É tão legal quando você percebe que pensadores aclamados pensam igualzinho a você.
E eles nem precisaram da sua ajuda pra chegar lá!
Ciências sociais, ficção, tradução
Textos sobre literatura.
É tão legal quando você percebe que pensadores aclamados pensam igualzinho a você.
E eles nem precisaram da sua ajuda pra chegar lá!
“Enquanto o estilo literário é o espaço da incerteza, do indeterminado, de “brancos” que o leitor deve preencher, funcionando como máquina preguiçosa na expressão de Eco, na imprensa é o leitor que ocupará esse lugar da preguiça, sendo o trabalho do jornalista a colmatação das brechas possíveis, limitando o esforço interpretativo, construindo assim um leitor preguiçoso.”
Eu devia estar dormindo já há duas horas, mas enfim, aqui estou… Acabei vendo alguns vídeos antes de dormir e precisei vir escrever este texto, de tão agoniado que me senti em relação a esse tema.
Um agonia tipo essa, assim.
Se você assiste alguns canais estrangeiros no Youtube, como CinemaSins, Couch Tomato e Wisecrack (todos super recomendados), você vai perceber que muitas vezes eles são patrocinados pelo site Audible.com, uma loja de audio-livros (audiobooks) subsidiária da Amazon. O patrocínio significa que, logo depois que o conteúdo principal do vídeo termina começa uma propaganda feita pelo apresentador do conteúdo. A propaganda é feita de um jeito criativo; ela não parece ser feita unicamente por grana (o produto parece algo que as pessoas nesses canais realmente usam e gostam; o dia que o Jeremy do Cinema Sins fizer a propaganda de, sei lá, uma clínica de bronzeamento artificial, aí isso vai parecer falso), não é invasiva ou chata, é honesta (isto é uma propaganda) e é bastante útil, na verdade, especialmente porque depois de recomendar o site eles dizem algo como “e se você está procurando por uma recomendação de leitura, recomendamos <insira livro bacana e relacionado com o conteúdo aqui>”.
Só que tem uma coisa que me incomoda profundamente em algumas dessas propagandas: o ângulo, o rationale usado para incentivar o uso dos audiobooks. A ideia principal é: ninguém tem mais tempo, ou saco, pra ler hoje em dia. Então simplesmente ouça o livro.
Mas o Audible está fazendo uma coisa boa, não está? Está reconhecendo que tem gente que não tem tempo ou paciência para ler, e muitas dessas pessoas tem algum tempo que, embora não possa ser aproveitado pra ler (estão dirigindo, ou se exercitando), pode ser aproveitado para ouvir coisas.
O Audible, sendo subsidiário da Amazon, não pode ter interesse em não incentivar vendas de livros. Talvez ele esteja sendo simplesmente simpático com quem não gosta de ler, aproximando-se dessas pessoas estrategicamente, como um “good cop”, e fisgando-as à literatura. Começam com audiobooks e, depois, acabam indo pros livros. Boom! É assim que você cria leitores. Com uma estratégia sorrateira, praticamente tirada das páginas de um Sun Tzu (ou de um audiolivro dele, narrado pelo… Pedro Bial ou coisa parecida).
Muy amigo.
O problema é que eu tenho minhas dúvidas de que essa taxa de conversão seja necessariamente alta. Os audiobooks visam se adaptar à rotina das pessoas, e não o contrário; quem não tem tempo pra ler, mas quer ler, poderia encontrar a motivação pra abrir um espaço em suas vidas para um livro. Mas, com os audiobooks, elas não precisam mais disso: encontraram algo que se encaixa perfeitamente na rotina que elas já têm. Daqui em diante, é mais provável que elas continuem comprando audiobooks, se acostumem a eles, invistam nesse sistema de consumo de informação. A Audible pode não querer diminuir as vendas de livros de sua empresa-mãe – mas ela reconhece que algumas pessoas não vão comprar livros tão cedo, então constituem um nicho que ela pode conquistar sem medo de canibalização ou autossabotagem.
Ao tratar os livros como veículos de mensagens valiosas, você separa o conteúdo da forma de um modo absolutamente destrutivo para a arte. A mensagem é: você quer ler, mas não tem tempo. Mas existem coisas nos livros que você quer saber, então… Obtenha a informação sem a experiência. Porque ouvir as palavras de um livro vai certamente fazer com que você consiga reter algumas das coisas que entram pelos ouvidos, mas isso não tem nada a ver com o tipo de habilidade e virtude que a leitura simultaneamente exige e desenvolve: paciência, compromisso, investimento; a atitude de “stop and smell the roses” tão peculiar à análise calma, ao consumo apropriado de algo que quer ser uma experiência estética. O formato interessa. Não, só porque você conhece a história de um livro não quer dizer que o leu; só porque ouviu o conteúdo do livro, não quer dizer que o leu. Se um amigo lê o roteiro de um filme para você, ou o assiste numa sala separada e vai contando para você o que se passa na tela, não quer dizer que você viu o filme.
Isso vale mais para ficção, claro, embora a não-ficção não seja “neutra” a tal ponto que não exista uma voz, um estilo do autor. Mas é que com a não-ficção, a informação realmente vale mais: é na maioria das vezes a motivação da leitura. Eu tenho aqui um audiobook do John Keegan que estou louco pra ouvir, mas é porque quero a informação. Mas o Audible não se vende como plataforma para estudantes. Os audiobooks são vendidos, nessas propagandas, como perfeitos e convenientes substitutos de livros, inclusive os de ficção.
Não só a experiência estética de ler um livro diretamente é diferente de ouvi-lo, a audição de um livro implica que alguém fez por nós as escolhas que são feitas no “processamento” que nosso cérebro faz de um texto ao lê-lo. O tom do que os personagens dizem, o ritmo; ler mexe muito mais com a nossa imaginação, porque nós temos que criar as vozes que dão vida e corpo à leitura; num audiobook, a voz é a do narrador, que faz por nós o tipo de escolha que vai nos ajudando a moldar essas vozes. Esse tipo de processo criativo faz da escuta de um audiobook uma experiência passiva, muito mais próxima da televisão que de um livro. A constituição da narrativa em nossa imaginação a partir dos sinais gráficos da escrita, muitas vezes abertos a interpretação, é uma experiência muito mais ativa. Um bom contador de histórias pode nos fazer visualizar a história, claro; mas se a ideia é “ler” audiobooks enquanto você dirige, não é nem para você ficar imaginando muita coisa.
Uma das coisas que mais me incomoda nessa propagação de que “ninguém tem tempo pra ler hoje em dia” é que isso contradiz pelo menos alguns dos cenários que o Audible defende. Você pode ler, por exemplo, enquanto faz esteira. Mas será que essas pessoas não podem fazer um pouco menos de esteira, ou fazer menos vezes a esteira por semana, para se dedicar a ler? Vamos supor que não: realmente não existe nenhum outro tempo na vida dessa pessoa que ela possa usar para ler, um pouco que seja?
