Freud não explica sozinho

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Há algumas colunas falamos sobre a economia. Minha principal bronca é que ela costuma ser mais discurso que ciência, e também por causa de uma certa mania de achar que o mundo econômico pode (e deve) ser investigado de forma separada do mundo social. Com a psicologia não é muito diferente; há três, ao meu ver, três problemas principais com a psicologia.

O primeiro problema da psicologia é a posição do indivíduo na teoria. À parte de uma questão de valores, tenta-se entender a pessoa a partir de uma investigação minuciosa dela mesma. A dificuldade está que essa é uma visão muito limitada, que não leva em conta – ou diminui – o efeito do ambiente e das interações sociais no desenvolvimento da personalidade, do caráter, dos valores e das atitudes de alguém.

Mas o problema – que, pra ser sincero, é mais uma questão da psicologia clássica do que da contemporânea – é quando esse mesmo individualismo é utilizado para entender a sociedade: ou seja, primeiro entendem-se os indivíduos e depois a sociedade composta por eles. A sociologia, ao nascer, teve que se justificar como uma disciplina isolada justamente porque ela não queria ser a psicologia: ela queria estudar a sociedade como uma coisa outra que não o simples resultado de indivíduos se juntando.

O segundo problema é o do universalismo de muitas das pesquisas da área, ou seja, a pretensão de que uma pesquisa envolvendo alguns milhares de moradores dos Estados Unidos resulte em uma verdade universal sobre o funcionamento da mente humana – ou seja, pesquisas que não levam em conta a forma como diferenças culturais podem interferir em processos da mente, do aprendizado, das representações, ou seja, na forma de ver o mundo e de agir sobre ele.

O terceiro problema é a extrapolação, a partir de pesquisas em ambientes controlados, totalmente fora do contexto do dia a dia, de resultados sobre o funcionamento da mente. Como na pesquisa em que pedia-se às pessoas que escolhessem um botão para apertar; descobriu-se que “o cérebro” escolhia o botão alguns segundos antes de a pessoa se mover para apertar o botão. Daí para a conclusão de que não há livre-arbítrio e somos simplesmente movidos por determinismo cerebral é um pulo. Um pulo, na verdade, em que aquele que pula dá com os burros n’água.

É preciso ser justo e reiterar que nem toda psicologia é assim. Mas não se trata de uma generalização, e sim de características presentes numa enorme parte do discurso psicológico – e que temos que entender não apenas no âmbito científico e acadêmico, mas também político: como vimos na coluna passada sobre a noite em que senti pânico, a psicologia quando vira um discurso que privilegia o indivíduo e seus processos mentais (com ares de curinga) como explicação para toda a dinâmica social, são armas poderosas a serviço de toda uma visão do mundo. Afinal, o psicólogo é uma figura legitimada dentre as nossas imagens sociais. Pra sociólogo ninguém dá bola. Agora, pra psicólogo…

Mas os fenômenos que a psicologia estuda são interessantes, e isso torna o seu espírito, a sua visão, indispensáveis: na verdade a sociologia fica pobre sem ela, tanto quanto acho que ela fica pobre sem a sociologia. A sociologia de Bourdieu, por exemplo, passa pelo estudo não apenas do que a cultura faz com o indivíduo, mas também daquilo que o indivíduo faz com a cultura. Fica até meio sem sentido ajudar a reforçar as divisões entre as disciplinas – para parafrasear a frase tantas vezes já parodiada, a psicologia será social… Ou não será nada.

Senti pânico

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Na noite do dia 14 de abril, um domingo, fui dormir enojado: o Pânico na TV, programa da Band, exibiu uma matéria em que um homem tenta pôr as mãos por debaixo da saia da entrevistadora, chamada Nicole Bahls. Fotos da cena saíram na imprensa e movimentos sociais se manifestaram contra o episódio.

Uma coisa deve ficar clara: não há palavra ou conceito fácil para explicar o que houve. Cair na armadilha de descrever o episódio de maneira simplista só leva a uma confusão infrutífera – ora, aquilo obviamente não era um “estupro”, assim como não foi “só” uma “piada de mau gosto”. A definição vem em forma de frase, mas é evidente: ele fez com ela o que tinha vontade, mas o que ela não queria. Uma declaração dada mais tarde complementa a idiotice: fez porque estava autorizado pela roupa dela, ou seja, não importa realmente o que ela quer ou não. O modo como ela se veste a define, autorizando automaticamente quaisquer atos a revelia de sua vontade.

O problema tem a ver com uma cultura machista em que as mulheres são feitas de objeto: uma “coisa” sem um determinado direito (nesse caso, sobre seu corpo). O tal cara ainda diz: não fiz nada que outras pessoas não fariam se tivessem a chance. Mesmo que esse seja o caso, isso não justifica o ato – por parte dele ou dos invisíveis agressores hipotéticos.

