Revolução Francesa ao contrário

“Viver nos Estados Unidos no século XXI é como estar em uma Revolução Francesa ao contrário. Os ignorantes querem colocar uma aristocracia antiética no governo; ocorre o inverso da Queda da Bastilha, já que se enfiam mais e mais pessoas em prisões cheias, para o lucro dos aristocratas, e os pobres estão morrendo não de fome, mas de obesidade epidêmica, por LITERALMENTE COMEREM BOLO.”

Post no 9gag

Bullying: sobre a estrutura fundamental da dominação

Tradução de “The Bully’s Pulpit: On the elementary structure of domination”, texto por David Graeber, publicado no The Baffler em 2015.

© RANDALL ENOS

Entre fevereiro e março de 1991, na Primeira Guerra do Golfo, forças dos Estados Unidos bombardearam, destroçaram, incendiaram milhares de jovens iraquianos que tentavam fugir do Kuwait. Houve uma série de incidentes desse tipo – a “auto-estrada da morte”, a “autoestrada 8” e a “batália de Rumaila” – em que o poderio aéreo norte-americano interceptou iraquianos em fuga, envolvendo-se em uma luta injusta em que inimigos acuados foram chacinados em seus veículos. Imagens de corpos carbonizados desesperadamente rastejando para fora de caminhões tornaram-se ícones da guerra.

Eu nunca entendi por que esse massacre de homens iraquianos não foi considerado um crime de guerra. É claro que, naquela época, o comando dos Estados Unidos tinha medo disso. O Presidente George H. W. Bush rapidamente anunciou um cessar-fogo temporário, e o exército se esforçou muito desde então para minimizar o número de causalidades, obscurecer as circunstâncias, difamar as vítimas (“um bando de estupradores, assassinos e bandidos”, insistiu mais tarde o general Norman Schwarzkopf), e evitar que as fotos mais reveladoras aparecessem na mídia do país. Há rumores de que existem vídeos do pânico dos iraquianos, feitos pelas câmeras montadas nas armas dos helicópteros, que nunca serão vistos pelo público.

Faz sentido que as elites se preocupassem. Afinal, aqueles eram em grande parte homens que tinham sido forçados a lutar e que, quando jogados no combate, fizeram precisamente o que alguém gostaria que todos os jovens numa situação como essa fizessem: mandaram tudo pro inferno, fizeram as malas, e tentaram ir pra casa. E por isso deveriam ser queimados vivos? Quando o Estado Islâmico fez isso com um piloto jordaniano no inverno passado, o ato foi universalmente denunciado como indescritivelmente bárbaro – e ele foi, é claro. Ainda assim, o Estado Islâmico poderia ao menos dizer que o piloto estava jogando bombas neles. Os iraquianos em fuga na “autoestrada da morte” e em outros exemplos de carnificina americana eram apenas garotos que não queriam lutar.

Mas talvez foi justamente essa recusa que fez com que os soldados iraquianos não ganhassem muita simpatia, não apenas nos círculos de elite, onde não dá para esperar tanto, mas também nas cortes da opinião pública. Em algum nível, vamos ser sinceros: esses homens eram covardes. Eles mereceram.

Parece haver mesmo uma falta de compaixão por homens não-combatentes em zonas de guerra. Mesmo relatórios de organizações internacionais de direitos humanos falam de massacres como sendo dirigidos quase exclusivamente contra mulheres, crianças e, talvez, os idosos. O que está implícito, quase nunca dito claramente, é que homens adultos ou estão lutando ou há algo de errado com eles (“Quer dizer que existem pessoas por aí atacando mulheres e crianças e você não estava lá os defendendo? Você é um homem ou um rato?”). Aqueles que cometem massacres são conhecidos por manipular de forma cínica esse recrutamento tácito: como célebre exemplo, os comandantes servo-bósnios que calcularam que poderiam evitar acusações de genocídio se, ao invés de exterminar populações inteiras nas cidades e vilas conquistadas, matassem apenas homens com idade entre quinze e cinquenta e cinco anos.

Mas há algo a mais circunscrevendo a nossa empatia pelos soldados iraquianos em fuga, vítimas desse massacre. O público dos Estados Unidos foi bombardeado com acusações de que eles eram na verdade um bando de criminosos que estavam pessoalmente estuprando, pilhando, e jogando recém-nascidos fora de suas incubadoras (diferente daquele piloto jordaniano, que estava apenas jogando bombas em cidades cheias de mulheres e crianças a partir de uma altitude, pensava ele, segura). Todos nós aprendemos que os valentões, aqueles que exercem o bullying, são na verdade covardes, então aceitamos que o inverso deve naturalmente ser verdade também. Para a maioria de nós, a experiência primordial de exercer e sofrer bullying está no fundo de nossas mentes em discussões sobre crimes e atrocidades. Ela molda nossa sensibilidade e capacidade para a empatia de maneiras profundas e perniciosas.

A covardia também é uma causa

A maioria das pessoas não gosta de guerras e acha que o mundo seria um lugar melhor sem elas. Mesmo assim, o desprezo por covardes parece ter mais força. Afinal de contas, a deserção – a tendência que têm as pessoas forçadas a participar da glória de um exército pela primeira vez de escapar da marcha, procurar esconderijo na floresta ou fazenda mais próxima e então, tendo a tropa passado, descobrir uma forma de voltar pra casa – é provavelmente a maior ameaça às guerras de conquista. Os exércitos de Napoleão, por exemplo, perderam bem mais soldados para a deserção do que em combate. Exércitos recrutados à força geralmente têm que usar uma significativa parte de suas unidades para ameaçar o resto da tropa com tiros contra fugitivos. Ainda assim mesmo aqueles que dizem odiar as guerras sentem-se desconfortáveis celebrando a deserção.

Quase a única verdadeira exceção que conheço é a Alemanha, que ergueu uma série de monumentos rotulados como “Ao desertor desconhecido”. O primeiro e mais famoso, em Potsdam, lê: “A UM HOMEM QUE SE RECUSOU A MATAR OUTROS HOMENS”. Mesmo assim, quando falo sobre o monumento com meus amigos, eu geralmente encontro um retraimento instintivo. “É de se perguntar: eles realmente desertaram porque não queriam matar ninguém ou porque não queriam morrer?”. Como se tivesse algo de errado com isso.

Em sociedades militarísticas como os Estados Unidos, é quase axiomático que nossos inimigos devem ser covardes – especialmente se o inimigo pode ser rotulado como um “terrorista” (isto é, alguém acusado de desejar criar o medo em nós, transformando-nos, logo a nós, em covardes). Faz-se então necessário um ritual de inversão das coisas para insistir que não, eles é que têm medo. Todos os ataques contra cidadãos americanos são por definição “ataques covardes”. O segundo George Bush estava falando do 11 de setembro como um “ato de covardia” na manhã seguinte aos ataques. Mas se você pensar, isso é estranho. Afinal, não faltam coisas ruins que alguém possa dizer sobre Mohammed Atta e seus comparsas – pode escolher – mas com certeza “covarde” não é uma delas. Destruir uma festa de casamento à distância usando um drone pode ser considerado um ato de covardia. Pessoalmente chocar um avião num arranha-céus requer coragem. De qualquer maneira, a ideia de que uma pessoa pode ser corajosa defendendo uma causa ruim parece não ser um discurso público aceitável, apesar do fato de que muito do que passa por história consiste em incontáveis narrativas de pessoas corajosas fazendo coisas terríveis.

Sobre falhas fundamentais

Mais cedo ou mais tarde, todo projeto de liberdade humana vai ter que entender por que aceitamos que as sociedades sejam classificadas e ordenadas por violência e dominação em primeiro lugar. E me veio a ideia de que nossa reação visceral à fraqueza e à covardia, nossa estranha relutância em nos identificarmos até com as formas mais justificadas de medo, pode ser uma pista.

O problema é que o debate até agora tem sido dominado por proponentes de duas posições igualmente absurdas. De um lado, há aqueles que negam que é possível dizer qualquer coisa sobre seres humanos enquanto espécie; de outro, há aqueles que presumem que o objetivo é explicar por que é que alguns humanos parecem se comprazer com o sofrimento dos outros. Estes últimos invariavelmente acabam formulando teorias sobre babuínos e chimpanzés, geralmente para dizer que humanos – ou pelo menos aqueles de nós com testosterona o bastante – herdaram de nossos ancestrais primitivos uma tendência inata à agressão auto-engrandecedora que se manifesta na guerra, que por sua vez não pode ser eliminada, apenas canalizada rumo à atividade competitiva no mercado. Com base nessas presunções, os covardes são aqueles a quem falta um impulso biológico primário, e não surpreende que nós não gostemos deles.

Há vários problemas com essa linha de pensamento, o mais óbvio que ela simplesmente não é verdade. A perspectiva de participar de uma guerra não ativa automaticamente um gatilho biológico no macho humano. Considere a “parábola das tribos”, de Andrew Bard Schmookler. Cinco sociedades compartilham o mesmo rio em um vale. Elas podem viver em paz apenas se todas elas se mantém pacíficas. O momento em que um “mau elemento” é introduzido – digamos, os jovens de uma tribo decidem que a melhor forma de lidar com a perda de um ente querido é cortar a cabeça de um estrangeiro, ou que seu Deus os escolheu para serem os flagelos dos infiéis – bem, as outras tribos, se não quiserem ser exterminadas, têm apenas três opções: fugir, se submeter, ou reorganizar suas sociedades para favorecer a efetividade militar. Essa lógica parece difícil de refutar.

Contudo, como sabe qualquer um familiar com a história de, digamos, a Oceania, a Amazônia ou a África, um grande número de sociedades simplesmente se recusou a se organizar em termos militarísticos. De novo e de novo, encontramos descrições de comunidades relativamente pacíficas que simplesmente aceitavam o fato de que, a cada tantos anos, eles teriam que correr para as montanhas porque algum grupo local de malvados chegou para pôr fogo em suas vilas, estuprar, pilhar, e fazer infelizes retardatários de troféus. A grande maioria dos humanos do sexo masculino se recusou a perder tempo treinando para a guerra, mesmo quando era de seu interesse imediato fazê-lo. Para mim, isso é prova positiva de que seres humanos não são uma espécie particularmente belicosa.[*]

Ninguém pode negar, é claro, que humanos são criaturas falhas. Praticamente toda língua tem algum análogo ao inglês “humane”, ou expressões como “tratar alguém como um ser humano”, o que significa que simplesmente reconhecer outra criatura como um outro humano implica a responsabilidade de tratá-la com um certo mínimo de candor, consideração e respeito. É óbvio, no entanto, que em nenhum lugar os humanos consistentemente mantêm-se fiéis a esses ideais. E quando falhamos, deixamos para lá e dizemos que “errar é humano”. Ser humano, então, é ao mesmo tempo ter ideais e não conseguir alcançá-los.