É essa questão de prioridades que me deixa irritado. Pode ser que a vida de algumas pessoas seja tão louca que não sobre nenhum tempo pra ler. Mas muitos de nós temos a tendência a exagerar nossas obrigações e nossas rotinas, supervalorizando o quão “cheio de coisas para fazer” realmente estamos. Para essas pessoas, a mensagem construtiva é: Repense. Reestruture. Priorize. Encontre formas de fazer coisas que vão te fazer bem, ou que você vai curtir, e sua vida vai continuar legal – ela vai ser corrida de qualquer jeito, então inclua um pouco mais de leitura.
Mas não. O que o Audible diz é: se você pode não ler, e ainda assim se divertir, pra que ler? A mensagem ressoa porque é exatamente o que não-leitores já fazem (se você pode se divertir sem ler… Pra que ler?). O engodo é que isso dá a impressão de que a pessoa está interagindo com “livros”, quando não creio que seja bem o caso.
Joguem os livros na fogueira!!!1! Chegaram os audiobooks!!1!
Pra fechar a discussão com chave de bosta, me pergunto: e audiolivros de fato poupam tempo? Um narrador não pode ler o livro correndo, porque se não muitos podem não entender e isso equivale a ler um livro escrito à mão com letra de médico. Tem que fazer uma leitura pausada, e eu, como leitor dinâmico, sei que progrido muito mais rápido que a fala de um narrador. Como leitor, eu posso pular partes – seja isso bom ou ruim, é uma decisão minha, e é especialmente relevante em livros de não-ficção – como espectador de um mp3, tenho que esperar ele terminar, ou ficar tentando adivinhar quanto tempo ele vai precisar pra ler aquela parte e pular especificamente aquela quantidade de segundos ou minutos (e essas adivinhações raramente dão certo de primeira).
Pior ainda, quantas vezes queremos voltar e reler aquele pedacinho que acabamos de ler? Isso deve ser um inferno de fazer com arquivos de áudio, ainda mais pra alguns dos cenários que o Audible afirma abranger (enquanto você faz uma bicicleta na academia? Enquanto dirige?). Isso me leva a pensar que talvez as pessoas não tem é tempo, nem saco, pra ficar ouvindo audiobooks – essa deveria ser a propaganda da Amazon pra vender livros, aliás…
Não estou falando aqui da qualidade dos audiolivros, nem da importância desse segmento de mercado, por exemplo, para pessoas com deficiência visual; até porque não é esse o ângulo do Audible. Estou incomodado com a mensagem de que os audiolivros são bons porque dispensam a leitura; de que ninguém tem tempo, paciência ou força de vontade pra leitura.
Por outro lado, isso parece estranho vindo de quem reclamou que a leitura não deve ser incentivada com esse tipo de argumento racional voltado para seus efeitos práticos. E no entanto aqui estou eu, dizendo que os audiobooks não trazem tantos benefícios para a imaginação, a criatividade, o pensamento crítico, etc quando livros de papel… Mas acho que minha incomodação vai além disso. Com essas observações só quis marcar minha posição, reforçando o que acredito ser uma verdade incontornável: audiobooks não substituem a leitura. Ainda acho que a leitura deve ser incentivada e propagada, principalmente em relação às crianças e (pré-)adolescentes, como uma questão de prazer, de hábito, de hobby, de lazer. E esse é um dos aspectos da leitura que essa ação publicitária do Audible menospreza e diminui. Não curti.
“Com um fone de ouvido ficaria bem melhor” -n
E você, o que acha? Você consome audiolivros? Já usou o serviço do Audible.com? O que acha dessa forma de vender o serviço?
O tempo todo vemos dados alarmantes sobre o estado da leitura no Brasil. Precisamos urgentemente discutir estratégias para transformar essa realidade.
Afinal, a leitura é importante: ela nos deixa mais “inteligentes”, sem dúvida, e todos queremos um país mais inteligente, agora e no futuro. Só que, quando colocamos isso em evidência no contexto de incentivo ao hábito de leitura, confundimos algumas consequências da leitura com o que nos faz ler. Fazendo isso, erramos o alvo.
Leia mais ficção e você vai se sair melhor em provas e concursos – sua habilidade de interpretação textual vai melhorar; as palavras serão mais familiares, e textos de não-ficção, mais facilmente compreendidos. Logo você será capaz de solucionar problemas com mais eficiência. Desenvolver seu cérebro é o tipo de coisa que não tem efeitos colaterais negativos: sua lógica fica melhor, mas também sua memória, sua paciência, sensibilidade artística, perspectiva histórica, empatia, inteligência emocional, resistência a Alzheimer… Ler é como a melhor combinação de remédios e complementos vitamínicos, só que ministrada principalmente para suas habilidades intelectuais e profissionais.
Só que investir nessa visão (“ler é bom para você, então leia!”) pode ser um mau investimento, posto que apenas marginalmente efetivo, quando muito (mesmo que não conte como prejuízo, seria um desperdício de oportunidade). Se simplesmente saber que algo é ruim, danoso ou errado fosse o suficiente para que as pessoas não fizessem tais coisas – em suma, se Aristóteles estivesse certo quanto à origem do comportamento mau – o mundo seria substancialmente diferente do que é. Por mais que haja valor na conscientização (que dá origem a atitudes; só não o faz exclusivamente), as coisas não são tão simples.
Do ponto de vista administrativo, a leitura é uma questão de “habilidade acadêmica”. Como dito acima, queremos um país de leitores. Se é a falta de leitura que ameaça nos “emburrecer”, então temos que fazer as pessoas entenderem que a leitura é boa para elas até elas lerem mais.
O que escapa a essa lógica é que a leitura não é algo utilitário. A leitura é um prazer que, coincidentemente, traz benefícios a quem lê (e, trickle-down style, a todo mundo em volta desse bendito leitor). A matemática sofre do mesmo problema: ela é a manipulação da lógica; é arte com formas e abstrações. Mas, ensinada como uma ferramenta, e extraído dela todo o prazer da descoberta, tudo que os alunos veem é uma coisa que 50% das pessoas nunca vão usar no futuro (“e, de qualquer forma, existem calculadoras para quê, diabos?”). Você pode até convencer algumas pessoas a começar a ler por causa dessa questão “utilitária”, mas 1) não serão muitos; e 2) os resultados não serão duradouros, porque ao se aproximar da leitura com esse viés (“busca-se” alguma coisa, racionalmente; algum resultado, algum lucro, essa “inteligência” que é prometida) as pessoas logo vão se frustrar e… Bem, vão abandoná-la com o tempo, dando prioridade a outras coisas.