O sensacionalismo do programa não encontrou limites. Uma manifestação feminista nos portões da emissora foi forjada – pessoas cujo único discurso era repetir fórmulas vazias e chamar o homem de “safado”. Os apresentadores se vitimizam, fingindo ter recebido ameaças de morte (ou simplesmente exagerando ao pé da letra possíveis, mas improváveis, mensagens de ódio). Afirma que as feministas não queriam que o vídeo fosse transmitido para jogar o público, que com razão gosta da liberdade de expressão, contra elas – feministas nunca exigiriam essa censura ridícula. Em geral, uma manipulação grosseira da opinião pública.

Além de se vitimizar e vilanizar movimentos sociais, o programa justifica a atitude do homem em nome do humor: o contexto do programa tudo justifica, tudo salva. Mas a questão vai muito além desse circo. Não se trata daquele episódio isoladamente: nenhum feminista vai perder seu tempo na Band num domingo à noite pra berrar contra um mero exemplo de machismo. Ele não é causa do problema, é pura manifestação. Exemplo de uma ideologia podre, que infelizmente encontra vazão na prática frequentemente no Brasil.

Para piorar, o programa termina com a opinião de um psicólogo, que faz o que a classe historicamente faz de melhor, isto é, internalizar um problema social e transformá-lo em problema do indivíduo. Segundo essa ótica individualista torta, o agressor é um visionário, que quebra barreiras da arte (ele é um diretor de teatro), como se ninguém nunca tivesse desrespeitado as vontades sexuais de uma mulher antes, jamais. Ele é um provocador, inovador. E se você se ofende com a provocação dele, o problema é seu!

Mas o problema é cultural, social (nosso) e bem real. Esse programa não merece a sua audiência, especialmente ao mostrar que faz qualquer coisa por dinheiro: desacreditar movimentos sociais não é só mesquinho, é ameaçar a nascente consciência democrática do Brasil. Os mais sujos expoentes de um capitalismo podre, hoje em dia, não estão nas grandes multinacionais. Estão na televisão.

Mudando as regras do jogo

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Em uma outra coluna comentei que uma das tarefas mais significativas na formação de pessoas é mostrar a elas que nada se consegue a não ser através da conversa, da luta dentro das regras do jogo.

Ensinar a lutar dentro das regras do jogo é basicamente enredar em cultura: é o modo como aprendemos a ser o que somos, o que é permitido ou reprovável nas relações interpessoais, qual o tamanho e os limites da nossa honra. Essa série de regras não escritas, porém mais pervasivas que água, podem decidir a dinâmica de quem brinca com o quê e quem brinca com quem no jardim de infância, mas acabam influenciando uma gama muito maior de decisões quando tratamos de adultos.

É justamente por lidar com questões sérias – que envolvem poder, vida e morte – que a antropóloga Sherry Ortner chama esses jogos de jogos sérios. Desde o modo como classificamos pessoas – “aquele metido”, “aquela besta”, “aquele nerd” – até os caminhos e ferramentas de que dispomos para alcançar o que queremos fazer, lidamos com a nossa posição dentro da teia de relações de autoridade e influência que é a sociedade. No meio do caminho rumo aos nossos objetivos, reforçamos a estrutura da sociedade, aquela mesma de onde vieram para nós as regras do jogo, ou jogamos contra ela. Ortner continua a tradição sociológica de Bourdieu, de quem já falamos aqui em outra oportunidade. Bourdieu mesmo já comparou a forma como vivemos em sociedade como um grande jogo. Não é o que parece?

Mas há uma diferença: é um jogo em que as próprias regras do jogo estão em jogo.

Esse jogo, na esquina da política com a cultura, do modo como nos organizamos uns em relação aos outros com as coisas que fazemos uns com os outros e para os outros, tem regras que nós até admitimos serem de pouca serventia para nós, mas que continuam valendo. A forma como nós enquanto povo não nos vemos como participantes do poder e o fato de que crítica à política para muitos de nós significa ausência de ação política são dois exemplos.

Pode-se argumentar que as coisas estão mudando; e estão mesmo. O que fazer para participar dessa mudança e incentivá-la? A organização institucional é importante: o que o governo pode fazer é uma pergunta interessante, mas como Montesquieu falava já há muito tempo, não adianta muito criar leis para ajustar comportamentos indesejáveis: o importante é mudar os costumes.

Concordando ou não com o velho francês, de fato me parece sensato dizer que é aplicando novas regras que elas se tornam uma realidade palpável – até porque diferentes regras convivem no mesmo espaço, em diferentes círculos e contextos sociais. E um dos lugares em que devemos nos esforçar (e aqui temos a presença do político tanto quanto do dia a dia cultural) para jogarmos a partir de regras novas é a escola.

Do lugar onde as crianças adquirem boa parte da prática na manipulação das nossas regras sociais é de se esperar que seja um campo de batalha conceitual. E, se você olhar bem, ele é: entender a formação das escolas é um trabalho interessantíssimo, do qual um grande destaque é o trabalho de Foucault. De qualquer forma, para quem serve essa educação que hoje temos? Não precisamos pensar no que dá errado, mas sim no que está, aos nossos olhos – de acordo com as nossas regras – dando certo: o que significa confinar as crianças a esse espaço disciplinado? Treiná-las para a vida, sim, mas que tipo de vida? Que tipo de posição na sociedade elas ocuparão?