Se é assim que vemos a nós mesmos, não é surpreendente que ao tentar entender o que possibilita estruturas violentas de dominação, tendemos a perceber a existência de impulsos antissociais e nos perguntar: por que algumas pessoas são cruéis? Por que elas desejam dominar outras pessoas? Essas, contudo, são precisamente as perguntas erradas a se fazer. As pessoas têm uma variedade infinita de desejos. Eles geralmente nos puxam ao mesmo tempo em diferentes direções. A mera existência de impulsos antissociais não significa nada.

A questão que deveríamos estar fazendo é não por que pessoas são cruéis às vezes, ou mesmo por que algumas pessoas são frequentemente cruéis (todas as evidências sugerem que verdadeiros sádicos são uma porção extremamente pequena da população geral), mas como acabamos criando instituições que encorajam esse tipo de comportamento e que fazem crer que pessoas cruéis são de alguma forma admiráveis – ou pelo menos tão merecedoras de simpatia quanto aquelas que elas violentam.

Aqui eu acho que é importante olhar com cuidado para a maneira como as instituições organizam as reações dos espectadores. Geralmente, quando imaginamos o cenário primordial da dominação, pensamos em algum tipo de dialética hegeliana mestre-escravo em que duas partes competem por reconhecimento mútuo, o que leva a uma sendo permanentemente vencida. Deveríamos imaginar ao invés disso uma relação de três elementos, que consiste em agressor, vítima e testemunha, uma relação em que ambas as partes em disputa apelam para o reconhecimento (validação, simpatia, etc) de um outro alguém. A batalha hegeliana por supremacia, afinal, é só uma abstração. Uma história qualquer. Poucos de nós testemunharam dois homens crescidos duelarem até a morte para que um reconheça o outro como verdadeiramente humano. O cenário de três elementos, em que uma parte machuca a outra enquanto ambas apelam para que aqueles ao redor reconheçam sua humanidade, é um que todos nós testemunharam e do qual participamos, em um ou outro papel, milhares de vezes desde a pré-escola.

A estrutura (do ensino) fundamental da dominação

Estou falando, é claro, do bullying no pátio da escola. Bullying, eu proponho, representa um tipo de estrutura fundamental da dominação humana. Se quisermos entender quando tudo começa a dar errado, é aqui que devemos começar.

Nesse caso também, condições devem ser estabelecidas. Seria muito fácil cair em argumentos evolucionários simplistas. Há uma tradição – A tradição Senhor das Moscas, podemos chamá-la – segundo a qual os valentões da escola são uma encarnação moderna do “macho alfa” primordial e ancestral, que instantaneamente restaura a lei da selva uma vez que não seja contido pela autoridade racional de um macho adulto. Mas isso é claramente falso. Na verdade, livros como O Senhor das Moscas são mais propriamente lidos como reflexões sobre os tipos de técnicas precisas de terror e intimidação de que as escolas públicas britânicas se serviam para transformar crianças de elite em oficiais capazes de gerenciar um império. Essas técnicas não vieram da ausência de autoridade; eram técnicas projetadas precisamente para criar um tipo de autoridade adulta, masculina, calculista e sangue-frio.

Hoje a maioria das escolas não são como a Eton e a Harrow dos dias de William Golding, mas mesmo naquelas que se orgulham de seus programas antibullying ele acontece em formas que de maneira alguma vão contra, ou ocorrem a despeito da, autoridade institucional. O bullying é mais como uma refração dessa autoridade. Para começar com uma coisa óbvia: as crianças não podem sair da escola. Normalmente, o primeiro instinto de uma criança quando ela está sendo atormentada ou humilhada por alguém maior é ir para outro lugar. As crianças na escola, contudo, não têm essa opção. Se elas insistirem em fugir rumo à segurança, autoridades as trarão de volta. Essa é uma das razões, eu suspeito, para a existência do estereótipo do valentão como o puxa-saco do professor ou monitor de corredor: mesmo quando não é verdadeiro, ele se alimenta do conhecimento tácito de que o valentão depende da autoridade da instituição pelo menos nessa única forma – a escola está, basicamente, segurando as vítimas para os valentões baterem. Essa dependência da autoridade é também a razão pela qual as formas mais extremas e elaboradas de bullying acontecem em prisões, onde os condenados dominantes e os carcereiros formam alianças.

Ainda mais importante, os valentões geralmente têm consciência de que o sistema provavelmente vai punir as vítimas que reajam mais fortemente. Assim como uma mulher que, confrontada por um homem que talvez tenha o dobro de seu tamanho, não pode se dar ao luxo de lutar de forma “justa”, e ao invés disso deve aproveitar um momento oportuno para infligir o maior dano possível ao homem que a tem abusado – uma vez que ela não pode deixá-lo em condições de revidar – também a vítima de bullying na escola deve responder com força desproporcional, não para incapacitar o oponente, mas para fazê-lo hesitar da próxima vez que quiser atacar.

Eu aprendi essa lição por experiência própria. Eu era magricela, mais jovem que os outros – eu pulei um ano – e então era um alvo perfeito para algumas das crianças maiores que pareciam ter desenvolvido uma técnica quase científica para dar socos em tampinhas como eu de forma rápida, dura e incisiva o bastante para evitarem ser acusados de terem atacado alguém. Quase não havia dia em que não me batiam. Finalmente, decidi que já era hora de aquilo acabar, encontrei o momento certo, e mandei um imbecil particularmente irritante voando pelo corredor com um soco bem dado na cabeça. Eu acho que posso ter rachado o lábio dele. De certa forma, funcionou como eu queria: por um ou dois meses os valentões, em geral, ficaram longe. Mas o resultado imediato foi que nós dois fomos levados ao diretor por brigar, e o fato de que ele me atacou primeiro foi determinado como irrelevante. Fui considerado culpado e expulso dos clubes de matemática avançada e de ciências (Uma vez que ele não tinha notas muito boas, não havia nenhum clube do qual pudesse ser expulso).

“Não interessa quem começou” são provavelmente as quatro palavras mais pérfidas da língua portuguesa. É claro que interessa.

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Crowdsourcing a crueldade

Muito pouco desse foco no papel da autoridade institucional é refletido na literatura da psicologia sobre o bullying, que, uma vez que é escrita principalmente para as autoridades escolares, presume um papel totalmente benigno para elas. Ainda assim, pesquisas recentes – e tem havido muitas desde Columbine – têm revelado, eu penso, várias coisas sobre essa forma fundamental de dominação. Vamos mais fundo.

A primeira coisa que essas pesquisas mostram é que a enorme maioria dos incidentes de bullying acontece na frente de um público. A perseguição privada é relativamente rara. A humilhação é uma grande parte do bullying, e seus efeitos não podem realmente ser produzidos sem alguém para testemunhá-los. Às vezes, o público instiga o valentão, rindo, incitando, ou ajudando. Mais frequentemente, o público fica passivo e quieto. É raro alguém defender um colega de classe sendo ameaçado, ridicularizado ou fisicamente atacado.

Quando pesquisadores perguntam às crianças por que elas não intervieram, uma minoria diz que eles acharam que a vítima teve o que mereceu, mas a maioria diz que eles não gostavam do que estava acontecendo, e certamente não gostavam muito do valentão, mas decidiram que se envolver podia significar que eles acabariam recebendo o mesmo tratamento que a vítima – e isso só ia piorar as coisas. O interessante é que isso não é verdade. Estudos também mostram que, em geral, se um ou dois observadores protestam, os valentões deixam a agressão de lado. Mesmo assim, a maior parte das testemunhas se convence de que o oposto vai acontecer. Por quê?

Primeiro porque quase todo tipo de ficção popular à qual eles provavelmente estão expostos diz a eles que vai. Super-heróis de quadrinhos o tempo todo entram em cena para dizer “Ei, pare de bater nele” – e invariavelmente os vilões de fato passam a odiá-los, o que resulta em todo tipo de problema (se há uma mensagem subliminar nesse tipo de ficção, ela com certeza é algo como “É melhor você não se envolver nesse tipo de coisa a não ser que possa lidar com um monstro interdimensional com lasers nos olhos”). O “herói”, como mostrado na mídia dos Estados Unidos, é principalmente um álibi para a passividade. Pensei nisso pela primeira vez quando vi um jornalista de TV local elogiar um adolescente que pulou num rio para salvar uma criança que estava se afogando. “Quando eu perguntei por que ele fez isso”, o jornalista disse, “ele disse o que os verdadeiros heróis sempre dizem, ‘eu só fiz o que qualquer pessoa faria nessas circunstâncias'”. Quem está assistindo deve entender que, é claro, isso não é verdade. Não é qualquer pessoa que faria isso. E não tem problema. Heróis são extraordinários. É perfeitamente aceitável que você, nas mesmas circunstâncias, fique parado e espere uma equipe profissional de resgate.

Também é possível que as crianças nas escolas reajam de forma passiva ao bullying porque elas já perceberam como a autoridade dos adultos opera e presumem erroneamente que a mesma lógica se aplica às interações com seus pares. Se é, digamos, um policial que está abusando de algum adulto desafortunado, então sim, é absolutamente verdadeiro que intervir vai provavelmente te dar uma séria dor de cabeça. E todos nós sabemos o que acontece com “dedos-duros” do governo (Você se lembra do secretário de estado John Kerry exigindo que Edward Snowden “fosse homem” e se submetesse a uma vida inteira de bullying sádico nas mãos do sistema de justiça criminal americano? O que é que uma criança inocente deve concluir disso?). Os destinos dos Mannings ou Snowdens do mundo são propagandas de alto nível para o princípio maior da cultura Americana: abuso de autoridade pode até ser ruim, mas apontar abertamente que alguém está abusando de autoridade é muito pior – e merece a mais severa punição.

Um segundo surpreendente dado de pesquisas recentes: os valentões não sofrem, na verdade, de baixa auto-estima. Psicólogos há muito tempo presumiram que crianças malvadas estavam descontando suas inseguranças nos outros. Não. Acontece que a maioria dos valentões agem como babacas mimados e arrogantes não porque estão sendo atormentado por duvidarem de si mesmos, mas porque são na verdade babacas mimados e arrogantes. Na verdade, a autoconfiança deles é tanta que eles criam um universo moral no qual seu “estilo” e violência se tornam o padrão a partir do qual os outros devem ser julgados; ser fraco, distraído, meio desajeitado ou reclamão não são apenas pecados, mas provocações que seria errado deixar de corrigir.

