Sonhos, sonhar acordado, sonhos lúcidos

Eu não sei qual é o estado da arte em pesquisas científicas sobre as “funções” dos sonhos – desses que a gente tem ao dormir. Da última vez que ouvi falar algo sobre, cogitava-se uma espécie de “desfragmentação do disco”, em que experiências do dia eram meio que analisadas e compactadas para que a nossa cognição continuasse fazendo sentido de tudo, inclusive ocorrendo aquele esquecimento básico de coisas irrelevantes ou repetidas (muito semelhantes às que acontecem em outros dias, como a memória exata de como foi trancar a porta de casa ao sair). Isso explicaria, por exemplo, como que elementos aleatórios de um dia entrariam nos cenários e nas tramas de um sonho.

Fico me perguntando se há por aí alguma teoria de sonhos baseada em ansiedade. Assim como a ansiedade teria uma função “evolutiva” no sentido de nos fazer imaginar cenários terríveis para que nos preparemos para eles, os sonhos poderiam ser apenas uma forma mais conveniente de fazer isso – afinal, já que não estamos fazendo nada naquele momento, melhor fazer essas projeções de possibilidades terríveis então do que quando estamos acordados e precisamos pensar em outras coisas ao mesmo tempo.

Por exemplo, acabei de ter um sonho em que estava me preparando para uma cirurgia ortodôntica. Mas esse foi um pesadelo – um filme de terror, ainda que mais cult e focado na ambientação do que em jump scares. E nem todos os sonhos são pesadelos. É verdade, mas – e se os próprios sonhos positivos, bons, forem essa bifurcação de um caminho que se enraíza num medo? Sim, as coisas podem dar errado – mas podemos imaginá-las dando certo. É um jeito evolutivamente inteligente de lidar com as consequências negativas da ansiedade. Afinal de contas, seria terrível se tudo que a nossa imaginação pudesse produzir fosse um conjunto de péssimas possibilidades. Sonhos bons ainda poderiam estar enraizados em medos; são apenas respostas otimistas a eles, jeitos de fazermos ecoar pela consciência a perspectiva de que conseguiremos lidar com eles.

Se este modelo tiver algo de verdade – e ele não é de todo incompatível com a ideia de “análise do dia pregresso”, pois este pode ter trazido suas próprias doses de medos e incertezas – será que ele pode ser aplicado à ideia de “sonhar acordado”? Isto é, chamamos nossas aspirações de “sonhos”. Fazemos isso, no mínimo, no ocidente – em inglês, português, espanhol… E, assim, chuto que em mais uma penca de outras línguas. Não sei quão universal é isso, mas se a associação foi feita uma vez me pergunto que verdades ela pode revelar.

Estou pensando essas coisa em parte inspirado em “The Liquidation of Belief”, um livro que Jesse Cohn está escrevendo, e que ele fez a gentileza de me enviar na fase em que quer receber críticas antes de enviar pra publicação. Em uma parte dele, ele discute a ressonância entre distúrbios de saúde mental, como delírios, incluindo a síndrome de Capgras, e o pensamento – ou a visão de mundo, talvez – de extrema direita contemporânea (“pós-fascista”). Ele não faz isso pra dizer algo simplista como “fascistas são doentes mentais”, até porque seria redundar numa compreensão empobrecida dos distúrbios mentais. Eu acho que ele analisa de forma mais sofisticada esses fenômenos da cognição, como se eles pudessem nos dizer algo mais profundo sobre a situação humana do que simplesmente “são problemas”.

A inspiração vem do fato de que, se podemos analisar “delírios” de uma forma mais produtiva, podemos estender essa análise também para os sonhos, até porque, não só linguisticamente como conceitualmente, socialmente, é muito fácil que uma coisa escorregue para a outra a depender da perspectiva. Um sonho de revolução anarquista, por exemplo, para muita gente é exatamente, precisamente, um delírio. Mas aí a diferença, é claro, é que estamos falando de uma projeção para o futuro, reconhecida mais como um desejo que precisa de ação prática para acontecer, do que um delírio típico que se refere a fatos do passado / presente que na verdade não são fatos, não aconteceram, não são assim, etc. Mesmo assim, um desejo que é colocado como projeto, e não como uma hipótese fantástica (“ah, como seria bom poder comer sem engordar nem sujar os dentes…”), imbrica também uma leitura do passado e, principalmente, do presente: se achamos que vale a pena fazer coisas que seriam consequentes para um projeto – um sonho – de revolução anarquista, é porque achamos que a realidade suporta esse projeto; que isso é, em algum nível, possível. E aí está a leitura do presente, elemento que pode ser lido por outrem como delírio.

