acabam influenciando uma gama muito maior de decisões quando tratamos de adultos.

É justamente por lidar com questões sérias – que envolvem poder, vida e morte – que a antropóloga Sherry Ortner chama esses jogos de jogos sérios. Desde o modo como classificamos pessoas – “aquele metido”, “aquela besta”, “aquele nerd” – até os caminhos e ferramentas de que dispomos para alcançar o que queremos fazer, lidamos com a nossa posição dentro da teia de relações de autoridade e influência que é a sociedade. No meio do caminho rumo aos nossos objetivos, reforçamos a estrutura da sociedade, aquela mesma de onde vieram para nós as regras do jogo, ou jogamos contra ela. Ortner continua a tradição sociológica de Bourdieu, de quem já falamos aqui em outra oportunidade. Bourdieu mesmo já comparou a forma como vivemos em sociedade como um grande jogo. Não é o que parece?

Mas há uma diferença: é um jogo em que as próprias regras do jogo estão em jogo.

Esse jogo, na esquina da política com a cultura, do modo como nos organizamos uns em relação aos outros com as coisas que fazemos uns com os outros e para os outros, tem regras que nós até admitimos serem de pouca serventia para nós, mas que continuam valendo. A forma como nós enquanto povo não nos vemos como participantes do poder e o fato de que crítica à política para muitos de nós significa ausência de ação política são dois exemplos.

Pode-se argumentar que as coisas estão mudando; e estão mesmo. O que fazer para participar dessa mudança e incentivá-la? A organização institucional é importante: o que o governo pode fazer é uma pergunta interessante, mas como Montesquieu falava já há muito tempo, não adianta muito criar leis para ajustar comportamentos indesejáveis: o importante é mudar os costumes.

Concordando ou não com o velho francês, de fato me parece sensato dizer que é aplicando novas regras que elas se tornam uma realidade palpável – até porque diferentes regras convivem no mesmo espaço, em diferentes círculos e contextos sociais. E um dos lugares em que devemos nos esforçar (e aqui temos a presença do político tanto quanto do dia a dia cultural) para jogarmos a partir de regras novas é a escola.

Do lugar onde as crianças adquirem boa parte da prática na manipulação das nossas regras sociais é de se esperar que seja um campo de batalha conceitual. E, se você olhar bem, ele é: entender a formação das escolas é um trabalho interessantíssimo, do qual um grande destaque é o trabalho de Foucault. De qualquer forma, para quem serve essa educação que hoje temos? Não precisamos pensar no que dá errado, mas sim no que está, aos nossos olhos – de acordo com as nossas regras – dando certo: o que significa confinar as crianças a esse espaço disciplinado? Treiná-las para a vida, sim, mas que tipo de vida? Que tipo de posição na sociedade elas ocuparão?

Ouvimos hoje rumores de uma reforma educacional que estaria sendo preparada pelo MEC. Horários mais abrangentes, grade disciplinar mais flexível, mas devemos estar atentos para não trocar seis por meia-dúzia se quisermos fazer valer novas regras para um mundo mais justo. Entender o que queremos que a escola seja e incentive – em suma, o que significa a educação – é ajudar a tornar os jogos sérios que as novas gerações jogarão um jogo mais justo.

Separatismo e pensamento

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

A economia é uma ciência tradicional e prestigiosa. Embora a maioria das pessoas se pergunte o que um cientista social faz, a mesma maioria pensa que o trabalho de um economista é certamente muito importante (seja lá o que for que ele faça).

A economia (em especial o ramo chamado “neoclássico”) vem, desde sua criação, ajudando a reforçar uma série de crenças em relação a nossa sociedade que podem não estar certas. No núcleo de suas ideias, ou pelo menos das ideias que o grande público conhece e que são ensinadas em faculdades pelo mundo inteiro, vive a ideia de que o sistema econômico do planeta é organizado, composto por pessoas isoladas (os indivíduos) que buscam apenas seu próprio interesse egoísta, e que isso tudo leva a uma sociedade justa, pujante, saudável e feliz. David Orrell, em seu livro “Economitos” – uma obra que vale a pena ler – vai derrubando esses “mitos” que envolvem nosso ancestral pensamento econômico.