Aqui também eu posso oferecer um testemunho pessoal. Eu lembro bem de uma conversa com um atleta que eu conheci no ensino médio. Ele era um tonto, mas era querido. Eu acho que até ficamos chapados juntos uma ou duas vezes. Uma vez, depois de ensaiar para um drama de época, achei que ia ser engraçado entrar no dormitório em trajes renascentistas. Assim que ele me viu, partiu com tudo para cima de mim. Fiquei tão indignado que esqueci de ficar com medo. “Matt! Que porra é essa? Por que você quer me bater?”. Matt parecia tão surpreso que ele esqueceu de continuar a me ameaçar. “Mas… Você entrou no quarto usando calça de malha!”, ele protestou. “Quer dizer, o que é que você esperava?”. Será que Matt estava lidando com profundas inseguranças sobre sua própria sexualidade? Não sei. Provavelmente. Mas a verdadeira pergunta é por que presumimos que sua mente problemática é tão importante? O que realmente importa é que ele sentiu de verdade que precisava defender um código social.

Dessa vez, o valentão adolescente estava usando de violência para fazer cumprir um código de masculinidade homofóbica que também faz parte da autoridade adulta. Mas com crianças menores, esse geralmente não é o caso. Aqui vem um terceiro dado surpreendente da literatura psicológica – talvez o mais revelador de todos. No começo, não é a menina gorda, ou o menino com óculos, que tem mais chances de ser atacado. Isso vem depois, à medida que os valentões (sempre atentos às relações de poder) aprendem a escolher suas vítimas de acordo com os padrões dos adultos. Antes disso, o principal critério é como a vítima reage. A vítima ideal não é a absolutamente passiva. Não, a vítima ideal é aquela que enfrenta o valentão, mas o faz de uma maneira ineficaz, esperneando, chorando, ameaçando contar tudo pra mamãe, ou fingindo que vai lutar e depois fugindo. Fazer isso é precisamente o que torna possível criar um drama moral em que o público pode dizer a si mesmo que o valentão deve, em algum sentido, estar certo.

Essa dinâmica triangular de valentão, vítima e público é o que eu quero dizer com a estrutura profunda do bullying. Ela merece ser estudada em livros didáticos. Na verdade, ela merece estar em todo lugar em letreiros de neon gigantes: O bullying cria um drama moral em que a forma da reação da vítima a um ato de agressão pode ser usada como justificação retrospectiva para o próprio ato original de agressão.

Esse drama não aparece apenas no começo da infância; é precisamente o aspecto que permanece na vida adulta. Eu chamo isso de falácia “parem com isso vocês dois”. Qualquer um que frequenta fóruns de mídia social vai reconhecer o padrão. O agressor ataca. O alvo tenta ser superior a isso e não diz nada. Ninguém intervém. O agressor ataca com mais força. O alvo tenta ser superior e nada faz novamente. Ninguém intervém. O agressor ataca de novo.

Isso pode acontecer uma dúzia de vezes, cinquenta vezes, até que finalmente o alvo responde. Então, e só então, uma penca de vozes imediatamente surgem, dizendo “Treta! Treta! Olha só esses dois idiotas batendo boca!” ou “Será que vocês não podem se acalmar e aprender a ver o ponto de vista um do outro?”. O valentão esperto sabe que isso vai acontecer – e que ele não vai perder nenhum ponto por ser o agressor. Ele também sabe que se ele afinar sua agressão no tom certo, a resposta da vítima pode ser ela mesma representada como o problema.

Joselito: Você é um cara bacana, Pedrinho, mas eu tenho que dizer que você é um pouquinho idiota.

Pedrinho: Um pouquinho… Quê? Que caralhos você quis dizer com isso?

Joselito: Viu só? Te acalma, cara! Eu disse que tu era um cara bacana. Pra que falar palavrão? Você não viu que tem damas lendo a conversa?

E o que é verdadeiro quanto à classe social também é verdadeiro quanto a qualquer outra forma de desigualdade estrutural: daí epítetos como “mulheres loucas”, “nordestinos vagabundos” e uma variedade sem-fim de termos semelhantes. Mas a lógica essencial do bullying vem antes de tais desigualdades. É a matéria da qual são feitas.

Pare de bater em si mesmo

E essa, eu proponho, é a principal falha do ser humano. Não é que como espécie somos particularmente agressivos. É que tendemos a responder mal a agressões. Nosso primeiro instinto quando vemos uma agressão sem motivo é ou fingir que ela não está acontecendo ou, se isso se torna impossível, igualar o agressor e a vítima, colocando-os ambos sob um tipo de lógica de quarentena que, espera-se, pode evitar que contagie os outros (o que explica o fato, descoberto pelos psicólogos, de que as pessoas detestam valentões e vítimas em proporções mais ou menos iguais). O sentimento de culpa causado pela suspeita de que isso é um jeito essencialmente covarde de se comportar – já que é um jeito essencialmente covarde de se comportar – abre caminho para um jogo complexo de projeções, no qual o valentão é ao mesmo tempo um supervilão invencível e um fanfarrão inseguro que dá pena, enquanto a vítima se torna simultaneamente um agressor (aquele que viola seja lá qual for a convenção social que o valentão tenha invocado ou inventado) e um covarde patético que não quer se defender.

Obviamente, estou oferecendo apenas o rascunho mais mínimo de uma psicodinâmica complexa. Mas ainda assim, esses insights podem nos ajudar a entender por que é tão difícil estender nossas simpatias a, entre outros, soldados iraquianos chacinados enquanto fugiam do combate. Aplicamos a eles a mesma lógica de quando assistíamos passivamente a algum valentão da infância aterrorizar sua vítima: igualamos agressores e vítimas, insistimos que todo mundo é igualmente culpado (note como, sempre que se ouve uma notícia de uma atrocidade, alguns vão imediatamente começar a insistir que as vítimas devem ter cometido atrocidades também), e simplesmente esperamos que ao fazer isso, não vamos nos contagiar com a violência.

Essas são coisas difíceis. Eu não afirmo entendê-las completamente. Mas se almejamos uma sociedade genuinamente livre, então vamos ter que reconhecer como a relação triangular e mutuamente constitutiva de valentão, vítima e espectadores realmente funciona, e então desenvolver formas de combatê-la. Lembre-se, não somos um caso perdido. Se não fosse possível criar estruturas – hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum – que pelo menos às vezes evitam que essa dinâmica se inicie, então sociedades igualitárias de qualquer tipo jamais teriam sido possíveis. Lembre-se, também, de quão pouca coragem é geralmente necessária para parar valentões que não são apoiados por qualquer poder institucional. Acima de tudo, lembre-se de que quando os valentões são realmente apoiados por tal poder, os heróis podem ser aqueles que simplesmente vão embora.

[*] Mesmo assim, antes que demos um passe para os adultos do sexo masculino, devo observar que o argumento para a eficiência militar é uma faca de dois gumes: mesmo sociedades cujos homens se recusam a organizar a si mesmos efetivamente para a guerra também insistem, na gigantesca maioria das vezes, que as mulheres definitivamente não deveriam lutar. Isso é bem pouco eficiente. Mesmo se pudéssemos admitir que homens são, geralmente falando, melhor em combates (e isso não é de forma alguma claro; depende do tipo de luta), e se quiséssemos selecionar a metade da população com os corpos mais preparados para lutar, alguns destes corpos seriam femininos. De qualquer forma, em uma situação realmente desesperadora pode ser uma tática suicida não usar todos os recursos à disposição. Mesmo assim, várias e várias vezes encontramos homens – mesmo aqueles relativamente não-beligerantes – decidindo morrer em vez de quebrar seu próprio código social que diz que as mulheres jamais deveriam portar armas. Não surpreende então que tenhamos tanta dificuldade em ter empatia por vítimas masculinas de atrocidades: à medida que segregam as mulheres do combate, eles são cúmplices da lógica de violência masculina que os destruiu. Mas se estamos tentando identificar a falha principal ou o grupo de falhas na natureza humana que permite que essa lógica de violência masculina exista para começo de conversa, isso nos deixa com um cenário de confusão mental. Não temos, talvez, algum tipo de proclividade inata para a dominação violenta. Mas temos uma tendência a tratar aquelas formas de dominação que existem no momento – começando com a de homens sobre mulheres – como imperativos morais em si mesmos.

Nota do tradutor

Aconteceu de eu ler este texto logo depois de ver um vídeo do excelente canal Thunk. Eu absolutamente recomendo que você veja o seguinte vídeo como uma espécie de complemento – e também contraponto – ao texto traduzido acima.

Atualização: O vídeo abaixo conta agora com legenda em português brasileiro!

A autonomia de Nietzsche (Citação por Acampora e Ansell Pearson)

“A sessão 347 de Gaia Ciência escrutina a fé, o dogma e o que Nietzsche chama de fanatismo em termos da organização comando/obediência, que ele articula várias vezes em “Para além do bem e do mal”. Se por um lado todos nós somos ordens de comando/obediência, o que comanda e o que obedece, como o comando ocorre e como exerce seu controle sobre outras partes, até que ponto nos conscientemente identificamos com o que comanda, e o tipo de poder que sentimos, tudo isso varia consideravelmente e fundamenta as distinções que Nietzsche descreve em seus trabalhos. No caso do crente, Nietzsche acredita que a estrutura de comando é tão dissipada e tão disfuncional que a única forma de experimentar o prazer do poder é, perversamente, estando sujeito a ele, sendo comandado: “quanto menos alguém sabe comandar […], mais urgente é a busca por alguém que comanda, que comanda seguramente” (Gaia Ciência, 347). O que Nietzsche descreve como o “espírito livre por excelência” é alguém com um “tal prazer e poder de autodeterminação […] tal liberdade da vontade [will] […] que o espírito deixaria para trás toda fé e todo desejo por certeza, tendo se acostumado a manter-se sobre cordas insubstanciais e a possibilidade de dançar perto de abismos”. […] O espírito livre encontrado nas partes finais de Gaia Ciência desenvolveu uma organização e uma relação de afetos (que Nietzsche identifica com força [strength] [Para Além do Bem e do Mal, 21] e com a saúde [Humano, Demasiadamente Humano, P:4]) que permite que ele seja livre da necessidade de ser comandado, que ele se identifique com e experimente os poderes de comando dentro de si. Enquanto isso se assemelha a outras concepções de autonomia na histórias da filosofia, esse pensamento se distingue no reconhecimento da complexidade, flexibilidade e conteúdo (por exemplo, o prazer de viver, sentir-se como um poder no mundo de forma a não buscar apoio em suportes incondicionais).”