Um livro, mesmo um livro bom, não é a causa absoluta de seus efeitos; se fosse assim, todo mundo teria a mesma opinião sobre um livro. A forma como a pessoa encara a leitura vai influenciar enormemente suas impressões sobre ela. Harry Potter, As Crônicas de Gelo e Fogo, os livros de Augusto Cury, de Dan Brown, de Nicholas Sparks, os 50 malditos tons… É possível que eles possam sensibilizar alguém que entre na literatura “por obrigação”, essa conveniência interessada. Mas também é possível que, lendo “por obrigação”, a pessoa não consiga entrar num mindset que permita que o prazer aflore através desses livros, ou de quaisquer outros.
Ficar enchendo o saco de alunos que não leem, fazendo um, digamos, non-reader shaming (como já vi professor fazer) só vai associar a leitura a sensações de vergonha, inferioridade, humilhação – a coisa de “escolhidos”. “Como eu não gosto muito de ler e até hoje nunca gostei, e eu não sou mesmo a pessoa mais brilhante do mundo, esse negócio de ler simplesmente não deve ser para mim…”
Ler é uma questão de prazer – mas isso tampouco ajuda nossa causa. A leitura exige mais. Prazer por prazer, existem muitos; se posso ver um filme, beber e dançar, ou ouvir música no Youtube, por que eu deveria ler? Filmes e músicas também desenvolvem o cérebro e podem fazer pensar. A dança é também uma arte muito importante, e a corporalidade não pode ser desprezada. Tentar começar uma briga em relação a qual arte é mais prazerosa, ou (de volta ao argumento anterior) qual traz mais benefícios técnicos, não é interessante.
A chave está no hábito. Crianças aprendem coisas por causa da mais básica e fundamental dinâmica cultural da humanidade: elas querem fazer o que os adultos fazem. Mais tarde, com mais personalidade e experiência, querem fazer o que alguns adultos fazem (seus modelos e ídolos). Se estamos falando de nossas crianças e adolescentes (o “futuro da nação”), temos que mostrar aos atuais adultos que eles são seus modelos e ídolos. Claro, há outros (como as celebridades), mas estamos falando de coisas que estão ao nosso alcance, não é mesmo?
Não peça a seu filho para ler mais, explicando para ele que isso é importante, se você não lê. Não diga aos seus alunos que ler é importante para passar no vestibular, ou mesmo porque é legal – apareça com uma desgraça de livro debaixo do braço na sala de aula! Comente o que está lendo, compartilhe a experiência. Porque se essa experiência não “veio de casa” na forma de rotina, esse aluno vai precisar ser convencido de que essa é uma experiência em que vale a pena investir considerável tempo, energia, eventualmente dinheiro. Fale da trama, sem spoilers; do que você sentiu durante a leitura, do que achou mais interessante. Compare. Fisgue. Fale até de coisas que já leu, e como aquilo impactou você, pessoalmente. Pessoalmente, sim – a leitura é uma jornada pessoal.
E embora um livro não seja a causa absoluta de seus próprios efeitos, é preciso não tornar a leitura um campo minado. Jovens leitores podem ler coisas complexas; nós tiramos das obras de arte o que estamos preparados para absorver. Se não pudermos entender tudo, tudo bem. O problema não está tanto em ler a versão original ou a adaptada de Dom Casmurro; é achar que é preciso decidir qual é a leitura certa para cada idade ou grupo, ou mesmo eleger esses livros que “todo mundo deve ler”. Cada indivíduo é único em sua relação com a leitura, e deveria seguir a bússola de seus interesses. Obviamente que nem todo leitor pode começar a ler a Odisseia assim que for alfabetizado – mas volto a isso depois.
O acesso aos livros é uma pré-condição para o trabalho de incentivo à leitura. Obviamente que em escolas e localidades em que não se achem muitos livros em bibliotecas – ou mesmo sebos – é imprescindível abastecer o local com literatura; mas não se pode pensar que esse era o único problema antes, e que basta investimento em termos de compra de exemplares para que de repente haja uma proliferação miraculosa de leitores. A oferta não gera, automática e magicamente, demanda.
Sem considerar os locais com difícil acesso a livros físicos (onde a internet provavelmente também não é lá essas coisas), o acesso das pessoas em grandes centros urbanos também vem aumentando. Há centenas de escritores independentes publicando suas obras na internet (ahem…) e mesmo os ebooks tornam o caminho da decisão de leitura até a leitura em si uma coisa de 2 minutos; não é preciso nem sair de casa, nem esperar o livro chegar via correios. E só ler.
O problema é que as mesmas mídias que tornam significativamente mais confortável ler em aparelhos eletrônicos (celulares, tablets) também são aquelas que facilitam o acesso a tudo o mais – vídeos, facebook, jogos. Se antes a leitura já entrava em desvantagem na competição com outras forças de prazer e atividade de lazer, essa competição não ficou mais fácil. Ficou pior.
Isso aponta para uma única conclusão: o acesso mais fácil ajuda, é claro; e ajuda em especial aqueles que tinham um acesso nulo ou quase nulo em relação aos livros. Só que é só pré-condição; o que vai fazer diferença mesmo é o fator humano. Pais, professores e mediadores de leitura.
Sobre os pais e professores já falamos: adultos em geral que, se realmente querem ter uma influência direta sobre os pequenos a que têm acesso, devem começar a ler imediatamente e integrá-los a essa vida de leitor. Integrá-los, sim: já falamos sobre como a jornada do livro é pessoal, e isso às vezes é um problema. A criança só quer brincar, e aí vê o adulto fascinado, fechado em seu próprio mundo do livro. Parece um negócio tão solitário, esse de ler – é preciso mostrar pra essa criança por que alguém escolheria essa atitude solitária de vez em quando; como é legal, e como ela nem precisa ser solitária, na verdade. Boom – contar uma história antes de dormir, compartilhar o que você está lendo, trazer livrinhos infantis pra ir incentivando… Isso tudo conta muito mais que ficar explicando que a leitura é importante para ela tirar 10 na prova. Senhor, infinitamente mais.
Você viu o que estou fazendo aqui, não é, caro leitor [dessa postagem]? Dando uma razão racional, que não tem a ver com o prazer de ler, para que adultos comecem a ler. Bom, estou partindo do pressuposto de que adultos são muito mais propensos a agir com base nas consequências de suas ações, visando fins de mais longo prazo e valorizando coisas para além do calor do momento. Então eu realmente não estou ligando se esses adultos vão gostar de ler tanto assim; eles precisam, pra gerar leitores que, no futuro, vão ter uma relação de amor verdadeiro em relação à experiência de ler. Encare como um pequeno sacrifício que, não sei, vá que os faça abrir o coração e descobrir que também gostam de ler, afinal de contas. E que (esse é um desafio maior ainda), sempre tiveram mais tempo pra investir nisso do que achavam que tinham.
E quanto aos mediadores de leitura? Esses são profissionais importantíssimos também. Sabemos que introduzir alguém à leitura não se trata de jogar qualquer livro para eles lerem. Trata-se de alcançar os interesses deles (com sugestões e convites) quando eles podem ser muito jovens ainda para saber exatamente o que querem ler. E é importante ajudá-los nas primeiras leituras, até que eles se sintam confortáveis para começarem a ler sozinhos. Não é preciso uma formação universitária para fazer isso, claro, mas estudos, e um certo conhecimento pedagógico, ajudam a tornar esse processo mais eficiente.