Essa certamente não é a única forma de fazer economia. A produção, circulação e consumo de bens e riqueza são essenciais a toda sociedade, e influenciam todas as relações sociais dentro de uma variedade de grupos. Mas se não se pode desconsiderar a economia, é possível criticá-la na sua forma e na sua função.

Os melhores estudos econômicos são aqueles que levam em conta todo um contexto social e histórico para compreender os fenômenos que busca entender (a questão da riqueza, dos bens, etc). Um bom exemplo é a maneira com a qual Celso Furtado (grande economista brasileiro) aborda a economia. Em um livro sobre desenvolvimento na América Latina (hoje jurássico em “anos acadêmicos”, mas num sentido bom: um verdadeiro clássico), Furtado comenta que é impossível entender a dinâmica econômica da América Latina com as mesmas ferramentas teóricas com as quais se estuda os Estados Unidos ou a Europa. Aqui há todo um contexto diferenciado que deve ser levado em conta.

Se a economia precisa da sociologia – e a pesquisa sociológica precisa levar em conta aquilo que a economia estuda – por que a separação? A sociologia econômica tanto quanto a economia política debruçam-se sobre a miscigenação das disciplinas sem concluí-la: parecem, pelo contrário, ter sido colocadas lá, no limite, para segurar as fronteiras, como guardas aduaneiros.

A separação da economia do resto das ciências sociais têm uma longa história, mas, resumidamente, a economia neoclássica (da qual falávamos ali em cima) estava baseada (ou queria se basear) na matemática e na certeza científica das coisas. O mundo do social é incerto e aberto, indefinido e plural, mas para os economistas o mundo das finanças obedece a leis claras e certas, que não pertencem à esfera do contingente. Essa vontade de constituir uma disciplina isolada veio justamente para que os dois mundos, o “talvez” e o “com certeza”, nunca se misturassem. E é uma divisão muito conveniente, como Orrell demonstra, uma vez que ela reforça mitos muito convenientes sobre a economia. Mitos que, ao serem continuamente tratados como verdade, levam países inteiros a periódicas crises catastróficas.

É um cenário intelectual de difícil mudança, na verdade, não só pelos interesses profissionais envolvidos em toda essa discussão, mas porque estamos acostumados a essa compartimentalização da educação. Aprendemos coisas em partes independentes, separadas em seções que não se misturam. É uma pena, porque assim como a economia e o resto das ciências sociais, todas as formas de conhecer o mundo estão interligadas – e quando fazemos a conexão entre diversos conhecimentos, aprendemos muito mais e ampliamos nossos horizontes. O verdadeiro prazer da descoberta está nesses pequenos momentos de gênio que todos temos, quando de repente a matemática faz sentido na geografia e aprender a dançar nos ajuda a lutar. Essas conexões nos levam ao prazer de saber e aprender. Já não é mais tão estranho perceber como poucos alunos realmente gostam de ambientes escolares.

Os fatores

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Há uma tendência quanto a programas de televisão no estilo “caça-talentos musical”. Esse tipo de programa existe há tempo, mas agora a internet ajuda a amplificar o alcance: o público de programas desse molde tornou-se mundial ao invés de continuar praticamente restrito a uma nacionalidade.

Se seguirmos algumas noções sociológicas de distinção cultural vamos lembrar que (a grosso modo) costumamos construir identidades em torno de fenômenos culturais, incluindo a música (ser “do rock” ou “do pagode”). No entanto, pertencer a um grupo geralmente significa que, em algum nível, a identidade é construída não só a partir de uma positividade (algo que o grupo gosta ou faz) mas a partir de uma negatividade (o que o grupo não é ou não faz). Integrantes de um grupo fortalecem a conexão entre si não só por atos e discursos que afirmem que são iguais, mas que afirmem que eles todos, juntos, são diferentes dos que não estão no grupo. Não basta para alguns roqueiros dizer que gostam de rock: é preciso dizer que pagode é detestável.