Ouvimos hoje rumores de uma reforma educacional que estaria sendo preparada pelo MEC. Horários mais abrangentes, grade disciplinar mais flexível, mas devemos estar atentos para não trocar seis por meia-dúzia se quisermos fazer valer novas regras para um mundo mais justo. Entender o que queremos que a escola seja e incentive – em suma, o que significa a educação – é ajudar a tornar os jogos sérios que as novas gerações jogarão um jogo mais justo.

Separatismo e pensamento

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

A economia é uma ciência tradicional e prestigiosa. Embora a maioria das pessoas se pergunte o que um cientista social faz, a mesma maioria pensa que o trabalho de um economista é certamente muito importante (seja lá o que for que ele faça).

A economia (em especial o ramo chamado “neoclássico”) vem, desde sua criação, ajudando a reforçar uma série de crenças em relação a nossa sociedade que podem não estar certas. No núcleo de suas ideias, ou pelo menos das ideias que o grande público conhece e que são ensinadas em faculdades pelo mundo inteiro, vive a ideia de que o sistema econômico do planeta é organizado, composto por pessoas isoladas (os indivíduos) que buscam apenas seu próprio interesse egoísta, e que isso tudo leva a uma sociedade justa, pujante, saudável e feliz. David Orrell, em seu livro “Economitos” – uma obra que vale a pena ler – vai derrubando esses “mitos” que envolvem nosso ancestral pensamento econômico.

Essa certamente não é a única forma de fazer economia. A produção, circulação e consumo de bens e riqueza são essenciais a toda sociedade, e influenciam todas as relações sociais dentro de uma variedade de grupos. Mas se não se pode desconsiderar a economia, é possível criticá-la na sua forma e na sua função.

Os melhores estudos econômicos são aqueles que levam em conta todo um contexto social e histórico para compreender os fenômenos que busca entender (a questão da riqueza, dos bens, etc). Um bom exemplo é a maneira com a qual Celso Furtado (grande economista brasileiro) aborda a economia. Em um livro sobre desenvolvimento na América Latina (hoje jurássico em “anos acadêmicos”, mas num sentido bom: um verdadeiro clássico), Furtado comenta que é impossível entender a dinâmica econômica da América Latina com as mesmas ferramentas teóricas com as quais se estuda os Estados Unidos ou a Europa. Aqui há todo um contexto diferenciado que deve ser levado em conta.

Se a economia precisa da sociologia – e a pesquisa sociológica precisa levar em conta aquilo que a economia estuda – por que a separação? A sociologia econômica tanto quanto a economia política debruçam-se sobre a miscigenação das disciplinas sem concluí-la: parecem, pelo contrário, ter sido colocadas lá, no limite, para segurar as fronteiras, como guardas aduaneiros.

A separação da economia do resto das ciências sociais têm uma longa história, mas, resumidamente, a economia neoclássica (da qual falávamos ali em cima) estava baseada (ou queria se basear) na matemática e na certeza científica das coisas. O mundo do social é incerto e aberto, indefinido e plural, mas para os economistas o mundo das finanças obedece a leis claras e certas, que não pertencem à esfera do contingente. Essa vontade de constituir uma disciplina isolada veio justamente para que os dois mundos, o “talvez” e o “com certeza”, nunca se misturassem. E é uma divisão muito conveniente, como Orrell demonstra, uma vez que ela reforça mitos muito convenientes sobre a economia. Mitos que, ao serem continuamente tratados como verdade, levam países inteiros a periódicas crises catastróficas.

É um cenário intelectual de difícil mudança, na verdade, não só pelos interesses profissionais envolvidos em toda essa discussão, mas porque estamos acostumados a essa compartimentalização da educação. Aprendemos coisas em partes independentes, separadas em seções que não se misturam. É uma pena, porque assim como a economia e o resto das ciências sociais, todas as formas de conhecer o mundo estão interligadas – e quando fazemos a conexão entre diversos conhecimentos, aprendemos muito mais e ampliamos nossos horizontes. O verdadeiro prazer da descoberta está nesses pequenos momentos de gênio que todos temos, quando de repente a matemática faz sentido na geografia e aprender a dançar nos ajuda a lutar. Essas conexões nos levam ao prazer de saber e aprender. Já não é mais tão estranho perceber como poucos alunos realmente gostam de ambientes escolares.

Os fatores

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Há uma tendência quanto a programas de televisão no estilo “caça-talentos musical”. Esse tipo de programa existe há tempo, mas agora a internet ajuda a amplificar o alcance: o público de programas desse molde tornou-se mundial ao invés de continuar praticamente restrito a uma nacionalidade.

