Jovens não odeiam seus corpos porque são fracos, mas porque isso é uma exigência do capitalismo

Da gordura bucal à celulite, qualquer coisa naturalmente humana que possa ser transformada num problema cria um mercado por soluções.

por Zoe Williams

Originalmente publicado em inglês no The Guardian em 8 de janeiro de 2023.

Quando saiu semana passada uma pesquisa sobre os problemas que jovens têm com seus corpos, as redes sociais foram o foco: o que leva 75% de crianças de 12 anos a “detestarem seus corpos” e se sentirem “envergonhadas com suas aparências”? Por que isso aumenta para insanos 80% entre jovens de 18 anos? É o Instagram ou o TikTok que está acabando com a saúde mental deles?

Há quem diga que outras coisas estão nos empurrando para o abismo, e as redes sociais são só a “gravidade”. O aumento em crises psicológicas agudas – muito maior em meninas que em meninos – se observa num estudo que compara 2021 com 2007: pensamentos suicidas em uma a cada 10 meninas de 16 anos; um quarto delas se automutila. Lockdowns e covid longa foram levantados como possíveis fatores. Entre jovens não-bináries, as taxas são ainda piores: 61% se automutilam e 35% já tentaram suicídio. A causa mais imediata disso pode ser a incessante campanha da direita e de parte da mídia contra elus.

Certamente poderíamos dizer que redes sociais e todos esses problemas em geral estão agindo como aceleradores, e também que passar da infância à idade adulta nunca foi fácil. Mas não chegaremos à raiz do nojo específico que meninas sentem por si mesmas até encararmos as condições nas quais elas vivem. Essas não foram inventadas pelo Mark Zuckerberg, e culpar um patriarcado atemporal é muito genérico.

A mensagem mais forte passada para meninas jovens – por propagandas, tias, professores, pais, o rosto culturalmente representado de seus pares – é um bando de clichês sobre sentir-se bem com seu corpo: cada um é de um jeito, ame o seu corpo, ame a si mesma, não fique neurótica mas não coma demais também. Encontramos uma versão destilada disso na campanha Retratos da Real Beleza, veiculada pela Dove no Brasil no começo dos anos 2010, que visava “incentivar meninas e jovens mulheres a ganharem confiança” – um objetivo nobre que até gente de direita por aí abraçava. Esse é o tom da conversa há tanto tempo que não consigo me lembrar de outra coisa, embora ele tenha mudado de forma através dos tempos em termos de “comidas heroicas” (fibras nos anos 80, proteínas nos 90, sementes e cascas nos anos 2000, etc.) e palavras da moda para figuras corporais (cheinha, com muitas curvas, fortona): veja seu corpo como um veículo para o seu próprio bem-estar! Não há nada de intrinsecamente errado com nada disso, exceto que isso é tudo mentira.

É impossível exagerar a quantidade de aprovação social que você recebe ao ser magra. As pessoas sentem uma vontade enorme de fazer comentários sobre isso, o tempo inteiro, e todos esses comentários são positivos, mesmo aqueles que parecem ser negativos (me lembra aquela piada de que o maior elogio é “você está magra demais!”). Aliás, nem preciso dizer – as pessoas te convidam para as coisas do nada, te levam mais a sério, seus problemas têm mais dignidade. E existe uma desaprovação, tão intensa quanto, sobre ser gorda. A única diferença é que as pessoas não dizem isso em voz alta. Mas vai até parecer que dizem, porque você vai sentir os efeitos disso: as pessoas não te chamam pra fazer coisas aleatórias, você não é contratada, seus problemas não são levados a sério. De fato, numa lógica circular, a mensagem costuma ser a de que se você não fosse tão gorda, não teria esses problemas pra começo de conversa, como se a obesidade significasse que não há mais nenhum problema legítimo na sua vida a não ser o seu peso.

A obesidade é tratada como se fosse algo muito simples, uma falta de controle perto de comida. Na verdade, ela tem componentes psicológicos e emocionais que são complexos e esmagadores e que, aliás, têm fascinado priscoanalistas e feministas por anos. Esse trabalho simplesmente nunca é financiado ou divulgado porque não se encaixa na narrativa de que excesso de peso é o lado visível de uma série de traços de personalidade, a maioria negativa (preguiça, ignorância) ou indicativa de frivolidade.

Então você tem esse tripé: a mensagem explícita é “não tente ser magra, tente ser saudável”; a mensagem implícita é “ser magra é até melhor que ser bonita; magreza é beleza, feminilidade e disciplina juntas”; e o gritinho do nosso cérebro primitivo coletivo é: “ser gorda é nojento e indigno”. Dizer para as meninas que elas não devem se preocupar com seus corpos é como dizer para elas para não se preocupar se vão gostar delas.

Eu pensei sobre isso por muitos anos por conta de mim mesma e agora por causa das minhas adolescentes, e eu não acho que atacar o nosso “ódio próprio” é uma questão de resiliência individual ou crença. É uma questão de capitalismo. Num sentido bem direto, basta criar pânico sobre celulite pra vender meia-calça. Você está se sentindo ansiosa sobre as suas bochechas gordinhas? Dê-lhe bichectomia. Qualquer coisa naturalmente humana que possa ser transformada num problema cria um mercado por soluções. Mais fundamentalmente, mercados de massa dependem de homogeneidade, da fórmula fordista, qualquer-tipo-de-corpo-desde-que-magro. Não tem como monetizar desejo a não ser que o desejo de todo mundo seja o mesmo, então você precisa de um ideal físico bem específico. A moda, com sua busca pelo novo, experimenta um pouco de vez em quando – daqui a pouco estaremos falando de implantes glúteos – mas ela sempre devolve o padrão para “magro”. E o problema de fundo continua o mesmo: é humanamente impossível termos corpos iguais.

A razão para meninas sofrerem mais que meninos (embora esses nem de longe estejam imunes) você provavelmente vai encontrar na análise feminista dos anos 80: o mundo gosta mais das mulheres quando elas ocupam menos espaço. É um erro constante caracterizar garotas e jovens mulheres como “vulneráveis”. Elas não enfrentam questões com seus corpos e de saúde mental porque são frágeis ou fracas. Elas dão uma resposta absolutamente racional para um mundo que as bombardeia histérica e incansavelmente com demandas contraditórias. Eu não tenho resposta melhor pra tudo isso que “anarcafeminismo”.

Veja a resposta / o complemento a este texto que escrevi junto com Ruth Kinna (original em inglês)

A review of Shaun Day-Woods and Rick Herdman’s “Dancing & Digging”

I am currently finishing a thesis on the anarchist concept of freedom, so when I came across a book called Dancing & Digging: Proverbs on Freedom & Nature, knowing it was written by someone in the anarchist community broadly conceived, I just had to take a look.

Dancing is a landscape oriented pocket book full of short phrases that encapsulate wisdom regarding, as the author explains, “freedom, nature, surprise, belonging, habitat, anarchy, rebellion, community”, and more. Written by Shaun Day-Woods and also featuring really beautiful woodcuts by Rick Herdman, it was published by Night Forest Press in 2021.

Shape and method

There is very little prose in it; the vast majority of pages are dedicated to housing one or two proverbs each. But the little explanation readers are given is quite insightful. We get a nice definition of proverbs as “the wit of one and the wisdom of many”, and then see them described as phrases that “allow for nuance, layered meanings, humour and irony”, which makes them “ideal to muse over or meditate on”. It is explained that these sentences are “based on [the author’s] lifetime of observations and study as well as on conversations had with friends and neighbours”.

The amount of preface vs. the pages dedicated to proverbs.

However, it’s unclear whether the book’s “chapters” – such as “These I learned along the way” and “These are the words of my ancestors” – refer literally to the origin of the sayings, since one is more vague (“These came from the wind”) and none of the parts seem to have a particular “personality”. It feels like any proverb could fit anywhere in the book. In any case, most proverbs (in general) have “an untraceable progeny”, and the author writes that although he “might be associated with these for now, the hope is that over time a few will become part of an anonymous radical-folk philosophy”.

Readers are given a recommendation on how to use the book. Basically, there’s no particular order to it (the pages aren’t even numbered) and people shouldn’t binge it. This leads me to a disclaimer about how used it. I’d love to have taken the leisurely and random approach suggested, but I faced two issues. First, I wanted to be able to cite some proverbs in the thesis. Secondly, I would soon lose access to the book (I bought it with an allowance from my scholarship that requires it to be turned over to the university after I’m done with the write-up). The solution I found was to read two pages (2 to 5 proverbs) every one or two days, sequentially, writing the page number as I counted it on a piece of paper that doubled as a bookmark. Even though I’ll admit this felt a little mechanical, quite unlike the magical promise the book represents, I’m glad I made sure I could read all of it before I had to give it up and that I could cite it properly when needed.

The book is well typeset, with its design perfectly in tune with its content. The format is unusual, and so it immediately sparks curiosity. I wished there were more woodcuts, cause they were just marvelous. There are blank pages at the end, as readers are encouraged to write their own proverbs and share them with the authors, which I thought was a lovely touch. The preface also suggests games to play with the sentences.

On cities

What about the proverbs themselves? I thought at least about a third of them were really good, and for me (as a person even more than as a researcher) they made the book quite worth it. But there were a few things about the rest that irked me in varying degrees.

What first jumps out is a deep hatred for urban landscapes. “Living in a city is living in a dead habitat”; “The city owns the individual”; “Cities arose from negative and harmful forces”; “Hyper-alienation was born in the city”; “Cities are cemeteries” (… because “the wild” is not?), etc. It’s just so relentless that all nuance is lost. I mean, maybe this last one has “layers” – cemeteries are not necessarily bad, right? Well, after reading two dozen variations of “cities are bad”, I doubt it’s not an attack.

Woodcuts accompany chapter divisions.

Granted, capitalism does shape cities into hellscapes, and so this denunciation is valid. But aren’t proverbs supposed to go beyond current facts to reach for deeper truths? I think there is something charming and genuinely alluring about cities as large gatherings of networked people. What I mean is that it’s legitimate for people to want to “conurbate”, even though I wish we did it in more egalitarian and diverse ways. Cities can surely become better environments overall, also; Kropotkin’s and Reclus’s always struck me as powerful visions for cities.

But criticism here is absolute. “Cities require obedience to authority” – no, no they don’t. They don’t! There’s something about being close to a lot of people that energises us with the prospect of chance encounters, transformations, alternatives, complex collaborations… Something warm and exciting that people should not have to choose over and against “forests”, but neither give up for the sake of those. So even though I can totally see what these proverbs are getting at, the blank condemnation of “the city” as an archetype falls flat on me, and I’m sure it also will on many others.

Shouldn’t I have expected this from a book about nature? Definitely not. I thought it would challenge any rigid boundaries between humans and nature, as anarchists have almost universally done. In fact, a good proverb from the book goes like this: “The fewer the boundaries, the closer to truth”. It could push beyond other dichotomies too, such as life and death. A sentence like “Cities are cemeteries”, by itself, could certainly be a reflection of this last sort – which the book actually does well with other sayings, such as one of my favourites: “You aren’t alive if you aren’t being eaten”. There’s also “After death we decay and become soil nutrients, a final reciprocity with the earth”. And it’s not like the human-nature divide is not challenged either; one of the opening proverbs is “All of nature is inside you”. That, I like. But nuance goes out the window the second cities are mentioned.

I just think we as humans are part of nature and hence everything we do, including cities, is as natural as everything else around us. It might not be good for us, what we’re currently doing with them, but then again nature is about reality itself, encompassing everything, good and bad alike. Maybe I’m thinking about nature, the concept, while the authors just meant it as “trees and rivers and stuff”. It would be a little disappointing, but understandable. Come to think of it, there’s not a lot here about farms… Perhaps they are talking about “wilderness” more specifically.

What does a proverb sound like?

In any case, as the idea of “timelessness” was behind my negative reaction to this city-shaming, I started to ponder on what made a good proverb; perhaps other expectations I had about them could explain what made me dislike other sayings in the book.

For me, proverbs require a “turn-of-phraseness” that includes a certain… pattern? Rhythm? They shouldn’t be too short; “Kill to live” is more like a motto or a slogan. And they definitely should not be very long. The one about “soil nutrients” above could lose the bit after the comma, or collapse it into the first part somehow. Then there’s this: “All around us are invisible veins of existence, streams of life. We need only cup our hands and dip into them to retrieve music, ideas, insights, power”. I’m sorry: this is either a poem, a mini-lecture, or a tweet, but not a proverb.

It also struck me as odd that some sentences were in the imperative mood. What is up with that? Take “Kill to live”, mentioned above. Why not “Everything that lives must kill”, or “To live one must kill”? I don’t know, maybe it’s a Western prejudice that “wisdom” has to do with declarations about reality. But formulas like “X is Y”, “X is not Y, but Z”, “When A, then B”, or “Not every W is C” just seem to fit much more comfortably in that proverb outfit. The imperative mood is even acceptable if it’s a little more complicated; something like a negative conditional (“Don’t X if Y”). Day-Woods is quite clear in the preface that he seeks a more “practical” wisdom, so maybe these instruction-like sayings are coherent in that sense. Regardless; when I read “Become a child” or “Deify your prey”… They just don’t feel like proverbs to me.