Se é possível entender o delírio como função – como uma resposta cognitiva, se não razoável, funcional – o sonho, o sonhar acordado, poderia ocupar esse mesmo espaço, a partir da mesma ideia que levantei acima sobre o sonho que se tem dormindo: sonhos têm raízes nos medos. O sonho de ficar podre de rico, no medo da pobreza; o sonho de se casar, no medo da solidão; o de casar na igreja, com uma festa de arromba, no medo de não ser levado a sério por seus círculos sociais se não se conformar a certos rituais; o de morar no mato, nos medos da cidade; o de morar fora do país, no medo de nunca se descobrir se se deixar ser engolido pela cultura local, com a qual tão pouco se é congruente.

Se essa parte da leitura foi “autorizada” por ideias ressonantes que encontrei em Cohn, elas na verdade me vieram de uma ideia que tenho há tempos sobre como a esquerda em geral lida com os “sonhos” neoliberais. Sobre a narrativa do empreendedor de si que conquista tantos imaginários, eu fico pensando que a esquerda tem muitas respostas “estatísticas”, “sociológicas”, que, embora corretas, são também pessimistas – ou, talvez na linguagem de Cohn, tragam consigo um “afeto triste”. Elas são sempre no sentido de desestimular sonhos, de dizer: mas isso é um delírio. Não vai dar certo. São apenas instrumentos de controle capitalista. Acorde!

Demandar para que alguém acorde é uma coisa que me chama a atenção, uma peça inesperada da metáfora que estou tecendo. Primeiro: ninguém gosta de ser acordado com um berro. Segundo: ser acordado com um berro se a pessoa está tendo um sonho bom é ainda pior. Terceiro: qual o propósito de acordar? Para que a pessoa possa “viver na realidade”; viver com os outros, ter efeitos reais no mundo. Mas aí, também, depende de qual é o projeto de vida real. “Poxa, você foi me acordar pra isso?”. Assim como Cohn depois discute sobre a importância da construção de confiança e em projetos “lentos” de transformação, seria preciso acordar com carícias? Mais que isso, importa quem acorda, e para quê. Porque no âmbito da discussão ideológica pública com adversários que não compartilham um laço social minimamente relevante, um chamado para que a pessoa acorde é basicamente um chamado à conformidade. No âmbito de uma discussão desafixada de um projeto que energiza porque se trata de transformar, de melhorar, é uma exigência que o outro capitule-se aos fatos duros, ruins, nos quais o sonho se enraíza: aceite que as coisas são assim. Levante, não porque temos que lutar por esse sonho, mas porque você tem que pegar o ônibus pra trabalhar.

Mas tem outra coisa aí. Porque o próprio chamado a acordar – ou seja, considerar o “sonho” do outro menos projeto que delírio, e atar a respeitabilidade deste outro à condição que aceite uma versão da realidade que exige a aceitação daquilo que ele não acha justo ou bom – cria a própria análise deste projeto como sonho. As coisas podem ser discutidas de outra forma, mas se uma decisão é tomada de caracterizar as coisas de tal forma que terminam com você dizendo (com todas as letras ou não) que o outro tem que acordar, é aí que entramos no reino retórico do onírico. E nesse caso – e eis o pulo do gato – se estamos abordando os sonhos, estaríamos abordando também os medos. Rir do sonho do outro – o que é efetivamente o que fazemos, mesmo se estamos sérios, ao caracterizar o projeto como delírio – é o mesmo que rir de seus medos. Alguém rir do meu sonho é duplamente ultrajante, porque não só a pessoa julga minha cognição, meu entendimento do que é ou não possível no mundo; o sonho é uma exposição, uma vulnerabilidade, porque acaba comunicando também meus medos. E alguém que ri dos meus medos passa a vibe de um vilão que descobre o ponto fraco do herói. Quem ri do medo dos outros – não o riso leve, por exemplo, que vem quando a gente superestimou o medo, e agora fica tranquilo que é algo fácil de ajudar; um riso ácido, perfurante, pesado – quer diminuir o outro, reduzi-lo a seus medos; indignificar a pessoa.