Christa Davis Acampora e Keith Ansell Pearson em Nietzsche’s Beyond Good and Evil, p. 73-76

David Graeber: comentários sobre consenso

Esta é uma tradução do pequeno artigo “Some Remarks on Consensus”, escrito pelo antropólogo anarquista David Graeber para o site OccupyWallStreet. É um excelente artigo para explicar aspectos básicos do processo decisório baseado em consenso.

Houve muita discussão sobre os procedimentos do Occupy Wall Street (OWS) recentemente. Isso é bom: a atrofia e a complacência significam a morte para movimentos sociais. Qualquer experimento viável de liberdade vai ter que praticamente se reexaminar constantemente para ver o que está funcionando e o que não está – em parte porque as situações mudam o tempo todo, e em parte porque estamos tentando inventar uma cultura de democracia em uma sociedade em que quase ninguém realmente tem experiência com processos democráticos de tomada de decisão, e a maioria de nós ouviu a vida inteira que isso é impossível, e ainda em parte simplesmente porque isso tudo é um experimento, e é da natureza dos experimentos que eles às vezes não funcionam.

Muito do que tem sido discutido é o papel do consenso. Isso também é saudável, porque aparentemente há muitas noções erradas voando por aí sobre o que o consenso é e o que ele deveria ser. Alguns desses erros são tão básicos, no entanto, que eu tenho que admitir que eles me surpreendem.

Só para citar um exemplo, Justine Tunney recentemente escreveu um texto chamado “Occupiers: parem de usar o consenso!”, que se inicia por descrever o consenso como “a ideia de que um grupo deve aderir estritamente a um protocolo em que todas as decisões são unânimes” – e na sequência ela afirma que o OWS usou esse processo, com resultados desastrosos. Isso é bizarro. O OWS nunca usou o consenso absoluto. Na primeira reunião, no dia 2 de agosto de 2011, estabelecemos que usaríamos uma forma modificada de consenso com um método reserva de maioria de dois terços. Mesmo assim, a descrição estaria errada mesmo que tivéssemos usado o consenso absoluto (uma ideia hoje em dia raramente usada com grupos de mais de 20 ou 30 pessoas), uma vez que o consenso não é um sistema de votação unânime, é um sistema em que qualquer participante tem o direito de vetar uma proposta que ele considera que viola algum princípio fundamental, ou ao qual ele tem uma objeção tão profunda que caso a proposta vá em frente a pessoa provavelmente sairia do grupo. Se há uma pessoa tão envolvida com o OWS desde o início que ainda não sabe disso, e pensa que o consenso é alguma forma de sistema de votação unânime “rigoroso”, temos um grande problema. Como é possível que alguém que trabalhou com o OWS por tanto tempo ainda permanece, aparentemente, completamente ignorante dos princípios sobre os quais deveríamos estar nos apoiando?

Obviamente, isso parece ser um caso extremo. Mas reflete uma confusão mais geral. E ela existe nos dois lados do argumento: tanto alguns dos maiores apoiadores do consenso quanto seus grandes detratores pensam que o “consenso” é um conjunto formal de regras, parecido com as “Regras de ordem de Robert”, que devem ser obedecidas à risca ou jogadas fora. Isso certamente não é o que as pessoas que originalmente desenvolveram o processo formal estavam pensando! Elas viam o consenso como um grupo de princípios, um compromisso com um processo decisório no espírito da resolução de problemas, do respeito mútuo e, acima de tudo, da recusa à coerção. Era uma tentativa de criar processos que funcionassem em uma sociedade realmente livre. Nenhuma dessas pessoas, nem a mais legalista delas, era tão presunçosa a ponto de afirmar que esses são os únicos procedimentos que poderiam funcionar em uma sociedade livre. Isso teria sido ridículo.

Vou voltar a isso depois. Primeiro,

1) Consenso é uma “coisa de brancos” (ou uma coisa da classe média branca, ou uma forma elitista de opressão, etc)

A primeira coisa a ser dita sobre essa frase é que isso é muito uma coisa dos Estados Unidos. As pessoas de outros países tendem a reagir com uma expressão de confusão total quando menciono isso para elas. Mesmo nos Estados Unidos essa é uma ideia relativamente nova, e o produto de um conjunto muito particular de circunstâncias históricas.

A confusão em outros países se deve ao fato de que em quase qualquer lugar exceto nos Estados Unidos, exatamente o contrário é verdadeiro. Nas Américas, na África, na Ásia, na Oceania, você pode encontrar fortes tradições de processos decisórios por consenso, e então histórias de colonos brancos vindo e impondo as Regras de ordem de Robert, voto majoritário, representantes eleitos, e todo o pacote associado com isso – à força. Os conselhos Panchayat do sul da Ásia não operavam por voto majoritário, e ainda não operam, a não ser que haja uma direta influência colonial, ou influência de partidos políticos que aprenderam a fazer democracia em escolas coloniais e instituições governamentais que os colonos organizaram. A mesma coisa vale para assembleias comunitárias na África (na China, assembleias em vilarejos também operavam por meio do consenso até que nos anos 50 o partido comunista impôs o voto majoritário, já que Mao sentia que “votar” era mais “ocidental” e, portanto, “moderno”). Quase em todo lugar das Américas, comunidades indígenas usam o consenso, mas os brancos e os descendentes mestiços dos colonos usam voto majoritário (à medida que tomem decisões de modo igualitário de todo, o que em geral não faziam), e quando você encontra uma comunidade indígena usando o voto majoritário, é novamente pela influência explícita das ideias europeias – quase sempre, junto com oficiais eleitos, e regras formais do procedimento obviamente aprendidas em escolas coloniais ou emprestadas de regimes coloniais. Quando há oportunidade de qualquer um ensinar o consenso, a ordem se inverte: como foi no caso das comunidades zapatistas que falam Maya, que insistiram que a EZLN adotasse o consenso apesar das fortes objeções iniciais de mestiços que falavam espanhol como Marcos, ou, aliás, ativistas australianos brancos que eu conheço que me contaram que grupos de estudantes dos anos 80 e 90 tiveram que pedir aos veteranos do Novo Exército Popular (NEP) Maoísta treinamento em processo por consenso – não porque os maoístas tinham que acreditar no consenso, uma vez que o próprio Mao não gostava da ideia, mas porque as guerrilhas do NEP vinham em geral das comunidades rurais das Filipinas, que sempre usaram consenso para tomar decisões e portanto as unidades guerrilheiras espontaneamente adotaram as mesmas técnicas.

Então de onde vem a ideia de que o consenso é uma “coisa de brancos”? Comunidades indígenas na América usavam processos por consenso ao invés de votar. Os Africanos trazidos às Américas foram sequestrados de comunidades em que o consenso era a forma normal de fazer decisões coletivas, e foram enfiados violentamente numa sociedade em que “democracia” significava votar (mesmo que eles próprios não tinham o direito de fazê-lo). Enquanto isso, o único grupo significante de colonos brancos que empregava o método por consenso era o dos Quakers – e até mesmo eles desenvolveram muito de seus processos sob a influência de nativos como os Haudenosaunee.

Até onde posso entender, essas ideias vêm das brigas políticas que envolviam o surgimento do nacionalismo negro dos anos 60. O primeiro movimento de massa dos Estados Unidos que operava por consenso era o SNCC, ou Student Non-Violent Coordinating Committee [Comitê Estudantil de Coordenação Não-violenta], um grupo primariamente afro-americano criado em 1960 como uma alternativa horizontal ao (bem vertical) SCLC de Martin Luther King. A SNCC operou de forma descentralizada e usou o método por consenso. Foi a SNCC por exemplo que organizou as famosas “Viagens da liberdade” e a maior parte das campanhas de ação direta do início dos anos 60. Por volta de 1964, uma facção Black Power emergente estava procurando por uma forma de isolar e em última instância expulsar os membros brancos do grupo. Eles viram na questão do consenso uma espécie de problema-chave – isso fazia sentido, politicamente, porque muitos desses aliados brancos eram Quakers, e era vantajoso, inicialmente, enquadrar o argumento como uma questão de eficiência, ao invés de problemas políticos e morais mais fundamentais como não-violência. É importante enfatizar que as objeções ao consenso como ineficiente e culturalmente esquisito, que foram colocadas naquela época, não foram feitas em nome de uma mudança em direção a outra forma de democracia direta (por exemplo, voto majoritário), mas, em última instância, como parte da rejeição de todo um conjunto de práticas como a horizontalidade, o consenso e a não-violência, com o objetivo final de criar estruturas organizacionais hierárquicas, que podiam dar suporte a uma maior militância. Isso também correspondeu a um ataque oculto ao lugar das mulheres na organização – que havia inclusive sido criada pela famosa ativista afro-americana Ella Baker sob o princípio de que “pessoas fortes não precisam de líderes fortes”. Stokely Carmichael, o mais famoso proponente do Black Power na SNCC, notoriamente respondeu a um documento circulado por feministas (que dizia que mulheres estavam sendo sistematicamente excluídas de posições de poder na nascente estrutura de liderança) dizendo que, por ele, “a única posição para mulheres na SNCC é de bruços”.

Dentro de alguns anos a SNCC começaria a rachar; aliados brancos foram expulsos em 1965; depois de uma breve união com os Panteras ela rachou de novo, e foi dissolvida nos anos 70.

Essas tensões – desafios ao horizontalismo e ao consenso, lideranças no modelo “macho”, a marginalização de mulheres – não foram de forma alguma peculiares à SNCC. Batalhas similares estavam acontecendo em grupos predominantemente brancos: notavelmente a SDS, que ultimamente desistiu do consenso também, e acabou se dividindo em maoístas e weathermen. Essa é uma das razões pelas quais o movimento feminista do início dos anos 70, que dentro da Nova Esquerda começou parcialmente como uma reação a exatamente esse tipo de postura machista, abraçou o consenso como antídoto (os anarquistas só adotaram isso delas mais tarde). Mas uma coisa precisa ser notada. É importante. Nenhum desses desafios ao consenso foi feito em nome de uma forma diferente de democracia direta. Na verdade, eu não sei de nenhum exemplo de um grupo ativista que abandonou o consenso e a seguir se baseou em alguma forma diferente, mas igualmente horizontal, de processo decisório. O resultado final é sempre o abandono total da democracia direta. Às vezes isso acontece porque isso é exatamente o que querem aqueles que desafiam o consenso. Mas mesmo quando não é o que eles querem, a mesma coisa acontece, porque se afastar do consenso dá início a uma dinâmica que invariavelmente leva a uma direção vertical. Quando se abandona o consenso, alguns membros vão provavelmente sair do grupo como forma de protesto, justamente os mais dedicados a princípios horizontais. Facções se formam. Facções minoritárias que consistentemente perdem em votações importantes, e não têm suas preocupações incorporadas às propostas resultantes, vão em geral se separar. Uma vez que eles próprios costumam consistir de participantes mais orientados aos princípios de horizontalidade, o grupo original se torna cada vez mais vertical. Não demora muito para aqueles que nunca gostaram da democracia direta começarem a culpá-la por todos esses problemas; ela é ineficiente, e as coisas seriam muito melhores com papeis de liderança bem definidos – e só é necessário 51% do grupo restante, que está agora muito mais vertical, para abandonar completamente a democracia direta.