What should a proverb do?

Aside from phrasing patterns, there is also the content, and here I had two separate issues: “directness” and the use of “big words”.

I think proverbs stick when they’re not easy. They put you off a little, puzzle you; they are not obvious, even when they’re simple. This involves, for example, playing with angles (“A society with prisons is a prison”), presenting apparent paradoxes (“The more you give the more you have”), or using metaphors (“Don’t turn down the deer unless you have a salmon” – a negative conditional imperative, by the way!).

Some proverbs in the book lacked this; glaringly at times. Take, for example, the classic “An empty mind is the devil’s workshop” (not in the book). The authors seem to disagree, for they’ve given us “An empty mind heals”. Notice the difference? The first one doesn’t go “An empty mind is bad for you”, or “An empty mind harms”. It gives you a mental image to process – a demon cutting plywood. Why not “An empty mind is”… “a hospital”? Maybe these are bad because they are part of the city or something. Fine – “a bandage”? Too simple? “Aloe vera” – medicinal plant, can be found everywhere… Weird sounding? How about this one: “An empty mind is a sage” – a word for both a wise person and a medicinal plant! Another one: “For a broken bone, an empty mind”. It gives pause; surely you want to do something more with the bone to heal it. But while it incorporates the suggestion that empty minds heal, it also says something about cooling down after an aggression or an accident, instead of seeking revenge or feeling guilty.

What proverbs look like on paper.

This is unfortunately a very common problem in this book. “Cities arose from negative and harmful forces”. This is a mini-lecture too, despite its size. “A society with prisons has no greatness” – I much prefer the one above, about it being a prison itself; this one doesn’t leave anything to imagination. It just states what it means! “Music connects hearts”. Yes it does. “Lack of courage dulls life”. Can’t argue with that. “Play is superior to work”. Of course it is!

I mean, they’re not wrong. Maybe I’m not the one who needs to hear them; I’m not a calvinist. It’s just that it doesn’t give the reader the joy and wonder of discovering the meaning through toying around with the words. Or chewing it over time because it’s not clear what it means until you stumble upon an experience that opens it up for you and you finally get it. Critical reflection doesn’t go very far because there’s nowhere to go. “Ah, but you see, one must work to be able to live to able to play, how about that? Gotcha“. But if play is the reward we’re after, it’s still superior. Straightforwardness leads to pedestrian discussions.

I think the directly political proverbs suffer slightly more from this than others. “Often it is most efficient to make your resistance indirect”. “Understand the difference between attack and defence, or lose”. “Do not let anyone get political power”. “The statist is never on the people’s side”. Are these proverbs or guidelines in a manual for guerrilla warriors? I mean, proverbs can induce us to become a “liberation army” (as one saying goes), and this is a radical book so they really should. But I think they are more effective in this regard if they do so as proverbs; with subtlety, without broadcasting what they are so that they can be planted like seeds on minds behind conservative gates. Funnily enough, I like “Secession is smarter than civil war”, because the macropolitical implications are less interesting than the general principle, which can be applied in many other circumstances. On the other hand, “The cat is patient, but to live must eventually pounce” (right above the “attack and defence” one, by the way) is a good example of wrapping these messages in little disguises. “The currency of banks is the sorrow of exploited humans and the cry of plundered nature”. Why not “Coins are made of tears”? The one in the previous page is more like this: “Our wallets are filled with suffering”.

Let me return to “Play is superior to work”. Why not this: “It’s better to play with a computer than to make one”. Not so fast – there are people who enjoy building computers. This is playful for them! But maybe this refers to the terrible conditions in which the chips and parts themselves are made, or to child slaves in mines and stuff – so considering this, is it good to play with computers at all? We’d still be comparing “play” to “work”, but their complex intertwinement can be teased from the imagery employed. How about this: “I’d rather seesaw than saw”. There is the seesaw (to play with) versus saw, the verb related to using the tool (which can be used to build a seesaw), but there’s also the verb seesaw (as in oscillate, have mood swings) compared to using the tool not for work but for violence. There’s even the revolutionary point, that I don’t think any of these transmit, that we shouldn’t hate “useful activity” itself but make it playful and artistic; we should eliminate drudgery in the “work” needed for everyone’s nourishment and satisfaction.

There are many exceptions here. Indeed there ought to be, since “X + relational verb + Y” is a good shape for proverbs – wouldn’t all of these fall under this criticism? Not really. Take one of my favourites from the book: “Beauty is found, not created”. This is wonderful, because you really resist it at first. Doesn’t it seem odd? Of course it’s created, artists do it all the time! But what are they doing, really? And then you get to thinking… Then you apply it to aesthetic judgments of nature (including people)… Then you return to artists’ processes… Then you think about music – the notes and chords are all there, nothing new is being created; you’re just finding out which go well together. Then you go back to people: are there really ugly people? Or are you just not looking at them with the perspective needed to find the beauty that’s in everyone?

To be fair, “An empty mind heals” can also be resisted (maybe because of the hold the “devil’s workshop” paradigm has on people). I understand that what each proverb in the book has to give depends entirely on the receiving end. Maybe this is absolutely mind-blowing for non-anarchists. But unlike the one about beauty, there’s not a lot to explore about the empty mind’s healing powers. You either accept that as a truth or you deny it. The same goes for “The statist is never on the people’s side”. What about literal populists? Wouldn’t many knee-jerk reject this without a second thought? There’s nothing in the sentence itself that gives you something to work with to help reflect on the issue. There’s no journey. Proverbs should pack a punch and reveal more stuff inside when unpacked. They can be simple, even straighforward, but shouldn’t be a piece of cake nor fall on our ears like a tautology.

Who is a proverb for?

A second problem is the use of big words. Compare, for example, “You aren’t alive if you aren’t being eaten” with “After death we decay and become soil nutrients, a final reciprocity with the earth”. The second one is not only unwieldy, it’s also a bit… Technical? “Decay” has a haunting beauty to it, at least, but “nutrients” and “reciprocity” don’t match its poetic stance. The first, in contrast, uses a basic activity (eating) to explore the hefty concept (being alive), and it makes for a delightful sentence.

The worst offenders here are technical words from the social sciences. “Putting others into a category box is oppression”; “Political power opposes self-creation”. Come on – this could be plucked straight from a text by Foucault, if only he hadn’t been born in France. “Society” is a frequent notion in the book, but what is “a society”? I just don’t believe it’s a useful word for proverbs. I don’t even understand whether the authors think it’s good or bad, since we’re also given phrases like “Societies emerge only when people have lost their connection to nature” and “A group of friends is an intimate, organic circle, not a society”.

I return to timelessness as a criterium. Although there are some modern phenomena discussed that are worth including in sayings, as we can more readily understand them (did I not suggest “computers” above?), there’s something fascinating about reading a proverb about “a village”, because you can extrapolate it to mean something about any “large group” (including cities). On the other hand, modern stuff (prisons, schools) work wonderfully here as symbols for notions that would have otherwise felt like big words – domination, indoctrination, etc.

In the end, I do have to admit timelessness is a little dumb when we’re talking about human affairs, and I came to realise I’m being cranky at this point. There aren’t many more examples of this use of big words, anyway. I guess I initially thought that proverbs should be easily digestible, in terms of the vocabulary used, because if you have to go to the dictionary to understand it, you probably won’t pass it around – you’d be afraid of sounding awfully pedantic. Plus they perform a sort of teaching function, so kids, for instance, should be able to understand them. But then again, it’s important for us to be confused in more than a poetic way, and proverbs could teach people new words, too. There’s nothing wrong with that.

Amidst the recognition that nothing that I’ve written here is a fair appraisal of the book, for every reader will react differently to it, I wish to mount one last defence of my thought process. I guess it all boils down to something like the ability to picture someone saying out loud: “Well, you know what they say! <insert proverb here>”. I swear to you: I cannot imagine someone non-ironically saying “As my grandparents used to say, let ghosts and dogs touch your heart”. I just can’t. It’s not gonna happen. But the criteria above are not absolute. “There is a saying in my family that goes like this: be the first on the dance floor at least once in your life”… Yep. This works.

Let this book touch your heart

In the end, I don’t want to give the impression that these issues are overbearing. In fact – and this is the reason for the disclaimer above – I wonder if I would have even thought about all of this had I not combed down the book’s content at a regular pace. I think engaging so systematically with it made me critical because I liked it; I recognised greatness in the overall idea but thought the execution could be more fine tuned.

There’s a lot to like here; sayings I’ll cherish forever and that I hope I can incorporate into my life. In addition to the ones I already mentioned, here are a few others I really liked: “Don’t die more than once”. “Don’t hide in a maple tree. Autumn always comes”. “Music is the easiest friend one could ever have”. “Enemies can still be our teachers”. “Secure fighters choose their tactic, the weak have it imposed on them”. “The one who calls their opinions theories has colleagues but no friends”. “Facts settle arguments, but they do not solve problems”. “Lack of free time is the greatest poverty”. “Everyone should know what it is to follow, to lead and to walk alone”. “Prisons don’t prevent crime, hospitals don’t prevent illness, schools don’t prevent ignorance”. “Don’t confuse success in adapting to confinement with wisdom”.

Regardless of the end result, this is a very nice initiative that, come to think of it, couldn’t have been better, simply because even if proverbs are born as “the wit of one”, their edges are roughed out and their references are consolidated only by the “wisdom of many”. I didn’t do a better job myself. In the “Proverbs by you” blank pages at the end of the of book, I wrote three proverbs: “Conflict requires immediate attention, but only time can bring true resolution”. “To know oneself is also to make oneself”. “The antidote to negativity is not positivity, but warmth” (I stole this one from Facebook). Not quite masterful, eh? I like them because they speak to me, and they took shape as I battled writing the thesis and seeing a shrink (for the first time in my life). But they could have been better, too.

My attempt at proverbing.

In the preface, Day-Woods admits that some of the proverbs in the collection “might already exist, are derivative […], won’t pass the test of time or are idiosyncratic[…]”. He goes further: “some will be misunderstood, some will be challenged or be scoffed at for various weaknesses”. I have done all of these things in this review, I guess. I do think some of them could be cut out (the number of proverbs was based “on the number of intersections of the Go board” – that might explain why some feel like filler), and a lot could be improved. But this was never up to Day-Woods, was it?

Just today I was reading a book of texts published in the early 20th-century Brazilian anarchist press by Isabel Cerrutti (1886-1970). She mentions going to a lecture and hearing Maria Lacerda de Moura repeat something that goes (translated) a little like this: “Peace among us, war against those who exploit men!”. Funny – I recognise that from protest chants, but it’s a little different; “Peace among us, war against the lords”. So the version that reached my generation is a little simpler, and thus a little more elegant. And it’s probable that de Moura didn’t create it in the first place either (edit: yep – apparently she did not).

It was never up to Day-Woods because it’s not really an individual process. It’s a collective, never-ending attempt to condense radical sensibilities into practical truth. With this book, I think Day-Woods and Herdman have contributed a lot to this beautiful endeavour.

Como usar “O Diário de Anne Frank” em sala de aula: ensinando sobre Estado e burocracia em sociologia, história, geografia

Em 2020, cursando a disciplina de “Metodologia de Ensino de Ciências Sociais”, montei um plano de aula para usar O Diário de Anne Frank em sala de aula. Acho que fui atraído por esse livro porque, em um momento de grande isolamento devido à pandemia de Covid-19, pude mais uma vez, agora por outro ângulo, me identificar com a protagonista.

Não acho que esse plano perde relevância uma vez que a pandemia tenha arrefecido – o plano foi feito, inclusive, para uma aula regular, e não no formato remoto. Eu compartilho-o aqui na esperança de que seja útil para outras docentes.

Algumas observações:

  • Os anexos citados estão disponíveis, em PDF e em formato editável (você vai precisar deste para escurecer alguns trechos do Anexo A antes de entregar aos discentes para leitura, conforme sugerido no plano), no final deste post.
  • Trata-se de um plano longo – 6 “aulas-faixa”! – mas, por outro lado, ele basicamente funciona como uma introdução à ciência política. Vamos falar sobre Estado, território e população; soberania; burocracia; nacionalismo; e sobre Estado e classe.
  • Ele foi pensado para o 9º ano, porque aqui no Colégio de Aplicação da UFSC o 9º ano estuda sociologia – e o terceiro trimestre é tradicionalmente dedicado a introduzir a ciência política. De qualquer forma, embora professores de história ou geografia possam achar o plano útil de alguma forma neste último ano do ensino fundamental, entendo que ele possa ser aplicado sem muitos problemas em turmas do 1º ano do ensino médio, na disciplina de sociologia, que é mais a ideia original. Ainda que no 9º ano tenhamos uma faixa etária mais similar à de Anne, o 1º ano ainda “dá conta” nesse quesito.
  • O plano já contém uma forma de avaliação, mas ela é um pouco heterodoxa… Devo ressaltar o óbvio: esse plano provavelmente não será perfeito para você em sua forma atual. Talvez você não tenha aulas-faixa disponíveis. Talvez queria utilizar o livro de uma forma diferente. Adapte este plano livremente, do jeito que achar melhor!
  • Mais ainda, não só este plano não será perfeito para você, reconheço que ele tem várias falhas. Três me vêm à mente de maneira mais imediata: primeiro, ele nunca foi testado na prática. Então, as estimativas de tempo para cada atividade aqui podem estar bem erradas. Segundo, não há nenhum material de apoio – por exemplo, um texto didático que os alunos possam estudar em casa. Isso é grave! Por último, mas não menos importante, não fiz nenhuma consideração em termos de acessibilidade (embora penso que isso não seria super desafiante nesse caso específico). Eu resolvi publicá-lo mesmo assim porque não tenho tempo agora de corrigir isso, e achei melhor que ele estivesse disponível mesmo assim. Se quiserem, façam da seção de comentários um espaço para suprir essas carências, ou só contar que adaptações vocês farão nas suas próprias aulas!

