Dicas rápidas para escrever e revisar diálogos

Uma tradução deste post do blog Fuck Yeah Character Development.

Leia seu diálogo em voz alta e certifique-se de que ele é bom de falar, segue bem o ritmo da respiração, e soa bem aos ouvidos. Diálogos falsos, toscos ou inúteis serão revelados, bem como pontos que parecem apressados ou arrastados. Essa é a melhor maneira possível de verificar se tudo está se encaixando.

  1. Seus personagens não devem falar mais que três frases de uma vez – a não ser por uma boa razão.
  2. Diálogos são mais interessantes quando personagens estão dizendo não um para o outro.
  3. Mantenha qualquer explicação fora do diálogo.
  4. Seus personagens devem esconder ou evitar coisas em vez de dizer exatamente o que querem dizer.
  5. Use uma ação no lugar de um adjetivo para demonstrar os sentimentos de um personagem.
  6. Vá direto ao ponto. Não use diálogos que não levem a história adiante e/ou que não revelem o caráter dos personagens.
  7. Seus personagens não precisam ser super articulados. Não tem problema deixar as frases em pedaços. As conversas não precisam seguir uma ordem lógica (pergunta seguida por resposta). Não é preciso ficar no mesmo assunto ou fornecer transições evidentes de um assunto para outro.
  8. Em vez de escrever errado as palavras, é melhor distinguir o nível linguístico de cada personagem a partir de diferentes escolhas de vocabulário e sintaxe.

 

Dicas para escritores novatos do agente Jonny Geller

Aqui está o que procuramos em romances escritas por autores iniciantes; espero que ajude!

  1. Não nos faça sentir que estamos começando uma história com você. Comece o livro como se já estivesse no meio da história, e o termine como se fosse um novo começo.
  2. O enredo é muito importante, mas não às custas do desenvolvimento dos personagens. Nós seguiremos um personagem bem desenvolvido aonde quer que ele vá, mas vamos questionar tudo que um personagem mal desenvolvido faz.
  3. A maneira como a história faz o leitor se sentir é tão importante quanto a forma como ela o faz pensar.
  4. Ame o processo de escrita, mas não espere gostar de ler o que você escreveu.
  5. Nós lemos para aprender, experimentar e sentir algo novo. Conforto é uma anátema para escritores e leitores podem facilmente perceber complacência.
  6. Leve os seus personagens ao limite. É mais fácil tirá-los do limite do penhasco que seguir empurrando-os morro acima.

Tradução do post do blog Pretty Things (que mostra os tweets do agente Jonny Geller)

Perguntas que todo autor deveria fazer ao revisar a trama de seu livro

Uma tradução deste post, descoberto no ótimo blog Fuck Yeah Character Development. A última parte foi retirada por falar principalmente de regras tipográficas da língua inglesa.

Estrutura geral do livro (o que a história é e como é contada):

  • Sobre o que é o livro? Qual é a força que dirige a narrativa?
  • Qual é o público para esse livro?
  • Ele é baseado em alguma experiência real?
  • A história funciona? Tem alguma parte que não parece muito convincente ou que, ao ser lida, parece demorar demais, “se arrastar”?
  • Há alguma parte que eu não entendo?
  • Qual é a trajetória, ou o formato, da história?
  • A história começa no lugar certo?
  • Quão rápido a história me prende?
  • Há algum momento em que a história se quebra e eu perco o interesse nela?
  • Eu acredito no que estou lendo?
  • Quão satisfatório é o final? Ele parece inevitável?
  • Parece que alguma coisa está faltando?
  • Tem alguma coisa desnecessária (personagens, detalhes, acontecimentos)?
  • Qual é o ponto de vista narrativo (primeira, segunda, terceira pessoa)? Ele muda? É consistente?
  • Os tempos verbais são consistentes? Se mudam, isso é necessário?
  • A coincidência é usada como um dispositivo narrativo? Em caso positivo, há alguma outra forma de moldar o curso dos eventos?

Personagens

  • Quem são os personagens (primários, secundários, incidentais)?
  • Eu sinto que conheço eles?
  • Eu me importo com eles?
  • Eles parecem reais?
  • O que eles querem?
  • Quais são seus pontos fortes e seus pontos fracos?
  • Eles têm conflito interno e/ou externo?
  • Eles têm alguma função (em termos de relacionamento com os outros personagens e desempenhar um papel na narrativa)?
  • Eu posso ouvir seus pensamentos, ou, se não, eu entendo como eles se sentem a partir da interação deles com outros personagens, suas palavras e suas ações?
  • Eles parecem pertencer ao tempo e ao espaço da história?

Ambientação

  • Como ela é transmitida ao leitor?
  • Quão importante é para a história?
  • É um lugar real, e seus detalhes estão corretos, ou – mais importante – eles parecem estar corretos?
  • O cenário se torna uma personagem da história?

Coisas com as quais tomar cuidado:

  • Personagens se olhando no espelho para que o autor possa descrevê-los para o leitor.
  • Livros ou capítulos começando com o personagem principal acordando, especialmente de uma ressaca.
  • “Pular” de uma mente para outra.
  • Olhe para o espelho, dê o sinal, faça a manobra: ao comparar escrever uma história com dirigir um carro, Elaine Roberts fala sobre como devemos “olhar para trás” (entender como a história tem se desenvolvido até aqui, especialmente em relação aos objetivos, pensamentos e sentimentos dos personagens), “dar o sinal” (fazer com que eles ajam ou falem algo que sinalize para algo no futuro, ainda que o leitor não entenda exatamente tudo que está acontecendo) e então “fazer a manobra” (concluir a questão de modo que o leitor tenha um momento “… aaaahh!” em relação ao que está acontecendo; este é o momento das voltas e reviravoltas da história).
  • Escrever demais (por exemplo, descrições muito longas ou se deter demais no que um personagem está sentindo).
  • Angústia e introspecção de um personagem.
  • Trechos em que quase nada está acontecendo de fato.
  • Repetição de história, personagem ou informação sobre a trama.
  • Mostre, não conte (Show, don’t tell).
    • Esse é um conceito mais amplo do que parece e essencialmente se refere à importância de tentar dramatizar em vez de afirmar, tanto quanto possível, especialmente no que concerne aos personagens. Claro que há muitas coisas que precisam ser ditas, em termos de informação, descrição, pano de fundo e cenário. Mas quanto mais você faz o seu personagem habitar o cenário, usando objetos como dispositivos, mais você estará mostrando ao leitor o mundo da história sem ter que interromper o que está acontecendo para falar sobre ele em maior profundidade. Quanto mais virmos os personagens em ação, melhor.