Se seguirmos algumas noções sociológicas de distinção cultural vamos lembrar que (a grosso modo) costumamos construir identidades em torno de fenômenos culturais, incluindo a música (ser “do rock” ou “do pagode”). No entanto, pertencer a um grupo geralmente significa que, em algum nível, a identidade é construída não só a partir de uma positividade (algo que o grupo gosta ou faz) mas a partir de uma negatividade (o que o grupo não é ou não faz). Integrantes de um grupo fortalecem a conexão entre si não só por atos e discursos que afirmem que são iguais, mas que afirmem que eles todos, juntos, são diferentes dos que não estão no grupo. Não basta para alguns roqueiros dizer que gostam de rock: é preciso dizer que pagode é detestável.

O público que assiste a tais programas não parece obedecer a esse padrão. Os “X Factor”s e congêneres não são, à primeira vista, um “produto” cultural que gera esse tipo de divisão, muito menos uma que tenha a ver com questões sociopolíticas (“funk é coisa de pobre”, por exemplo). Quem não gosta, tampouco fala mal: não assiste e, se perguntado, diz não ter o hábito de fazê-lo. E se esse tipo de show não gera grandes reações negativas, do outro lado da cerca também não parece produzir uma identidade positiva: não porque não seja adorado por muitos, mas porque essa adoração não acaba fazendo surgir um grupo de identidade ao redor dele: é fácil encontrar um “grupinho” de “roqueiros” ou de “futeboleiros” em cada canto de cada bairro, mas um grupo centrado ao redor de uma cultura “X-factor”? Mais difícil.

É, contudo, justamente por não causar esse tipo de comoção que os programas desse tipo são populares. Se falamos nele agora há pouco como um “produto”, é porque é exatamente isso que ele é – algo feito por quem tem dinheiro para gerar mais dinheiro. Adorno (de quem já falamos aqui antes) nos diz que a indústria cultural não é nem alta cultura nem cultura popular – mas uma coisa intermediária e sem substância. De certa forma, programas de talentos não têm mesmo uma substância definida: são formatos, cascas nas quais uma série de coisas diferentes são postas. Não é lucrativo que identidades sejam geradas ao redor deles (até certo ponto, é claro; ser esquecido não é bom) porque isso significa se fechar para um público menor. Não tomar lados, ficar em cima do muro, tentar agradar o máximo número de pessoas – essa é a estratégia padrão. O resultado, com a exceção dos ritmos considerados ofensivos demais para o gosto médio da média das classes médias, é um show com um pouco de cada coisa. Como efeito colateral a mensagem que o programa passa é mais do que a tolerância, é estímulo à variedade: é preciso gostar de tudo um pouco, evitando a identificação exagerada por um estilo e excludente de outros. Afinal, quanto mais coisas para se gostar, mais coisas para se vender.

Mas o programa oferece algo a mais: a própria casca que quer ser, o “formato” universal dos programas de calouros, é algo que tem força: a pessoa que passa por todo um processo para estar ali, o que inclui sua história de vida, tem sua “história” apresentada. A história, mostrada de maneira editada e dramática (ainda que, na maioria das vezes, despretensiosa – parte do realismo que se quer vender) tem o papel de criar uma conexão instantânea com o personagem o mais rápido possível: fazer o espectador se identificar com ele, torcer por ele, chorar com ele. É uma fórmula pronta que ataca uma forma de sensibilidade ocidental – nossa forma de sentir e de se relacionar com as coisas da vida – que foi sendo aprimorada por essa indústria cultural ao longo de sua existência no último século e além.

Interessante também é a própria performance que vem após a história: todo programa tem uma série de jurados que são colocados como autoridades no assunto, e aquele que busca a fama deve se submeter ao julgamento deles. O formato ritual da submissão à autoridade gera uma robusta imagem do processo social a ser passada adiante: é preciso ser legitimado pelos detentores do poder e, mais do que poder legítimo, a palavra autoridade nesse caso também quer dizer acesso ao conhecimento: até mesmo o gosto musical transformado em algo compreensível, julgável, e hierarquizado.

A contínua construção cultural das estruturas sociais

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Minha família gosta de futebol. Eu, não muito, mas como no almoço eles assistem ao programa “Jogo Aberto”, da Band, acabo me envolvendo com isso (razão pela qual acabei escrevendo a coluna “Direitos e Prioridades”, inclusive). Quem assiste ao programa sabe que, eles falam diariamente sobre o Corinthians e sua ida ao Japão em razão do mundial de clubes. Na verdade já é bem sabido que se a Band fosse renomeada para “Corinthians TV” não seria grande surpresa, mas mesmo assim: Pseudo-discussões e pseudo-notícias são inventadas, criando motivos imaginários para que a equipe de filmagens e de comentaristas visite o clube todo santo dia, e todo dia a jornada ao Japão seja comentada nos mínimos pormenores.

Isso não tem só a ver com a popularidade do clube. Se prestarmos atenção ao conteúdo do programa veremos que a grande pergunta é: Quem o técnico escolherá para levar ao Japão? Mas afinal, o que tem de tão especial essa “seleção corinthiana”?