Plano de aula: Anne Frank, Estado e burocracia

Tempo de aula

540 minutos (12 aulas de 45 minutos, agrupadas em 6 dias)

Objetivo Geral

Introdução aos conceitos de Estado e burocracia através da leitura coletiva de trechos do texto “O Diário de Anne Frank”.

Objetivos Específicos

  1. Desnaturalizar e compreender a ideia básica de Estado, especialmente através das noções de território, soberania e burocracia.
  2. Desnaturalizar e compreender a ideia básica de relações burocráticas, entendendo-as para além da esfera governamental como relação de poder e identidade.

Competências da BNCC

Para a área de ciências humanas e sociais aplicadas, temos as seguintes competências e habilidades relevantes (ênfases adicionadas):

  • Competência específica 2: Analisar a formação de territórios e fronteiras em diferentes tempos e espaços, mediante a compreensão das relações de poder que determinam as territorialidades e o papel geopolítico dos Estados-nações.
    • Habilidade EM13CHS204: Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas.
  • Competência específica 5: Identificar e combater as diversas formas de injustiça, preconceito e violência, adotando princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos.
    • Habilidade EM13CHS502: Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais.
    • Habilidade EM13CHS503: Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos.
    • Habilidade EM13CHS504: Analisar e avaliar os impasses ético-políticos decorrentes das transformações culturais, sociais, históricas, científicas e tecnológicas no mundo contemporâneo e seus desdobramentos nas atitudes e nos valores de indivíduos, grupos sociais, sociedades e culturas.

Considerando que um dos “conteúdos” de história do nono ano do ensino fundamental costuma ser a Segunda Guerra Mundial, presume-se que as estudantes já terão tido algum contato com alguns conteúdos de fundo básicos.

Para além das outras ciências humanas, há mais duas possibilidades de tornar este um projeto multi ou interdisciplinar. Por um lado, há possibilidades de se trabalhar com o texto (como gênero diário / narrativa epistolar / autobiografia) nas aulas de língua portuguesa (habilidades EF89LP33 e EF89LP35 do ensino fundamental da BNCC). Há inclusive um plano de aulas para este fim em inglês que seria facilmente adaptável para outras línguas. Por outro lado, há também conteúdo de ensino religioso previsto na BNCC, em que seria possível aproveitar trechos do diário para refletir sobre o judaísmo.

Estratégia Metodológica

Leitura e discussão coletivas (ver Landfried (2003) e Bezerra e Romko (2016)).

Referências

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José R. Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BERNERI, Marie Louise. O preço da guerra e da liberação. IEL – Instituto de Estudos Libertários, 2021[1943]. Disponível em: https://ielibertarios.wordpress.com/2021/04/22/o-preco-da-guerra-e-da-liberacao-1/. Acesso em: 22 abril 2021.

BEZERRA, Rafael Ginane; ROMKO, Igor Guilherme. Sociologia e Literatura: reflexão e prática sobre o uso da ficção no ensino de sociologia. Revista Urutágua, n. 35, p. 163-179, maio 2016.

CRACKED. How America Accidentally Invented The Nazis. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qq2RUeGBQQw. Acesso em: 22 abril 2021.

ERBELDING, Rebecca; BROEK, Gertjan. German Bombs and US Bureaucrats: How Escape Lines from Europe Were Cut Off. US Holocaust Museum, 2018. Disponível em: https://us-holocaust-museum.medium.com/german-bombs-and-us-bureaucrats-how-escape-lines-from-europe-were-cut-off-1b3e14137cc4. Acesso em: 22 abril 2021.

FERGUSON, K. E. The Feminist Case Against Bureaucracy. Filadélfia: Temple University Press, 1984.

FRANK, Anne. O diário de Anne Frank: edição integral [ePub]. Trad. Ivanir Alves Calado. 21ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2015.

GRAEBER, David. The divine kingship of the Shilluk: On violence, utopia, and the human condition, or, elements for an archaeology of sovereignty. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 1, n. 1, p. 1-62, 2011.

GRAEBER, D. The utopia of rules: on technology, stupidity, and the secret joys of bureaucracy. Londres: Melville House, 2015.

HOFBAUER, Andreas. Branqueamento e democracia racial – sobre as entranhas do racismo no Brasil. In: Por que “raça”? Breves reflexões sobre a questão racial no cinema e na antropologia. Santa Maria: EDUFSM, 2007. Disponível em: https://andreashofbauer.files.wordpress.com/2011/08/branqueamento-e-democracia-racial_finalc3adssima_2011.pdf. Acesso em: 22 abril 2021.

LANDFRIED, Jessica. Anne Frank, the Holocaust Victim: The Controversy about Her Diary in School Education, and the Controversy about Her Image. UCSB Prof. Marcuse’s Proseminar on “Legacies of the Holocaust”. 2003. Disponível em: http://holocaust.projects.history.ucsb.edu/Research/AnneFrank/AnneF20pFinalHM.htm. Acesso em: 20 abril 2021.

MMS. Anne Frank: Writer. EDSITEment!, 2019. Disponível em: https://edsitement.neh.gov/lesson-plans/anne-frank-writer. Acesso em: 20 abril 2021.

SCHWARCZ, L. M. 1994. Espetáculo da miscigenação. Estudos Avançados, v. 8, n. 20, p. 137-152, 1994.

TABORDA, Luana do Rocio; SILVA, Peterson Roberto da. Teoria política III. Indaial: UNIASSELVI, 2020.

Aulas 1/2 de 12 – O diário misterioso

Objetivo de aprendizagem

História dos termos “Estado” e “burocracia”.

Estratégia de ensino

Leitura e discussão coletivas; sondagem de conceitos; aula expositiva.

Roteiro da aula

  1. Introdução: Procedimentos de início de aula. Confirmar que todas entendem a noção de um diário. Distribuir uma cópia do texto (Anexo A) para cada dupla e/ou trio de estudantes (deixar que se auto-organizem), e projetar o texto também no quadro. Propor a leitura coletiva (pessoas vão se revezando na leitura em voz alta enquanto os demais acompanham), explicando que leremos o diário de uma pessoa; não informar nenhum dado específico (nome, local, época). (15 minutos)
  2. Leitura comentada: Nos dois primeiros trechos, chamar atenção para partes que podem indicar um tempo e um local para o diário. O terceiro trecho deixa explícito que “algo está acontecendo” politicamente, e é possível que estudantes descubram do que se trata. Por fim, revelar no texto projetado os trechos ocultos. Em todos os trechos, pode-se usar a internet para buscar recursos que expliquem melhor as referências culturais, geográficas, etc. (45 minutos)
  3. Apresentação do projeto e sondagem de conceitos: Revelar que se trata de “O Diário de Anne Frank” (mostrar o único vídeo conhecido em que ela aparece; buscar fotos na internet), que leremos vários trechos dele ao longo das próximas aulas, e que assim começaremos a discutir ciência política. Ao apresentar o objetivo de discutir dois conceitos específicos (Estado e burocracia), questionar estudantes quanto a palavras-chave que estas ideias lhes evocam. Registrar (no quadro ou na tela projetada) e guardar / salvar estas palavras, adicionando outras que não forem espontaneamente mencionadas (p. ex. exército, polícia, eleições, impostos, chefes, trabalho, formulários), inclusive para ajudar a focar melhor o que se quer dizer com elas (evitando confusões semânticas, como p. ex. A ideia de que “Estado” quer dizer “Santa Catarina”, “Paraná”, etc.). (10 minutos)
  4. História das palavras: Introduzir breve e esquematicamente de onde estas palavras surgiram, por qual caminho sociológico / histórico passaram para adquirir os sentidos que hoje possuem (SILVA; TABORDA, 2020, p. 7-9, 89). (15 minutos)
  5. Finalização e tarefa: Mencionar que não há problema algum se estudantes queiram continuar a ler o livro a qualquer momento fora da aula. Introduzir a tarefa para a próxima aula (ver “Atividade avaliativa” abaixo). (5 minutos)

Recursos didáticos

Anexo A (impresso, 1 cópia por dupla ou trio de estudantes); Computador com acesso à internet e projetor; arquivo d’“O Diário de Anne Frank”; link para o vídeo de Anne Frank.

Atividade avaliativa

Dividir as duplas/os trios, já formados para a leitura, em dois grandes grupos. Ao primeiro, solicitar que cada dupla/trio traga para a próxima aula uma definição de Estado; ao segundo, solicitar que cada dupla/trio traga para a próxima aula uma definição de burocracia. Determinar condições: primeiro, que as duplas/os trios devem se comunicar e cooperar para não trazer a mesma definição; segundo, que busquem citações, frases, provérbios, etc., sem utilizar as definições básicas de enciclopédias ou dicionários.

Critérios de avaliação

A) Participação (10%)

Aulas 3/4 de 12 – Território e imigração

Objetivo de aprendizagem

Compreensão do controle populacional e de território como fatores essenciais da noção de Estado, e possíveis relações com a ideia de burocracia.

Estratégia de ensino

Leitura e discussão coletivas; aula expositiva e dialogada.

Roteiro da aula

  1. Introdução: Procedimentos de início de aula, incluindo checagem da tarefa da aula anterior. Dizer que nós utilizaremos as definições trazidas em tempo oportuno. Distribuir o texto (Anexo B). (10 minutos)
  2. Leitura comentada: Leitura dos trechos do Anexo B. (40 minutos)
  3. Aula expositiva: Ao chamar atenção para trechos do texto que indicam a piora da situação de judeus na Holanda ocupada, perguntar por que as pessoas não foram embora. Mais especificamente: lembrar que no Anexo A, parentes haviam viajado aos EUA. Por que o resto da família Frank não foi? Trazer a referência de Erbelding e Broek (2018) para mostrar que houve centenas de milhares de pedidos de imigração para os Estados Unidos, mas que muitos foram negados: que os Frank, inclusive, tentaram fazê-lo, mas foram negados. Chamar atenção para alguns detalhes deste texto, em especial o caráter racista de políticas de imigração, e também relacionar com as políticas de imigração no Brasil (SCHWARCZ, 1994, p. 142; HOFBAUER, 2007). Considerar o papel do corpo burocrático no exercício do controle de fronteiras. (15 minutos)
  4. Exposição dialogada e finalização: Contrastar a territorialização e o controle populacional do Estado com seu oposto: que princípio regularia a ocupação de espaços sem fronteiras? Como seriam dinâmicas populacionais? Potencial relação entre ideias: tradição, cultura, propriedade, violência, e, por outro lado, território, fronteira, controle, população e Estado. Questionar se alguma definição de Estado e burocracia trazida pelas estudantes faz essas relações, ou quais outras faz. Recuperar conteúdo de história em termos de surgimento político do fenômeno nazista entre a população alemã, a ideia de “espaço vital”, etc. Recuperar o trabalhado na última aula sobre as origens da palavra Estado e indicar que, diferentemente da ideia da autoridade do príncipe, o controle populacional “ativo” (saúde, informação, “normalidade”) é marca de Estados modernos, e que isso requer todo tipo de controle burocrático (escolas, prisões, hospitais, cartórios, fronteiras). (25 minutos)

Recursos didáticos

Anexo B (impresso, 1 cópia por dupla ou trio de estudantes).

Atividade avaliativa

Nenhuma específica.

Critérios de avaliação

B) Tarefa (15%): ter trazido a tarefa solicitada nas aulas anteriores de acordo com os parâmetros.

Aulas 5/6 de 12 – Soberania

Objetivo de aprendizagem

Noção de soberania.

Estratégia de ensino

Leitura e discussão coletivas; aula dialogada.