Algumas dicas:

  • Escreva em voz ativa, em vez de passiva.
  • Evite descrever demais: se você vê que está precisando usar várias palavras para descrever alguma coisa, pode ser que sejam as palavras erradas! Continue pensando até encontrar aquela uma palavra que transmite ao leitor exatamente a ideia precisa que você pretende transmitir.
  • Deixe o leitor habitar a escrita: deixe algumas coisas para a imaginação dele.
  • Deixe os personagens revelarem a si mesmos através de palavras e ações.
  • Evite advérbios.

Retirado do site “The Writers’ Workshop”:

Quase não existem histórias em que o autor não conta nada (telling). E não tem problema: contar coisas é uma técnica bastante útil contanto que fique confinada a seu lugar. De modo geral, você vai querer dar prioridade a contar coisas, em vez de mostrá-las, quando:

  • Você está estabelecendo uma nova cena ou capítulo e deseja que o leitor saiba rapidamente o que está acontecendo.
  • Não há nenhum drama particular com o qual lidar, somente informação necessária.
  • Você quer passar rapidamente por um período de tempo.

Você geralmente vai querer dar prioridade a mostrar coisas (showing) quando:

  • Há ação dramática acontecendo.
  • Há um conflito, especialmente entre um ou mais de seus personagens principais.
  • O incidente diz respeito a um grande desenvolvimento da narrativa.
  • O incidente envolve a revelação de importantes informações novas.
  • As emoções estão intensas.

Edições linha a linha

Uma vez que você tenha trabalhado em revisões maiores de um texto, geralmente depois de vários rascunhos (lembre-se que o livro geralmente fica ruim antes de ficar bom!), você pode se focar em uma edição mais minuciosa. Isso envolve garantir que cada frase do livro seja tão forte quanto possível:

Coisas para observar:

  • Estilo: ele pode ser melhorado? Ele é consistente?
  • Repetições ao nível de frases ou palavras específicas.
  • Garanta que a escrita seja sempre fluente, e as frases nunca sejam convolutas.
  • Expurgue qualquer escrita exagerada ou desnecessária que tenha sobrado.
  • Padronize tempo verbal e padrões gramaticais.
  • Preste atenção ao diálogo: cada personagem fala de sua própria forma? Há alguma intersecção? O diálogo parece natural?
  • Cuidado com advérbios e frases passivas.
  • Tente simplificar as coisas.

Como manter o leitor interessado em partes mais lentas da história

Esta é em parte uma tradução dessa postagem no The Writing Realm. Caberia perguntar não só o que é uma “parte lenta” em primeiro lugar, mas porque ela seria indesejável. Seria isso uma questão cultural – já que os autores e seus leitores cada vez mais buscam pelo ritmo de um Hollywood action blockbuster nas obras literárias?

Acho que não. É uma questão de dinâmica narrativa; mesmo que o estilo do autor seja longo (como o de um Saramago) ou mais descritivo (como o de um Tolkien), isso não significa prejuízo para a estrutura da história e para o interesse do leitor. Não se trata tanto dos parágrafos, mas do “momento” da narrativa; um segmento do enredo em que “nada acontece”. Há uma sensação de vazio, de tédio, que é indesejável independente de quão dependente de adrenalina você seja. Acontece em dramas, em ação, em fantasia, em suspense, em ficção científica… E é muito mais fácil de detectar enquanto leitor do que enquanto autor, pois muitas vezes trata-se de algum grupo de elementos narrativos necessário a algum encaminhamento planejado de antemão. Por exemplo, o personagem A precisa chegar até um momento B na trama; como esse é o objetivo do autor, partes ruins ao longo dessa jornada são negligenciadas ou mesmo consideradas um mal necessário.

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Photo by Internet Archive Book Images

Daí a importância de ler, reler, reler mais uma vez e reler de novo (ou seja, revisar) o que se está escrevendo. Especialmente com um espaço de tempo entre a escrita impulsiva e a revisão (dar espaço para que os olhos respirem, e cheguem com novas perspectivas ao que foi feito). Escrever é reescrever; essas dicas a seguir procuram dar direções interessantes quanto ao quê reescrever caso entenda-se que existe uma “parte lenta” na história – um momento em que você se arrasta pela leitura, querendo logo que ela acabe. Numa obra ideal, nenhum trecho da história deveria fazer o leitor se sentir assim.

  • Desenvolva as subtramas
  • Considere as relações entre os personagens. O personagem principal está brigando com seu melhor amigo? Os irmãos estão descobrindo algo sobre si mesmos?
  • Considere relacionamentos românticos; o que está havendo com eles?
  • Quando conquistar um objetivo se torna mais difícil, seu personagem perde a fé? O foco? A esperança? Qual é seu estado mental, e como você pode representá-lo por atitudes do personagem? Lembre-se: show, don’t tell.
  • O seu personagem tem um bom sistema de suporte? Ele está solitário? O seu personagem consegue motivar a si mesmo, mesmo quando as coisas ficam difíceis?
  • Seu personagem está fisicamente bem? Está cansado o tempo todo devido ao stress? Como está a saúde do personagem em relação a seu objetivo?
  • Considere retrabalhar o enredo. Se os outros aspectos da sua história não prendem a atenção do leitor, talvez você deva alterar a trama.

Como decidir o que os personagens vão dizer num diálogo

A comunicação só existe entre iguais, e por isso mesmo é rara entre nós. No momento em que conhecemos alguém nos enredamos em pontes de poder. O desequilíbrio é a regra, não a exceção. O ‘ser igual’ a alguém é um constante processo de ‘tornar-se igual’, processo que colabora de forma considerável com a formação de nossa personalidade, de nosso ser social, ao praticarmos a elevação ou o rebaixamento, ao abdicarmos ou reivindicarmos, ao pegarmos ou largamos, pelo bem de verdadeiramente ouvir e ser ouvido.


Como colocar palavras nas bocas dos personagens? Eis uma decisão complicada. Não falo aqui de estilo (literalmente quais palavras escrever), mas da direção da conversa, para onde ela vai a partir do que os personagens resolvem dizer.

A primeira coisa que costuma aparecer na cabeça do autor num diálogo comum, parte qualquer no meio da história, é: o que é preciso para levar a história adiante? Ao rascunhar o “esqueleto” da narrativa, você já sabe o fio geral que transforma o começo no fim. O que os personagens dizem é em grande parte determinado por esse fio. Ao falar e fazer coisas, os personagens põem em marcha os acontecimentos planejados.

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Photo by Nick Kenrick.

