Conheci David Graeber já há bastante tempo através de um amigo, e agora finalmente chegou a vez de lê-lo. Só com as sinopses dos livros já o achei fantástico. Resolvi começar leve (ao invés de por “Debt” ou “The Lost People”, com mais de 400 páginas cada um), de modo que escolhi este livro. E que obra! Graeber reacendeu em mim uma paixão pela teoria anarquista que eu já havia transformado em algo que tomo por garantido, mas que eu não tinha mais tanto entusiasmo por não ser para mim algo novo. Mas Graeber pegou o anarquismo e o apresentou de forma tão nova e maravilhosa, tão inteligente e audaciosa, misturando-o a uma antropologia tão honesta e poderosa, que é impossível não sentir o sangue negro da teoria política mais revolucionária do mundo contemporâneo correr de novo pelas veias.
O livro começa discutindo a pouca quantidade de anarquistas no meio acadêmico, fazendo no processo um apunhado maravilhoso da relação entre anarquismo, marxismo, o processo revolucionário proposto por esses galhos teóricos, a universidade e os intelectuais em geral. A exposição passa por muitos “micropontos” discursivos e “micromanifestos”, uma conclusão notável sendo a de que o marxismo tende a ser uma teoria ou discurso analítico quanto à estratégia revolucionária, enquanto o anarquismo tende a ser um discurso ético sobre a prática revolucionária. Logo depois há uma exposição entre as conexões históricas entre a antropologia até o fim da primeira metade do século XX e o anarquismo.
Depois disso vem a ideia de um sistema econômico não baseado num endeusamento dos valores do mercado (Mauss) e a ideia de um sistema político não baseado na coerção (Clastres), ambas encontradas bem vivas e funcionais em sociedades “não ocidentais” estudadas pela antropologia. Elas encorpam uma “teoria antropológica anarquista que quase existe” (uma vez que o argumento é que uma tal teoria ainda não existe). A coisa fica ainda mais pujante quando passa a uma das principais asserções do livro: a ideia do contrapoder imaginário, em que as sociedades igualitárias, baseadas na ideia de comunidade, arranjam as instituições sociais de tal forma a combater o aparecimento de sentimentos e ações que podem despertar tensões destrutivas. O adjetivo “imaginário” vem da observação de que, como todas as sociedades têm tensões internas em que os as pessoas lutam pelo domínio em termos de valores (puxando os membros da sociedade em várias direções diferentes), as sociedades mais pacíficas e que têm mais impulso na direção da manutenção da igualdade são aquelas cujas visões de mundo são as mais sombrias, populosas de monstros e bruxos e magia negra que quer o mal deles. Mas, para além disso, trata-se do campo das ideias, dos mitos do cotidiano, da forma como as grandes instituições e aglomerações humanas (que, afinal, não “existem” num sentido estrito para além do status de abstrações) são entendidas.
Essa ideia é importante, argumenta Graeber, e isso ele demonstra ao mobilizar o exemplo de um povo de Madagascar, que aparentemente “do nada”, de uma hora para outra, gerou formas de auto-organização igualitária e não-hierárquica para gerenciar a si mesmo — uma revolução anarquista que não veio do nada: veio, na verdade, a partir da percepção de que coisas como o sistema de trabalho assalariado, a hierarquia política e militar, etc, eram negativas, e então as pessoas se mobilizaram para criar novas formas de organização. Foi uma revolução pacífica e, talvez por isso, não virou notícia em lugar nenhum. Não foi preciso pegar em armas para confrontar violentamente o governo estabelecido; o governo foi ignorado, e é precisamente esse tipo de estratégia que vai ser exaltada mais tarde no livro (a estratégia do êxodo). Em suma, a ideia do contrapoder imaginário é que é preciso brigar culturalmente pela percepção sobre a sociedade; uma vez que esse contrapoder torna-se importante, é possível reorganizar a sociedade sob princípios anarquistas a despeito do poder do Estado, que pode ser “esvaziado”. Essa questão estratégica é menos desenvolvida no livro, mas é importante — e talvez seja menos desenvolvida precisamente porque estes são “fragmentos” de antropologia anarquista; ele mesmo deixa explícito que é preciso desenvolver uma série de coisas, inclusive uma teoria anarco-antropológica da alienação, do Estado, do contrapoder.