Roteiro da aula

  1. Introdução: Procedimentos de início de aula. Recuperar as palavras-chave elencadas nas aulas 1 e 2 para observar como já tratamos de algumas ideias nas aulas 3 e 4, e apontar quais palavras poderão estar relacionadas com o que discutiremos nesta aula. Distribuir o texto (Anexo C). (10 minutos)
  2. Leitura comentada: Leitura dos trechos do Anexo C. Utilizar o tour virtual do Anexo Secreto para mostrar como eram os aposentos. (40 minutos)
  3. Exposição dialogada: Colocar que a possibilidade de sofrer violência motivou a fuga da família para o esconderijo, e que embora isso tenha ocorrido no contexto de uma guerra, existe uma possibilidade constante de violência mesmo em tempos de paz, quando se vive sob um Estado: trata-se da ideia de soberania, definida como “o direito de exercer violência com impunidade” (GRAEBER, 2011). Comentar o ordenamento internacional como “uma comunidade de Estados”, e refletir sobre algumas ideias comumente citadas como fontes de legitimidade deste direito de violência, seja segurança, ordem e estabilidade (de quem?), ou uma série de outros valores supostamente compartilhados (relação com a aula anterior; mecanismos para determinação de tais valores), etc. Considerar a relação desta noção com a história da palavra Estado explorada nas aulas 1 e 2, bem como outros elementos como as discussões sobre cultura e controle populacional nas aulas 3 e 4. Recuperar as definições de Estado e burocracia trazidas pelas estudantes para verificar onde a questão da soberania aparece (ou não) nelas. (30 minutos)
  4. Finalização: Resumir a discussão da aula e apresentar a tarefa para a próxima (ver “Atividade avaliativa” abaixo). (10 minutos)

Recursos didáticos

Anexo C (impresso, 1 cópia por dupla ou trio de estudantes); Computador com acesso à internet e projetor; link para o tour virtual do Anexo Secreto.

Atividade avaliativa

Cada dupla/trio deverá trazer um texto (uma notícia, ou o texto primário; de preferência, checar o segundo para comprovar o primeiro) de um ato governamental (lei, artigo da constituição, decreto, portaria, decisão do STF, etc.) que pode representar, a seus olhos, um bom ou mau ato sob a luz da ideia de soberania (“é bom que haja uma força capaz de garantir que isto seja feito”, ou, “é ruim que agora haverá uma força que pode forçar isto a acontecer”).

Critérios de avaliação

C) Participação (10%).

Aulas 7/8 de 12 – Burocracia e banalidade do mal

Objetivo de aprendizagem

Desnaturalização e compreensão de princípios básicos do fenômeno burocrático.

Estratégia de ensino

Leitura e discussão coletivas; aula dialogada.

Roteiro da aula

  1. Introdução: Procedimentos de início de aula. Discussão breve das notícias trazidas pelas estudantes em função da tarefa das aulas 5 e 6. Apontar que a principal forma pela qual essas leis se farão cumprir, em nome do Estado em sua soberania, é um corpo de pessoas especializadas, contratadas especificamente para tal; chamamos a este corpo de burocracia. Distribuir o texto (Anexo D). (20 minutos)
  2. Leitura comentada: Leitura dos trechos do Anexo D. (40 minutos)
  3. Exposição dialogada e finalização: Colocar que há diversos atos cruéis narrados no texto, e que após o holocausto, a Segunda Guerra Mundial, etc., houve muita consternação e reflexão coletiva sobre como os “horrores” puderam ter ocorrido. Uma das teses mais influentes nesse debate foi a da “banalidade do mal” (ARENDT, 1999), que observa como inúmeras pessoas participaram das atrocidades sem “paixões”, mas apenas para “cumprir ordens”. Apontar que a burocracia não é meramente uma questão de “papelada”, de “processos chatos ou sem sentido”, mas como essas coisas se relacionam com a burocracia como fenômeno social, isto é, como uma forma de relação entre as pessoas, que implica tornar “impessoal” não apenas o objeto da atuação de um governo ou uma empresa, mas também o sujeito. A atuação (em qualquer profissão) torna-se ao mesmo tempo de responsabilidade difusa (“apenas cumpro ordens”, falta de autonomia) e precisa, específica (no caso da falha em uma ordem ser seguida), pois tudo é registrado, e às pessoas são relegados poderes e atribuições individuais rígidos. Isto no entanto é mais frequente em empresas que em governos, considerando que demandas democráticas podem criar muitas instâncias colegiadas e participativas para as decisões de instâncias governamentais, enquanto que empresas são compreendidas como propriedades privadas e portanto as ações se fazem “ao prazer” de chefes/as e donos/as. Observar como, a despeito da ideologia de racionalidade, usada como justificativa para burocracias, estas não são necessariamente mais eficientes, tendo sido impulsionadas, pelo contrário, pelas necessidades de controle de processos por parte de entidades soberanas (e empreendimentos privados) (FERGUSON, 1984; GRAEBER, 2015). A “ideologia burocrática” se relaciona à ideia de que a burocracia é uma forma “neutra”, que aguarda ordens (de “qualquer conteúdo”) por parte de vencedores das formas usuais de competição política. No entanto, por forçarem e incentivarem certos tipos de relações sociais, contribuem com a consolidação de certas perspectivas, em particular uma visão gerencialista de que grupos de pessoas não podem gerir seus assuntos de maneira direta, coletiva, e independente de formas de violência como a soberania. Questionar, por um lado, que benefícios estruturas burocráticas podem ter para que as aceitemos tão frequentemente; por outro, associar o último trecho do Anexo D a precisamente o contrário do pensamento burocrático: o desenvolvimento de uma mente própria, com disposição para enfrentar tendências ao conformismo. Recuperar as definições de Estado e burocracia trazidas pelas estudantes para verificar onde a questão da burocracia aparece (ou não), e de que forma, nelas. (30 minutos)

Recursos didáticos

Anexo D (impresso, 1 cópia por dupla ou trio de estudantes).

Atividade avaliativa

Nenhuma específica.

Critérios de avaliação

D) Tarefa (15%): ter trazido a tarefa solicitada nas aulas anteriores de acordo com os parâmetros.

Aulas 9/10 de 12 – Nacionalismo, classe, solidariedade

Objetivo de aprendizagem

Noções básicas sobre relações entre classe, nacionalismo, e Estado.

Estratégia de ensino

Leitura e discussão coletivas; aula expositiva e dialogada.

Roteiro da aula

  1. Introdução: Procedimentos de início de aula. Recuperar as palavras-chave elencadas nas aulas 1 e 2 para resumir as ideias de que já falamos nas aulas 3 a 8, e apontar quais palavras poderão estar relacionadas com o que discutiremos nesta aula. (10 minutos)
  2. Aula expositiva: Observar que, em trechos lidos na aula anterior, as pessoas escondidas no Anexo Secreto não temiam só “burocratas”, mas também pessoas comuns que poderiam dedurá-las – ou seja, algumas pessoas estavam ideologicamente aliadas às atrocidades e as viam como boas ou no mínimo necessárias. Observar que a ideologia racial por trás da agressão nazista era também uma ideologia nacionalista, e uma vez que certos interesses sejam identificados ao “interesse nacional” (como brevemente discutido nas aulas 1/2), a violência exercida pelo poder soberano não só é vista como legítima (e mobiliza a burocracia para executá-la) mas ganha adeptos/as mesmo sem punições e incentivos sistêmicos. (10 minutos)
  3. Leitura comentada: Distribuir e fazer a leitura do texto (Anexo E). (40 minutos)
  4. Exposição dialogada e finalização: Recuperar ou introduzir a ideia dos cercamentos, das grilagens, etc. (Acumulação primitiva) como formas de forçar uma população à dependência do sistema de trabalho assalariado, e como a soberania (força, violência) foi portanto um instrumento crucial na garantia dessa transformação (conexão entre Estado e capital). Explicar que existe um interesse de capitalistas em um governo que proteja a propriedade privada e um interesse de governantes em financiar suas atividades. A questão é que há conflitos de classe em que a solidariedade pode se dirigir por entre fronteiras – há um reconhecimento do sofrimento (de classe) entre pessoas muito diferentes e um projeto de combate a uma estrutura econômica. O nacionalismo, assim, é em parte uma resposta a isso no sentido de que objetiva “monopolizar a solidariedade”, no sentido de instigar em cidadãos uma consciência segundo a qual pessoas de mesma nacionalidade teriam um interesse único (representável pelo Estado) que se diferenciaria (e se oporia) ao de outros Estados e seus cidadãos. Nesse sentido, o nacionalismo pode ser bastante útil para gerar um “corporativismo” entre a classe burocrática e o proletariado, que é então apropriado por regimes fascistas para justificar agressões (GRAEBER, 2015, p. 18-19), ou para convencer sobre a identidade de interesses entre um país e sua elite; em ambos os casos, o próprio Estado se justifica e se perpetua como guardião e defensor de um interesse monolítico. Questionar algumas das colocações de Anne: podemos mesmo dizer que as pessoas não se rebelam? Embora “o homem comum” aceite burocracias, as populações de países ocupados também resistiam, especialmente da classe trabalhadora, dentre a qual se encontravam militantes que criticavam até mesmo os esforços de guerra contra o Eixo (BERNERI, 2021[1943]). Recuperar as definições de Estado e burocracia trazidas pelas estudantes para verificar onde a questão da classe ou da identidade “nação” aparece (ou não), e de que forma, nelas. (30 minutos)

Recursos didáticos

Anexo E (impresso, 1 cópia por dupla ou trio de estudantes).

Atividade avaliativa

Nenhuma específica.

Critérios de avaliação

E) Participação (10%).

Aulas 11/12 de 12 – Avaliações

Objetivo de aprendizagem

Avaliação dos conteúdos abordados nas aulas anteriores e da atividade em si.

Estratégia de ensino

Produção textual argumentativa coletiva; análise crítica entre pares; feedback discente.

Roteiro da aula

  1. Introdução: Procedimentos de início de aula. Recuperar as palavras-chave elencadas nas aulas 1 e 2, além das definições trazidas nas aulas 3 e 4. Das que foram citadas, escolher as mais importantes para cada conceito. Destacar os dois termos em si (Estado e burocracia), e ao redor deles destacar, no mínimo, as palavras seguintes ou semelhantes: “território”, “população”, “nação/identidade”, “impessoal”, “ordem”, “soberania”, “força/violência” (10 minutos)
  2. Prova: Solicitar a cada dupla/trio já formalizado para as outras aulas que produza coletivamente uma redação (meia lauda A4 à mão) explicando os conceitos de Estado e burocracia. As palavras-chaves das aulas 1 e 2 estarão visíveis, e suas anotações, bem como as frases trazidas nas aulas 3 e 4, poderão ser consultadas. Observar que é imprescindível que as palavras-chave destacadas na parte 1 acima sejam incluídas nas explicações. Solicitar que os textos sejam anônimos; usar de algum procedimento para que possam ser identificadas mais tarde. (30 minutos)

Exemplo:

O Estado vem do latim status, porque antigamente queria dizer o status de alguém poderoso que controlava um país, e aos poucos virou uma forma de controlar um território e uma população com soberania. Soberania quer dizer que só o Estado pode usar a força dentro do território, porque isso traz a ordem ou porque o povo quer. Às vezes então por isso as pessoas obedecem as ordens sem questionar. É por isso que tem a burocracia, que é uma forma de controlar os funcionários para fazer o que o Estado quer. As pessoas não fazem o que querem, só como a regra diz. Isso pode levar a coisas horríveis como o Holocausto, em que as pessoas diziam que estavam só “seguindo ordens”.

  1. Análise crítica entre pares: Reunir e embaralhar as provas, redistribuindo-as para duplas/trios diferentes. Solicitar a cada um que leia o texto recebido à procura de (1) erros ou imprecisões teóricas, e (2) elementos que faltaram nas explicações. Circular entre as duplas/trios auxiliando no julgamento dos textos, confirmando ou ajustando os vereditos. Associar cada prova a seus/uas autores/as e apresentar cada análise coletivamente, de modo a atribuir uma nota para cada prova. (30 minutos)
  2. Avaliação da atividade e finalização: Solicitar que estudantes deem uma nota para a própria atividade com base nos critérios como “engajamento”, “organização”, e “aprendizado”. Solicitar sugestões para futuras instâncias. Determinar uma nota, por aclamação, acordo, ou cálculo; usar esta nota para bonificar as notas das/os estudantes. (20 minutos)

Recursos didáticos

Computador com projetor ou quadro negro; folhas pautadas para a prova.

Atividade avaliativa

Prova e análise crítica entre pares, conforme descrito acima, além da avaliação da própria atividade.

Critérios de avaliação:

F) Prova (40%).
G) Bonificação conforme avaliação da atividade por parte das discentes.

A nota final é composta a partir da seguinte fórmula:

(0,1.A + 0,15.B + 0,1.C + 0,15.D + 0,1.E + 0,4.F) . 1,[10-G]

Sendo

A Participação nas aulas 1 e 2
B Tarefa das aulas 3 e 4
C Participação nas aulas 5 e 6
D Tarefa das aulas 5 e 6
E Participação nas aulas 9 e 10
F Prova
G Avaliação da atividade

Faltar (justificadamente) a uma ou mais das aulas 1/2, 5/6 ou 9/10 fará com que a pontuação a ser obtida por participação nas três seja redistribuída pelas outras dessas aulas em que houve presença. Faltas nas aulas 3/4 ou 5/6 não serão abonadas da mesma forma pois a tarefa poderá ser cumprida a partir de outras estudantes na dupla/no trio, ou transmitindo o conteúdo com ajuda de colegas, ou ainda por meios remotos, com antecedência.