Vamos a um exemplo. Você precisa que a personagem Maria descubra que seu namorado João comete adultério com Joana. Por alguma razão você quer que ela descubra isso por uma conversa com outra personagem, não num flagrante. Por isso, nessa parte, você pode criar um rascunho que simplesmente diz “Mário conta para Maria que João tem um caso com Joana”. Na hora de escrever de fato essa parte, pode rolar algo como “Maria, tenho que contar uma coisa… O João tem um caso com a Joana”, e a Joana responde “Não! Não é possível! Não acredito!”, e Mário responde “Mas é verdade, você tem que acreditar”.

Repare que o diálogo se encaminha para a prova de que Mário está dizendo a verdade, porque a história precisa ir adiante; a próxima coisa que você já decidiu que vai acontecer é que Maria vai até a casa de João pra conversar sobre o assunto, e para isso a Maria tem que minimamente acreditar na revelação. Pense em qualquer mundo fantástico invadido por pessoas do “nosso” mundo: elas têm que ter um tempo para se surpreender, mas eventualmente devem parar de achar que estão loucas e aceitar a realidade, ou então nada acontece na trama. Isso é uma coisa potencialmente difícil (por conta da tensão entre realismo e eficiência narrativa) que Perdida, por exemplo, executa bem.

O diálogo acima (super tosco, eu sei) é eficiente: ele pode ser tão pequeno quanto necessário para que o ritmo continue sendo rápido, ou mais longo se você precisa dar uma parada no fluxo – até para focar, de repente, a subjetividade da Maria, que sofre com a descoberta. Tudo depende. Mas há vários outros critérios que podem ser usados em diálogos para moldar o que os personagens vão dizer – e, em geral, o processo constante de revisão ao qual o autor submete seu próprio trabalho acaba lidando com eles.

Contexto e motivação

Uma das piores coisas que se pode acontecer com um diálogo “eficiente” é que, na ânsia de fazer ele executar a função para a qual foi planejado, coisas mais elementares são esquecidas: o que os personagens querem. Por que Mário contou isso pra Maria?

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Photo by Philippe Boukobza

Contexto também é fundamental. Por que eles se encontraram naquele momento e naquele lugar? Isso importa, porque a suspensão de descrença não fraqueja só em filmes de super heróis; se você precisa tanto que Mário conte isso pra Maria que você está disposto a fazer eles se encontrarem aleatoriamente no centro da cidade, muitos leitores serão estapeados por essa conveniência absurda: vai ficar claro que o autor precisava dar um jeito de Mário falar com a Maria e, como não conseguiu nada de bom, fez os dois se encontrarem por acaso. Mas em ficções, [um] Deus existe. As pessoas esperam responsabilidade, causalidade e lógica das histórias que os humanos escrevem – ou poesia.

Se o encontro (entre Mário e Maria) for surpreendente, isso ainda será abordado no diálogo – afinal, quando nos encontramos com alguém por acaso e temos tempo para conversar sobre relacionamentos e traições, certamente iniciaremos a conversa com “O que você está fazendo aqui? Que coincidência!”. Isso confere mais naturalidade e fluidez ao diálogo.

Small talk

Isso depende muito do estilo do livro e do fluxo da história, mas o exemplo anterior é duplo: não só é sempre interessante providenciar, no diálogo, um pouco do contexto da conversa e das motivações de seus participantes, o fato é que raramente vamos ao ponto do que queremos falar – especialmente no começo de uma conversa, no princípio de encontro com outra pessoa. “O que você está fazendo aqui? Que coincidência” é ótimo para começar, mas Mário não cortaria Maria imediatamente para “Precisamos conversar sobre o João” (ou talvez sim, depende do contexto, mas ignoremos isso por um momento). É muito mais possível, se são duas pessoas normais e não espiões soviéticos, que Mário responda a pergunta e faça mais “conversinha”.

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Photo by h.koppdelaney

Talvez é a partir dessa conversinha que Mário chegue ao pensamento de que talvez seja bom falar sobre o que sabe sobre o João (“Cadê o João?”, “Ah, tá trabalhando hoje”. “Hm. Pois é… Então, desculpa te falar, mas… Acho que não”).

Assimetrias

A comunicação é cortada e perpassada por relações múltiplas de poder. Só há comunicação entre iguais, mas a maioria entre nós, em relação a outros, somos desiguais.

Digo isso porque o planejamento de um diálogo geralmente passa, como dito acima, pela listagem das coisas que se precisa que os personagens digam – ou melhor, o que o leitor precisa tirar daquela conversa – e então a organização temporal dessas coisas. Mário diz isso, Maria diz aquilo, aí Mário diz isso, e Maria diz aquilo. Se não há cuidado, os personagens acabam sendo receptáculos vazios de informações – sendo raquetes de um ping pong de palavras.

Isso parece bastante óbvio e às vezes já está embutido no planejamento do autor. Se Mário tem interesse romântico em Maria e é um homem confiante, vai provavelmente falar de uma forma bastante incisiva e proselitista sobre o que João está fazendo. Se é mais inseguro, vai provavelmente se desculpar milhões de vezes por falar daquilo, com medo de magoá-la, de perder suas chances com ela… E já vai ter sido muita a coragem de falar em primeiro lugar. Se Maria tem um interesse romântico em Mário, como vai reagir a ele falando isso para ela? É mais do que a forma como o narrador vai mostrar que ela se sente; como isso impacta o que ela vai dizer pra ele nesse diálogo? Ou ela não vai aguentar o que vai encarar como uma humilhação e vai sair correndo, evitando o diálogo completamente?

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Photo by streetwrk.com

Isso pode estar entranhado na premissa da história de tal forma que não abandone a mente do autor, mas há outros cenários, e isso faz diferença também com personagens menos tridimensionais, como “coadjuvantes” e “quase-figurantes”. Se Mário é o chefe da Maria, ele vai abordar uma discussão assim pessoal (por mais que ele entenda que é para o bem dela ou coisa parecida), de uma forma muito diferente – e também muito diferente, em outro sentido, se for um chefe escroto. Em ambos os casos, a forma como Maria responde deve levar em consideração esse diferencial de poder. Se Maria é chefe de Mário, aí a coisa também muda. Se eles são colegas de trabalho, também é outra coisa. Todo tipo de interesse e de relação de poder que incide entre eles pode ter consequências palpáveis sobre as palavras que escolhem para dizer o que dizem – e principalmente sobre o que não dizem.

Esse processo psicológico pode ser revelado por um narrador em primeira ou terceira pessoa… Ou permanecer escondido – o que é formidável também, porque incita o leitor a formar suas próprias conclusões sobre o que exatamente está por detrás das escolhas de palavras (e informações) dos personagens. É só lembrar, por exemplo, a confrontação entre Bentinho e Capitu sobre a paternidade de Ezequiel.