Capacitação é a palavra-chave: se queremos mais leitores, temos que investir na formação do tipo de profissional que vai ser capaz de tornar a leitura interessante. Ouvi dizer que vai ser gasto bastante dinheiro numa campanha midiática, por parte do governo, em favor da leitura. Pra quê isso, gente? Que impacto real vocês acham que vai ter algum ator global falando algo como “ler é legal para caramba, melhora seu desempenho escolar e é o que o Brasil precisa, um país é feito de homens e livros blá blá blá blá blá blá leia mais!”? Seria melhor se o ator em questão se deixasse fotografar por um paparazzi lendo um livro. É um fenômeno conhecido, especialmente quando envolvem celebridades do mundo infanto-juvenil, como, sei lá, Justin Bieber. Se ele for pego lendo um livro, muitas e muitas fãs que às vezes nem gostavam de ler antes vão ver do que se trata. O fanatismo pop tem um lado bom, também.
Mas, voltando à crítica da tal campanha, e de todo o dinheiro que vai ser jogado nela: o que é preciso é investir na rede grassroots de profissionais que estará no chão da escola, trabalhando com os alunos como indivíduos merecedores de respeito que são – jornada pessoal, sim? Não dá pra transformar o incentivo à leitura em questão de massa, porque a literatura é a experiência artística que mais desafia essa massificação. A relação é pessoal, e o incentivo também deve ser; nisso deve consistir o trabalho do mediador de leitura no dia a dia da escola.
Em tempo, capacitação envolve a valorização dos professores também. Não dá para pedir que eles estejam sempre lendo mais e mais coisas enquanto trabalham de forma intensa para ganhar salários péssimos. É preciso que eles tenham tempo, também, para ler, para poder indicar esses livros que leem, poder relacionar o que estão lendo com as lições em sala de aula (que, aliás, terão mais tempo para planejar…). No fundo, advogo por um modelo educacional radicalmente diferente desse. Mas, se for para trabalhar com o que temos no futuro próximo, acho que esse é o básico do básico.
E o preço? Sabemos que os livros, no Brasil, não são baratos. Se investigarmos a questão, vamos descobrir que a grande vilã dos altos preços dos livros no Brasil é a tiragem: como temos poucos leitores, vendemos poucos livros e os imprimimos em poucas unidades para que não encalhem e gerem prejuízo.
Nesse sentido, percebam, o preço baixo não é causa de maior leitura; só será possível enquanto consequência. Além do que, comprar um livro nem sempre é a única maneira de ler livros: as bibliotecas estão aí para isso, e a discussão sobre o fácil acesso volta a ser relevante – mas, atendo-me ao preço, é importante notar que enquanto continuarmos reforçando a ideia de que a leitura só vai decolar no Brasil quando os preços baixarem, o que estamos realmente dizendo? Que vale a pena pagar 30 reais por um jantar (40, 50, enfim; depende de quão chique é o restaurante e quão caro é o livro, e o triste é que nós pagamos sim essa quantia por comida quando podemos), mas não por um livro. E veja, há muitas comparações como essas, mas a do jantar é realmente emblemática; uma coisa que dura uma noite, contra uma experiência absolutamente repetível condensada num objeto (físico ou digital) duradouro.
Não se engane: quem está aprendendo as regras do jogo de viver está bem atento a essas hierarquias de valor, e a elas se adaptará. Não diga que os livros são caros – lamente o fato de não ter dinheiro o suficiente para comprar duzentos por mês. Ainda antes disso, separe efetivamente um dinheiro para comprar um capa dura, um livro de bolso, um conto digital por 1,99 na Amazon, qualquer coisa; qualquer coisa que valorize a literatura, para nós que a produzimos e para crianças e adolescentes para os quais você vai mostrar, não com palavras, e sim com gestos e atitudes, que ler é importante. Que é bacana. Que é gostoso. Que é bom.
Bom, como vocês sabem, eu sou meio que bastante contrário a fórmulas simplistas. Em se tratando de arte e literatura, a complexidade que almejo tem a ver com um “gut feeling”, uma sensação de que esse troço está certo. Você lê, relê, pensa, repensa, lê, relê – e a coisa flui, tudo se encaixa, a sensação é arrebatadora na medida planejada (ou, surpresa, melhor que a planejada) e aí pronto: você não precisa do blá blá blá técnico chato, e evita pensar demais. Você só faz. Nada de jargão, nada dos caminhos já percorridos por outros. Se parece certo, está certo. Certo?
Não. Embora eu continue achando que essa intuição, esse “GPS artístico” é fundamental e ele tem que ter liberdade para voar enquanto você escreve e analisa o que escreveu, existem três problemas fundamentais com um approach absolutamente intuitivo:
Para mim, o papel de teorias literárias, de estudos sobre a criação literária, é o de ferramentas que vão aparecer para consertar esses problemas. Se eles são aplicados desde o início, viram fórmulas; se as fórmulas ficam muito aparentes, são clichês. Mas, fórmulas ou clichês, histórias que têm como inspiração “modelos” de escrita são problemáticos não só por causa do que elas são, mas por causa do que elas poderiam ter sido. Forçadas desde o início a obedecer uma série de regras e ideias preconcebidas sobre o que um “bom enredo” deve ter, que tipo de genialidades elas poderiam ter sido, se esse lado diferente, ousado e (por que não?) “patinho feio” delas não tivesse sido silenciado na sua imaginação?
Primeiro a ideia, a inspiração, o planejamento completamente baseado no seu coração; depois, se você não estiver satisfeito (ou até mesmo se estiver), é hora de começar a pôr a ideia à prova; de questioná-la, analisá-la, dilapidá-la. É nessas horas que a teoria serve bem, e, novamente, o faz sempre sob o comando da sensibilidade artística. Não adianta nada mudar a sua ideia para encaixá-la numa “jornada do herói” se no final você não achar que ela ficou mais tão interessante – a saída deve ser outra, e pode estar em outras ideias teóricas sobre criação literária – ou, ainda, no meio do caminho, precisando de algum elemento até então desconhecido para surgir.
Dito isso, seus personagens têm que ser esses monstrinhos vivos na sua cabeça. Demora até que se inflem e não tem problema se começam finos como papel. Eles precisam maturar. Pode demorar.
De todo modo, mesmo depois que eles parecem bem vivos e formados, ainda pode haver problemas, e você não consegue verbalizar exatamente quais são eles. Bem, eu tive esses problemas várias vezes, tenho ainda hoje, e uma grande pesquisa na internet me dotou de algumas ideias que resumo aqui para futura referência e para ajudar também quem esteja de repente procurando por isso e precise de um recurso assim. Vamos lá: como escrever bem um personagem – mas o que define um bom personagem? – como fazer com que o público se interesse, se importe com o seu personagem.