Ela é especial porque é um mito. Não no sentido de que não existe, mas no sentido de que é um símbolo. O que se fala o tempo inteiro – todo dia, aliás, repete-se como se o telespectador não tivesse memória – é que no Corinthians existe meritocracia. Só vai para o Japão quem estiver jogando bem. Mais do que jogando bem, jogando melhor do que os outros. Ainda mais do que jogando melhor do que os outros, dando tudo de si, jogando com “raça”, mostrando que vai se sacrificar ao máximo pelo time quando estiver (se ganhar o privilégio de estar) do outro lado do mundo.

Essa é a razão social maior pela qual a Band exibe de novo e de novo e de novo essas matérias com essa mesma história. Porque o Corinthians, sendo o fenômeno popular que é, tem uma capacidade como nenhuma outra coisa atualmente de gerar um “mito maior” que dê legitimidade ao (que faça “ficar bem na foto” o) sistema em que vivemos. Que sistema é esse? A ideia de que a competição entre indivíduos independentes gera progresso e melhoria de vida para todos – a ideia fundante do liberalismo econômico. A ideia pela qual muitas pessoas enxergam a natureza humana (sobre a qual já falamos aqui antes) e pela qual economias inteiras ao redor do mundo são organizadas. Ao falar do Corinthians a Band está mostrando: “Vejam, vejam como o mundo funciona! É assim, minha gente: quando você tem competição, você extrai o melhor que os seres humanos têm a oferecer!”. A forma como essa ideologia é marretada com o martelo corinthiano ajuda a amarrar a fortalecer, na cabeça de todos (mesmo quem não é corinthiano) esse grande esquema de coisas como um esquema natural, ou no mínimo o melhor.

Se isso funciona a nível simbólico, não funciona tão bem no nível prático quando olhamos para a realidade social. A competição traz à baila uma série de problemas, mas numa atmosfera controlada e específica como o esporte eles são escondidos ou realmente minimizados por causa de características próprias. A justiça, por exemplo, é algo que não existe no mundo natural e se faz presente de forma incompleta e imperfeita no mundo social. No mito corinthiano da competição perfeita, no entanto (assim como acontece no mundo da tecnologia, outra frente de ataque daqueles que querem fazer acreditar na competição como motor do mundo), é mais do que sorte: há vários critérios que vão garantir a justiça do processo. Curiosamente, um deles é a confiança no julgamento de um suposto líder supremo, a figura paterna e justa do técnico.

Embora pareça que para a Band ninguém tem memória, na verdade faz o que faz justamente porque temos memória: a repetição é efetiva a nível simbólico justamente porque causa uma sensação de onipresença dessa ideia — o que a torna, pouco a pouco, mais forte. Damos significado às experiências que podem parecer mundanas e específicas, e sem pensar cada vez mais nossa interpretação das coisas é moldada ao que é útil para quem está no poder. E é exatamente por não refletirmos sobre isso que acabamos caindo em armadilhas de pensamento e interpretação, respirando a ideia de que a competição – veja o exemplo do Corinthians, ora! – é sempre uma coisa linda que nos leva ao topo do mundo. Agora, só imaginem o quanto mais não vamos ouvir falar desse sistema de pensamento se o Corinthians ganhar esse mundial.

Uma historieta sobre ciência

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Anthony Giddens é um sociólogo britânico contemporâneo que cunhou a expressão “sistema perito”: o tipo de coisa que, por causa da autoridade adquirida através de especialistas, nós não sabemos bem como funciona, mas acreditamos naquilo mesmo assim.

Certa feita precisei fazer uma operação para retirar os sisos. Fiz um exame que geraria um modelo 3D da minha arcada dentária, e com ele o dentista poderia ver se a extração não teria grandes riscos para mim. O médico me conduziu a uma sala totalmente dedicada a uma única máquina, uma grande roda grossa de plástico, metal e sabe-se lá o que mais. Deitei-me à maca fria, estilo tomografia, e um carrinho robótico começou a girar pela parte interna do círculo, como que fazendo o movimento de um compasso no papel que o ar representava, aquele barulhinho de “cyborg” atiçando com mil raios verdes na névoa seca a minha imaginação brincalhona.

Eu não fazia ideia do que aquela máquina fazia – ou melhor, como fazia o que fazia. Mas confiei; nela e no médico que a operou. Confiei na autoridade de órgãos governamentais que (acreditei e confiei eu) avaliaram a máquina para ver se ela funcionava mesmo, se aquela unidade em particular não estava com defeito, e confiei que ela não era parte de uma conspiração para dominar o mundo e não fritaria meus miolos, nem me transformaria num zumbi, nem controlaria meus pensamentos dali em diante até me transformar em algum tipo de escravo voluntário.