Ineficiências

Os personagens dialogam dentro de um contexto específico e o que eles querem dizer e fazer deve moldar o diálogo mais do que aquilo que a história exige deles no momento. Os diálogos, quando isso se acomoda bem ao estilo e ao ambiente da obra, deveriam incluir mais do que somente as “informações essenciais”, mas também coisas menores e corriqueiras que nos ajudam a ter uma noção dos personagens e da interação entre eles. E falando em interação, é preciso sempre se perguntar como as diferenças entre os personagens, de interesses e de “posição”, formulam e reformulam aquilo que eles escolhem dizer e como escolhem dizê-lo.

Só que falta uma coisa ainda. O parágrafo acima, que resume a postagem até então, pretende aperfeiçoar o diálogo no que interessa a primeira característica que discutimos: sua eficiência. Ele ainda traz ao leitor o que ele precisa saber, mas o faz de forma mais natural e robusta. Só que, especialmente se você quer uma certa “naturalidade” em sua obra e uma relação mais humana entre os personagens, você deve abandonar, em parte, até a eficiência.

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Photo by archer10 (Dennis) (68M Views)

Pense em todas as discussões acaloradas que você teve com alguém: é muito provável que em grande parte delas, quando você ainda está de cabeça quente horas depois, você “descubra” alguma coisa perfeita que poderia ter dito pra outra pessoa. Mas, infelizmente, o tempo passou – a oportunidade foi perdida e você se morde por só pensar agora nessa frase perfeita para contra-atacar seu adversário.

O escritor não deveria se aproveitar do fato de que pode “voltar no tempo” – revisar uma discussão de novo e de novo e de novo, quantas vezes achar necessário – para aperfeiçoar uma discussão. A ideia de que você pode colocar num papel o que Mário tem que dizer / quer dizer, o que Maria tem que dizer / quer dizer, e aí “dar um jeito” de encaixar tudo numa conversa, é problemático – porque na vida real isso nunca acontece. Sempre ficam coisas por serem ditas, coisas mal ditas, coisas ditas a mais a partir de uma derivação do assunto original da conversa – e isso não se trata apenas de brigas, mas do dia a dia. Mesmo coisas bem expostas pelo emissor podem ser mal interpretadas pelo receptor.

No entanto, o escritor precisa encontrar um equilíbrio: um jeito de fazer cada conversa passar mais ou menos ideias que se quer que o leitor “pesque” (sem esfregar na cara dele, por favor) a, ao mesmo tempo, dar autenticidade à conversa. Uma forma boa de fazer isso é ter em mente uma ideia vaga sobre o que cada personagem quer daquela conversa, ou como está reagindo a novas informações, e escrever uma primeira versão instintivamente – pondo no papel a primeira resposta que vem à cabeça. Obviamente aquilo pode ser imperfeito demais para servir aos propósitos da trama – e consertos terão que ser feitos. Mas consertos a partir de um bom molde inicial têm mais chance de resultarem em algo “natural” e eficiente na medida certa do que um molde planejado meticulosamente demais.

De coisas que buscam aprimorar o diálogo até aquelas que, com o mesmo objetivo, retiram-lhe atributos (mas não de maneira forçada), essas são boas dicas para criar um diálogo dinâmico e informativo.

Da aproximação entre o fazer literário e a vida

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Photo by the euskadi 11

Quando crio uma história (enquanto escritor) primeiro vem a ideia: a situação, o desenvolvimento, o conflito, a premissa. Depois disso vêm os personagens necessários – e as peças cenográficas que, na interação sofrida a partir das ações desses personagens, vão construindo essa premissa. Isso não é um engessamento dos personagens: no fundo eles sempre existiram a partir da situação, a partir da premissa. Foram eles que colocaram-na em movimento em primeiro lugar, só que você não sabia disso; vem mais fácil à cabeça a situação, a figura completa, com a embalagem por fora, do que seus mecanismos internos. Mas eles estão lá, e por isso são necessários. Você não consegue imaginar aquela história sem eles – J. K. Rowling disse que a história de Harry Potter veio inteira, completa, durante uma viagem de trem. E é certo, pode apostar, que Harry, Ron, Hermione, Voldemort, Dumbledore, todos esses e talvez mais alguns (Snape?) estavam lá desde o princípio, desde a primeira semente de ideia.

Aí, por último, vem a vida própria: vem aquilo que os personagens precisam ter que para que haja um desenvolvimento da premissa, para que haja uma história em si: uma narrativa, uma trajetória, uma transformação – uma ação. Você precisa deixar os personagens falarem por si, e suas decisões terem suas consequências, e você deve aceitar as reverberações disso de uma forma tal que, depois de um tempo, as lógicas dos personagens se tornam vidas dos personagens e eles, vivos, são capazes de determinar o destino da trama a partir de seus desenvolvimentos. Nesse ponto é que pode ocorrer o engessamento, se o autor não respeita as vozes dos personagens e decide continuar com um plano anteriormente definido; não, é preciso ouvi-los e segui-los ao invés disso.

Com a vida a coisa é parecida. Não que primeiro venha a sociedade e depois o indivíduo, mas a forma como nós nos aclimatamos, como nos “aculturamos”, como “aprendemos a ser gente”, indica que temos uma certa situação, sempre prenha de um conflito, toda uma premissa cultural que nos guia simbolicamente até começarmos a viver de acordo com certas necessidades. Por isso toda nossa vida, especialmente na forma como vemos a história (uma linha e não um ciclo) é uma trajetória no sentido de uma narrativa mesmo: uma mudança, uma ação que gera transformação. Começamos com essa premissa dentro de nós, muitas vezes servindo como personagens necessários para uma determinada situação cultural, e aí então, a partir dessas possibilidades e desses limites, podemos ser protagonistas para efetivar uma transformação e sermos diferentes.

Como fazer com que os leitores se importem com os personagens de uma obra ficcional

Bom, como vocês sabem, eu sou meio que bastante contrário a fórmulas simplistas. Em se tratando de arte e literatura, a complexidade que almejo tem a ver com um “gut feeling”, uma sensação de que esse troço está certo. Você lê, relê, pensa, repensa, lê, relê – e a coisa flui, tudo se encaixa, a sensação é arrebatadora na medida planejada (ou, surpresa, melhor que a planejada) e aí pronto: você não precisa do blá blá blá técnico chato, e evita pensar demais. Você só faz. Nada de jargão, nada dos caminhos já percorridos por outros. Se parece certo, está certo. Certo?