Exemplo:

Estudante faltou em uma das aulas em que não havia tarefa, sua dupla/seu trio deixou de entregar uma tarefa conforme combinado, sua dupla/seu trio tirou 9 na prova, e a atividade foi avaliada por discentes com a nota 8:

(0 + 0,15.0 + 0,1.15 + 0,15.10 + 0,1.15 + 0,4.9) . 1,[10-8]

A falta (o primeiro zero) é compensada com notas “15” nas outras duas aulas sem tarefas.

(0 + 0 + 1,5 + 1,5 + 1,5 + 3,6) . 1,2

8,1 . 1,2

Nota = 9,72

Anexos

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Baixar anexos em PDF.

Apresentação sobre o jogo Agência no 7º Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica

Peterson Silva e Thereza Viana fizeram uma apresentação sobre Agência no 7º Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica (ENESEB), em julho deste ano. Eles falaram um pouco sobre o jogo e como ele foi usado como ferramenta didática para o nono ano do ensino fundamental. A apresentação foi publicada online – confira o vídeo da sessão abaixo:

Os autores publicaram também um artigo sobre a experiência nos anais do evento. Embora a experiência tenha sido feita em 2018, e assim trata-se de uma versão mais antiga do jogo, ainda pode haver boas informações a serem obtidas na sessão e no documento para planejar sua aula com o jogo!

Piotr Kropotkin: bem-estar para todos e todas, por Ruth Kinna

Este artigo, cujo título original em inglês é “Peter Kropotkin: well-being for all”, foi publicado pela primeira vez em português, pois Ruth Kinna o escreveu para esta edição especial da revista sobre Kropotkin, e eu fiquei responsável por traduzi-lo.

Ruth Kinna é professora de teoria política na Loughborough University, editora do jornal Anarchist Studies [Estudos Anarquistas] desde 2007, e autora de vários livros sobre anarquismo e anarquistas, incluindo: Anarchism: A Beginner’s Guide [Anarquismo: Guia para Iniciantes] (2009), Kropotkin: Reviewing the Classical Anarchist Tradition [Kropotkin: Revisando o Anarquismo Clássico] (2017), e The Government of No One [O Governo de Ninguém] (2019).

Piotr Kropotkin é mais conhecido por seu conceito de apoio mútuo e sua defesa do anarcocomunismo. No primeiro caso, ele é geralmente apresentado como cientista, naturalista e/ou filósofo da ética; o anarquista que “provou”, no fim do século XIX, que a natureza se ordena por hábitos de cooperação instintivos e ambientalmente condicionados, em vez de se resumir a “dentes e garras sangrentas”, como diziam darwinistas sociais. No segundo, Kropotkin aparece como um teórico da política, um estrategista; líder do trio completado por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, que convenceu o Congresso de 1880 da Federação de Jura a fazer do comunismo seu objetivo revolucionário.

É raro que alguém ligue os dois pontos da obra de Kropotkin e, no entanto, eles são igualmente essenciais para o que ele chamava de “bem-estar para todos e todas”. Esse conceito, mero rascunho em seus textos, destaca tanto sua abordagem econômica holística quanto sua crença no poder transformador das ideias.

Apoio mútuo e comunismo

Hoje, tanto o apoio mútuo quanto o comunismo são comuns no pensamento de anarquistas, mas eles foram absorvidos em seus discursos políticos com diferentes graus de entusiasmo. Sem provocar muita controvérsia, “apoio mútuo” tornou-se palavra-chave para comunistas libertários logo depois que Kropotkin começou a falar dele na década de 1880, se não antes. “Comunismo” ganhou força nos movimentos anarquistas mais devagar e provocou bastante debate. Nenhum conceito tinha um significado claro ou preciso. Kropotkin descrevia o “apoio mútuo”, por exemplo, como um fator negligenciado da evolução, e o usou de duas formas: para descrever a capacidade cooperativa de indivíduos e para classificar tipos ou níveis de sistemas sociais; ele o usou tanto para analisar as forças sociais que promoviam ou atuavam contra sociedades de apoio mútuo quanto para explorar uma ética antiautoritária “sem obrigações”, que viesse da auto-organização cooperativa. Mas a confusão sobre o termo “comunismo” causou mais dificuldade para anarquistas que a flexibilidade da ideia de apoio mútuo.

Anarquistas se afastavam do comunismo por duas razões. Uma era que a palavra cheirava a autoritarismo. Essa impressão começou já na década de 1840, quando Pierre-Joseph Proudhon rejeitou o comunismo como um tipo monástico e autoritário de socialismo, uma doutrina de igualdade realizada através de ditaduras. No rescaldo da Revolução Francesa, “comunismo” lembrava conspirações, jacobinismo e o terror. Em segundo lugar, “comunismo” se ligava ao princípio de “distribuição conforme a necessidade” e, portanto, à realização de um programa socioeconômico que, para alguns, parecia diluir o impulso libertário do anarquismo. Era assim que alguns anarquistas espanhóis entendiam a posição anarcocomunista. Da perspectiva deles, era menos uma questão de princípios que uma limitação doutrinária. Eles defendiam o “anarquismo sem adjetivos” e o abandono de todos os sufixos, para mostrar que não queriam determinar demais os objetivos revolucionários. Mais tarde, a pró-feminista Voltairine de Cleyre seguiu essa linha, dessa vez considerando as consequências políticas das posições rivais “individualista” e “comunista”. Ela argumentou que ambos os tipos de “economia” podiam ameaçar a liberdade igualitária.

O impulso anticomunista de Proudhon era forte na Federação de Jura. Em 1871, no ápice dos duros debates entre Mikhail Bakunin e Karl Marx, na Primeira Internacional, os seguidores “antiautoritários” de Bakunin se chamavam “coletivistas”, não “comunistas”. Para bakuninistas, estas não eram só correntes rivais dentro do socialismo; elas eram incompatíveis. Uma apontava para uma federação descentralizada e ações localmente determinadas, e a outra, para a organização centralista, um programa revolucionário detalhado e uma organização partidária. Kropotkin e seus aliados argumentaram que não era bem assim: embora as diferenças entre “antiautoritários” e “autoritários” eram reais e insuperáveis, os rótulos passavam uma falsa impressão.

Kropotkin começava dizendo que socialistas se comprometiam com um mesmo princípio anticapitalista: a posse coletiva. Mas sua preocupação era que socialistas marxistas na verdade prejudicavam esse projeto ao usar sistemas governamentais de Estado para fazer a coletivização. Esses socialistas discutiam estratégia – se deviam ser reformistas ou insurrecionários – mas imaginavam que a coletivização seria a transferência de poder institucional e a introdução do planejamento socialista: “eletrificação + poder dos sovietes”, como dizia Lenin n’O Estado e a Revolução. “Socialistas científicos” – aqueles que defendiam a teoria da história de Marx – também esperavam por uma fase de “transição”; um período em que planejadores ficariam definindo os detalhes de seus esquemas igualitários, especificamente como fazer uma economia baseada no trabalho virar uma economia que atende necessidades. De qualquer forma, a ação revolucionária de massa era apenas um catalisador da transformação social. O governo revolucionário é que era a forma correta de trocar o capitalismo pelo socialismo.

No anarquismo, argumentava Kropotkin, a coletivização seria feita independentemente da máquina política existente, pela expropriação direta de terra e de recursos e pela criação de novas instituições comunais. O objetivo era evitar o governo revolucionário e a reafirmação do controle estatal. De acordo com preceitos anarquistas, o objetivo revolucionário era facilitar a transformação de instituições políticas que possibilitavam a exploração econômica, não utilizar essa infraestrutura para prover igualdade por dentro do Estado. Não fazia sentido revolucionar relações econômicas deixando estruturas políticas intactas. Em 1919, Kropotkin disse isso para Lenin, chamando de autocrático e destrutivo seu projeto de inundar as organizações revolucionárias com trabalhadores partidários em nome do iluminismo político.

O argumento de Kropotkin para a Federação de Jura era estratégico: enquanto “antiautoritários” continuassem se chamando de “coletivistas” em vez de “comunistas”, as pessoas não iriam entender como sua concepção de revolução era diferente. Em outras palavras, era muito fácil confundir o coletivismo com modelos marxistas ou social-democratas de coletivização. Embora Marx tinha reivindicado o “comunismo” quando escreveu o Manifesto em 1848, Kropotkin acreditava que o “comunismo” entendido corretamente tinha a ver com a ação direta descentralizada vista na Comuna de Paris em 1871. No ano em que Apoio Mútuo foi publicado pela primeira vez em forma de livro, Kropotkin voltou ao seu debate com James Guillaume, companheiro próximo de Bakunin, na Federação de Jura. Em 1902, ele disse a Guillaume que em 1880 ele acreditava que associar o socialismo em geral ao princípio de posse coletiva era perigoso, pois apagava as diferenças entre os coletivismos autoritário e antiautoritário, e que só “comunismo” podia deixar clara a determinação anarquista de coletivizar ao “tornar comum”. Ele reconheceu que a mudança de nomes criou tensões no movimento anarquista, mas não achava que isso mudava sua posição política. Sendo comunista, Kropotkin também defendia o princípio de distribuição de acordo com as necessidades, uma posição que o colocava contra anarquistas individualistas e propositores do “anarquismo sem adjetivos”. Mas sua rejeição quanto a recompensas individuais era um argumento acerca da melhor defesa institucional do coletivismo contra o ressurgimento do monopólio, não sobre o princípio de posse comum. Em princípio, dizia ele, a adoção anarquista de “comunismo” tinha tudo a ver com a crítica anticomunista de Proudhon e a posição “coletivista” de Bakunin.

Kropotkin argumentou que mudanças no socialismo europeu, especificamente o surgimento da social democracia marxista no final do século XIX, confirmou que ele estava certo. Em 1902, Kropotkin confessou a Guillaume estar mais incerto que nunca sobre o futuro do socialismo anarquista e da revolução libertária. Trabalhadores erravam ao apostar suas fichas em charlatões partidistas e ao apoiar amplas nacionalizações econômicas. Isso não era comunismo, mesmo que seus defensores fizessem discursos a favor da distribuição de acordo com as necessidades. O programa coletivista social democrata alterou a base da propriedade, mas reforçou o princípio de propriedade, e ainda por cima aumentou o poder monopolizador do Estado. O coletivismo acabava sendo a distribuição de acordo com a burocracia. Kropotkin chamava isso de “socialismo de estado” e, reavivando a terminologia de Bakunin, “autoritário”. Continuando a defender a expropriação direta da terra e dos recursos e a criação de novas associações comunais, Kropotkin fez um novo apelo ao comunismo anarquista, descrevendo-o de forma ampla ao elaborar o conceito de “bem-estar para todos e todas”.

Bem-estar para todos e todas

‘Bem-estar para todos e todas’ foi o emblema de Kropotkin para uma nova economia. Significava o abandono das restrições produtivas artificiais a partir da determinação de preços; deixar de financiar a polícia, o judiciário, as prisões e a indústria das armas; redirecionar os recursos utilizados para fabricar produtos de luxo, que serviam para satisfazer “os gostos depravados da multidão da moda”; e repossuir a propriedade. Em essência, a ideia de Kropotkin não tinha a ver com pessoas diferentes gerenciando o sistema econômico que já existia, nem com igualar benefícios de acordo com as regras dominantes do capitalismo, mas com reformular a economia conforme princípios libertários. Kropotkin resumiu sua visão de “redesenvolvimento” econômico como o “estudo das necessidades da humanidade, e das formas econômicas para satisfazê-las”. Isso substituía a economia política, “a ciência do desperdício de energia sob o sistema de trabalho assalariado”. O redesenvolvimento do campo intelectual envolvia duas mudanças conceituais. Primeiro, as medidas de bem-estar e as avaliações sobre o crescimento humano seriam formuladas localmente por grupos e associações das comunidades: Kropotkin teria completamente rejeitado a imposição de barômetros universais como o Produto Interno Bruto (PIB). Segundo, as relações sociais seriam estruturadas por “livre acordo”.