Não quero transformar esse texto em algo muito mais longo do que precisa ser, e certamente haveria uma avenida pra isso aqui se agora eu quisesse estender essa metáfora ao infinito de todas as “mais indicadas” formas de luta social. Ainda assim, acho que uma saída útil aqui, nesse nível interpessoal, é a ideia de sonhos lúcidos. Não precisamos que a pessoa acorde. Não precisamos diminuir ninguém. Há que se compreender, e respeitar, medos. Mas é necessário estabelecer conexões. E nesse sentido, é possível conversar com a pessoa levando seus sonhos a sério, mas pensando em suas consequências. O que vai acontecer se você realmente concretizá-lo? Você consegue imaginar possíveis consequências ruins disso? Quais são os custos, para você e para os outros, de concretizar esse sonho? Você consegue imaginar como tudo isso afetaria sua relação com os outros? Qual é o seu objetivo, realmente, na vida – ter boas relações e experiências com os outros, ou chegar sozinho a algum lugar ou situação que idealizou? É possível recalibrar um pouco nossas expectativas, ter um pouco de coragem pra aceitar que, quanto a alguns medos, não vale a pena tentar neutralizá-los de todos, em nome de um sonho que não é só seu, mas um sonho de vivermos melhor uns com os outros, de formas menos destrutivas, mais saudáveis?

Talvez o objetivo não seja acordar ninguém, até porque no fundo o melhor mesmo, para qualquer ciclo de sono, é a pessoa acordar no seu próprio tempo. Talvez o melhor objetivo seja fomentar a transformação de sonhos em sonhos lúcidos: lentamente introduzir estímulos, a partir de uma posição de cuidado, e portanto confiança, de modo a fazer com que a pessoa controle seu sonho, em vez de ser controlada por ele.

“Agora digo ‘eu’: Por que agora?”, por Lucía Sánchez Saornil

____Sempre disse: “nós”…
E a palavra tinha a amplitude do coro,
Soava como um órgão de mil registros.
____“Nós” era uma multidão
de cálidas mãos estendidas,
pão compartilhado,
almofada acolhedora;
era um coração unânime,
o intercambio da lágrima e do sorriso.
Era um campo de espigas
que o vento inclina em uma única direção.
–Cada letra uma gota de humanidade entranhável –.
Dizer nós era apurar um vinho
de cordialidade até a embriaguez.
____Sempre disse “nós”,
por que agora, digo, “eu”,
um “eu” solitário e erguido,
alto como uma torre só cingida de ar?
____Digo, “eu”, elevando-o
sobre tudo que me rodeia;
e este “eu” tem um áspero
estalar de chicote.
____Sim, agora digo “eu”.
É que o caminho que eu ei de andar
não é senão para este “eu” só e amargo,
que não compartilha com ninguém.
____Nesta hora,
cada um está só e espera;
é uma espera que ninguém confunde
com uma esperança,
porque está feita
de desesperanças, precisamente.
Sim, agora digo “eu”. Todos
Dizemos “eu” algum dia…

SAORNIL, Lucía Sánchez. Siempre puede volver la esperanza. Madrid: Fundación Emilio Hurtado. Edición, introducción y notas de Jesús Gallego Montero. Tradução de Thiago Lemos Silva. 2022.

What the global periphery can learn from David Graeber

Today marks the 4th anniversary of David Graeber’s passing. When reading Fragments of an Anarchist Anthropology I fell in love with his wit, his edge, and his range. But after years of working with his texts, translating a few, and even interviewing him, I still have reservations about some of his ideas. The anarchist scholar in me admires them; the anarchist who grew up in Brazil is conflicted.

Take his stance on the police. In Direct Action, he discusses how “postmodern” they are, as they sneer at the concept of truth in service of authority. But in Brazil, mafias mixing police officers and evangelical zealots – who certainly believe in ultimate truths – are on the rise. One of Graeber’s better known concepts, “bullshit jobs”, describes an issue that most Brazilians – facing high unemployment, platformisation, and the erosion of labour rights – would call a “first world problem”.