Não. Embora eu continue achando que essa intuição, esse “GPS artístico” é fundamental e ele tem que ter liberdade para voar enquanto você escreve e analisa o que escreveu, existem três problemas fundamentais com um approach absolutamente intuitivo:

  1. Esse seu GPS artístico tem que ser bom, e estar “calibrado”. A maioria de nós vai ter problemas em admitir que nossa intuição pode nos enganar; que ela pode não ser tão genial quanto às vezes pensamos, e pode nos levar a escrever merda. Embora seja poético pensar que o trabalho do escritor é um labor solitário, a verdade é que pontos de vista diferentes sobre a obra ainda em produção nunca pioram a arte final; tornam-na mais rica, de um jeito ou de outro, sempre. Isso sem nem falar no papel do editor… O que estou dizendo é: você precisa ler muito (e ler coisas com qualidade literária) e escrever muito para desenvolver uma sensibilidade artística boa. Isso tem a ver com confiança, orgulho, humildade, talento, habitus, capital cultural. E é uma coisa que cada autor tem que resolver consigo mesmo. (Observação: há também, obviamente, grande valor em conhecer as histórias que existem no mundo para não, ham, fazer nenhum plágio involuntário.)
  2. Talvez você esteja se atrapalhando. Veja, mesmo que você tenha um senso artístico incrivelmente arrojado; um senso super perspicaz do quê e de como escrever para alcançar aquele efeito no leitor, pode ser que você esteja escrevendo sobre algo, ou sobre algo de um jeito específico, por causa de algum momento na sua vida, de algum interesse passageiro, de algum demônio da mente que você precisa exorcizar. Isso tudo é muito bacana, e na verdade essas são boas motivações para escrever. Só que, talvez, influenciado por essas coisas, você ache super legal falar dessa ideia, e não percebe que… Na verdade ela não é muito boa. É preciso separar o que o público vai achar de uma ideia do que você, sabendo de todo o contexto de produção da obra, vai achar. (Observação: muitas vezes, contudo, você pode deixar o leitor saber do contexto de produção. Isso muda tudo; desde um “baseado em fatos reais” até “escrevi isso aqui através do whatsapp“).
  3. E se você não gostar do lugar para onde a sua intuição o levou? O que vai fazer? (Observação: temos ideias ruins o tempo todo. É parte do “brainstorming”.)

Para mim, o papel de teorias literárias, de estudos sobre a criação literária, é o de ferramentas que vão aparecer para consertar esses problemas. Se eles são aplicados desde o início, viram fórmulas; se as fórmulas ficam muito aparentes, são clichês. Mas, fórmulas ou clichês, histórias que têm como inspiração “modelos” de escrita são problemáticos não só por causa do que elas são, mas por causa do que elas poderiam ter sido. Forçadas desde o início a obedecer uma série de regras e ideias preconcebidas sobre o que um “bom enredo” deve ter, que tipo de genialidades elas poderiam ter sido, se esse lado diferente, ousado e (por que não?) “patinho feio” delas não tivesse sido silenciado na sua imaginação?

Primeiro a ideia, a inspiração, o planejamento completamente baseado no seu coração; depois, se você não estiver satisfeito (ou até mesmo se estiver), é hora de começar a pôr a ideia à prova; de questioná-la, analisá-la, dilapidá-la. É nessas horas que a teoria serve bem, e, novamente, o faz sempre sob o comando da sensibilidade artística. Não adianta nada mudar a sua ideia para encaixá-la numa “jornada do herói” se no final você não achar que ela ficou mais tão interessante – a saída deve ser outra, e pode estar em outras ideias teóricas sobre criação literária – ou, ainda, no meio do caminho, precisando de algum elemento até então desconhecido para surgir.

E os personagens?

Dito isso, seus personagens têm que ser esses monstrinhos vivos na sua cabeça. Demora até que se inflem e não tem problema se começam finos como papel. Eles precisam maturar. Pode demorar.

De todo modo, mesmo depois que eles parecem bem vivos e formados, ainda pode haver problemas, e você não consegue verbalizar exatamente quais são eles. Bem, eu tive esses problemas várias vezes, tenho ainda hoje, e uma grande pesquisa na internet me dotou de algumas ideias que resumo aqui para futura referência e para ajudar também quem esteja de repente procurando por isso e precise de um recurso assim. Vamos lá: como escrever bem um personagem – mas o que define um bom personagem? – como fazer com que o público se interesse, se importe com o seu personagem.

Motivação

Os personagens precisam precisar de alguma coisa. Ou querer alguma coisa, mas a linha que divide esses dois verbos é tênue.

Mais do que isso, precisamos entender o que está em jogo – ou seja, não adianta nada percebermos que um personagem quer alguma coisa se não conseguirmos

  • Entender (emocional e/ou racionalmente) o porquê daquela vontade / necessidade;
  • Entender o que vai acontecer se o personagem não conseguir o que quer / precisa;
  • Torcer para que ele consiga o que quer / precisa (o que tem tudo a ver com os outros dois pontos).

E, é claro, isso tudo não significa nada se o objeto de desejo do personagem for trivial ou fácil de conseguir. É preciso que seja difícil, e que ele precise se superar para conseguir o que quer.

Você percebeu que parei de falar de uma característica do personagem para falar sobre o arco do personagem? Seu arco é seu desenvolvimento durante a história: o quanto ele muda do começo ao fim de uma obra, a forma como ele passa de seu estado inicial A para algum outro estado, B. Estou chamando atenção para isso porque mencionei o arco de “superação” como se fosse o único que existisse, mas na verdade ele é a fundação básica de uma história com final feliz; gostamos dos personagens mais por causa do esforço do que por causa do sucesso, e numa história trágica o arco os leva à decepção, à falha, à lama de seus defeitos, etc. Mas a característica da superação, embora possa não ser o resultado final das ações dos personagens, continua sendo componente de sua motivação para agir: ninguém tem por objetivo ser cada vez pior. E se tiver, ela basicamente quer se superar no quão ruim é.

Superação

Uma das possíveis características de um personagem que se supera é ele ser um underdog – ou seja, o menos favorecido. Nós gostamos de torcer para o Davi contra o Golias. Por isso, aquela questão da dificuldade que acabamos de falar continua valendo: é preciso que sintamos o tamanho de sua desvantagem. E se o personagem em si é muito bom, é preciso dar-lhe uma desvantagem. Se a injustiça dessa “doação” nos faz odiar o vilão ainda mais, melhor ainda. Quem lembra da “batalha final” de Gladiador?