A economia libertária naturalmente envolvia refletir sobre o que produzir e como produzir, mas ela conscientemente injetava na economia um propósito moral. Enquanto a economia política era moralizada pelo lucro e pela expansão, pela acumulação de dinheiro e pela exploração, a economia libertária era moldada pelo compartilhamento, pela generosidade e pela expressão criativa. Ela dispensava a análise abstrata de trabalho, valor, oferta e demanda, produção e consumo, e colocava no lugar os conceitos de desejo e possibilidades estimadas. Vendo no bem-estar um direito, Kropotkin o descreveu como o direito de “possuir a riqueza da comunidade”, o “fruto do labor das gerações passadas e presentes”:

E ao afirmar seu direito de viver com conforto, eles afirmam, o que é ainda mais importante, o direito de decidir por si mesmos o que esse conforto será, o que deve ser produzido para vivê-lo, e o que deve ser descartado por não ter mais valor.
O “direito ao bem-estar” significa a possibilidade de viver como seres humanos, e de educar as crianças para serem membros de uma sociedade melhor que a nossa…

A segunda proposta de Kropotkin, sobre o “livre acordo”, era o princípio social que fundamentava a economia libertária. Ele entrava no lugar do contrato, base das relações no capitalismo. O contrato retrata as partes de um acordo de forma abstrata, como indivíduos iguais, e trata seus arranjos como justos porque conclui que foram feitos livremente. Assim, contratos de emprego supõem que trabalhadores aceitaram as regras dos patrões, e leis trabalhistas foram elaboradas para determinar as disputas entre eles. As origens dessa maneira de entender os acordos estão na ideia de propriedade e no princípio de troca, que para Kropotkin se tornaram o modelo para todas as relações sociais no capitalismo, até mesmo as mais íntimas. No casamento, como no emprego, as regras eram garantidas por lei e raramente se preocupavam com a igualdade de fato: mulheres faziam votos de casamento como subalternas, dominadas por seus maridos, sujeitas à disciplina deles e dependentes de sua boa vontade. Em contraste, o livre acordo era não-individualista porque se materializava no reconhecimento de uma herança comum e de um propósito compartilhado, e era antiautoritário porque dependia da confiança. Não havia autoridade externa que garantisse um livre acordo. Tampouco havia um governo central das organizações e instituições que o livre acordo estimulava, que Kropotkin imaginava que seriam “infinitamente variadas”, resultando do “contínuo crescimento das necessidades do homem civilizado”, substituindo assim a “interferência governamental”. A referência ao “homem civilizado” talvez deixe claros os limites da tentativa de Kropotkin de reimaginar a economia; ele continuava preso a ideias de desenvolvimento por meio da exploração de recursos naturais e da limpeza da terra, ideias que não combinam muito bem com as perspectivas ecológicas de hoje em dia. Mas seus dois princípios – o livre acordo e a comunidade local julgando o bem-estar – oferecem um esquema para um conceito ajustável e flexível de comunismo libertário anarquista que ainda é relevante hoje.

Ideologia

Kropotkin dizia que o bem-estar para todos e todas não era um sonho, mas uma genuína possibilidade. Isso revela que ele sabia da qualidade utópica desse ideal. O que o tornava real? A resposta de Kropotkin era o apoio mútuo. Os três componentes essenciais do bem-estar eram compreender a capacidade humana para cooperar, ver como comunidades históricas e atuais tinham criado ambientes que permitiam a cooperação e minimizavam a luta individual pela vantagem competitiva, e, por fim, entender a sociabilidade como a mola propulsora de uma ética do cuidado e da compaixão. A teoria do apoio mútuo explicava todos os três. Kropotkin separou a adequação biológica da competição individual, analisou o desenvolvimento da sociabilidade em sociedades tribais, comunidades, cidades-Estado medievais e associações voluntárias cotidianas, correlacionando essa sociologia com uma ética da dedicação não-recíproca.

Para Kropotkin, o apoio mútuo estava embasado na ciência, mas não era a mesma coisa que o “socialismo científico” de Marx. Em vez de demonstrar como o capitalismo seria transformado, ele frisava o que era preciso para tornar a transformação do capitalismo possível. Para Kropotkin, revoluções se construíam com confiança e convicção. Os ideais e as aspirações que animavam a ação direta eram cruciais para seu sucesso. O triunfo da burguesia francesa contra os sans culottes em 1793 e o golpe bolchevique de 1917 indicavam a veracidade dessa proposta. No prefácio de 1914 a Apoio Mútuo, ele observou que apenas a primeira parte de sua tese, “a ideia de que o apoio mútuo representava um importante elemento de progresso na evolução”, tinha ganhado aceitação na comunidade científica nos doze anos desde a publicação do livro. A segunda parte, o elemento sociológico de sua tese, ainda não era geralmente aceita. Os “líderes do pensamento contemporâneo”, ele observou, insistiam que “as massas tinham pouca preocupação com a evolução das instituições sociáveis do homem, e que todo o progresso feito nessa direção se devia aos líderes intelectuais, políticos, e militares da massa inerte”. O comunismo anarquista está sempre maduro, pronto para ser mobilizado, mas é preciso escapar às noções convencionais de liderança e planejar um salto de fé para estimular a destruição do capitalismo e o bem-estar para todos e todas.

Apoio mútuo para a liberdade

Texto publicado na Revista do Centro de Cultura Social.

O apoio mútuo parece se chocar com a liberdade, ao menos quando ajudar uns aos outros pode conflitar com vontades individuais. É claro que é possível querer praticar o apoio mútuo, mas assim como caridade não se confunde com justiça, uma sociedade e uma economia baseadas nesse princípio não podem se fiar no acaso, no “faz quem quer”. A cooperação precisa constituir ativamente tudo que fazemos. Como é possível, então, combinar apoio mútuo e liberdade?

Libertas, lá no latim, era o status de quem tinha nome, terras… De quem não era escravo. Hoje, entre catracas e muros, vigias e polícias, inspetores e moralistas, também crescemos entendendo que fazer o que se quer é um privilégio. O dia a dia ensina que é o dinheiro que leva à satisfação – produtos, serviços, acesso aos espaços; no fundo, formas diferentes de se relacionar com as pessoas e com o ambiente. Você pode ir mais longe, entrar onde antes não entrava, ter uma “propriedade privada”, quer dizer, um lugar onde você é o mandachuva – enfim, ter tudo entregue na sua porta em vez de ser você a entregadora.

Só que o indivíduo tem limite. Maiores liberdades exigem formas de cooperação – até mesmo pensando a liberdade como dinheiro. Por exemplo: você pode ser uma pessoa que, com o primeiro emprego, passou a alugar seu próprio canto, comprar umas coisas que antes não conseguia… Mas pro que extrapola demais o orçamento – um carro, uma casa, um projeto – é preciso crédito. Se a pessoa não conhece alguém que tenha pra emprestar, vai ao banco, que amontoa riqueza e assim tem o poder de julgar quem merece confiança.

Em certo sentido, então, o apoio mútuo não é uma revolução, nem algo feito por esporte, ou que ocorra por acidente. Também não é um mandamento moral, uma coisa que alguém tenha que “se forçar” a fazer, como se o egoísmo é que viesse naturalmente. É uma forma de agir, uma tática, uma estratégia, que por ser tão simples quanto potente, desenvolveu-se nos seres vivos como instinto, uma tendência, e assim como algo que nunca pode ser extirpado da experiência humana.

Redes de solidariedade entre vizinhos, colegas, em espaços religiosos, etc., são essenciais pra tornar a vida melhor, ou minimamente suportável, em situações de vulnerabilidade. Certa vez uma taxista carioca me contou sobre os filhos que criava sozinha: os biológicos, porque o pai sumiu, e os da vizinha, porque ela (outra mãe solo) faleceu e não tinha familiares conhecidos. Ela contava bastante com o resto da comunidade. Mas o cenário não precisa ser tão dramático, nem periférico. Todo mundo já teve laços fortalecidos com pessoas que ofereceram socorro em tempos difíceis, ou deram um “voto de confiança financeiro” fundamental para alcançar “liberdades” maiores.

Mas vamos com calma: o apoio mútuo enquanto postura, modo de agir, é só uma sombra do que ele pode ser quando realmente permeia nossas relações, orienta os ritmos do dia a dia, dá forma às expectativas para o futuro. Não dá pra abordar a solidariedade para a sobrevivência romanticamente, ignorando a pornográfica concentração de renda a nível nacional e mundial. Uma coisa é um terremoto criar “tempos difíceis”, outra é uma vida inteira no olho do furacão, uma tragédia que, como várias outras, podia ser evitada se o princípio de apoio mútuo estruturasse nossas vidas. Sem falar que, para cada história de um “empréstimo emocionante”, tem aquele primo que pede dinheiro e nunca mais aparece… Nesses casos, a moral da dívida pode atropelar nuances, gerando ressentimentos e conflitos. O crédito financeiro é, na verdade, o pior exemplo de apoio mútuo possível – justamente porque não é mútuo! A questão é: o “livre mercado”, imposto como fundamento das nossas vidas, naturaliza e aprofunda desigualdades. Isso deturpa a cooperação. Afinal de contas, a questão é: quem está em posição de julgar se alguém merece confiança? Quem está em condições de ajudar os outros? Apoio mútuo de verdade exige tornar real uma igualdade que, no Estado, é um “juridiquês” vazio.

Então, não é bem que uma liberdade maior de se fazer o que se quer exige formas de cooperação – isso deixa de fora a questão da igualdade. Essa liberdade é um privilégio (a massa popular precisa de muito “crédito” para fazer o que quer) por causa da dominação histórica que o capitalismo colonial representa. A grande maioria do povo é obrigada a se virar, cada um no seu quadrado, e aí é fácil de entender como o individualismo viraliza. E se o dinheiro é o caminho para ter mais liberdade para si, “o que se quer fazer ou ser” tem que se encaixar no molde que o mercado impõe. Só assim você ganha dinheiro para, depois, gastar no próprio mercado, comprando o que se quer.

Ora, para que esse “intermediário”? Por que é que a gente não se “organiza direitinho”, conforme o que sabemos, podemos, e queremos, pra permitir a cada um desenvolver suas potências e realizar seus desejos em equilíbrio, compartilhando tanto os frutos quanto os fardos? Isso sim seria dar corpo e vida ao apoio mútuo: pegar a lógica que se vislumbra hoje entre brechas e ranhuras de um cotidiano massacrante e fortalecê-la, expandi-la. Que lógica? O princípio de “cada um faz o que pode, cada um pega o que precisa”. Isso nada mais é que o comunismo: trabalhar menos, trabalhar todos; produzir o necessário, distribuir tudo.

Não seria fácil, nem simples, mas essa não é a questão. Ou é? Porque o “marketing” do capital diz que o mercado é um jeito “indireto”, porém “eficaz”, de fazer justamente isso, toda essa coordenação “livre” de trabalho e valor. A coisa parece simples e fácil. Mas, como quase sempre no marketing, é um engodo, um truque. Por meio dos mecanismos de mercado, quem tem dinheiro e poder transforma a condição básica da realização humana (a liberdade de “poder fazer ou ser o que quer”) num prêmio. Mil desculpas esfarrapadas fantasiadas de ciência buscam nos convencer de que a gente tem que “merecer” dignidade. A corrida para caber no pódio impede que a gente se esforce para, juntas, garantir esse prêmio como um fato para todas as pessoas.

Nessa corrida, aliás, a própria liberdade deixa de significar o que se pretendia, já que, no capitalismo, quem quer liberdade tem que se submeter. Aliás, o “prêmio” é uma fraude, porque a promessa é que com o “sucesso”, a partir do seu próprio “mérito”, a submissão acaba. Mas participar da “corrida” é reproduzir um sistema violento, que destrói as condições de sobrevivência das pessoas no planeta (em vários sentidos), e ao chegar no topo da pirâmide, a pessoa percebe que as demais terão que ficar lá, na base. No fim, permanecer no topo depende de continuar se conformando – só que, dessa vez, a um papel de vilão.

É isso que nos leva a defender o comunismo libertário – uma forma de viver organizando o apoio mútuo diretamente, reconhecendo nossa interdependência em vez de uma ilusória independência, pra chegar na liberdade. Isso é diferente das soluções que outras ideologias oferecem. Relações de crédito são relações de endividamento, e assim de controle, de “entrar na linha”. E mesmo as propostas como renda universal, que são bacanas e estão ficando famosas hoje em dia por conta do auxílio emergencial da pandemia de Covid-19, não vão 100% ao xis da questão, que é o controle sobre o trabalho. No fim, elas acabam botando nossa liberdade na mão de uma instituição essencialmente violenta e opressora, que é o Estado – tudo que ele dá, ele pode tirar. É só por meio da posse comum dos meios de trabalho que garantimos, por nós, a nossa liberdade. Se pudéssemos igualmente fazer o que quiséssemos, nossos objetivos e nossos esforços seriam trabalhados em conjunto. Se o que eu quero fazer é machucar ou dominar outras pessoas, isso não posso, porque dependo delas. Mas outras tampouco podem me machucar ou me dominar porque também dependem de mim. É a ação de todas que ajuda a sustentar esse mundo em que cada uma está capacitada a buscar seus sonhos.

Mas o conflito persiste: e se quero machucar ou dominar outros? Devemos lembrar que as nossas vontades não estão separadas da nossa situação. Somos o que fazemos, e quando o apoio mútuo embasa nossos atos e muda tudo à nossa volta, ele no fundo define também quem somos. Existe mesmo a vontade de dominar? Ou só vontades, físicas e psicológicas – alimentar-se bem, estar protegido, ser amado, respeitado – que, numa sociedade hierárquica, aprende-se desde cedo que é preciso dominar para conseguir? Nossos desejos podem ser aleatórios, profundamente pessoais, únicos… E mesmo assim o “formato” deles vai depender das nossas relações. Se o mundo deixa claro que a única chance de ter a liberdade de alcançar o que se quer vem de “subir na vida” por cima dos outros, não dá pra culpar as pessoas quando esses desejos surgem, como se elas fossem malvadas. O vírus não é a humanidade, mas sim o capitalismo. A cura? Lutar contra a fonte desses impulsos transformando diretamente a nossa realidade.