Graeber passa considerável tempo argumentando pela destruição da diferenciação entre os povos tidos como “não-modernos”, “não-ocidentais”, e os modernos, ocidentais. Não vou focar muito nisso, embora a exposição seja brilhante e uma razão pela qual a antropologia é uma área do conhecimento fundamental para basear tal asserção. Junto a isso ele faz uma reflexão valiosa sobre a ideia de revolução, em que ela aparece como um instrumento do pensamento que a lógica humana, tal como é geralmente constituída, não consegue prescindir — mas que não existe estritamente, e tomar sua existência como algo factual acaba levando a uma série de problemas.
Graeber enfim fala sobre o que ele considera serem os elementos essenciais que ainda faltam serem desenvolvidos para que possa haver uma antropologia anarquista: uma teoria do Estado (brilhante exposição esta em que o Estado aparece com sua natureza dual, simultaneamente utopia de poder e mecanismos (menos idealistas) de controle social); uma teoria de entidades políticas que não são Estados; “mais uma teoria do capitalismo” (porque a antiga não é suficiente); uma simetria entre poder e estupidez, ou poder e ignorância (em oposição a poder e conhecimento, como aparece em Foucault. Aliás, a “patada” que ele dá em Foucault é maravilhosa); uma ecologia de associações políticas; uma teoria de felicidade política; uma teoria da hierarquia (sobre como estruturas hierárquicas, por sua própria lógica, necessariamente criam sua contra-imagem ou negação. “They do, you know”, diz ele, com um estilo maroto); uma teoria sobre a individualização do desejo, do sofrimento e do prazer; e, finalmente, uma ou muitas teorias sobre a alienação.
Finalmente, o livro (quase) termina com algumas ações anarquistas do presente. A primeira, do movimento da anti-globalização (muito interessante, por propor que ocorra uma globalização de verdade, em que não existam mais fronteiras nacionais); a segunda, do movimento contra o trabalho assalariado (que se traduz num movimento atual pela diminuição radical do horário padrão de trabalho); e, em letras garrafais, DEMOCRACIA. É interessante notar que, no segundo caso, o argumento todo me lembra muito o Bob Black, e é fantástico em sua simplicidade. No terceiro caso, enfim, várias páginas são dedicadas a uma análise importantíssima, a de que a “democracia” não começou com a Grécia (pois democracia de verdade é o sistema que tenta mediar o consenso, e não a democracia majoritária), e que na verdade a democracia majoritária é um problema porque é a junção de duas coisas que raramente andaram juntas na história da humanidade: a ideia de que todos deveriam ter o direito de se manifestar sobre as decisões da sociedade, e um aparato de força para impôr uma decisão a todos os membros de tal sociedade. Indo ainda mais profundamente, como não poderia deixar de ser, a própria palavra democracia é questionada, por se tratar justamente não da autonomia do povo, mas de sua violência; democracia, palavra criada por elitistas que queriam se resguardar da violência gerada quando o povo não é escutado, não é ouvido, não é considerado.
O livro termina (de verdade) com uma crítica feroz das razões pelas quais os antropólogos, os mais capacitados afinal de contas para fazer uma propaganda das formas de vivência anarquista, mas que não o fazem. Não vou entrar em detalhes aqui tampouco.
Devo dizer, por fim, que o livro é magnífico do início ao fim; instigante, prolífico sem ser prolixo, estimulante, e cheio de jóias que uma resenha, por grande que seja como esta foi, não tem como representar direito. Uma leitura, de fato, de fragmentos: pequenos retalhos que, costurados, podem parecer repetidos vez ou outra mas são coerentes e criam uma colcha intelectual de peso. O argumento anarquista ganha força, e é imprescindível que seja ouvido porque é consistente e está mais bem nutrido do que nunca. Estou mais ansioso ainda pelos próximos livros de Graeber que tenho pra ler.
Citações maravilhosas (embora existam muitas e muitas; têm que ser poucas aqui ou a resenha acaba virando só citações):
“[…] Most real, tangible violence is [created by inequality]. […] But this hardly means that if all inequalities vanished, then everything, even the imagination, would become placid and untroubled. To some degree, I suspect all this turbulence stems from the very nature of the human condition. There would appear to be no society which does not see human life as fundamentally a problem. However much they might differ on what they deem the problem to be, at the very least, the existence of work, sex, and reproduction are seen as fraught with all sorts of quandaries; human desires are always fickle; and then there’s the fact that we’re all going to die. So there’s a lot to be troubled by. None of these dilemmas are going to vanish if we eliminate structural inequalities (much though I think this would radically improve things in just about every other way). Indeed, the fantasy that it might, that the human condition, desire, mortality, can all be somehow resolved seems to be an especially dangerous one, an image of utopia which always seems to lurk somewhere behind the pretentions of Power and the state.”