Mas há uma outra questão também: o personagem – underdog ou competidor de mesmo nível – para o qual torcemos vai brilhar à medida que se contrastar com o seu adversário. Quanto melhor for o inimigo (e melhor também enquanto personagem), mais o personagem vai precisar se esforçar para vencê-lo. O Coringa torna o personagem Batman mais interessante, e como o Coringa é extremamente inteligente e efetivo, as vitórias do Batman são muito mais valorizadas por nós. Isso pode parecer tolo, mas muitas vezes o que não funciona numa história e nem percebemos, é que o herói é super bacana, tem um objetivo bem legal e ele tem uma trajetória interessante até conquistá-lo… Mas o inimigo dele não é interessante, ou particularmente poderoso. Talvez o vilão seja só “as circunstâncias” (o que já foi dito, por exemplo, sobre os filmes da série Missão Impossível), e isso não é necessariamente ruim: muitas vezes temos vilões acessórios, secundários, que apenas marcam o ritmo numa história em que o verdadeiro enredo é o personagem principal lidando com uma situação péssima, que o desafia, que exige que ele dê o melhor de si. O antagonismo (ou mesmo agonismo) é de fato a chave.

A dimensão moral e um certo compromisso ético

Uma coisa interessante e que é muito citada em dicas para escrever bons personagens é uma certa dimensão moral: mesmo se o personagem for um babaca, dê-lhe um limite que ele não vá atravessar (o que lhe confere não apenas honra, convertida em respeito por parte do público, como também a impressão de que ele tem um coração, afinal). É importante também que ele tenha opiniões – podem não ser liberais e progressistas, mas que ele as tenha. Mesmo que nós sejamos apáticos e indiferentes em nossas vidas sobre uma série de assuntos, ou que encontremos pessoas assim, você tem que saber que a apatia completa pode cansar grande parte do público; irritá-lo, tornar a narrativa toda mais desinteressante. Isso porque a apatia se relaciona também ao problema da motivação – se alguém não se importa com muita coisa, o que ele na verdade quer? E se seus desejos são apenas egoístas ou fisiológicos, por que eu me importaria com isso? É possível que a superação sobre a qual você queira escrever seja alguém apático aprendendo a se importar com as coisas. Isso é interessante, e há um post muito bacana no Fuck Yeah Character Development falando sobre esse arco específico [inglês]. É importante dizer: não demore muito para tornar o personagem interessante… Ou demore, mas saiba os perigos que isso engendra em termos práticos (leitores abandonando a obra e dando uma estrela de nota no Skoob ou algo assim).

O problema que tenho com a dica da dimensão moral é o seguinte: sim, dê opiniões para os seus personagens. Faça o anti-herói assumidamente fora da lei se pôr em perigo para salvar algumas crianças de algum perigo. Faça um personagem bater o pé no chão em defesa de um princípio e não ceder sua posição. Isso tudo é ótimo. Mas tem que ser orgânico.  Tem que vir a partir da caracterização de um personagem como um todo; todo o resto do que ele é e toda sua história tem que contribuir para que ele tenha essas opiniões e atitudes. Mais do que isso, não adicione esses elementos aleatórios de natureza moral para que o público “se identifique com eles”. O público não vai se identificar com nada que parecer forçado anyway, mas a questão é que se preocupar com que o público se identifique com o personagem é um negócio supervalorizado.

Digo isso porque escrever um personagem com a deliberada intenção de que o público mais amplo se identifique com eles acaba em… Bella e Edward. Não são pessoas ou personagens, são cascas: eles têm apenas características muito básicas, apenas o suficiente para que uma porção estatisticamente significativa do público-alvo possa se pôr no lugar deles – e de maneira convincente, já que não há muitos traços de personalidade neles que atrapalhem esse processo de cosplay mental. Bella é a adolescente desajeitada e sem atrativos pela qual um homem perfeito se apaixona, e nada mais. Isso já foi analisado ad nauseum (e de forma muito melhor) por aí na internet, então não insistirei no exemplo.

Mas a identificação é importante. O meu argumento é que o livro, na forma como é [bem] escrito, garante essa identificação não por causa do que há de semelhante e de não-diferente, mas apesar do que há de diferente. De novo: a boa literatura (pombas, a boa arte) nos faz conhecer personagens diferentes de nós com os quais, por causa da literatura, conseguimos nos identificar de alguma forma. E essa é parte da magia e do poder da arte, afinal: expandir nossas mentes. Ao invés de nos prender ao que já conhecemos e ao que já somos, conecta-nos a essa alteridade, a essas formas outras de existência, de pensamento, de ser-no-mundo. A preocupação, a paranoia de fazer com que os leitores se identifiquem, se identifiquem, se identifiquem nos leva aos personagens-casca. O foco no “escrever bem, que a identificação vem” (escrever bem o estilo, a história, e também os personagens), nos dá identificação sem precisar mudar nada nos personagens com esse objetivo em mente.

Em suma, o primeiro método de identificação (personagem-casca) é eficaz, mas eu acho que usá-lo é meio… Triste. Entendo isso como um compromisso ético: se você realmente acha que “mais identificação” do leitor é igual a um personagem melhor… Vá em frente. Faça ele gastar tempo e energia defendendo alguma posição política ou fazendo um ato de incrível moralidade, mesmo que isso pareça meio forçado.

Mas se essas atitudes, contudo, forem bem desenvolvidas, de forma holística, aí temos algo mais legal de se ler.

Desvelando complexidades

Dar motivação, superação e um posicionamento contextual para o seu personagem são as dicas gerais em termos de técnica e teoria literária para que entendamos o que constitui um personagem forte.

Mas isso, obviamente, não é tudo.

O leitor entende a motivação do personagem? Essa é uma motivação boa? O leitor sabe nesse momento que se o personagem não vencer, as consequências serão essas? O personagem está enfrentando (e superando) dificuldades para conseguir o que quer? Está fazendo isso a partir de uma boa razão? Essas e outras perguntas norteadoras podem ser extremamente úteis para refinarmos nosso texto. Mas a criatividade, a sensibilidade de ler e dizer “isto está legal” ou “isto é uma bosta”, são essenciais para escrever personagens bacanas e histórias centradas em seus arcos narrativos.

Como um exemplo final do que quero dizer quando digo que não bastam as fórmulas e as preocupações técnicas, deixo uma tradução rápida de alguns parágrafos do texto “What if your characters don’t want anything?“. Ele mostra só algumas das ramificações de todo esse papo sobre motivação e sobre o que torna um personagem interessante e forte:

Vontades não têm que ser simples ou fáceis de identificar.

Muitos de nós têm desejos complicados e emaranhados ao invés de impulsos simples. Na verdade, quanto mais reais seus personagens forem, menos monomaníacas suas vontades provavelmente serão na maior parte do tempo. Sentimentos múltiplos, desejos conflitantes, e às vezes motivações neuróticas são todas partes da experiência de ser humano.