Não quer dizer que dá pra erradicar de vez qualquer desejo antissocial. Não seria nem bom – a rebeldia vem do choque com a injustiça; é como um alarme de incêndio, um aviso da defesa civil contra desastres “naturais”. Eles permitem que a gente veja que alguma coisa não está indo bem, e mesmo uma sociedade fundada no apoio mútuo pode falhar. Não tem problema – nada nunca vai ser perfeito mesmo. A diferença está em como lidar com isso. Na sociedade imperfeita que temos, a rebeldia é punida. No comunismo libertário, ela é um assunto sério, mas não necessariamente motivo para expulsar, bater, prender (pode ser até celebrada). Mas, garantindo primeiro certa segurança, o próximo passo é o que importa: reavaliar nossos esforços para melhor nos ajudar mutuamente, realmente pensando como é que fazemos para atender a diversidade das nossas demandas. Isso é, sem dúvida, um quebra-cabeças muito difícil. Ninguém me convence que a gente não dá conta.

Por toda sua obra, em vários contextos, Kropotkin pensa esse desafio. Mas ele não é (nem nunca disse que foi) um gênio que “inventou” essas noções. O apoio mútuo já é um princípio fundamental de outras tradições políticas e cosmológicas, especialmente dos povos não-ocidentais. Para essas tradições, combinar liberdade e apoio mútuo é um falso dilema, porque reconhecer a nossa interdependência sem ilusões muda o que a liberdade significa. Não precisamos, afinal, deixar o latim decidir pra sempre o sentido das coisas. Não tem por que continuar se apegando a uma ideia de liberdade enquanto “fazer o que se quer” quando não é isso que queremos dizer ao defendê-la.

Noções indígenas de liberdade legitimam a rebeldia contra tudo – a ganância, a violência, a separação – que ameaça o equilíbrio entre pessoas e por toda a natureza. Lembro aqui de Anthony Fiscella expondo o racismo das noções ocidentais de liberdade e buscando alternativas: uma delas é a partilha de responsabilidades. Dividir os pesos da vida com as pessoas à nossa volta é o que nos torna livres. Quanto maior a escala dessa divisão, mais a gente assegura nossas condições para crescer, experimentar, relaxar, e de sermos elementos ativos do mundo, ajudando as demais pessoas a serem livres também.

A liberdade de “fazer o que se quer” é um produto do mercado. A liberdade baseada no apoio mútuo é uma genuína relação social: algo que não se pode simular ou impor, que torna a vida digna e prazerosa, que nos transforma e nos empodera.

Sobre “o problema é o whatsapp”

Não, eu penso que o problema esteja com alguns desses […] colegas, loucos para fazer anúncios. E a razão pela qual isso é um problema agora é a grande disponibilidade do e-mail. E-mail é uma ferramenta maravilhosa – com frequência melhor que o telefone – para obter respostas rápidas a questões urgentes. Mas muitos devotos do e-mail o utilizam não apenas para mandar uma mensagem para alguém mas para copiar essa mesma mensagem simultaneamente para muitas outras pessoas.

Fonte: um cientista explicando, em 1998, como que a mídia deu a entender que um asteroide atingiria o planeta dali a algum tempo (em inglês).

A prefiguração interseccional divide a esquerda?

Tradução de um trecho (p. 145-150) de RAEKSTAD, P.; GRADIN, S. S. Prefigurative Politics: Building Tomorrow Today. Cambridge: Polity, 2020.

Há uma […] crítica à política prefigurativa que vale a pena discutir, já que aparece bastante por aí: a de que ela foca mais nas diferenças (de raça, gênero, sexualidade, deficiência, etc.) entre as pessoas dentro da esquerda que na unidade da classe trabalhadora, e de que isso dividiria a esquerda. Essa crítica, como a vemos, surge de uma confusão entre certas formas de política prefigurativa, especialmente as que buscam a interseccionalidade, com a proeminente tendência neoliberal conhecida como `política identitária’.

A política identitária liberal é uma abordagem moderada (isto é, não-radical) de transformação social, baseada em compromissos ideológicos liberais em sentido amplo. Ela parte da premissa de que mudanças sociais profundas e sistêmicas não são necessárias para termos uma sociedade livre, igual e democrática, porque a sociedade já está mais ou menos perto desse ideal. Movimentos sociais deveriam portanto se concentrar em fazer pequenos ajustes a leis, políticas públicas e normas sociais em vez de trabalhar por mudanças mais sistemáticas ou radicais. Admitindo que mulheres e minorias encaram obstáculos específicos no caminho pro sucesso capitalista, como discriminação, diferenças salariais e preconceito, a política identitária liberal quer dar a pessoas desses grupos as mesmas oportunidades que homens brancos da classe dominante têm de se dar bem na sociedade tal como ela é. Por exemplo, quando mulheres liberais atuam contra o teto de vidro[1] em empresas, isso é política identitária. Outro exemplo é quando antirracistas liberais dizem que o racismo acabará se houver mais políticos/as e chefes/as negros/as. A ideia é que mulheres e minorias devem ser melhor assimiladas a todas as partes da sociedade tal como a sociedade é agora, e que a discriminação deve acabar para que elas possam competir em igualdade.

Muitas críticas à esquerda argumentam que a política identitária, com seu foco na identidade pessoal e sua negação da unidade de classe, é um cavalo de Troia na esquerda. Um exemplo clássico dessa crítica pode ser encontrado na declaração do congresso internacional da Tendência Marxista Internacional de 2018[2], que descreve abordagens socialistas interseccionais como políticas identitárias que estariam fracionando e enfraquecendo a esquerda. Ao invés de unir-se enquanto trabalhadores, diz esse tipo de argumento, ativistas interseccionais insistem em ressaltar as diferentes maneiras em que as pessoas são afetadas por racismo, patriarcado e capacitismo. Isso seria fazer o jogo da burguesia, já que a esquerda não conseguiria se unir. Alguns comentaristas adicionam a esse tipo de argumento que o racismo, o machismo e o capacitismo vão simplesmente desaparecer depois da revolução, uma vez que o capitalismo que os sustenta (e os exige) seja substituído. É assim tanto desnecessário quanto contraprodutivo, por enquanto, tentar abordar qualquer outra coisa que não seja o capitalismo, de acordo com essa visão.

Essa crítica, em outras palavras, considera a política interseccional, incluindo formas interseccionais de prefiguração, divisiva, e a coloca no mesmo saco que a política identitária liberal. Há muitas coisas erradas com essa crítica: ela presume um ponto de vista branco, masculino e capacitista enquanto silencia grupos marginalizados; e ela se baseia em um grave desentendimento sobre o argumento interseccional […]. Não é a interseccionalidade que é divisiva, e sim o status quo (criticado pela interseccionalidade) que impede o desenvolvimento da solidariedade de classe. Insistir que a opressão de classe vem antes de todas as outras, e que outras formas de opressão podem ser em grande medida ignoradas até depois da revolução, deixa essas outras formas de opressão intactas dentro de movimentos e organizações. Isso, é claro, torna esses locais hostis para pessoas desses grupos marginalizados, dificultando sua participação efetiva neles e fortemente desencorajando que se aproximem deles em primeiro lugar.

A confusão entre prefiguração interseccional e política identitária não é, contudo, completamente acidental. O primeiro uso do termo ‘política identitária’ vem do socialismo negro feminista, não do liberalismo, e estava fortemente conectado a ideias que depois seriam chamadas de interseccionais. Só depois que o conceito de ‘política identitária’ surgiu na esquerda radical que liberais desenvolveram seu próprio significado para ele. Quem primeiro popularizou o termo ‘política identitária’ – ou talvez o tenha cunhado mesmo – foi o coletivo feminista negro estadunidense Combahee River. Este coletivo era abertamente revolucionário e socialista. Suas atividades incluíam trabalho educativo, grupos de conscientização, piquetes contra locais de trabalho racistas, apoio a pessoas negras perseguidas pela polícia, entre muitas outras[3]. Seu maior legado é uma declaração de 1977, que ficou famosa em parte por incluir o primeiro uso amplamente reconhecido do termo ‘política identitária’:

Sempre houve mulheres negras ativistas … compartilhando a consciência de que suas identidades sexuais combinavam-se a suas identidades raciais para tornar únicos os fatos de suas vidas e os focos de suas lutas políticas … Esse foco sobre nossa própria opressão está incorporado no conceito de política identitária. Acreditamos que a política mais profunda e potencialmente mais radical vem diretamente da nossa própria identidade, ao contrário de trabalhar para acabar com a opressão de outra pessoa. … Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo de quem trabalha e cria os produtos, e não para o lucro de patrões. … Não estamos convencidas, no entanto, de que uma revolução socialista que também não seja feminista e antirracista vai garantir nossa libertação. (ênfase adicionada) [4]

O termo ‘política identitária’ aqui se referia a pelo menos duas ideias […]: de que o pessoal é político […], e de que as diferentes estruturas hierárquicas são interligadas e co-constitutivas (em outras palavras, elas ‘interseccionam’, como Kimberlé Crenshaw viria a dizer mais tarde). A declaração também critica a ideia de que um grupo pode liberar outro em seu nome, o que pode ser lido como uma crítica tanto a vanguardas elitistas em movimentos sociais quanto a autoproclamados poderes coloniais civilizatórios do ocidente orquestrando o ‘desenvolvimento’ internacional.

O uso do termo política identitária por parte do coletivo não tinha nada a ver com a ideologia liberal. Pelo contrário, a mensagem era de que a sociedade precisa ser transformada fundamentalmente para que as estruturas hierárquicas sejam desfeitas. Essa mudança precisaria ser feita por pessoas com variadas e diferentes experiências de opressões interseccionadas, com um reconhecimento de que nossas perspectivas e experiências pessoais são políticas.

Há assim uma forte ligação entre a política identitária e as formas interseccionais de prefiguração, mas não da maneira como a maioria das críticas presume. A política identitária no sentido defendido pelo coletivo Combahee River é uma luta por mudança radical e sistêmica – ao contrário da política identitária liberal, que só quer assimilar grupos marginalizados às relações sociais existentes.

Muitas abordagens interseccionais radicais vão ainda além disso de outra maneira importante. Enquanto a política identitária liberal presume a desejabilidade e a permanência tanto das relações sociais existentes quanto das identidades das pessoas que navegam por elas, muitas abordagens prefigurativas interseccionais estão trabalhando para mudar não só relações sociais mas também identidades. Isso é porque nossas identidades são vistas não como inatas ou fixas, mas como produtos e mecanismos de estruturas sociais. Em outras palavras, enquanto liberais querem ver mais pessoas negras ou mulheres como presidentas e chefiando empresas, radicais querem mudar fundamentalmente não só sistemas políticos ou econômicos, mas também os próprios significados de “negras” e “mulheres”.

Socialistas há muito enxergam a categoria ‘classe trabalhadora’ como uma categoria que pertence ao capitalismo, e cujo fim queremos testemunhar. O sentido do socialismo não é reduzir a opressão capitalista ou melhorar as coisas um pouquinho para a classe trabalhadora, mas abolir todas as classes e o poder de classe como um todo. Raça, gênero, e outras categorias identitárias são vistas por muitas teóricas e ativistas pela mesma lente analítica. Por exemplo, Huey Newton, co-fundador do Partido dos Panteras Negras, argumentava: “Se não temos identidade universal, então teremos chauvinismo cultural, racial e religioso…”[5]. […] Isso não significa dizer que as categorias e identidades atuais podem ser simplesmente ignoradas, mas fornece uma direção para um futuro além dessas identidades: “lutamos por um futuro em que vamos perceber que somos todos Homo sapiens e temos mais em comum que diferenças”[5].

Acadêmicas influentes em raça e gênero, como Stuart Hall[6] e Judith Butler[7], argumentam que categorias raciais, de gênero e outras são melhor compreendidas como efeitos, incorporações, e ferramentas de opressão, em vez de como identidades eternas que têm qualquer sentido por si só. É a supremacia branca que cria as identidades ‘branca’ e ‘negra’ atuais, e o patriarcado que cria as identidades ‘mulher’ e ‘homem’ atuais, em vez dessas identidades serem inerentes às pessoas com certos tons de pele, expressões gestuais, ou partes do corpo. (Ou, melhor dizendo, é o patriarcado branco-supremacista capacitista capitalista que cria todas as identidades, mas é o elemento branco-supremacista que enfatiza a raça, o elemento patriarcal que enfatiza o gênero, e daí por diante).