The biggest issue might be his stance on tactics for social change. During the global protests against the IMF at the start of the century, Seattle activists came down to Brazil to share their ideas, telling protesters to just “lie on the ground” when the police come. Many, however, laughed in response. Serious harm was far too likely for them to attempt such a stunt.

Graeber, who took part in the protests of that era, similarly wanted to come up with alternatives to “a politics of direct confrontation”, arguing that violence was the “recourse of the stupid”. But such an argument, especially in the context of a country like Brazil, made for a toothless kind of anarchism. For him, “more militant” tactics often relied on broader demilitarization. But it seems that his favoured strategies were the ones which could only be entertained in social environments with much less violence than most countries, let alone those in the global periphery.

Graeber’s preferred solution in the face of such violence was simply “walking away”. It was a tactic that seems to have worked wonders for medieval peasants and South American societies against the state”. However, doing so today is far more difficult than in these contexts. The police keeps the oppressed in line and separated by borders. With fewer resources, starting over somewhere else becomes harder, and bonds to the land are an actually excellent reason to stay. Is not running away – when one can envision alternative forms of resistance – an aggrieving capitulation to the oppressor?

Graeber was aware of all that. He denounced a world of frictionless money but gated people. He understood that “hospitality” is what makes any “right to leave” consequential, and studied how relations of care were perverted to keep us in place. But how to build a world where walking away could fix collective problems, instead of being an individual solution, truly available only when rare conditions can be found?

He put his faith in occupying public spaces (such as Zuccotti Park) to experiment with the way we make decisions: change that and the rest will sort itself out. But without directly attacking structures of economic and social domination, co-option into state politics is to be expected – as in the case of many Brazilians involved in the June journeys” of 2013.

On the other hand, some of the tactics he rejected – because he thought them outdated, morally questionable, or less effective – might be successful in other contexts, and without compromising on principles. Chilean militancy came close to burying neoliberalism in the country; native populations in the Brazilian territory are using force against deforestation; Indian syndicalists have recently helped build the largest strike in human history.

There are still things that global periphery radicals can learn from Graeber, however. His 566-page masterpiece on debt helps us to see through the lies of austerity doctrines, which many countries sidestepped during the coronavirus crisis but Brazil was held hostage to. And while Brazil’s job market may not have been “bullshitised” yet, his reflections on social value and caring work are useful for questioning long-standing, unfair differences between professions in many peripheral countries. What’s more, in the vein of pretty much all anarchists before him, Graeber’s thought was profoundly shaped by the social struggles he took part in. If his experience in Madagascar shaped his earlier thought, his unflinching support for the revolution in Rojava significantly expanded his toolbox.

Finding that the principles of consensus were already rooted in hearts and institutions, he gifted the revolutionaries with much more interesting structural analysis (in other words: don’t just trust the process). For those who cried “imperialism”, he had two words: “loser left!”. In a brilliant essay exploring the dynamics of bullying, he grappled with the responsibility of spectators in every conflict: how can they contribute to emancipatory direct action, in Rojava, Palestine, or anywhere else, even at a distance? To the right to walk away he added the rights to disobey and to change rules. Each one, he emphasised, was a reality we must make and sustain ourselves, not something we ask a sovereign to grant us.

This trajectory, more than any specific tactics, is what he teaches us as a militant. Given time, most manuals become obsolete anyway. As we say in Brazil about unfortunate gifts, “the intention is what counts”. It matters a lot that he intended to live “among rebels” as much as possible, as he used to say. He did it precisely because then he could both help build a freer world and be taken there by others, should he vacillate or make mistakes, as any of us might do.

We cannot defeat domination without practising its alternatives, no matter the limitations of our efforts. Graeber always did what he could to help everyone imagine a more desirable future and live it, as much as possible, in the here and now. Taking the brunt of future-killing repression, global periphery radicals can still find within his work hopeful lessons.

Barricadas em tempos de desastre

Estive lendo Barricadas em tempos de desastre, excelente livro do João Branco sobre educação em Oaxaca, e houve uma sinergia temática quando acabei vendo, entre uma sessão de leitura e outra, uma conversa com Alana Lemos Bueno sobre seu livro acerca do novo ensino médio.