Seu personagem principal pode desejar uma abstração, como “redenção”. Ou “vingança”. Ou “a aprovação do meu pai”. Pode ser algo impossível, como a aprovação de um pai que na verdade já faleceu. Ou talvez sua personagem queira algo que ela não consegue admitir – até para ela mesma – que quer. Às vezes um desejo é como uma coceira num lugar que o personagem não consegue coçar, ou uma dor irritante com a qual eles não conseguem lidar.

Além disso, as pessoas nem sempre sabem o que querem – até não poderem ter o que querem. E quanto mais difícil for de obter o que não se tem, será mais provável que as pessoas se deem conta de que precisam disso.

E mais, as vontades das pessoas podem evoluir ao longo de uma história. Ou os desejos dos seus personagens podem mudar, ou eles podem se desenvolver e ficar mais claros, ou mais confusos.

E, finalmente, ver as pessoas não conseguirem o que querem é em geral mais interessante. Mesmo no final de uma história. As pessoas que conseguem o que querem são uns babacas, e não conseguimos nos identificar com eles porque na vida raramente conseguimos o que queremos. Então se você tiver que fazer uma escolha entre deixar seu personagem alcançar seu mais querido desejo e arrancar esse desejo dele – é sempre melhor deixar o personagem querendo mais.

Ser cínico com os “efeitos” da escrita ajuda ou atrapalha o escritor?

Quando um médico faz uma cirurgia, é muito comum um observador leigo se impressionar com o jeito blasé com que um doutor corta um corpo humano, arranca um órgão inteiro para fora, come um sanduíche enquanto isso, etc (brincadeira). Mas é assim com tudo que conjuga familiaridade a técnica: se você for abrir seu próprio laptop, vai tomar todo cuidado do mundo; um técnico já vai desparafusando tudo, tirando placa dali, passando pasta térmica lá, é… É uma coisa que te deixa quase com pudores vitorianos (“Calma, jovem, você não prefere pegar um cineminha com o meu PC primeiro para vocês se conhecerem melhor?”). Outro exemplo clássico: pais experientes vs. pais de primeira viagem em relação à troca de fraldas. Estes têm medo de acidentalmente matar o próprio filho. Aqueles terminam tudo em cinco segundos. Enquanto comem um sanduíche.

E com o escritor, o que acontece? Na minha opinião, algo tão associado ao fenômeno da “insegurança” que os dois são quase indissociáveis: um certo cinismo quanto aos resultados do parágrafo, da frase, ou até mesmo da premissa toda.

Como é que se faz para deixar um leitor com medo, por exemplo?

A resposta certa é: fazer ele se importar com os personagens (quem disse foi o King, mas estou com preguiça de procurar). Mais do que isso: providenciar a imaginação dele com material o suficiente (o que não se traduz em material aos montes) para que ele reconstrua a atmosfera de medo e excitação que você, escritor, provavelmente sente enquanto está escrevendo. Para que ele imagine o que você quer que o leitor imagine. O problema é que essas duas coisas precisam de uma boa construção da trama toda: dos personagens, do enredo, da premissa. Isso não é coisa que dependa de uma palavra a mais ou uma frase a menos; fazer o leitor ficar com medo no capítulo 27 depende do que você escreveu desde o capítulo 1.

Mas escritor, acreditando que o medo depende do formato, da apresentação do momento em que o leitor deveria sentir-se amedrontado (seguindo os planos do escritor megalomaníaco, que quer controlar quando o leitor vai sentir isso ou aquilo – me declaro desde já muito culpado disso), vai ficar experimentando um milhão de vezes com a frase.

Vai tentar a voz meio padrão, talvez ainda nas fases de outline do que vai acontecer nessa hora:

“E então o monstro pulou da janela para a cama de Aline …”

Vai tentar a mais abrupta, estilo “jump-scare” dos filmes de terror mainstream de hoje em dia:

“O monstro pulou sobre a cama. Aline gritou, se … “

Vai tentar a poética:

“O monstro, endurecido pelas amarguras da vida e esverdeado como os musgos …”

Vai tentar a perspectiva:

“Sentindo-se acuado e entrincheirado, o monstro pula sobre a janela, pensando que aquela é…”

É claro que cada uma tem objetivamente seus prós e contras. Se a cena é super importante e meio que um clímax, ser poético vai quebrar o ritmo. Se você quer imprimir uma sensação de brutalidade que às vezes não estava no resto da obra (o contraste seria bacana, e com certeza vai rolar uma “sensação” no leitor) um estilo mais seco é o caminho.

Agora, “medo” – ou qualquer grande sentimento que você precisa fazer o leitor experimentar ao ler o livro para poder justificar a escolha do gênero literário (“Meh, não senti medo; não sei como chamam isso de terror”) – é algo que em ampla medida não depende da escolha certa das palavras para um ou dois parágrafos. A escolha estilística não pode ser a errada; não pode ser um desastre. Mas também não é tudo na vida do medo, ou do encantamento, ou do suspense, ou da tensão.

Voltando ao exemplo: o escritor inseguro vai sair dessa experimentação toda dizendo que ele não consegue escrever bem tal e tal sentimento. O escritor cínico vai sair disso desconfiado de que não há nada que se possa fazer para que tal e tal sentimento seja bem escrito.

Agora, há certas vantagens nesse cinismo: você desencana. Perde o medo de experimentar para ser feliz (você imagina o médico com receio de usar o bisturi?). Mas há desvantagens também: tem vezes que me sinto como um cozinheiro que perdeu a capacidade de sentir cheiros, ou aquele músico famoso que ficou surdo (não chuto o nome para não errar feio falando besteira). Ou, mais precisamente, como o personagem principal de Perfume – ele sentia todos os cheiros do mundo, menos o do próprio corpo. Como cínico em relação à perspectiva de que minha escolha específica de palavras seja tudo que eu precise para causar “medo” num leitor, sinto muitas coisas lendo vários livros (só esse último, por exemplo… Ai ai…) mas quando chega a hora de escrever coisas que quero que deixe os leitores com medo, eu já não tenho mais tanto medo. E isso abre as portas para a insegurança: Estou escrevendo isto bem? (a história toda, no caso) – Será que não estou sentindo medo porque imaginei essa parte uma centena de vezes antes de botá-la no papel, e já fiquei insensível a ela? Tem partes que ainda continuam me deixando feliz de ter escrito – realmente senti coisas ao escrevê-las. Mas sempre que não sentir nada, isto quer dizer que estou escrevendo mal? Como fazer esse diagnóstico?

Bem, não tenho uma opinião quanto a isso. E você, colega escritor? E você, caro leitor? Diga-me. Por favor.