Os personagens precisam precisar de alguma coisa. Ou querer alguma coisa, mas a linha que divide esses dois verbos é tênue.
Mais do que isso, precisamos entender o que está em jogo – ou seja, não adianta nada percebermos que um personagem quer alguma coisa se não conseguirmos
E, é claro, isso tudo não significa nada se o objeto de desejo do personagem for trivial ou fácil de conseguir. É preciso que seja difícil, e que ele precise se superar para conseguir o que quer.
Você percebeu que parei de falar de uma característica do personagem para falar sobre o arco do personagem? Seu arco é seu desenvolvimento durante a história: o quanto ele muda do começo ao fim de uma obra, a forma como ele passa de seu estado inicial A para algum outro estado, B. Estou chamando atenção para isso porque mencionei o arco de “superação” como se fosse o único que existisse, mas na verdade ele é a fundação básica de uma história com final feliz; gostamos dos personagens mais por causa do esforço do que por causa do sucesso, e numa história trágica o arco os leva à decepção, à falha, à lama de seus defeitos, etc. Mas a característica da superação, embora possa não ser o resultado final das ações dos personagens, continua sendo componente de sua motivação para agir: ninguém tem por objetivo ser cada vez pior. E se tiver, ela basicamente quer se superar no quão ruim é.
Uma das possíveis características de um personagem que se supera é ele ser um underdog – ou seja, o menos favorecido. Nós gostamos de torcer para o Davi contra o Golias. Por isso, aquela questão da dificuldade que acabamos de falar continua valendo: é preciso que sintamos o tamanho de sua desvantagem. E se o personagem em si é muito bom, é preciso dar-lhe uma desvantagem. Se a injustiça dessa “doação” nos faz odiar o vilão ainda mais, melhor ainda. Quem lembra da “batalha final” de Gladiador?
Mas há uma outra questão também: o personagem – underdog ou competidor de mesmo nível – para o qual torcemos vai brilhar à medida que se contrastar com o seu adversário. Quanto melhor for o inimigo (e melhor também enquanto personagem), mais o personagem vai precisar se esforçar para vencê-lo. O Coringa torna o personagem Batman mais interessante, e como o Coringa é extremamente inteligente e efetivo, as vitórias do Batman são muito mais valorizadas por nós. Isso pode parecer tolo, mas muitas vezes o que não funciona numa história e nem percebemos, é que o herói é super bacana, tem um objetivo bem legal e ele tem uma trajetória interessante até conquistá-lo… Mas o inimigo dele não é interessante, ou particularmente poderoso. Talvez o vilão seja só “as circunstâncias” (o que já foi dito, por exemplo, sobre os filmes da série Missão Impossível), e isso não é necessariamente ruim: muitas vezes temos vilões acessórios, secundários, que apenas marcam o ritmo numa história em que o verdadeiro enredo é o personagem principal lidando com uma situação péssima, que o desafia, que exige que ele dê o melhor de si. O antagonismo (ou mesmo agonismo) é de fato a chave.
Uma coisa interessante e que é muito citada em dicas para escrever bons personagens é uma certa dimensão moral: mesmo se o personagem for um babaca, dê-lhe um limite que ele não vá atravessar (o que lhe confere não apenas honra, convertida em respeito por parte do público, como também a impressão de que ele tem um coração, afinal). É importante também que ele tenha opiniões – podem não ser liberais e progressistas, mas que ele as tenha. Mesmo que nós sejamos apáticos e indiferentes em nossas vidas sobre uma série de assuntos, ou que encontremos pessoas assim, você tem que saber que a apatia completa pode cansar grande parte do público; irritá-lo, tornar a narrativa toda mais desinteressante. Isso porque a apatia se relaciona também ao problema da motivação – se alguém não se importa com muita coisa, o que ele na verdade quer? E se seus desejos são apenas egoístas ou fisiológicos, por que eu me importaria com isso? É possível que a superação sobre a qual você queira escrever seja alguém apático aprendendo a se importar com as coisas. Isso é interessante, e há um post muito bacana no Fuck Yeah Character Development falando sobre esse arco específico [inglês]. É importante dizer: não demore muito para tornar o personagem interessante… Ou demore, mas saiba os perigos que isso engendra em termos práticos (leitores abandonando a obra e dando uma estrela de nota no Skoob ou algo assim).
O problema que tenho com a dica da dimensão moral é o seguinte: sim, dê opiniões para os seus personagens. Faça o anti-herói assumidamente fora da lei se pôr em perigo para salvar algumas crianças de algum perigo. Faça um personagem bater o pé no chão em defesa de um princípio e não ceder sua posição. Isso tudo é ótimo. Mas tem que ser orgânico. Tem que vir a partir da caracterização de um personagem como um todo; todo o resto do que ele é e toda sua história tem que contribuir para que ele tenha essas opiniões e atitudes. Mais do que isso, não adicione esses elementos aleatórios de natureza moral para que o público “se identifique com eles”. O público não vai se identificar com nada que parecer forçado anyway, mas a questão é que se preocupar com que o público se identifique com o personagem é um negócio supervalorizado.
Digo isso porque escrever um personagem com a deliberada intenção de que o público mais amplo se identifique com eles acaba em… Bella e Edward. Não são pessoas ou personagens, são cascas: eles têm apenas características muito básicas, apenas o suficiente para que uma porção estatisticamente significativa do público-alvo possa se pôr no lugar deles – e de maneira convincente, já que não há muitos traços de personalidade neles que atrapalhem esse processo de cosplay mental. Bella é a adolescente desajeitada e sem atrativos pela qual um homem perfeito se apaixona, e nada mais. Isso já foi analisado ad nauseum (e de forma muito melhor) por aí na internet, então não insistirei no exemplo.
Mas a identificação é importante. O meu argumento é que o livro, na forma como é [bem] escrito, garante essa identificação não por causa do que há de semelhante e de não-diferente, mas apesar do que há de diferente. De novo: a boa literatura (pombas, a boa arte) nos faz conhecer personagens diferentes de nós com os quais, por causa da literatura, conseguimos nos identificar de alguma forma. E essa é parte da magia e do poder da arte, afinal: expandir nossas mentes. Ao invés de nos prender ao que já conhecemos e ao que já somos, conecta-nos a essa alteridade, a essas formas outras de existência, de pensamento, de ser-no-mundo. A preocupação, a paranoia de fazer com que os leitores se identifiquem, se identifiquem, se identifiquem nos leva aos personagens-casca. O foco no “escrever bem, que a identificação vem” (escrever bem o estilo, a história, e também os personagens), nos dá identificação sem precisar mudar nada nos personagens com esse objetivo em mente.