O público que assiste a tais programas não parece obedecer a esse padrão. Os “X Factor”s e congêneres não são, à primeira vista, um “produto” cultural que gera esse tipo de divisão, muito menos uma que tenha a ver com questões sociopolíticas (“funk é coisa de pobre”, por exemplo). Quem não gosta, tampouco fala mal: não assiste e, se perguntado, diz não ter o hábito de fazê-lo. E se esse tipo de show não gera grandes reações negativas, do outro lado da cerca também não parece produzir uma identidade positiva: não porque não seja adorado por muitos, mas porque essa adoração não acaba fazendo surgir um grupo de identidade ao redor dele: é fácil encontrar um “grupinho” de “roqueiros” ou de “futeboleiros” em cada canto de cada bairro, mas um grupo centrado ao redor de uma cultura “X-factor”? Mais difícil.

É, contudo, justamente por não causar esse tipo de comoção que os programas desse tipo são populares. Se falamos nele agora há pouco como um “produto”, é porque é exatamente isso que ele é – algo feito por quem tem dinheiro para gerar mais dinheiro. Adorno (de quem já falamos aqui antes) nos diz que a indústria cultural não é nem alta cultura nem cultura popular – mas uma coisa intermediária e sem substância. De certa forma, programas de talentos não têm mesmo uma substância definida: são formatos, cascas nas quais uma série de coisas diferentes são postas. Não é lucrativo que identidades sejam geradas ao redor deles (até certo ponto, é claro; ser esquecido não é bom) porque isso significa se fechar para um público menor. Não tomar lados, ficar em cima do muro, tentar agradar o máximo número de pessoas – essa é a estratégia padrão. O resultado, com a exceção dos ritmos considerados ofensivos demais para o gosto médio da média das classes médias, é um show com um pouco de cada coisa. Como efeito colateral a mensagem que o programa passa é mais do que a tolerância, é estímulo à variedade: é preciso gostar de tudo um pouco, evitando a identificação exagerada por um estilo e excludente de outros. Afinal, quanto mais coisas para se gostar, mais coisas para se vender.

Mas o programa oferece algo a mais: a própria casca que quer ser, o “formato” universal dos programas de calouros, é algo que tem força: a pessoa que passa por todo um processo para estar ali, o que inclui sua história de vida, tem sua “história” apresentada. A história, mostrada de maneira editada e dramática (ainda que, na maioria das vezes, despretensiosa – parte do realismo que se quer vender) tem o papel de criar uma conexão instantânea com o personagem o mais rápido possível: fazer o espectador se identificar com ele, torcer por ele, chorar com ele. É uma fórmula pronta que ataca uma forma de sensibilidade ocidental – nossa forma de sentir e de se relacionar com as coisas da vida – que foi sendo aprimorada por essa indústria cultural ao longo de sua existência no último século e além.

Interessante também é a própria performance que vem após a história: todo programa tem uma série de jurados que são colocados como autoridades no assunto, e aquele que busca a fama deve se submeter ao julgamento deles. O formato ritual da submissão à autoridade gera uma robusta imagem do processo social a ser passada adiante: é preciso ser legitimado pelos detentores do poder e, mais do que poder legítimo, a palavra autoridade nesse caso também quer dizer acesso ao conhecimento: até mesmo o gosto musical transformado em algo compreensível, julgável, e hierarquizado.