Um conselho popular, corporativismo de escritor independente, a descrição do olhar

“Se você não tem nada de bom pra dizer, não diga nada” – que conselho popular mais interessante pra se sentar na sombra debaixo de uma árvore, colocar a mão no queixo, balançar a cabeça pra cima e pra baixo, e pensar. Não pretendo fazer uma análise profunda dele; não sei nem ao certo como me posiciono em relação a ele. Acho que (como tudo nessa vida) depende muito do contexto; entendo que há lugares e situações em que não há benefício para absolutamente ninguém manter um pacto com a honestidade irrestrita e falar tudo o que vem à cabeça. Em outras situações, a sinceridade e a ação de expor uma coisa que se considera ruim é imprescindível.

Mas, independente do julgamento que eu possa vir a formar sobre essa frase, eu admito que a ponho em prática algumas vezes.

Enquanto escritor independente, sei o trabalho que dá. Sei o esforço que é. Por isso, ao ler literatura brasileira independente – coisa que tenho feito um pouquinho mais e mais de cada vez – às vezes me irrito com certas coisas. Seja um completo descumprimento de um pilar básico da boa literatura; sejam os diálogos feitos na verdade de monólogos alternados; seja a linguagem completamente inapropriada para o personagem (jovem paulista contemporânea falando como narrador de trailer de Sessão da Tarde? Ugh). Há muitos motivos pra se irritar, mas… Mas e daí?

Escolho ou não continuar o livro a partir da minha visão; não vou mentir pra mim mesmo no Skoob para ser simpático, deixando a página do livro um pouco mais “bem na foto” (tenho um TOC ENORME com o meu Skoob e jamais marcaria lido um livro que abandonei). Mas por que ir mais longe? Porque fazer uma resenha explicitamente negativa de uma ficção? Uma acusação frontal?

O autor, que já está passando por dificuldades como passa quase todo o autor independente, não precisa lidar com isso – não por parte dos próprios autores, que deveriam estar muito mais juntos do que são na prática (reconheço também a culpa). Os autores aprendem sempre, vivem a aprender – eu sem dúvida alguma também. Parte das críticas (racionalizo eu) tem até a ver com uma certa questão de gosto, de preferência. Abraço, assim, sem muita vergonha, o corporativismo mais baseado na autopiedade canalizada pela “regra de ouro” do que em qualquer outra coisa. Veja bem: blogueiros têm mais é que fazer um bom trabalho lendo e criticando mesmo. Recebi uma resenha muito boa do blog Fantasia BR, que exalta os pontos fortes, mas dá uma opinião sincera sobre o que eles consideraram algo negativo. Achei maravilhoso – mas isso fica pros blogs, que não devem mesmo mentir pra puxar saco, pra evitar falar mal, etc; já eu, como fellow escritor, vou preferir ficar quieto se não tiver nada de bom pra dizer.

Três adendos. Primeiro: com autores grandes, as chances de leitura se multiplicam. Para um autor independente uma crítica negativa pode ser a diferença entre um leitor em potencial (que poderia no fim ter uma visão bem positiva sobre a obra) “se arriscar” e começar a ler ou deixar para lá.

Segundo: Stephen King escreveu um livro, parece, sobre sua jornada para ser escritor (mais um livro dele cujo personagem principal, é, pasmem, um escritor – LOL) e ele dá uma dica muito interessante, razão pela qual ler literatura independente muitas vezes traz esse risco de se ler algo que se parece mais com uma fanfic sem nem uma revisão preliminar: seja pago para escrever. King mandava seus textos para revistas de literatura. Como elas têm que escolher onde investir, a escolha significa algo a mais para o escritor – e o feedback costuma ser brutal, honesto. A diferença, amigos, é que nos EUA a cena de revistas do tipo era efervescente. No Brasil a procura tem de ser com lupa.

Por último: já falei mal de escritor independente e nacional. Mas sabem por quê? Porque os livros são foda. Porque recomendo que você vá lê-los imediatamente. Ainda argumento que o cara escreve mal, mas a história em si, a parte “macro” da coisa, é muito boa e me prendeu o bastante pra me fazer ler 500 páginas A4 em tela de computador em pouquíssimo tempo. E no volume 2 li o digital de novo, as mesmas mais ou menos 500 páginas A4, numa tela de um Galaxy 5. Não, não é S5. É 5 mesmo.

A descrição do olhar

Quando olhamos para os olhos de alguém, especialmente para os olhos de alguém que conhecemos bem, podemos ler muitas coisas. Mas essa leitura, embora só possa ser cognoscida na forma de palavras, só têm sentido em toda a experiência, que às vezes dura milésimos de segundo, de leitura – leitura que é, na verdade, uma experiência visual.

A melhor coisa que escritor tem pra fazer com o olhar é o mecânico, o básico: se está lacrimejado, se está vermelho; se foi pra lá, se foi pra cá. Se está vazio, duro, fixo, piscante, apertado, fechado, fechado por um longo tempo, torto, vesgo, agitado, indeciso (esse já é meio borderline), arregalado, perdido (esse também), aguado, abaixado. A segunda melhor coisa é o reino do poético, do metafórico; o drible da narrativa, o tempero da escrita, mas que tem que ser encaixado num contexto ou pode não ser nem um pouco efetivo – ser, pelo contrário, até brega.

O que não gosto é querer pegar o atalho que já vi por aí (e do qual *gasp* posso até ter sido culpado. Pelo que vi quase fiz isso uma vez) de dizer, por exemplo, “personagem tal olhou com olhos tristes para…”. Isso aí é uma preguiça. É o autor querendo dizer que o personagem estava triste ao invés de fazer o leitor sentir isso através da situação – só que, pra não pegar muito mal, faz o “olhar” ficar triste, não o personagem.

Isso me lembra um personagem de um livro de Zafón (um dos Semperes) que trabalhava num jornal quando era jovem e o editor sempre dizia para ele: corta os adjetivos, nada de adjetivos! Um exagero, é claro – um estilo peculiar, que particularmente não é o meu favorito, mesmo que eu adore a desértica trilogia Millennium; não é coincidência que a Millennium seja uma história que gire em torno de jornalistas, nem que o autor da Millennium tenha sido um jornalista, nem que seja um editor de jornal que dê esse conselho. Mas enfim, o princípio fica: adjetivar um “olhar” é complicado, por mais que na vida olhemos para alguém e pensemos “taí, esse é um olhar triste”. Ler um livro, por mais que a atividade precise dos olhos, não funciona do mesmo jeito. Precisamos de mais pra sentir essa força do olhar. Ou, nesse caso, de menos.