Esses sistemas peritos estão por toda a parte, e as relações sociais que os sustentam são fortes, na maioria das vezes bem consolidadas em nossa tradição de vida. Como Steven Shapin aponta, pouco importa que quem não conheça as minúcias da ciência medicinal reclame que não acredita nela; quando a coisa aperta, a maioria vai aos mesmos médicos e tomam as mesmas pílulas. Socialmente falando, a pessoa acredita.

Um papel que a sociologia exerce (e que o Steven Shapin, citado ali em cima, faz de maneira magistral em minha opinião) é justamente examinar esses sistemas peritos e publicar o resultado dessa examinação para que a sociedade veja quais são essas raízes sociais que sustentam esses sistemas. Esse conhecimento vai, com sorte, gerar um debate para que possamos juntos dirigir a sociedade.

Isso me faz lembrar uma história que ouvi na aula de epistemologia. Diz-se que um estudo foi feito na África, não me lembro exatamente quando, em que os pesquisadores testaram um novo método para evitar que o vírus da AIDS fosse transmitido da mãe grávida para o filho que ainda estava por nascer. O método da época era muito caro, e o novo prometia ser mais barato.

Para quem não está acostumado a procedimentos científicos, em todo experimento é preciso ter um grupo controle, ou seja, um grupo que não está sujeito ao experimento e, ao invés disso, permanece em uma situação padrão. Assim é possível comparar os resultados do novo método, por exemplo, com os do método antigo. Se não houvesse grupo padrão, não haveria como saber se o experimento foi ou não um sucesso; é preciso fazer uma comparação com o método padrão.

No entanto, regras internacionais de conduta ditam que o grupo controle pode ser feito de duas formas: as cobaias desse grupo podem receber o tratamento normal ou o tratamento com placebo (remédio de açúcar que, quimicamente falando, não tem efeito algum – como a homeopatia). O placebo foi escolhido. Como resultado, metade das mães receberam o tratamento novo (que, no fim das contas, se provou eficaz), mas metade recebeu placebo. Na prática, metade dos bebês foram condenados ao vírus HIV quando poderiam, com o financiamento que podia ter sido feito, ter sido poupados disso.

Esse caso ilustra questões éticas, é claro, mas isso não está separado das questões sociais. Não conto a história porque desejo pintar uma imagem ruim do cientista; muito pelo contrário: o faço para demonstrar que a consciência quanto ao mundo que nos rodeia é essencial para que possamos construir um mundo melhor. Fazer entender aquilo que agora não se entende – no caso da sociologia, o emaranhado de relações sociais que o mundo contemporâneo é: eis um objetivo dos, e desafio para os, cientistas sociais.

Direitos e Prioridades

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Faz um tempo ouvi que torcedores de um clube de futebol fizeram um protesto contra o time, que fazia uma campanha ruim na série A do Campeonato Brasileiro (o “Brasileirão”).

O que significa protestar? É preciso estabelecer que protestos são situações de exceção. Uma das tarefas mais significativas na formação de pessoas dentro de nossa sociedade é mostrar a elas que nada se consegue a não ser através da conversa, da luta dentro das regras do jogo: o choro é, depois de uma certa idade, inútil (uma situação que beira a chantagem, considerada imoral) e a briga é a imposição da vontade pela força – e só o Estado, como dizia Weber, tem o direito de usar a força. Nesse sentido, as coisas que um grupo social quer têm que ser conquistadas através de conversas e negociações; têm que ser construídas pouco a pouco, preparando as estruturas da sociedade para que uma nova situação seja alcançada.

Mas o que faz com que as pessoas queiram coisas? Se o que se quer é algo supérfluo, o resultado pode envolver uma resposta negativa. Florianópolis queria ser uma das sedes da copa do mundo no Brasil, mas havia várias cidades na disputa, portanto a cidade precisava mostrar razões para que ela fosse preferida. No final, não mostrou: outras razões foram melhores. Vencidos pelas propostas das outras cidades, ninguém se sentiu injustiçado por essa decisão. Não se pode ter tudo na vida.

No entanto, a modificação dos discursos dentro da sociedade (sério objeto de estudo dos cientistas sociais) pode levar uma população a crer que tem direito a algo. O direito ao décimo-terceiro salário, por exemplo, nem sempre foi tido como um direito: para que as pessoas pensassem nele como um dos direitos mais óbvios de qualquer trabalhador duradouro que se preze, foi preciso muita propaganda política junto à população. E quando um grupo social encara algo como direito, os protestos e as ações extremas (de certa forma, a força) podem entrar em jogo se as pessoas entendem que um direito foi violado. Quando a tradicional propriedade privada foi ameaçada nos anos 60, a classe alta brasileira deu um golpe militar que durou décadas.

Um protesto, portanto, é essa indignação materializada, feita por quem, via de regra, não tem voz. A indignação se justifica ideologicamente pelo fato de que alguma situação está, do ponto de vista dos indignados, ferindo um direito.