Interessantes sinergias. Tirar de contexto a descrição que Branco faz da educação para a comunalidade colocaria muita gente de cabelo em pé, e com razão… Uma das citações, por exemplo, é de uma pessoa falando sobre como parte integrante da educação deles foi aprender a fazer tortillas como sua mãe e sua avó faziam. Entram aqui comparações com as aulas de brigadeiro do novo ensino médio.

A questão é que Branco passa um bom tempo discutindo o caráter anticapitalista e decolonial de uma noção completamente diferente de trabalho permeando os povos tradicionais de Oaxaca. E a questão que se coloca para a tensão contemporânea mais básica das disputas curriculares no Brasil – educação para ensinar os fundamentos da ciência e da cultura ou preparação para os desafios da vida adulta – é que não é problema nenhum preparar para a vida adulta; o problema é 1) quando a vida adulta é uma merda e 2) quando a vida adulta é tão alienada que não se encontra oportunidade para mobilizar ciência e cultura para agência efetiva. O buraco na verdade é ainda mais embaixo, porque é desesperador mesmo defender a educação propedêutica dos moldes coloniais, já que mesmo o ensino básico do “acúmulo de conhecimento humano” (ai ai…) embute presunções e metodologias cujo currículo oculto é o ensino, como Branco assinala, da passividade/irresponsabilidade política mediante a inculcação da obediência e da hierarquia como enquadramentos fundamentais de qualquer organização efetiva.

Como já cravara Paul Goodman, o único método de ensino que funciona é construir uma sociedade em que valha a pena viver. Mas não só isso. A boa educação precisa partir de uma humildade mais profunda em que não há ensino-aprendizagem e sim, como coloca Branco usando a expressão de um entrevistado, o constante “aprender junto”, com o objetivo de instigar a agência política e educacional de cada indivíduo. Sem esse questionamento mais profundo, permaneceremos incapazes de visualizar o horizonte para além da prisão conceitual colonial.

*

Em tempo: uma premissa de fundo que me irrita nos debates sobre o novo ensino médio ou sobre modelos de educação em geral é a da escola ou espaço educativo como redoma, como esfera de influência absoluta, que tanto pode ser separada do lado de fora quanto pode ser completamente efetiva em sua doutrinação. Desde que o mundo é mundo a doutrinação é ressentida e resistida – e as conexões entre o dentro e o fora tornam possível ver a farsa pelo que ela é. Não todo mundo, claro, mas o sucesso incidental de um modelo em produzir algumas pessoas que o defendem organicamente não permite dizer que isso uma mudança de modelo para outro vai necessariamente aumentar o domínio de seus correlatos ideológicos.

Em outras palavras, no novo ensino médio claramente se vê as pretensões de hegemonia ideológica neoliberal – mas se ela vai conseguir impor essa ideologia é uma história completamente diferente. Inclusive podemos esperar, sabendo quão bosta ela é, que em algum momento a reação será grande. Agora, ano passado, enfim, quando da implementação do novo ensino médio, já foi bastante grande. E aí?

E aí que ainda assim obviamente preferiríamos ter outro modelo de educação. Mas por quê? Se não é claro que sua implementação é necessariamente uma coisa boa para ele, por que nos preocupar com isso?

Acho que cheguei numa resposta que me agrada. Não é que o modelo vai ter sucesso em convencer ideologicamente as novas gerações. É que ele vai ter sucesso em deteriorar as relações dentro da comunidade escolar no momento em que convence – por vários mecanismos – os profissionais dentro dela a serem os policiais de sua implementação contra os estudantes. Por mais que os profissionais não gostem dela, a escolha de se tornarem cúmplices amargará essas relações, e será um fator a mais de tensão que corrói essa comunidade em vez de fortalecê-la em prol de projetos emancipatórios. E aí não é mais uma questão educacional ou curricular, mas política, econômica, e cultural; do poder centralizador do Estado de impor uma visão, dos interesses de classe inerentes aos interesses do Estado, e de todo um esquema de legitimação dessa realidade.

Sobre vítimas perfeitas e cultura sexual

Pode-se dizer que a condenação de Daniel Alves oferece um padrão procedimental ao qual outras cortes podem aspirar, melhorando a capacidade de alguns agentes estatais de lidar com estupros em benefício das vítimas. Por outro lado, incomoda tudo aquilo que pode caracterizá-la como exceção: seja a repercussão global do caso ou, assunto que discuto neste texto, a “perfeição” da vítima.