Obviamente, a percepção mais ampla de que o processo por consenso é uma coisa de brancos não é uma sobra de eventos que aconteceram há quarenta anos. Grande parte do problema é que, desde os anos 70, o processo por consenso tem sido desenvolvido por grupos orientados pela ação direta, e, enquanto certamente há grupos afro-americanos que operam no que pode ser entendida como a tradição de Ella Baker, a maioria desses grupos tem sido amplamente brancos. As razões são bem óbvias. Aqueles que não tem o privilégio branco enfrentam maiores níveis de repressão estatal, e (diferente de, digamos, o México, ou a Índia, em que aqueles que enfrentam mais repressão geralmente vêm de comunidades semiautônomas que operam pelo menos parcialmente baseados em consenso), nos Estados Unidos, isso limita o grau em que é possível criar espaços experimentais fora do sistema. As comunidades enfrentam preocupações práticas tão urgentes que muitos sentem que agir fora do sistema seria irresponsável. Aqueles que não pensam assim geralmente sentem que não têm outra escolha a não ser adotar práticas rigorosas de não-violência no estilo de Martin Luther King ou um militarismo revolucionário como o dos Panteras – e ambos tendem a levar a formas hierárquicas de organização. Como resultado, a cultura do consenso, o estilo em que é conduzida e as sensibilidades que a cercam acabam por refletir o pano de fundo cultural branco de classe média de muitos daqueles que a criaram e lhe deram forma, e o resultado é que aqueles que não compartilham dessas sensibilidades se sentem alienados e excluídos. Obviamente isso é algo que precisa ser trabalhado com urgência. Mas o problema aqui não é com os princípios que dão base ao consenso (que todas as vozes têm peso igual, e que ninguém será obrigado a agir contrário à sua vontade), mas com a forma com a qual eles têm sido executados – e o fato de que a forma com a qual têm sido executados tem o efeito de debilitar esses princípios.

2) Regras x princípios

Eu acho que o verdadeiro problema aqui é entender mal o que está sob escrutínio. Muitas pessoas nos dois lados do debate parecem pensar que “consenso” é um conjunto de regras. Se você seguir as regras, você está executando um processo por consenso. Se você quebrar as regras, ou executá-las na ordem errada, de alguma forma não está mais. Eu vi pessoas aparecerem nas reuniões armadas com diagramas e fluxogramas complexos baixados de alguma página da web, representando algum tipo de processo formal, e elas insistiam que aquilo ali era o processo de verdade. Então não é muito surpreendente que outras pessoas tenham sido desencorajadas por isso, ou que outras ainda achem que esse tipo particular de processo foi até onde era possível, e digam: “bem, o consenso não funciona. Vamos tentar outra coisa”.

Até onde vejo, ambos os lados estão mirando o alvo errado.

Eu vou repetir. O consenso não é um conjunto de regras. É um conjunto de princípios. Na verdade eu iria ainda mais longe para dizer que se você realmente quiser um resumo, ele se trata apenas de dois princípios: todos deveriam ter igualdade de expressão nas decisões (chame isso de “igualdade”), e ninguém deveria ser obrigado a fazer algo que realmente não queira fazer (chame isso de “liberdade”).

Basicamente, é isso. As regras são uma forma de tentar chegar a decisões no espírito desses princípios. O “processo formal por consenso”, em suas várias manifestações, é só uma técnica que as pessoas inventaram, ao longo dos anos, para chegar a decisões por grupo que resolvem problemas práticos de modo que a perspectiva de ninguém seja ignorada, e ninguém seja forçado a fazer nada que não queira ou concordar com regras que elas considerem ofensivas. É isso. É uma forma de encontrar o consenso. Não é “o consenso” em si mesmo. O processo formal como ele existe hoje provou sua utilidade para alguns tipos de pessoas, em algumas circunstâncias. É totalmente inapropriado em outras. Para pegar um exemplo óbvio: a maioria dos grupos pequenos de amigos não precisa de nenhum processo. Outros grupos podem, ao longo do tempo, desenvolver um método completamente diferente que se adeque a suas próprias dinâmicas, relações, situações, culturas e sensibilidades. E não há absolutamente razão alguma para que um grupo não possa improvisar uma técnica nova se é isso que quiserem fazer. Desde que estejam tentando criar um processo que incorpore esses princípios básicos, um que dê a todos igual oportunidade de se expressar e participar da decisão, e não force alguém a acompanhar a uma decisão que seja considerada fundamentalmente questionável, então o que eles conseguiram criar foi uma forma de processo por consenso – não importa como ela opera. Afinal, se um grupo de pessoas decide que quer operar por voto majoritário, bem, quem exatamente vai impedi-los? Se todos eles decidem que vão operar por voto majoritário, então eles atingiram um consenso (na verdade, um consenso absoluto) de que eles vão funcionar dessa forma. O mesmo seria verdade se eles decidissem basear suas decisões num jogo de comunicação com espíritos, ou apontar um membro do grupo como ditador. Quem vai impedi-los? No entanto, se pela mesma razão, no momento em que a maioria (ou os espíritos, ou o ditador) toma uma decisão que alguns pensam que é absolutamente escandalosa e se recusam a apoiar, como é que alguém vai forçá-los a obedecer? Ameaçando atirar neles? Basicamente, isso só poderia acontecer se a maioria estiver de alguma forma no controle de algum recurso-chave – dinheiro, espaço, conexões, um nome – e outros não. Isto é, se houver um meio de coerção, sutil ou não. Na ausência de uma forma de obrigar as pessoas a fazer coisas que elas não querem fazer, você está preso a alguma forma de consenso, goste você ou não.

A questão então é que tipo de processo decisório mais provavelmente levará a decisões que ninguém vai questionar tão fundamentalmente que vão deixar o grupo ou simplesmente se recusar a cooperar? Às vezes isso vai ser algum tipo de processo formal por consenso. Em outras circunstâncias essa é a última coisa que as pessoas deveriam tentar. Ainda assim, há uma razão para que uma maioria 51/49% é tão raramente empregada nessas circunstâncias: geralmente, é o método menos provável de gerar tais decisões.

Pense nisso da seguinte forma.

Imagine que uma cidade está prestes a destruir alguma praça querida e alguém faz cartazes marcando uma reunião ali perto para organizar um movimento contra aquilo. Cinquenta pessoas aparecem. Alguém diz: “eu proponho que a gente vá deitar na frente das máquinas. Vamos votar”. Então 30 pessoas levantam as mãos dizendo sim, e 20 pessoas dizem não. Bem, que possível razão existe para que as 20 pessoas que disseram não se sintam de alguma forma obrigadas a deitar na frente das escavadeiras? Estas pessoas eram 50 estranhos reunidos numa praça. Por que as opiniões de uma maioria num grupo de estranhos obrigaria uma minoria a fazer qualquer coisa – ainda mais algo que vai colocá-los em perigo pessoal?

O exemplo pode parecer absurdo – quem faria uma votação assim? – mas eu experimentei algo quase igual alguns anos atrás, em uma reunião “completamente anarquista” em Londres antes de uma mobilização em massa contra o G8. Cerca de 200 pessoas apareceram no RampArts Social Center. O facilitador, um sindicalista que não gostava de consenso, explicou que algum outro grupo propôs uma marcha, seguida de algum tipo de ação direta, e imediatamente procedeu a uma votação para verificar se nós, enquanto grupo, gostaríamos de nos juntar a eles. Estranhamente, não pareceu ocorrer a ele que, uma vez que nós não éramos de fato um grupo, mas apenas um monte de gente que apareceu numa reunião, não havia razão para pensar que aqueles de nós que não queriam participar dessa ação seriam influenciados pelo resultado. Na verdade ele nem estava fazendo uma votação. Ele estava fazendo uma enquete: “quantas pessoas estão pensando em se juntar à marcha?”. Não há nada de errado com enquetes; na verdade, uma das coisas mais úteis que ele poderia fazer nessa circunstância seria pedir para que as pessoas levantassem as mãos para que todos pudessem ver o que os outros estavam pensando. O resultado poderia ter mudado a cabeça de muitos – “bem, parece que um monte de gente está indo nessa marcha, de repente eu vou também” (embora nesse caso, na verdade, não mudou). Mas o facilitador pensou que ele estava conduzindo uma votação quanto ao que fazer, como se nós fôssemos na verdade obrigados a seguir a decisão.

Como ele pode ter sido tão cego? Bem, ele era um sindicalista. Sindicatos usam voto majoritário; é por isso que ele preferiu isso. Mas é claro, sindicatos são grupos baseados em pertença. Se você se juntar a um sindicato está, pelo próprio ato de fazê-lo, concordando em participar de suas regras, o que inclui aceitar a votação por maioria. Aqueles que não seguem as regras do grupo podem ser sancionados, ou até mesmo expulsos. Simplesmente não ocorreu a ele que o sistema de votação da maioria dos sindicatos depende da existência prévia de listas de membros, anuidades, licenças e, geralmente, bases legais – o que significa que ou todo mundo que voluntariamente entrou no sindicato estava de fato consentindo às regras, ou que se fazer parte do sindicato for obrigatório em uma determinada área devido a uma determinação governamental, todo mundo estava sujeito ao poder do Estado. Agir da mesma forma quando as pessoas não consentiram em ser obrigadas a uma decisão, e então esperar que elas sigam o que a maioria quer mesmo assim, só vai irritar mais pessoas e torná-las menos, não mais, inclinadas a fazê-lo.

Então vamos voltar para o primeiro exemplo de Justine.