O que poderia, portanto, significar um protesto contra a má campanha de um time de futebol? Significa que o clube temria a obrigação de jogar bem. Ver o time ir bem seria um direito do torcedor. E, ora, isso é algo com o qual não posso concordar. Um campeonato é uma competição. As regras dizem que quatro times necessariamente cairão para a série B na próxima temporada. Todos os times tentam, mas nem todos conseguem jogar bem a ponto de permanecer na série A. Assim como a situação de Florianópolis na copa do mundo: nem todos podem ser felizes no final de uma competição. No que se baseia essa obrigação? Em algum contrato? Algum time está por acaso proibido de perder um jogo?

A pura observação do fenômeno traz informações importantíssimas para o cientista social. Em primeiro lugar, o protesto geralmente acontece – ou ganha atenção – com clubes grandes. Ou seja, é inadmissível para muitos que o Flamengo ou o Palmeiras sejam rebaixados – é uma “vergonha”. E isto, veja, não está só na boca do povo, mas no discurso das grandes redes de televisão: são dezenas de matérias todas as semanas sobre como o Palmeiras está lidando com a zona de rebaixamento. Mas onde está, na imprensa de alcance nacional, a cobertura sobre o Atlético Goianiense? Cair não é também uma “vergonha”, uma situação complicada e embaraçosa para este clube? E, mais importante, por que não se dá a proeminência (social e midiática) dispensada para protestos de futebol para protestos sociais sobre questões mais importantes na sociedade, como saúde e educação? Educação e saúde são, afinal de contas, direitos do brasileiro.

As prioridades e aquilo que as pessoas consideram como direitos não surgem espontaneamente: os valores que vêm de casa vão se misturando aos encontrados no espaço público e, em última instância, os grandes veículos de comunicação influenciam e muito não só o que as pessoas acham que são direitos, mas também como devem lutar por eles.

Partido sociológico alemão

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Marx e Weber foram importantes sociólogos alemães. Marx não pretendeu criar uma nova disciplina universitária ou coisa parecida. Ao contrário de Weber e Durkheim, que sabiam bem o que queriam (uma nova ciência humana), Marx tinha outros propósitos para as ideias que ele pensava como sendo filosóficas e econômicas: agir politicamente sobre o mundo.

Como venho tentando dizer em muitos dos artigos, a ação social exige (ou no mínimo se beneficia de) conhecimento. Marx estava preocupado com a superação do capitalismo. Weber estava pensando no modo correto de abraçá-lo para maximizar a glória do Império Alemão da época. Os dois viviam em uma realidade confusa; cheia de ideias, opiniões e eventos diferentes acontecendo ao mesmo tempo. Procuraram encontrar ordem a partir das informações que essa bagunça fornecia. Propuseram atitudes para alcançar aquilo que cada um achou melhor. Para um, o fim do capitalismo. Para outro, o avanço do capitalismo.

Para muitos Marx é marxismo, marxismo é comunismo, e portanto Marx deve ser um idiota. Não é bem assim. Existe a parte crítica da obra de Marx, em que ele identificou estruturas básicas do capitalismo e seu desenvolvimento histórico. Qualquer um que queira entender o modo como nós vivemos precisa estudar o que ele pensou. Mas existe também a parte propositiva, em que ele diz o que ele acha que é preciso fazer para sair da situação que ele vê como ruim. Mas assim como não é preciso concordar com todas as partes da crítica, tampouco é preciso concordar com as soluções propostas por Marx para ver o mérito da crítica. Os social-democratas, por exemplo (inspiração teórica do PSDB, que a maioria deve conhecer) concordam em grande parte com a leitura que Marx faz do capitalismo, mas não concordam com as soluções que ele apresentou para melhorar as coisas.

Weber quis entender de onde vem o poder do Estado, ou seja, por que as pessoas aceitam obedecer ao Estado. Quando o Estado é aceito, ele é chamado de legítimo, e Weber queria entender de onde vem essa legitimidade. Não era mais como antes, tempo em que o Estado era legítimo porque todos eram ensinados que as coisas “sempre foram assim”. Numa época de racionalização das práticas, a legitimidade do governo passa a vir de sua eficiência. O governo é obedecido porque é bom e útil fazer isso.

Para que uma sociedade funcione dentro desse esquema de coisas, os governos precisam ser competentes: a máquina administrativa tem que funcionar bem, e o modo mais racional de se controlar esta máquina, de acordo com a resposta que a própria modernidade trouxe, é a democracia parlamentar baseada em partidos. Weber era elitista. Isso, para a sociologia, não quer dizer esnobe: Weber acreditava que em toda sociedade humana há aqueles que naturalmente se destacam dos outros em quanto ao carisma. A competição entre essas pessoas por apoio e votos garantiria uma máquina eficiente, que levaria a nação a um futuro bom.

Para os problemas e valores de Weber, ele via uma solução (que envolvia os partidos, hoje a base de praticamente todos os países de tradição ocidental). Marx, com seus problemas e valores, via outra. Por exemplo: a eficiência do Estado era para quem, afinal? O que o Estado faz é no interesse da maioria da população ou da parte rica da população? Essas são perguntas que um sociólogo pode se propor a estudar. Para Marx (a grosso modo) não adianta ser eficiente se a eficiência não é justa – e o Estado jamais poderia ser justo através do capitalismo.