Em suma, o primeiro método de identificação (personagem-casca) é eficaz, mas eu acho que usá-lo é meio… Triste. Entendo isso como um compromisso ético: se você realmente acha que “mais identificação” do leitor é igual a um personagem melhor… Vá em frente. Faça ele gastar tempo e energia defendendo alguma posição política ou fazendo um ato de incrível moralidade, mesmo que isso pareça meio forçado.
Mas se essas atitudes, contudo, forem bem desenvolvidas, de forma holística, aí temos algo mais legal de se ler.
Dar motivação, superação e um posicionamento contextual para o seu personagem são as dicas gerais em termos de técnica e teoria literária para que entendamos o que constitui um personagem forte.
Mas isso, obviamente, não é tudo.
O leitor entende a motivação do personagem? Essa é uma motivação boa? O leitor sabe nesse momento que se o personagem não vencer, as consequências serão essas? O personagem está enfrentando (e superando) dificuldades para conseguir o que quer? Está fazendo isso a partir de uma boa razão? Essas e outras perguntas norteadoras podem ser extremamente úteis para refinarmos nosso texto. Mas a criatividade, a sensibilidade de ler e dizer “isto está legal” ou “isto é uma bosta”, são essenciais para escrever personagens bacanas e histórias centradas em seus arcos narrativos.
Como um exemplo final do que quero dizer quando digo que não bastam as fórmulas e as preocupações técnicas, deixo uma tradução rápida de alguns parágrafos do texto “What if your characters don’t want anything?“. Ele mostra só algumas das ramificações de todo esse papo sobre motivação e sobre o que torna um personagem interessante e forte:
Vontades não têm que ser simples ou fáceis de identificar.
Muitos de nós têm desejos complicados e emaranhados ao invés de impulsos simples. Na verdade, quanto mais reais seus personagens forem, menos monomaníacas suas vontades provavelmente serão na maior parte do tempo. Sentimentos múltiplos, desejos conflitantes, e às vezes motivações neuróticas são todas partes da experiência de ser humano.
Seu personagem principal pode desejar uma abstração, como “redenção”. Ou “vingança”. Ou “a aprovação do meu pai”. Pode ser algo impossível, como a aprovação de um pai que na verdade já faleceu. Ou talvez sua personagem queira algo que ela não consegue admitir – até para ela mesma – que quer. Às vezes um desejo é como uma coceira num lugar que o personagem não consegue coçar, ou uma dor irritante com a qual eles não conseguem lidar.
Além disso, as pessoas nem sempre sabem o que querem – até não poderem ter o que querem. E quanto mais difícil for de obter o que não se tem, será mais provável que as pessoas se deem conta de que precisam disso.
E mais, as vontades das pessoas podem evoluir ao longo de uma história. Ou os desejos dos seus personagens podem mudar, ou eles podem se desenvolver e ficar mais claros, ou mais confusos.
E, finalmente, ver as pessoas não conseguirem o que querem é em geral mais interessante. Mesmo no final de uma história. As pessoas que conseguem o que querem são uns babacas, e não conseguimos nos identificar com eles porque na vida raramente conseguimos o que queremos. Então se você tiver que fazer uma escolha entre deixar seu personagem alcançar seu mais querido desejo e arrancar esse desejo dele – é sempre melhor deixar o personagem querendo mais.
Quando um médico faz uma cirurgia, é muito comum um observador leigo se impressionar com o jeito blasé com que um doutor corta um corpo humano, arranca um órgão inteiro para fora, come um sanduíche enquanto isso, etc (brincadeira). Mas é assim com tudo que conjuga familiaridade a técnica: se você for abrir seu próprio laptop, vai tomar todo cuidado do mundo; um técnico já vai desparafusando tudo, tirando placa dali, passando pasta térmica lá, é… É uma coisa que te deixa quase com pudores vitorianos (“Calma, jovem, você não prefere pegar um cineminha com o meu PC primeiro para vocês se conhecerem melhor?”). Outro exemplo clássico: pais experientes vs. pais de primeira viagem em relação à troca de fraldas. Estes têm medo de acidentalmente matar o próprio filho. Aqueles terminam tudo em cinco segundos. Enquanto comem um sanduíche.
E com o escritor, o que acontece? Na minha opinião, algo tão associado ao fenômeno da “insegurança” que os dois são quase indissociáveis: um certo cinismo quanto aos resultados do parágrafo, da frase, ou até mesmo da premissa toda.
Como é que se faz para deixar um leitor com medo, por exemplo?
A resposta certa é: fazer ele se importar com os personagens (quem disse foi o King, mas estou com preguiça de procurar). Mais do que isso: providenciar a imaginação dele com material o suficiente (o que não se traduz em material aos montes) para que ele reconstrua a atmosfera de medo e excitação que você, escritor, provavelmente sente enquanto está escrevendo. Para que ele imagine o que você quer que o leitor imagine. O problema é que essas duas coisas precisam de uma boa construção da trama toda: dos personagens, do enredo, da premissa. Isso não é coisa que dependa de uma palavra a mais ou uma frase a menos; fazer o leitor ficar com medo no capítulo 27 depende do que você escreveu desde o capítulo 1.
Mas escritor, acreditando que o medo depende do formato, da apresentação do momento em que o leitor deveria sentir-se amedrontado (seguindo os planos do escritor megalomaníaco, que quer controlar quando o leitor vai sentir isso ou aquilo – me declaro desde já muito culpado disso), vai ficar experimentando um milhão de vezes com a frase.
Vai tentar a voz meio padrão, talvez ainda nas fases de outline do que vai acontecer nessa hora:
“E então o monstro pulou da janela para a cama de Aline …”
Vai tentar a mais abrupta, estilo “jump-scare” dos filmes de terror mainstream de hoje em dia:
“O monstro pulou sobre a cama. Aline gritou, se … “
Vai tentar a poética:
“O monstro, endurecido pelas amarguras da vida e esverdeado como os musgos …”
Vai tentar a perspectiva:
“Sentindo-se acuado e entrincheirado, o monstro pula sobre a janela, pensando que aquela é…”
É claro que cada uma tem objetivamente seus prós e contras. Se a cena é super importante e meio que um clímax, ser poético vai quebrar o ritmo. Se você quer imprimir uma sensação de brutalidade que às vezes não estava no resto da obra (o contraste seria bacana, e com certeza vai rolar uma “sensação” no leitor) um estilo mais seco é o caminho.
Agora, “medo” – ou qualquer grande sentimento que você precisa fazer o leitor experimentar ao ler o livro para poder justificar a escolha do gênero literário (“Meh, não senti medo; não sei como chamam isso de terror”) – é algo que em ampla medida não depende da escolha certa das palavras para um ou dois parágrafos. A escolha estilística não pode ser a errada; não pode ser um desastre. Mas também não é tudo na vida do medo, ou do encantamento, ou do suspense, ou da tensão.
Voltando ao exemplo: o escritor inseguro vai sair dessa experimentação toda dizendo que ele não consegue escrever bem tal e tal sentimento. O escritor cínico vai sair disso desconfiado de que não há nada que se possa fazer para que tal e tal sentimento seja bem escrito.