A primeira vez que eu vi um bloqueio ser usado no Occupy foi em uma das primeiras assembleias gerais em agosto de 2011. Havia cerca de 100 pessoas naquele dia e no meio de uma reunião uma proposta foi feita para nos juntarmos a trabalhadores da Verizon em uma linha de piquete como gesto de solidariedade, na esperança de que eles também nos ajudassem de volta. As pessoas amaram a ideia e houve certa energia positiva, até que uma mulher na multidão, tuitando no seu celular, causalmente levantou a mão e disse “eu bloqueio isso aí”. O facilitador, abismado, perguntou por que ela bloqueou e ela explicou que mostrar solidariedade com trabalhadores poderia alienar o espectro de nossos apoiadores de direita. A discussão então acabou abruptamente e a reunião seguiu em frente. A verdade era irrelevante, a opinião popular não importava, e a solidariedade – o mais importante dos valores de esquerda – foi jogada pela janela com base nos caprichos de apenas um indivíduo. O Occupy tinha que encontrar uma nova forma de alcançar outras pessoas.

Agora, eu estava nessa reunião, e eu lembro disso vividamente porque à época eu era um dos participantes que ficou mais do que um pouco irritado com aquele bloqueio. Mas eu sei que isso simplesmente não foi o que aconteceu.

Primeiramente, como eu notei, o OWS desde o começo não tinha um sistema em que uma pessoa apenas podia bloquear uma proposta; caso houvesse um bloqueio, nós tínhamos a opção de usar um método de maioria por dois terços. Então se todo mundo realmente tivesse amado a proposta, o bloqueio poderia ser simplesmente ignorado. Enquanto muitos de nós achavam que a mulher em questão estava sendo ridícula (muitos de nós suspeitavam que o “movimento nacional” que ela dizia representar não existia de verdade), a facilitadora, ao perguntar se alguém mais se sentia assim, se surpreendeu ao descobrir que um contingente significante – alguns, mas não todos, anarquistas insurrecionistas – de fato tinham uma objeção quanto a fazer a próxima reunião numa linha de piquete, porque eles não queriam imediatamente identificar o movimento com a esquerda institucional. Uma vez que ficou claro que não foi só uma pessoa maluca, mas uma significativa porção do encontro – provavelmente não um terço, mas quase (não havia realmente 100 pessoas lá, incidentalmente; estava mais para umas 60) – ela perguntou se alguém sentia que deveríamos efetivamente passar a um voto majoritário, e ninguém insistiu. Isso foi um terrível fracasso do processo? Eu devo admitir que naquela época eu senti que aquilo era exasperante. Mas em retrospecto, percebo que se tivéssemos forçado um voto os resultados poderiam ter sido catastróficos. Porque àquela época nós, também, éramos um monte de gente que apareceu num parque. Nós não éramos realmente um “grupo”. Ninguém tinha se comprometido com nada; e, certamente, ninguém tinha se comprometido em aceitar uma decisão por maioria.

Um bloqueio não é um voto “não”. É um veto. Ou uma melhor forma de enquadrar isso é que dar a todo mundo o poder de bloquear é como dar o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos, de interromper uma lei que eles consideram inconstitucional, a qualquer um que tenha a coragem de ir à frente do grupo usá-lo. Quando você bloqueia, está dizendo que uma proposta viola um dos princípios comuns que o grupo concordou em estabelecer. É claro, nesse caso nós não tínhamos princípios comuns estabelecidos. Em casos como esse, a regra de ouro é que você deveria apenas bloquear se você sente algo tão forte quanto a um assunto que você na verdade abandonaria o grupo. Nesse sentido eu suspeito que a bloqueadora inicial estava realmente sendo irresponsável (ela não teria realmente ido embora, e muitos não sentiriam falta dela se ela fosse). Outros, no entanto, sentiam algo a mais quanto àquilo. Se tivéssemos votado fazer a próxima reunião numa linha de piquete, apesar das objeções deles, muitos provavelmente não voltariam a aparecer. O contingente antiautoritário teria sido enfraquecido. Se isso tivesse acontecido, há uma real chance de que decisões posteriores, muitas bem importantes, teriam ido em outra direção. Estou pensando aqui em particular na decisão crucial, feita algumas semanas depois, de não apontar delegados oficiais e conexões com a polícia para o 17 de setembro. A julgar pela experiência em outros lugares, se isso tivesse acontecido, tudo teria sido muito diferente e toda a ocupação teria falhado. Em retrospecto, a perda de uma oportunidade inicial de criar laços com sindicalistas em greve pareceu um pequeno preço a pagar para não seguir numa direção que poderia ter levado a isso. Especialmente porque não tivemos problema no estabelecimento de laços fortes com os sindicatos mais tarde – precisamente porque tivemos sucesso em criar uma real ocupação no parque.

Há muitas outras coisas que alguém poderia discutir. Acima de tudo, nós desesperadamente precisamos ter uma conversa sobre descentralização. Outro ponto de confusão sobre o consenso é a ideia de que é crucial ter o apoio de todo mundo sobre tudo, o que é novamente sufocante e absurdo. O consenso só funciona se grupos de trabalho ou coletivos não sentem que precisam de constante aprovação do grupo mais amplo, se a iniciativa vem de baixo, e as pessoas apenas checam com o grande grupo se há uma razão genuinamente importante para não ir em frente com alguma iniciativa sem checar com todo mundo se está certo prosseguir. Por estranho que pareça, a própria morosidade das reuniões por consenso ajuda aqui, uma vez que desencoraja as pessoas de levar problemas triviais para o grande grupo, o que potencialmente desperdiçaria o tempo de todo mundo.

Mas tudo isso sem dúvida será melhor discutido nos debates que estão acontecendo (outra boa regra de ouro pare reuniões por consenso: você não precisa dizer tudo que você quer dizer se você tem certeza que alguém vai falar as mesmas coisas que você de qualquer forma). Principalmente o que eu quero dizer é isso:

Nosso poder está nos nossos princípios. O poder do Occupy sempre foi que ele é um experimento da liberdade humana. É isso que inspirou tantos de nós a nos juntarmos a ele. É isso que apavorou bancos e políticos, que se viraram do avesso – infiltração, rachaduras, proselitismo, terrorismo, violência – para poder dizer ao mundo que falhamos, que eles provaram que uma sociedade genuinamente livre é impossível, que ela necessariamente entraria em um colapso de caos, sordidez, antagonismo, violência e disfuncionalidade. Nós não podemos permitir-lhes tal vitória. A única forma de lutarmos contra isso é renovar nosso compromisso absoluto com esses princípios. Nós nunca vamos ceder quanto à igualdade e à liberdade. Nós vamos sempre basear nossas relações uns com os outros nesses princípios. Nós não vamos reverter a estruturas e formas decisórias hierárquicas cuja premissa é o poder de coerção. Mas enquanto fizermos isso, e se realmente acreditarmos nesses princípios, isso necessariamente significa ser tão aberto e flexível quanto pudermos quanto a todo o resto.

5 estratégias usadas pelos poderosos para fazer você odiar protestos

Esta é uma tradução do excelente artigo “5 Ways Powerful People Trick You Into Hating Protesters”, de David Wong, originalmente publicado em junho de 2015 no Cracked.

Digamos que amanhã você se torne o Ditador Secreto dos Estados Unidos, obtendo assim total poder sobre o governo, a economia e a cultura em geral – tudo que os hippies chamam de “sistema”. Sua primeira tarefa é não ter sua cabeça guilhotinada por pobretões enraivecidos, o que significa que sua primeira tarefa é na verdade a manutenção da “estabilidade” (ou seja, “manter as coisas mais ou menos do jeito como estão agora”).

Imediatamente você vai perceber que está enfrentando um número interminável de protestos por parte de grupos desconjuntados, que dizem estar sendo tratados injustamente ou estão de alguma forma sendo deixados “de fora” – esse aqui está incomodado porque alguém foi atacado pela polícia; aquele outro exige maiores salários ou coisa parecida. Como lidar com isso? Claro, você poderia esmagar esses movimentos com um punho de ferro, matando, intimidando ou prendendo seus membros mais importantes. Mas isso pode se voltar contra você, transformando-os em mártires e provando, ao mesmo tempo, que eles estavam certos – você viu Star Wars; alguém sempre acha a porta de exaustão.

Não, o que você precisa fazer é ter a maioria do seu lado, contra esses reclamões. Para a sua sorte, o “sistema” vem com uma série de sutis e refinados processos criados para fazer com que as reclamações dos poucos sejam certamente ignoradas pelos muitos. Primeiro, tudo que você tem que fazer é…

Esperar que um deles desrespeite a lei, e então só falar disso

Esse pode ser literalmente o truque mais velho de todos. Eu acho que os poderosos têm feito isso com protestantes e ativistas desde os dias em que ser dilacerado por um mamute era a maior causa de acidentes fatais. Funciona assim:

A) Um certo grupo tem uma reclamação – eles sofrem discriminação, tiveram seus direitos cerceados, tanto faz – mas são uma minoria.

B) Como a maioria não é afetada, eles ignoram em grande medida a situação e não se interessam pelo que está acontecendo com os afetados. A mídia de massa não fala do assunto, porque não dá audiência.

C) Pra chamar a atenção da maioria, o grupo vai se juntar para fazer barulho, bloquear avenidas, etc. Isso força a mídia a cobrir o protesto (já que multidões barulhentas dão bons fotos e vídeos) e cobrir o assunto (já que parte da cobertura jornalística do protesto envolve a explicação sobre o quê está sendo reivindicado). Nos Estados Unidos vemos essa tática ser usada por todo mundo, desde veteranos de guerra empobrecidos e mulheres em busca do direito de voto até os protestos quanto à violência policial de 2014.

D) Para conter isso, tudo que você precisa fazer é simplesmente esperar um membro do grupo ativista – qualquer membro – cometer um crime. Aí a mídia vai focar o crime, porque tumultos e vidros quebrados dão fotos e vídeos ainda melhores que protestos. A maioria da população – que teme, acima de tudo, o crime e a instabilidade – vai provavelmente associar o movimento com a violência a partir dali.

E) Você, em sua missão para evitar que o sistema mude, pode agora reenquadrar o problema não como uma questão de opressores contra oprimidos, mas de cidadãos contra bandidos – apoiar a causa deles significa apoiar a violência. A TV vai estar cheia de imagens de lojas de conveniências em chamas e vitrines furtadas, e nesse ponto a maioria vai dizer, com um sorriso esnobe, eu nunca protestaria contra a opressão governamental destruindo a propriedade privada de alguém!”.