Marx também era elitista de certo modo, embora essas tendências apareçam com mais força (e ao mesmo tempo mais eufemismo) em pensadores posteriores como Gramsci e Lênin. Para Gramsci, a sociedade é complexa demais para esperar que uma “revolução” transforme o capitalismo em socialismo. Para ele era preciso construir o socialismo pouco a pouco, através de partidos comunistas (dentro das quais haveria, é claro, elites), controlando o sistema a favor da justiça social.

Com Marx e Weber podemos entender como o estudo da sociedade nos influencia na hora de fazer política – e não é preciso se envolver com partidos para fazer política. Os anarquistas, por exemplo, não confiam nesse esquema de coisas, já que para eles a própria existência do Estado faz a organização da sociedade ser muito pior do que precisa ser. Nesse sentido, se recusar a votar ou votar nulo não deixa de ser, a despeito do que o TSE quer levar você a crer, um ato bastante político.

Línguas e realidades

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

No meu retorno ao curso de ciências sociais depois da greve de professores e servidores da UFSC, recebo como texto para leitura uma entrevista com Steven Shapin, professor de história da ciência na Universidade de Harvard. Ele é um historiador e sociólogo renomado, que deu uma entrevista lúcida e intrigante, mas que, como a maioria das entrevistas, não oferece uma explicação completa de uma ideia (geralmente apenas uma extensão para quem já conhece as ideias).

Interessado, busquei saber mais. Descobri que nenhuma de suas obras está disponível em português, e só um exemplar no original em inglês (de apenas um de seus cinco ou seis trabalhos já publicados) pode ser encontrado na Biblioteca Universitária da UFSC. Não encontrei nenhum livro dele que pudesse ser comprado como e-book (ou sequer baixado!) pela internet.

Em suma, se eu quiser saber mais sobre ele, eu tenho que falar inglês.

Se isso parece uma anedota comercial para o fato de que sou professor de inglês, não estreite os olhos ainda; isso é antes uma reflexão maior sobre as línguas e as realidades que nos cercam – realidades que as línguas ajudam a construir.

Um dos maiores desafios de um professor de línguas é fazer com que os estudantes – especialmente os iniciantes – “pensem” segundo a lógica da língua nova ao invés de traduzir tudo da língua materna. Isso não é apenas uma questão de entendimento, para que o aluno possa participar de uma discussão com o mesmo nível de inteligibilidade e expressão que os outros; aprender uma outra língua é aprender a pensar nela e incorporar sua lógica aos nossos esquemas de pensamento. Qualquer outra coisa é trabalhar com uma língua com diferentes níveis de habilidade, mas não de fato dominá-la como dominamos uma atividade que nos é completamente familiar e (palavra perigosa para um cientista social) natural.

O inglês, por exemplo, possui um tempo verbal estranho ao português, o “present perfect” – e a forma diferente de construir tempos verbais têm um impacto na forma como estruturamos nosso pensamento. Da mesma forma, se muitos exaltam a beleza exclusiva da palavra “saudade” em português, eles ignoram que a palavra “miss” é igualmente poética e versátil, sendo “miss the point” uma expressão difícil de traduzir para a língua de Camões.

Dizem alguns pensadores que toda a filosofia clássica grega teria sido impossível sem a existência de um tempo verbal grego que reflete o mundo ideal de Platão. De forma semelhante, alguns linguistas dizem que o inglês e o francês são línguas pobres na hora de traduzir obras originais do alemão (como as obras de Nietzsche e Heidegger, por exemplo).

A questão em jogo é que, não são só as oportunidades pessoais, profissionais e acadêmicas que são ampliadas ao se aprender uma língua; aprendemos um novo jeito de pensar e entender o mundo que nos cerca. Há quem diga que se você não conhece uma palavra para um sentimento, não é capaz de senti-lo. Será que isso é verdade? Será que quem não conhece o conceito de um sentimento não o sente, já que ele não pode (num primeiro momento) ser encaixado na maneira como a pessoa vê o mundo? Ou sentimos todos as mesmas coisas, mas com frequências diferentes?

É interessante notar que, mesmo que não haja uma palavra para um sentimento, não significa que ela não possa ser aprendida de outra língua ou mesmo inventada. A invenção das palavras e as revoluções na gramática, fonética e ortografia de uma língua são corriqueiras na história da humanidade, e vêm apenas demonstrar uma teoria sociológica que já discutimos (em parte) aqui antes: a de Bourdieu e seu habitus. A língua pode estruturar nosso pensamento, mas para que haja língua é preciso haver falantes. É no uso contínuo da língua que nós a estruturamos, reformando as paredes da labiríntica mansão que nossas mentes, individual e socialmente falando, habitarão por toda a nossa vida.

Ainda assim, para mudar a cabeça de ares e bairros não há nada melhor que aprender várias novas línguas!