Como evidência disso, pense nas enormes variações históricas e geográficas em termos do que se considera uma raça ou um gênero. As categorias raciais que usamos agora datam apenas do começo da colonização europeia e do tráfico transatlântico de escravos. Nos séculos XIX e XX, eugenistas tentaram justificá-las com a dita ‘biologia racial’, que desde então foi completamente refutada pela ciência contemporânea[8]. Pesquisas contemporâneas também desacreditaram as categorias de gênero modernas como simples e “naturais”[9][10]. Categorias de gênero têm variado enormemente no tempo e do espaço. Por exemplo, muitas sociedades tinham mais que duas categorias de gênero, ou não viam o gênero como necessariamente ligado à biologia, antes de colonizadores europeus imporem categorias binárias e alegadamente científicas[11][12][13]. Mesmo na Europa, o principal entendimento atual sobre gênero surgiu apenas no começo do período moderno, e está profundamente ligado a hierarquias sociais e exploração[14]. Muitos tipos de prefiguração interseccional, assim, propõem a abolição dessas categorias opressivas e exploratórias junto com suas estruturas subjacentes. Esse é um projeto político completamente distinto de buscar assimilar melhor pessoas dessas categorias na economia capitalista, que deixa intactas tanto as categorias atuais quanto as desigualdades econômicas. Um compromisso prefigurativo com a interseccionalidade é portanto muito diferente de uma política identitária liberal.

Notas

  1. N. do T.: Glass ceiling, metáfora usada para representar uma barreira invisível que dificulta o acesso de um certos grupos demográficos aos níveis hierárquicos mais altos de uma organização.
  2. IMT (INTERNATIONAL MARXIST TENDENCY). Marxism vs Identity Politics. In: ___. In Defence of Marxism. Disponível em: https://www.marxist.com/marxist-theory-and-the-struggle-against-alien-class-ideas.htm.
  3. HARRIS, D. From the Kennedy Commission to the Cobahee Collective: Black Feminist Organizing, 1960-80. In: B. Collier-Thomas e V. P. Franklin (Eds.). Sisters in the Struggle: African American Women in the Civil Rights-Black Power Movement. Nova Iorque: NYU Press, 2001. p. 280-305.
  4. COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. 1977. Disponível em: http://circuitous.org/scraps/combahee.html.
  5. NEWTON, H. Intercommunalism. 1974. Disponível em: https://www.viewpointmag.com/2018/06/11/intercommunalism-1974.
  6. HALL, S. Old and New Identities, Old and New Ethnicities. In: A. King (Ed.). Culture, Globalisation and the World System: Contemporary Conditions for the Representation of Identity. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 1991.
  7. BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Londres: Routledge, 1990.
  8. RATTANSI, A. Racism: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2007.
  9. FINE, C. Delusions of Gender: How our Minds, Society and Neurosexism Create Difference. Londres: Icon Books, 2011.
  10. FAUSTO-STERLING, A. Sex/Gender: Biology in a Social World. Londres: Routledge, 2012.
  11. AMADIUME, I. Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society. Londres: Zed Books, 1987.
  12. OYEWUMI, O. Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
  13. HINCHY, J. Governing Gender and Sexuality in Colonial India: The Hijra, c.1850-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
  14. FEDERICI, S. Caliban and the Witch. Nova Iorque: Autonomedia, 2004.

Ghosts

The videogame resource I used less as a kid is the most common thing in my adult life: the “ghost” feature for racing games, which means a transparent and immaterial copy of your car races against you doing your best lap. The best version of you versus you: the overcoming of yourself, now empirical and unmistakable.

I’m writing this at 4 am, knowing full well I should wake up at 10 and that if I am lucky I’ll manage to be up by 11. Before I was doing this, I was on Youtube. Before that, I was washing dishes piled up for two days, and taking three hours longer than expected organising stuff, sending email, writing down things I shouldn’t forget about tomorrow. The best of me – my “ghost” – would have been tidier. More efficient. And he wouldn’t merely have done everything I had intended to have already done at this point in my life, he would have done more. He would engage his community. He would be active in social movements. He would be… I don’t know. Healthier. He would take better care of his (mine) hair.

My ghost haunts me. That’s what ghosts do, of course, but he doesn’t really threaten me. I know he can’t hurt me. He won’t break my arm. I live well, smilingly so; I nod to strangers on the street. Still, I feel its shadow over the pacific point over which my spirit’s dust no longer tornadoes, settling for slow disappointed reproach, laying on my shoulders the weight of knowing I am made of a thousand daily failures.

And you can’t consider the ghosts pseudoscience or hallucinations, as they are in the real, material, social world. My ghost isn’t as visible as the games’, but he can be measured by each and every little thing: by how long it takes to realise, after I’ve arrived, that I should have taken care of something where I came from. By the badly done calculation of the time needed for routine tasks, which makes me think it would be better to do this tomorrow, and that next week, and that other thing only next month. I can see myself beaten by the best of me by the greasy snack 1) I should not have bought, as I am trying to both save money and lose weight; 2) was definitely not worth the price I paid for it; and 3) I wasn’t even hungry for to begin with.

I heard it’s all about the nighttime. Sleeping few hours makes us foolish. But it’s a cycle: I rarely catch myself thinking I’ve done all I wanted to do. I feel bad for it and, to flee from my ghost, I run towards a land of fantasies, worries and plans; things that are never going to happen. I sleep badly, I go through the following day just as horribly, and as I get frustrated it’s time I ought to be sleeping awfully again.

The ghosts are out there, not in subjective caves; today they come from the very technology that allows us to find out whether we got worse or better as time went by (if we have the stomach, that is, to look at who we were months or years ago). The evolution of the videogame, that only had us deal with our individual ghost – no; on Facebook, we also face other people’s ghosts.

After all, we only share the best of ourselves. And hence what you see in other people’s profiles is the best they have. Our mundane existence, the here and now of unironed clothes, busted deadlines, bank queues over unpaid bills… That is never going to fill the plastic masks one moulds or buys online. And the curious thing is nobody, deep down, knows anything: other people’s ghosts, with whom we interact, are really only illusions. But when we face them, these versions of human beings that have read the books, have seen the movies, have heard the songs and have opinions on everything, that’s not what we think. Of course they’ve done all that. And so could I have.

Hell isn’t other people, because the devil’s fire is behind our own eyes; it was our gaze that died regretlessly. Each glance at other people’s lives is of a sick and algorithmic naivety – the receiver who respects the emitter these days is a poor bastard. The ghosts of the screens are proof that individualism doesn’t exist. We seek, in others, signs, tips, clues of how to lead a life. To live is to do that – to believe that someone somewhere has a map out of the swamp, or that everyone else’s got a better map than ours. Nowadays the GPS is telling us to ask the ghosts. The results? We realise they can fly and that we can not. And then we look at each other – at each other’s ghosts – hoping they don’t notice that we are never up to anyone’s successes.

We’ll never be our ghosts. Not when we die, nor here, where the gods that judge us are nearly anonymous – their power, an illusion, for they are ghosts just like us. We pray, nonetheless: give me likes; help me nurture my ghost, to lift it up to heaven (maybe I won’t be able to see it – but then what do I become?). Our ghosts do us no good. Reason fools us, making ourselves believe they are like democracy: it doesn’t matter if we can’t be like them now, they are a beautiful ideal, a naturally unreachable horizon. Bullshit: I don’t know in what way I’m growing or getting better every time my ghost defeats me. The best version of myself, I think, wouldn’t fall for that.

With this text I won second place in the 2017 15th Paulo Setúbal Literary Award (Essay category). Read the original (and actually awarded) Brazilian Portuguese version (“Os fantasmas”) here.

Os fantasmas

O recurso menos usado nos videogames da minha infância é o mais presente na minha vida como adulto: a opção “fantasma” dos jogos de corrida, que fazia uma cópia transparente e imaterial do seu carro, refazendo sua volta mais rápida, correr ao mesmo tempo que você. O melhor de você mesmo contra você mesmo: a superação de si, agora empírica e à prova de autoengano.

Escrevo esta crônica às quatro da manhã, sabendo muito bem que deveria acordar às 10 e que, com sorte, acordarei às 11. Antes disso eu estava no Youtube. Antes disso, lavando louça acumulada de dois dias, demorando três horas a mais do que o esperado organizando objetos, mandando e-mails, anotando coisas que eu não deveria esquecer amanhã. O melhor de mim – meu “fantasma” – seria mais organizado. Mais eficiente. E não só daria conta de tudo que me propus, a essa altura da minha vida, a fazer, como também faria mais. Seria engajado na comunidade. Nos movimentos sociais. Seria mais, não sei; saudável. Cuidaria melhor de seu (do meu) cabelo.

O meu fantasma me assombra. É o que fantasmas fazem, é claro, mas ele não me ameaça de verdade. Sei que não pode me atingir. Não vai quebrar meu braço. Vivo bem, e com sorrisos; com a cabeça faço gestos de bom dia para estranhos no caminho. Ainda assim, sinto sua sombra; penumbra pairando no ponto pacífico em que a poeira do meu espírito não rodopia mais com o vento, tomando forma num lento reprovar decepcionado, pondo sobre meus ombros o peso de saber que sou feito de mil pequenos fracassos cotidianos.

E não dá para enxergar os fantasmas como pseudociência ou alucinações, porque eles estão no mundo real, material, social. Meu fantasma não é visível como o do videogame, mas se deixa medir em cada pequena coisa: no tempo que leva para perceber, depois que cheguei, que eu deveria ter feito algo no caminho. No cálculo mel feito do tempo necessário para as tarefas do dia, o que me faz pensar que seria melhor fazer isso amanhã, e aquilo semana que vem, e aquilo só mês que vem. Posso me ver derrotado pelo melhor de mim na figura do empanado de frango e requeijão que 1) eu não deveria ter comprado, porque estou tentando guardar dinheiro e perder peso; 2) definitivamente não vale 4,50; e 3) eu nem estava com fome bastante para comer, quanto mais comê-lo.

Ouvi dizer que é culpa do sono; dormir pouco nos deixa tolos. Mas é um ciclo: raramente me pego pensando que fiz tudo que eu queria fazer. Sinto-me mal e, para escapar ao fantasma, fujo para uma terra de fantasias, preocupações e planos; coisas que nunca vão acontecer. Durmo mal, vivo mal o dia seguinte, mal frustro-me direito e volto a dormir mal.

Os fantasmas estão no mundo, não em cavernas subjetivas; hoje eles vêm da própria tecnologia que nos permite descobrir se pioramos ou melhoramos com o passar do tempo (se tivermos estômago, isto é, para olhar para quem éramos meses ou anos atrás). A evolução do videogame, quando tínhamos que lidar somente com o nosso fantasma individual – não; no Facebook também encaramos, em cada janela, os fantasmas dos outros.

Afinal, só se compartilha o melhor de si. E tudo que se vê nos perfis dos outros é o que eles têm de melhor. Nossa existência mundana, o aqui e o agora da roupa mal passada, dos prazos estourados, da fila de banco por conta de boletos atrasados… Isso nunca vai preencher as máscaras de plástico que se moldam ou se compram na internet. E o curioso é que ninguém, no fundo, sabe de nada: os fantasmas dos outros, com quem interagimos, são mesmo só ilusões. Mas quando os encaramos, essas versões de seres humanos que leram os livros, viram os filmes, ouviram as músicas e têm opiniões sobre tudo, não é isso que passa pela cabeça: é claro que fizeram tudo isso. E eu podia ter feito também.

O inferno não são os outros, porque o fogo do capeta está nos nossos próprios olhos; foi o nosso olhar que morreu sem se arrepender. Cada espiada na vida alheia é de uma ingenuidade doente, algorítmica – o receptor que respeita o emissor, hoje, é um coitado. Os fantasmas das telas provam que o individualismo não existe. Buscamos, nos outros, sinais, dicas, pistas do que fazer para nos orientar na vida. Viver é isso – acreditar que alguém em algum lugar tem um mapa para sair do pântano, ou que todo mundo tem um mapa melhor que o seu. Hoje o GPS nos diz que o melhor é pedir informação para os fantasmas. O resultado? Percebemos que eles podem voar e nós não. E então olhamos uns para os outros – para os fantasmas dos outros – torcendo que eles não percebam como não conseguimos estar à altura de ninguém.

Nunca seremos nossos fantasmas. Nem no além-vida, nem aqui, onde os deuses que nos julgam são quase anônimos – seu poder é ilusório, são fantasmas como nós. Rogamos, mesmo assim: curtam, curtam; ajudem-me a fortalecer o meu fantasma, a erguê-lo aos céus (talvez eu já nem possa vê-lo – mas o que me torno, então?). Nossos fantasmas só nos fazem mal. A razão engana, querendo fazer crer que são como a democracia: tanto faz se não conseguimos ser como eles agora, pois eles são um belo ideal, um horizonte naturalmente inatingível. Besteira: não sei em que sentido estou crescendo ou melhorando a cada dia que meu fantasma me derrota. A melhor versão de mim mesmo, eu acho, não cometeria esse erro.

Com este texto, fui premiado em segundo lugar no 15º Prêmio Literário Paulo Setúbal (Categoria Crônicas), em 2017. Versão em inglês (feita em 2020) aqui.