“Quer dizer, por que eles não podem protestar de acordo com a lei? Sabe, tipo o Martin Luther King. É por isso que todo mundo o respeitava naquela época!”.

“E, vamos encarar a realidade, o fato de que eles estão apelando para a violência e para a destruição mesquinha de propriedade prova que eles não passam de criminosos procurando por uma desculpa para fazer arruaça!“.

Agora, perceba que nem as pessoas repetindo essas coisas vão acreditar nelas de verdade – a cultura pop dos Estados Unidos e a história da humanidade estão ambas cheias de heróis que desrespeitaram as leis e destruíram um monte de coisas quando o sistema não funcionava para eles (você sabe que o Batman não tem uma licença para pilotar aquele avião). Até hoje nós aplaudimos quando povos oprimidos de outros países fazem isso. Então quando alguém diz que devemos ignorar um movimento porque eles são uma “gangue” e um amigo comenta que o mesmo poderia ser dito dos fundadores da República dos Estados Unidos, vai haver uma troca imediata de marcha. “É sério que você está comparando os manifestantes de Ferguson com aqueles corajosos heróis que foram para a cadeia, como o Thomas Paine? Eles estavam lutando por liberdade!”.

Em outras palavras, eles vão rapidamente admitir que a legalidade das táticas na verdade não tem qualquer relação com o fato de uma causa ser justa ou não – tanto veteranos de guerra, que tiveram seus membros dilacerados, quanto neonazistas, foram jogados na cadeia por protestos que acabaram mal. Membros indomáveis de um grupo não tornam a causa automaticamente errada; tampouco a tornam automaticamente certa. Todos vão concordar que isso é verdadeiro e lógico, mas aí, cinco minutos depois, vão deixar de lado toda essa lógica se um único carro de polícia estiver pegando fogo. O índice de sucesso desta técnica é muito alto – hoje, a única coisa que a maioria das pessoas na China lembra do massacre de Tiananmen Square é que ele restaurou a estabilidade e a ordem.

“Mas já que os Estados Unidos foram construídos a partir de uma revolução, não seria provável que a maioria das pessoas automaticamente ficasse do lado dos menos favorecidos, mesmo que eles pisem um pouco fora da linha?” – Isso é certamente um perigo, e por isso o próximo passo é…

Convencer a maioria privilegiada de que eles são os oprimidos

Ano passado um investidor bilionário disse que a crítica aos ricos hoje é equivalente à perseguição aos judeus durante o holocausto. Não, ele não está tendo um infarto; ele está sob a influência de uma das mais poderosas técnicas de que o sistema dispõe. Para fazer com que a maioria ignore as reclamações de qualquer grupo em desvantagem, simplesmente insista que o grupo em desvantagem é quem realmente tem o poder, e que a maioria poderosa é, assim, o grupo em real desvantagem. Isso geralmente envolve os seguintes passos:

A) Encontre um exemplo de um membro poderoso do grupo em desvantagem e exagere seu poder.

B) Diga ou faça coisas incrivelmente ofensivas até que a vítima perca a postura, e então a acuse de censura / opressão.

C) Acuse a vítima de gostar de sua vitimização e / ou de fazer o que ela faz só pela publicidade. Diga que ela estava pedindo por aquilo, e que ela foi a causa de seu próprio problema desde o início.

Vou dar alguns exemplos da vida real, e acredite: uma vez que você entender essa lógica, vai começar a vê-la em todo lugar.

Digamos que seu país tenha um problema de pobreza que está se agravando rapidamente, e os empobrecidos estão começando a fazer barulho. O passo A requer que você insista que aqueles que estão mais no fundo do poço – aqueles que dependem da assistência do governo para comprar comida – são na verdade ricos. Isso pode parecer uma tarefa impossível, se não ridícula, mas tudo que você precisa é uma nota fiscal alterada no Photoshop mostrando uma enorme quantia de subsídio governamental para alimentação sendo gasta com bebida alcoólica, e a maioria vai compartilhar isso no Facebook centenas de milhares de vezes. Ou então, encontre um vídeo de um mendigo que foi pego dirigindo um carro de luxo, e isso vai sair nas manchetes como o exemplo típico de uma pessoa pobre. Depois vem o passo B: no momento em que alguém pegar você na mentira, vá para o argumento da censura ao dizer que você é um mártir atacado pelos “politicamente corretos”. E aí vá para o passo C, no qual você diz que os ativistas que estão apoiando as vítimas de seu ataque só estão fazendo isso por dinheiro ou atenção.

É só isso, na verdade. Três passos simples – exagere o poder da vítima para levar o público para o seu lado, faça com que a vítima se irrite para que você possa se declarar como vítima, insista que todas as reclamações das vítimas contêm segundas intenções. Pronto. Acabou.

E só para deixar claro, a narrativa acima – de que todos que dizem ser pobres são secretamente ricos – é novamente algo em que ninguém acredita. Ofereça a qualquer um que diga isso a chance de viver nos projetos de moradia pública, ou nos parques de trailers onde se intocam estas secretamente ricas rainhas do seguro-desemprego, e tudo que você vai ver é uma nuvem de poeira e uma minúscula silhueta escapulindo em direção ao horizonte. Mas você não precisa que a maioria das pessoas acredite mesmo nisso, apenas que a maioria “acredite” nisso.

E é por isso que isso funciona com qualquer grupo, não importa o quão ridiculamente a dinâmica do poder os favoreça. A indústria do petróleo tem um lucro anual de 200 bilhões de dólares. Se você quer que eles sejam retratados como os oprimidos, apenas A) fale sobre como esses pobres rapazes são constantemente atacados pelo poderosíssimo lobby ambiental…

… e, sério, não tenha medo de usar palavras como “bullying”, mesmo ao falar de quem literalmente constitui um dos grupos mais poderosos e ricos da história da humanidade. Uma citação de verdade: “Se alguém estava sofrendo bullying aqui, era a Chevron. Era quase impossível para uma empresa de petróleo ser ouvida de forma justa num mundo que sofreu uma lavagem cerebral ambientalista”. É claro que a parte sobre ser ouvido de forma justa já cobre o passo B, que é a acusação de censura e o lamento relativo à vitimização. Então, no passo C, você fala sobre como os ambientalistas só pensam o que pensam pelo dinheiro (nesse caso, Al Gore) e pronto – logo você terá várias pessoas olhando para a subida nos preços da gasolina e dizendo “Valeu, Greenpeace”.

E mesmo que só de mencionar isso eu já me canse, todo o negócio do GamerGate no ano passado é um exemplo perfeito. Um homem queria atiçar uma maioria esmagadoramente masculina contra uma desconhecida desenvolvedora amadora de jogos, então ele A) literalmente disse que ela estava sendo adorada como um “falso ídolo” que precisava ser derrubado, e então só para fechar com chave de ouro os abusadores começaram a dizer que ela era na verdade uma poderosa agente secreta numa missão de propaganda cultural em favor do governo dos EUA. Aí, B) quando a situação ficou tão ruim que ela teve que pedir por uma porra de uma medida cautelar, eles chamaram isso de censura. E, é claro, C) quando ela recebeu doações de pessoas que sentiram pena dela, eles declararam que isso era prova cabal de que tudo que ela queria o tempo todo era dinheiro.

Dez anos antes, eles fizeram isso com outra desenvolvedora chamada Kathy Sierra, seguindo exatamente o mesmo padrão. Essa jogada nunca muda porque nunca para de funcionar – com esses três simples passos você pode fazer com que multidões façam bullying com quem quer que seja em seu nome, e ao mesmo tempo se proclamem heróis. Afinal de contas, qual tática seria radical demais quando você está lutando contra um gigante invencível que está tentando te intimidar e silenciar todas as críticas em troca de fama e grana?

Concentre-se em suas reclamações mais triviais (e seus membros menos simpáticos)

Uma vantagem do seu papel como Ditador Secreto é que seus cidadãos estão cheios de informação até o pescoço. Notícias voam na direção deles por todos os lados, com muitas e muitas vozes exigindo atenção ou atitudes diariamente. Cada uma dessas pessoas bem intencionadas têm muitos problemas em suas próprias vidas, então elas têm que escolher cuidadosamente com quais “problemas” vão se preocupar e quais vão ignorar. Muitas delas vão tomar essa decisão bem rapidamente, com base na informação que estiver mais à mão. O seu trabalho, então, é garantir que elas sejam expostas apenas aos exemplos mais ridículos ou esquisitos do assunto ou grupo que você quer que desapareça.

O que quer dizer que você provavelmente vai querer se basear nos canais de notícias de TV a cabo.

Só para ser equilibrado (já que eu mencionei o GamerGate acima), deixe-me pegar um exemplo recente em que isso foi utilizado contra ativistas dos direitos dos homens. Houve um pequeno furor na internet quando o filme Mad Max: Estrada da Fúria foi lançado, resultando em manchetes como “Mad Max: Estrada da Fúria atrai a ira de ativistas dos direitos dos homens”, com artigos falando sobre como “a comunidade” dos tipos que defendem os direitos dos homens estavam praticamente pegando em armas contra o filme, organizando um boicote por causa do fato de que ele continha uma mensagem supostamente feminista junto à torrente de pessoas deformadas sendo aniquiladas em batidas de carros (dica: o Mad Max não é o personagem principal).

Eu ri quando eu vi essas manchetes e retuitei os artigos. Haha, esses merdinhas dos direitos dos homens ficam loucos por qualquer coisa! Mas alguns dias depois, um pouquinho de pesquisa revelou que, apesar do fato de que essas manchetes deixavam implícito um grande movimento nacional, o “boicote” foi na verdade um único maluco reclamando sobre o filme num site de direitos dos homens nada representativo. O homem em questão não é proeminente no movimento sob qualquer perspectiva – ele gasta seu tempo postando vídeos no Youtube que raramente passam das 2000 visualizações. Então por que a blogosfera disseminou suas baboseiras como se ele fosse um porta-voz importante do movimento? Porque isso fazia o movimento parecer ridículo.

Veja, ao ressaltar a reclamação mais boba de um grupo, você imuniza o público contra qualquer reclamação real que possa vir mais tarde, criando uma reação rápida de descarte a qualquer hora que, digamos, um homem reclama de forma razoável sobre como até os homens podem ser prejudicados por papeis de gênero ou quando outro tem uma história legitimamente terrível para contar. “Ha”, as pessoas vão dizer, “esses são os mesmos caras que ficaram chorando porque o último Mad Max teve uma mulher no papel principal!”. Não, não são os mesmos caras, a não ser que estejamos literalmente falando de Aaron Clarey. “Quem?”. Pois é.