A contínua construção cultural das estruturas sociais

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Minha família gosta de futebol. Eu, não muito, mas como no almoço eles assistem ao programa “Jogo Aberto”, da Band, acabo me envolvendo com isso (razão pela qual acabei escrevendo a coluna “Direitos e Prioridades”, inclusive). Quem assiste ao programa sabe que, eles falam diariamente sobre o Corinthians e sua ida ao Japão em razão do mundial de clubes. Na verdade já é bem sabido que se a Band fosse renomeada para “Corinthians TV” não seria grande surpresa, mas mesmo assim: Pseudo-discussões e pseudo-notícias são inventadas, criando motivos imaginários para que a equipe de filmagens e de comentaristas visite o clube todo santo dia, e todo dia a jornada ao Japão seja comentada nos mínimos pormenores.

Isso não tem só a ver com a popularidade do clube. Se prestarmos atenção ao conteúdo do programa veremos que a grande pergunta é: Quem o técnico escolherá para levar ao Japão? Mas afinal, o que tem de tão especial essa “seleção corinthiana”?

Ela é especial porque é um mito. Não no sentido de que não existe, mas no sentido de que é um símbolo. O que se fala o tempo inteiro – todo dia, aliás, repete-se como se o telespectador não tivesse memória – é que no Corinthians existe meritocracia. Só vai para o Japão quem estiver jogando bem. Mais do que jogando bem, jogando melhor do que os outros. Ainda mais do que jogando melhor do que os outros, dando tudo de si, jogando com “raça”, mostrando que vai se sacrificar ao máximo pelo time quando estiver (se ganhar o privilégio de estar) do outro lado do mundo.

Essa é a razão social maior pela qual a Band exibe de novo e de novo e de novo essas matérias com essa mesma história. Porque o Corinthians, sendo o fenômeno popular que é, tem uma capacidade como nenhuma outra coisa atualmente de gerar um “mito maior” que dê legitimidade ao (que faça “ficar bem na foto” o) sistema em que vivemos. Que sistema é esse? A ideia de que a competição entre indivíduos independentes gera progresso e melhoria de vida para todos – a ideia fundante do liberalismo econômico. A ideia pela qual muitas pessoas enxergam a natureza humana (sobre a qual já falamos aqui antes) e pela qual economias inteiras ao redor do mundo são organizadas. Ao falar do Corinthians a Band está mostrando: “Vejam, vejam como o mundo funciona! É assim, minha gente: quando você tem competição, você extrai o melhor que os seres humanos têm a oferecer!”. A forma como essa ideologia é marretada com o martelo corinthiano ajuda a amarrar a fortalecer, na cabeça de todos (mesmo quem não é corinthiano) esse grande esquema de coisas como um esquema natural, ou no mínimo o melhor.

Se isso funciona a nível simbólico, não funciona tão bem no nível prático quando olhamos para a realidade social. A competição traz à baila uma série de problemas, mas numa atmosfera controlada e específica como o esporte eles são escondidos ou realmente minimizados por causa de características próprias. A justiça, por exemplo, é algo que não existe no mundo natural e se faz presente de forma incompleta e imperfeita no mundo social. No mito corinthiano da competição perfeita, no entanto (assim como acontece no mundo da tecnologia, outra frente de ataque daqueles que querem fazer acreditar na competição como motor do mundo), é mais do que sorte: há vários critérios que vão garantir a justiça do processo. Curiosamente, um deles é a confiança no julgamento de um suposto líder supremo, a figura paterna e justa do técnico.

Embora pareça que para a Band ninguém tem memória, na verdade faz o que faz justamente porque temos memória: a repetição é efetiva a nível simbólico justamente porque causa uma sensação de onipresença dessa ideia — o que a torna, pouco a pouco, mais forte. Damos significado às experiências que podem parecer mundanas e específicas, e sem pensar cada vez mais nossa interpretação das coisas é moldada ao que é útil para quem está no poder. E é exatamente por não refletirmos sobre isso que acabamos caindo em armadilhas de pensamento e interpretação, respirando a ideia de que a competição – veja o exemplo do Corinthians, ora! – é sempre uma coisa linda que nos leva ao topo do mundo. Agora, só imaginem o quanto mais não vamos ouvir falar desse sistema de pensamento se o Corinthians ganhar esse mundial.