Agora, há certas vantagens nesse cinismo: você desencana. Perde o medo de experimentar para ser feliz (você imagina o médico com receio de usar o bisturi?). Mas há desvantagens também: tem vezes que me sinto como um cozinheiro que perdeu a capacidade de sentir cheiros, ou aquele músico famoso que ficou surdo (não chuto o nome para não errar feio falando besteira). Ou, mais precisamente, como o personagem principal de Perfume – ele sentia todos os cheiros do mundo, menos o do próprio corpo. Como cínico em relação à perspectiva de que minha escolha específica de palavras seja tudo que eu precise para causar “medo” num leitor, sinto muitas coisas lendo vários livros (só esse último, por exemplo… Ai ai…) mas quando chega a hora de escrever coisas que quero que deixe os leitores com medo, eu já não tenho mais tanto medo. E isso abre as portas para a insegurança: Estou escrevendo isto bem? (a história toda, no caso) – Será que não estou sentindo medo porque imaginei essa parte uma centena de vezes antes de botá-la no papel, e já fiquei insensível a ela? Tem partes que ainda continuam me deixando feliz de ter escrito – realmente senti coisas ao escrevê-las. Mas sempre que não sentir nada, isto quer dizer que estou escrevendo mal? Como fazer esse diagnóstico?
Bem, não tenho uma opinião quanto a isso. E você, colega escritor? E você, caro leitor? Diga-me. Por favor.
Esse livro me arrebatou por completo. Me deixou em tal estado de ânimo que, despedaçado, não consegui escrever uma resenha coerente depois dele – apenas uma assim, aos pedaços, observando de bocado em bocado essa obra prima contemporânea.
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Ele é um livro tão incrível que seus defeitos lhe parecem apenas relatividades: coisas que, por razões pessoais apenas, preferências, um ou outro leitor não gostaria. Em nenhuma obra de arte pode-se aspirar à perfeição, quanto mais universal; o máximo que se pode esperar é fazer algo que mesmo os detratores vão admitir que, para um número significativo de pessoas, os defeitos identificados tornar-se-iam até qualidades.
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É que acontece, por exemplo, com seu gigantismo. É verdade que depois da página 450 você começa a se perguntar se era realmente necessário conhecer mais sobre a linhagem paterna de Walter? É. Verdade que não tem mais muita certeza se vai compensar, mais à frente, prestar atenção em todos os detalhes e todos os desvios que o narrador, seja ele quem for no momento, faz? É. Mas compensa, viu?
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O estilo dele, ou pelo menos o quanto disso pôde ser ainda transferido para sua tradução ao português, é muito bom. É muito, muito bom.
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O romance de Patty e Walter, no fim das contas, é o mais lindo de todos os tempos. Eis o poder de uma narrativa biográfica, de personagens atormentados, e de um tipo de amor que raramente se vê hoje em dia: um trapo velho que se faz à mão com muita dificuldade e imperícia, não roupa bonita que se escolhe num baile da corte; fonte insuspeita de nossas decisões mais estranhas.
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O que achei esquisito – e o único ponto que me põe numa posição estranha em relação ao livro – é 1) o grau de autoconsciência que os personagens exibem; e 2) o quanto isso pode realmente ser atribuído a eles e o quanto vem simplesmente do narrador, sem passar por suas cabeças.
É que como temos um narrador em terceira pessoa que “mergulha” nas mentes dos personagens mais frontais, às vezes é difícil saber (impossível) quando o personagem realmente está pensando algo ou não. No caso das autobiografias de Patty, fica claro – o que corrobora o motivo da estranheza.
O motivo, é preciso explicar melhor, é o seguinte: em geral um personagem tem uma característica, mesmo que oculta, aí ele age de acordo com ela, e então ele percebe que tem a característica (ou alguém percebe isso por ele, e lhe diz). O livro é muito mais aberto do que isso, dizendo para o leitor que Patty é competitiva muito antes de ter qualquer chance de mostrar que ela o seja. E ela fica pensando nisso tudo muito antes que isso seja de alguma forma explícito ou verbalizado, e sou um pouco cético quanto a essa presença de espírito autorreflexiva que todos ali retratados possuem.
De outro modo, talvez isso seja apenas um recurso literário para que várias coisas funcionem dentro da narrativa, e nesse sentido tudo vai bem, mesmo a partir daí. Ou quase: mesmo depois de duas ou três exposições, ainda não consegui entender exatamente qual é o problema de Joey com Patty. O problema, é claro, é que eu consegui entender o problema se todas as formas desnecessárias (a intelectual – ela mimou ele demais – e a poética – ele tem uma ‘parede’ sentimental posta contra ela ou algo assim), mas não na única que importa: essa lógica, no fim das contas, nunca entrou no meu coração e se naturalizou como algo perfeitamente compreensível. Os sentimentos de Patty, de Katz, de Walter, de Connie, todos bastante familiares no momento em que vão sendo lindamente tecidos na trama do livro. Até os de Joey em relação ao pai – perfeitamente compreensíveis. Mas os de Joey para com Patty vão me fazer coçar a cabeça sempre que me lembrar deles.
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Algo definitivamente cativou imaginação quando você se vê conectando músicas conhecidas à nova experiência literária. No meu caso, o cover de Parachute por parte de Kawehi me lembrou muito Connie e Joey; e a música Damn Regret, do Red Jumpsuit Apparatus, me faz lembrar do livro todo.
Fantástico.
Quase dois anos após o lançamento de A Aliança dos Castelos Ocultos, o autor Peterson Silva publicou neste domingo dia 12 “A Guerra da União”, o segundo volume da série Controlados.
O livro continua as narrativas do primeiro, tendo como pano de fundo a guerra que dá título ao livro. Ao longo dos últimos meses, membros do Universo Estendido (agora renomeado Neborum Online) puderam ler as 3 primeiras partes do livro antes do lançamento.
O livro, assim como o primeiro volume (que recebeu uma nova revisão e uma ampliação de conteúdo), está disponível online e para download em vários formatos. A compra da versão física pode ser feita pela Bookess. Os livros comprados na pré-venda estão em produção e serão enviados aos compradores em breve.
O Book Trailer de “A Guerra da União”, segundo volume da série Controlados, foi lançado hoje pelo autor no Youtube.
O vídeo de quatro minutos conta com trechos, em sua maioria atribuídos a personagens, do livro a ser lançado no dia 12 de julho. A Guerra da União dá continuidade ao primeiro volume da série, A Aliança dos Castelos Ocultos, e está atualmente em pré-venda junto a uma edição ampliada do primeiro volume.