Da mesma forma, há muitos grupos por aí cuidando do bem-estar dos animais, mas eu aposto que o único que você lembra é o PETA, porque são eles que fazem todo tipo de idiotice como insistir que as pessoas chamem os peixes de “gatinhos do mar” e protestar pelados, o que não ajuda ninguém. Dessa forma, quando alguém falar sobre coisas realmente horríveis que indústrias bilionárias fazem (como confinamento intenso ou pet shops vendendo animais criados em confinamentos cruéis), você vai rolar seus olhos e dizer “são provavelmente aqueles malucos do PETA de novo!”.

Como eles são ridículos, são eles que recebem toda a cobertura midiática e se tornam o rosto do movimento. E, como resultado, nenhuma mudança significativa vai acontecer.

Mais uma vez eu não preciso ficar falando sobre como isso é ilógico – a existência de uma reclamação frívola não automaticamente significa que não há outras, mais sérias, a serem encontradas na mesma direção. Uma pessoa que sofre de câncer ainda pode reclamar que seu programa preferido de TV foi cancelado; isso não significa que o câncer dela não deve ser grande coisa e por isso não tem problema nenhum não ser tratado.

Além disso, perceba que estamos sempre tornando a questão pessoal – como visto acima, você não fala sobre aquecimento global, você fala sobre Al Gore. Você não fala sobre racismo sistêmico, fala sobre a sonegação fiscal de Al Sharpton. Você não fala sobre desigualdade social, fala sobre como todos no Occupy Wall Street tinham iPhones.

Agora, parte do problema é que esses ativistas vão apelar para a simpatia da maioria do público, e isso é uma coisa poderosa considerando que a maioria de nós gosta de ver em si uma pessoa legal e bacana. Para contra-atacar isso, você simplesmente…

Joga um grupo em desvantagem contra outro (e somente um pode “ganhar”)

Como já falamos acima, a pessoa mediana tem pouco espaço no cérebro, e tempo no dia, para dedicar a “problemas” com os quais eles precisam se preocupar. Empatia requer energia, e temos uma quantidade finita para gastar. Bem, há uma maneira sutil de usar isso em sua vantagem: deixar implícito que de fato existe pouca empatia no mundo e que prestar atenção a uma reclamação vai de alguma forma diminuir a atenção de outra. Isso faz com que você possa jogar um grupo de vítimas contra outro, fazendo com que eles se matem por quinhões de atenção.

A beleza dessa estratégia é que até mesmo pessoas bem intencionadas caem nela – é por isso que o infame artigo sobre falsas acusações de estupro na Rolling Stone se tornou um assunto explosivo para ambos os “lados”. Qualquer fala sobre homens se ferrando por causa de acusações falsas de estupro (como esse cara que passou cinco anos na cadeia antes de tudo ser corrigido) deve significar que você está negligenciando vítimas ou está fazendo uma “apologia ao estupro“. Por que não é possível mostrar-se simpático a vítimas de estupro e homens que foram falsamente acusados? Porque não há tanta empatia assim no mundo para distribuir, droga!

Veja, isso significa que devemos nos focar apenas no problema mais sério entre dois, e coletivamente as vítimas de estupro são mais numerosas e ficam com consequências muito piores que pessoas falsamente acusadas de estupro. Expressar preocupação com estes últimos deve certamente indicar segundas intenções! A ideia de que na realidade as duas coisas têm um inimigo em comum – isso é, uma cultura que não faz ideia de como lidar com ataques sexuais – é deixada de lado. Sabe, mais ou menos como o racista pobre no parque de trailers e o negro pobre da cidade nunca poderiam considerar que ambos estão sendo desprivilegiados pelo mesmo sistema econômico, apenas de formas diferentes. “O quê?”, cada um deles vai dizer, “você está comparando o meu sofrimento com o dele?

Se você conseguir convencê-los de que eles estão competindo, eles vão gastar todas as energias odiando uns aos outros, e não tentando consertar o sistema. O cara no parque de trailers não culpa os banqueiros por sua economia, ele culpa minorias e imigrantes. Apenas um de nós pode ser a verdadeira vítima aqui, caramba!

O que isso também faz é incentivar a maioria a deixar de lado a reclamação de um grupo ao insistir que só fazem isso porque estão muito mais preocupados com outro problema. Se os pobres dos Estados Unidos reclamam sobre as altas taxas de desemprego ou os salários desvalorizados, é só falar sobre quão pior é a situação dos pobres na Europa e quanto menos os trabalhadores ganham na China. Se as feministas ocidentais reclamam agora sobre diferenças de salário ou direito ao aborto, você fala sobre como as mulheres de outros países sofrem muito mais (citação de exemplo: “Visite a página da Organização Nacional das Mulheres, o maior grupo feminista dos Estados Unidos, e veja que o principal assunto é o aborto. […] Enquanto isso, no Oriente Médio, as mulheres estão lutando pelo direito de ir à escola, votar, não serem forçadas a casar, e até a simplesmente poder dirigir um carro“). Você percebe o truque? “Não devemos fazer nada sobre o seu problema enquanto essas pessoas estiverem piores. Mas, por outro lado, também não vamos fazer nada sobre o problema delas”. Resultado: nada muda.

Ou, ainda mais estranho, você pode fazer com que as pessoas se recusem a simpatizar com a causa ao dar-lhes, em vez disso, uma que na verdade não existe – geralmente reativando uma versão que existia no passado. Diga que o feminismo “de verdade” era o das mulheres nos tempos antigos, lutando pelo sufrágio, mas que o “novo” feminismo é só sobre bobagem (veja, porque isso quer dizer que você totalmente estaria do lado das feministas no passado). Ou, ao mesmo tempo em que desacredita toda e qualquer causa dos negros, reitere que você estaria marchando bem ao lado de Martin Luther King se você estivesse lá nos anos 60. Sabe, quando o movimento ainda era respeitável. “Afinal, como é que essa gente faz tanto barulho por causa de índices de aprisionamento e educação sem qualidade quando linchamentos eram comuns antigamente? Então olha, eu vou ficar de fora dessa, mas se você achar uma máquina do tempo pode contar comigo que eu vou estar bem lá do seu lado, amigão!”.

É claro que você poderia usar essa mesma lógica para diminuir literalmente qualquer reclamação feita por qualquer pessoa no Planeta Terra, para sempre, desde que ela não seja a pessoa que mais está sofrendo no mundo (“Bem, eu conheço um cara que ficou com o pau preso num moedor de café duas vezes, e ele não faltou ao trabalho por causa disso!”). Mas isso funciona porque o seu público quer uma desculpa para não ter que ouvir sobre esses problemas, e essa é uma forma de eles fazerem isso e ainda sentirem que são boas pessoas. “Não é que eu não tenha empatia por nada! É só que eu reservo os meus sentimentos para coisas que eu não posso resolver”.

Diga que qualquer mudança é o fim do mundo

Essa é a falácia do “ame-o ou deixe-o”, e nossa, como ela funciona. Como Ditador Secreto com a tarefa de se certificar de que nenhuma mudança significativa ocorra, essa é a sua carta na manga.

Lembre-se, seres humanos são naturalmente avessos ao risco – as pessoas permanecem em trabalhos e relacionamentos ruins e mantém hábitos destrutivos por medo de que tentativas de consertar as coisas vão acabar pondo tudo a perder. É por isso que muitas pessoas têm medo de tomar anti-depressivos (“Claro, vai fazer com que a depressão suma, mas e se eu também perder as partes legais e diferentes da minha personalidade?”). Então, para poder usar esse medo a seu favor, tudo que você tem a fazer é retratar qualquer crítica ao sistema atual como um ataque a tudo que mais amamos na vida:

“Você está criticando a polícia pelo uso excessivo da força? Bem, então vamos ver o que acontece se os policiais não forem trabalhar!“.

“Você acha que deveríamos diminuir o tamanho do governo? Então por que você não vai viver na Somália, onde eles não têm governo?“.

“Você tem problemas com nosso sistema econômico atual? Vai para Cuba, seu comuna!“.

“Oh, você se preocupa com a poluição? Então você deve querer um mundo sem eletricidade!

É um truque bem simples – só ignore qualquer possibilidade que envolva a simples melhoria do sistema atual e afirme que para que nos beneficiemos dele precisamos aceitar todos os aspectos do status quo, incluindo as partes que destroem vidas. Não tem problema se você não conseguir apontar por que as melhorias são impossíveis, uma vez que as partes que processam medo no cérebro são inerentemente irracionais. “Apoiadores do casamento gay querem secretamente destruir a instituição do casamento? Claro, faz todo sentido para mim!”.

E agora você consegue entender como isso pode ser combinado com as técnicas acima. A violência durante os protestos apenas prova que o que essas pessoas realmente querem é a destruição de toda sociedade civilizada! E você, a maioria poderosa, é na verdade parte da corajosa última linha de defesa de tudo que é bom contra essas hordas de malucos irracionais! E por aí vai.

Lembre-se, é isso que as pessoas querem acreditar (ou “acreditar”). É por isso que, no mundo real, não é necessário um Ditador Secreto para fazer tudo isso acontecer. Com um empurrãozinho, as pessoas – mesmo as pessoas boas – vão fazer tudo isso sozinhas. É só olhar à sua volta.

O eterno retorno

“No pensamento do eterno retorno somos ensinados que o momento não pode ser separado do devir, ou seja, de tudo que foi e tudo que tornou o momento o que ele é. Portanto, ao desejar o momento também desejamos tudo o que levou até ele. Isso não significa que alguém simplesmente aceita, através de algum tipo de confiante, porém cego, fatalismo, qualquer coisa que exista porque já existiu, porque tem um passado. Afirmação não significa aceitação desprovida de crítica. O grande desafio que Nietzsche enfrenta é como ensinar a redenção através do ensinamento de que o desejo precisa aprender a desejar o impossível – tudo o que “já foi”. A redenção do desejo é obtida quando o desejo aprende que desejar o passado só é possível quando se deseja o futuro, ou seja, que a redenção do passado encontra-se no desejo criativo do futuro. Desejar o passado torna-se, assim, um ato constituído pelo ato de um novo desejo criativo. Tal desejo deve existir não como um sacrifício do presente em nome do futuro – esse seria o supremo ato de ressentimento e vingança – mas dentro do inocente momento que sempre fica à frente no futuro, garantindo a chegada do novo e do único. Redenção é apenas possível nos termos da vinda do futuro, onde o novo é criado daquilo que é velho; daquilo que já foi.”

Keith Ansell-Pearson