“Counterpower is first and foremost rooted in the imagination; it emerges from the fact that all social systems are a tangle of contradictions, always to some degree at war with themselves. Or, more precisely, it is rooted in the relation between the practical imagination required to maintain a society based on consensus (as any society not based on violence must, ultimately, be) – the constant work of imaginative identification with others that makes understanding possible – and the spectral violence which appears to be its constant, perhaps inevitable corollary. […] In egalitarian societies, counterpower might be said to be the predominant form of social power[… It stands] guard over what are seen as certain frightening possibilities within the society itself: notably against the emergence of systematic forms of political or economic dominance. […] Institutionally, counterpower takes the form of what we would call institutions of direct democracy, consensus and mediation; […] ways of publicly negotiating and controlling that inevitable internal tumult and transforming it into those social states (or if you like, forms of value) that society sees as the most desirable: conviviality, unanimity, fertility, prosperity, beauty, however it may be framed. […] In highly unequal societies, imaginative counterpower often defines itself against certain aspects of dominance that are seen as particularly obnoxious and can become an attempt to eliminate them from social relations completely. When it does, it becomes revolutionary.”
“Academics love Michel Foucault’s argument that identifies knowledge and power, and insists that brute force is no longer a major factor in social control. They love it because it flatters them: the perfect formula for people who like to think of themselves as political radicals even though all they do is write essays likely to be read by a few dozen other people in an institutional environment. Of course, if any of these academics were to walk into their university library to consult some volume of Foucault without having remembered to bring a valid ID, and decided to enter the stacks anyway, they would soon discover that brute force is really not so far away as they like to imagine – a man with a big stick, trained in exactly how hard to hit people with it, would rapidly appear to eject them. In fact the threat of that man with the stick permeates our world at every moment; most of us have given up even thinking of crossing the innumerable lines and barriers he creates, just so we don’t have to remind ourselves of his existence.”
“violence, particularly structural violence, where all the power is on one side, creates ignorance. If you have the power to hit people over the head whenever you want, you don’t have to trouble yourself too much figuring out what they think is going on, and therefore, generally speaking, you don’t. Hence the sure-fire way to simplify social arrangements, to ignore the incredibly complex play of perspectives, passions, insights, desires, and mutual understandings that human life is really made of, is to make a rule and threaten to attack anyone who breaks it. This is why violence has always been the favored recourse of the stupid: it is the one form of stupidity to which it is almost impossible to come up with an intelligent response. It is also of course the basis of the state.”
“Ultimately this should lead to a theory of the relation of violence and the imagination. Why is it that the folks on the bottom (the victims of structural violence) are always imagining what it must be like for the folks on top (the beneficiaries of structural violence), but it almost never occurs to the folks on top to wonder what it might be like to be on the bottom? Human beings being the sympathetic creatures that they are this tends to become one of the main bastions of any system of inequality – the downtrodden actually care about their oppressors, at least, far more than their oppressors care about them – but this seems itself to be an effect of structural violence.”
“The history of capitalism moves from attacks on collective, festive consumption to the promulgation of highly personal, private, even furtive forms (after all, once they had all those people dedicating all their time to producing stuff instead of partying, they did have to figure out a way to sell it all); a process of the privitization of desire.”
“[I]t is much easier, in a face-to-face community, to figure out what most members of that community want to do, than to figure out how to convince those who do not to go along with it. Consensus decision-making is typical of societies where there would be no way to compel a minority to agree with a majority decision […]. If there is no way to compel those who find a majority decision distasteful to go along with it, then the last thing one would want to do is to hold a vote: a public contest which someone will be seen to lose. Voting would be the most likely means to guarantee humiliations, resentments, hatreds, in the end, the destruction of communities. What is seen as an elaborate and difficult process of finding consensus is, in fact, a long process of making sure no one walks away feeling that their views have been totally ignored.”