Assista abaixo ao Book Trailer:
Se tem uma coisa que adoro (e não sabia) é ser surpreendido por um livro clássico: digo, todo mundo já ouviu falar do Pequeno Príncipe. E quando a gente ouve falar demais em alguma coisa temos a impressão de saber muito sobre aquilo e, mesmo que eu não fosse capaz de fazer pra ninguém um resumo da obra, achava que já tinha uma noção do que me esperava. Mas não! A narrativa surpreendeu, e o que eu achava que era um prefácio acabou tornando-se silenciosa introdução. Well played, Exupéry, well played.
Que livro mais encantador! É muito, muito legal – achei que fosse cheio de “lições de moral” (e, de certa forma, é), mas não é de forma alguma enfadonho ou bobo, mesmo nas partes mais melosas. No meio de sua fantasia descompromissada, de traços fofos – das aquarelas às letras – dá para se emocionar sem deixar de rir. Nem de pensar.
O primeiro detalhe que me surpreendeu foi a hostilidade (leve, claro) com os baobás. É que na pesquisa para o livro conheci as árvores e, devo dizer, são impressionantes! Tadinhas, seu Exupéry, por que tanta raiva em relação a elas? Saiba que no deserto (tudo bem, não cresce no deserto do Saara, mas mesmo assim) teriam sido fonte fácil de água para você. Teria sido uma ÓTIMA inserção na história – mas não se pode ter tudo, não é?
Negócio legal do livro clássico também é que você fica procurando o tempo todo pelo “momento” famoso; é como saber que alguém vai tentar te assustar e você fica imaginando a cada esquina quando vai acontecer. Ou como ver Matrix e ficar esperando pela hora que Neo para as balas com a mão, ou ver Titanic e esperar pela hora… E agora, qual é a cena mais icônica? De qualquer forma, o que foi legal de refletir foi justamente a relação entre o famoso momento do “cativar” (que foi mais longo do que eu imaginava) e a forma como vivemos em sociedade (em oposição, talvez, a ‘em comunidade’?).
Porque cativar é criar laços – e outra coisa que a leitura de verdade desse livro me proporcionou é clareamento quanto a isso. Eu sempre fui um pouco ranzinza quanto a essa frase feita (tu és responsável por quem cativas, etc) – ora, pensava eu, cativar é criar um afeto, mas eu também não sou culpado se alguém se afeiçoa a mim. Tira essa responsabilidade de mim! Tira!
Mas a verdade é que esse é um posicionamento ético consistente com um ser-no-mundo que vivencia a empatia; que percebe que vive necessariamente em conjunto com outros seres humanos tão merecedores de carinho e atenção quanto qualquer outro. Veja, a responsabilidade é algo grande – ainda mais se for por alguém. Podemos não sentir dessa forma o tempo todo, mas às vezes podemos perceber isso (especialmente, e isso é triste, quando falhamos nessa responsabilidade). Então dá para ver o caminho que nós, avessos ao apego comunitário, trilhamos: eu não quero ser responsável por ninguém. Portanto, não posso concordar que essa criação de laços me faça responsável. Em último caso até evitamos a construção de laços; é mais fácil assim, que nem nos justificarmos teoricamente precisamos.
Temos sim responsabilidade. E isso dá medo. De certa forma podemos até ter pena dos personagens tão julgados pelo Pequeno Príncipe: todos à volta ou com a impossibilidade de criar laços ou com mecanismos para lidar com essa responsabilidade: o homem de negócios, o bêbado (e achei meio cruel zombar de um dependente químico dessa forma; não lhe ocorreu perguntar por que bebia? Foi a única parte que achei verdadeiramente triste, tanto na superfície do papel como por detrás dele), o rei, o vaidoso…
E aí chegamos à política, afinal de contas: a criação dos laços nos dota de responsabilidades sim, mas deveríamos mesmo querer criar laços (ou nos sentir enlaçados) com mais de 200 milhões de pessoas? Não é essa – se esses laços são a condição para uma virada cultural que nos faça sentir essa responsabilidade pelo rumo do país – uma expectativa nada razoável? Derrida reclama que Rousseau prioriza a fala à escrita quando repete a hierarquia metafísica básica da nossa cosmologia ocidental, mas Rousseau tinha sim um pouco de razão ao dizer que de fato as comunidades menores é que são boas, rapaz – quer dizer, não só ele: de Montesquieu a qualquer teórico anarquista vemos isso. Ademais, de que serve (para além da utilidade militar mesmo, coisa de “gente grande”, pra usar o linguajar do livro) nossa preocupação com a responsabilidade nacional se o máximo que isso acarreta é a influência que pessoas do Rio Grande do Sul exercem sobre outras, do Rio Grande do Norte, e vice-versa, sem nunca terem se falado, sem nunca terem se cativado? Não quer dizer que Derrida esteja errado em querer reabilitar a escritura, e o trabalho dele é essencial, mas… Nesse ponto Rousseau não estava idealizando nada não. Estava era bem lúcido.
Por outro lado, essa pode ser só mais uma vontade de tirar de nós a responsabilidade – já vemos isso ser feito tantas e tantas vezes, não é mesmo? Todas as vezes que nossos flagelos sociais são relegados à delegacia isso é posto em marcha: temos que prender, matar, execrar, etc. Somos um pouquinho esse Príncipe, essa figura da nobreza que, mesmo que tenha se arrependido depois (acontecerá isso frequentemente entre nós?) abandonou a Rosa por causa de seus defeitos; que julgou aqueles que não estavam prontos para os laços, sem querer se envolver muito com eles, e foi embora. Só se quer ter responsabilidade com quem não precisa de cuidado: deseja-se que sobre só gente que mereça ser cativado, sem se importar (de novo, tira essa responsabilidade de mim!) com toda a conjuntura estrutural que leva a desigualdades, injustiças, etc. Mas, por outro lado, qual é o limite? Temos que nos deixar cativar só pelos brasileiros, ou pelo mundo todo? Ou só mesmo por aqueles próximos de nós (que é o que dá pra fazer), e o resto que se exploda, de modo que se todo mundo se tornasse esse Príncipe da noite para o dia mesmo assim não alcançaríamos a paz na Terra? A atitude adulta, ao invés de própria de um infante de classes privilegiadas, não seria assumir a responsabilidade de combater a injustiça e o sofrimento, especialmente o estrutural, onde quer que ele se encontre, ao invés de tornar-se responsável apenas por aquilo que se cativa?
Ou não?
Outras coisinhas:
O que é querer? – Rimos daquele que saiu de seu aposento no minuto em que o Sol deixa o dele, e diz: “Eu quero que o Sol se ponha”; e daquele que não pode parar uma roda e diz: “Eu quero que ela rode”; e daquele que no ringue de luta é derrubado, e diz: “Estou aqui deitado, mas eu quero estar aqui deitado!”. No entanto, apesar de toda a risada, agimos de maneira diferente de algum desses três, quando usamos a expressão “eu quero”?
Em suma, é um livro super recomendado. Não deixe de ler achando que é uma história manjada ou infantil. É mais complexa do que parece – ainda que seja, talvez, por sua simplicidade que ela tanto nos cative.