Muito foi dito sobre o fato de que, enquanto Alves mudou de versão 5 vezes, a vítima manteve-se absolutamente consistente em todos os seus relatos, fornecidos em diferentes contextos para diferentes agentes. Elogia-se as normativas que determinaram o que deveria ser feito já naquela noite e naquele local em que o estupro ocorreu. Inclusive veículos da mídia corporativa brasileira souberam falar sobre a reação imediata da vítima assim que ela saiu do banheiro (ela não mostrou-se abalada de pronto, somente alguns minutos depois, e isso não quer dizer nada). Mais que isso, sequer se conheceu (digamos, “publicamente”) a identidade da vítima, o que aparentemente evitou a “contaminação” do julgamento de um fato específico por julgamentos de outros aspectos de sua vida. A disponibilidade da vítima para exames físicos imediatos foi também crucial, uma vez que demonstrou evidências físicas de agressões, inclusive de natureza sexual.

No entanto, se mulheres há muito são desacreditadas em suas acusações a despeito da presença de muitas dessas características, o fato de que essa presença agora pode lhes favorecer ainda deixa no ar questões quanto ao que acontecerá – o que continuará acontecendo – quando estas faltam. Em outras palavras, quando a vítima é inconsistente em sua narrativa; quando demora a reagir e a denunciar; quando, por conta disso, resta menos ou nenhuma evidência física; quando não há gravações audiovisuais do local ou testemunhas. Ou, simplesmente, quando a vítima é conhecida e, como esta é humana, vêm à tona uma série de coisas que podem pesar contra si: idiossincrasias sociais ou sexuais, ou talvez momentos em que tenha mentido para alguém ou se comportado de forma reprovável.

Como anarquista, desejo que processos intercomunitários de mediação ocorram a partir de uma tal acusação. Mas, como abolicionista penal, também questiono a positividade de enjaular agressores. Esta é, inclusive, uma primeira “ironia” da forma como o Estado contemporâneo, o tal democrático de direito, lida com acusações de estupro. Como a pena é restritiva de liberdade, dura, longa, pesada – e tudo isso na teoria, sem nem considerar a realidade de qualquer prisão específica – insiste-se em não considerar ninguém criminalmente culpado até que a culpa esteja comprovada para além da dúvida razoável. Some-se a isso uma história patriarcal e a condenação de homens requer comprovação para além da menor das sombras de dúvida. Em contraste, se agressões levarem a consequências (restaurativas, transformativas) mas não à obliteração físico-social do agressor, pode ser muito mais fácil conseguir admissões, ou principalmente fazer com que comunidades sejam firmes no apoio a acusadores, pelo simples fato de que essa solidariedade trará mais consequências positivas – inclusive admissões das (já raras) acusações falsas – que negativas. Como disse Kropotkin, instituições anárquicas removem incentivos estruturais que intensificam nossa indisposição a sermos culpados por algo.

Não digo nada inédito ao comentar também o quanto o próprio processo de “vitimização” por si só demanda uma certa “perfeição” da vítima. Muito mais que um termo técnico do direito, sabemos que a vítima é um papel no teatro social. É difícil separar subjetivamente o “julgamento” enquanto análise de fatos (o que exatamente aconteceu) do “julgamento” enquanto análise de narrativas: “estão me dizendo que este é um agressor, e esta é uma vítima; isto é verossímil? Seus comportamentos, tanto quanto posso percebê-los neste contexto, suportam essa história, de acordo com as minhas construções simbólicas do que é um agressor, e do que é uma vítima?”. Por mais que reclamemos da forma como a direita enquadra toda reivindicação progressista enquanto “vitimização”, não é difícil compreender o que leva alguém a não querer que sua vida seja (re)definida a partir desse papel. Isso tem consequências tanto comportamentais – e se a pessoa não quiser passar os dias se lamuriando, em uma espécie de luto adiantado por seu próprio suicídio, até que a condenação oficial saia? – quanto psicológicas e sociais: não só ter sido uma vítima em um momento específico, mas ser uma vítima, é estar amarrado a uma subjetividade passiva; é ser moralmente definido enquanto objeto de outrem, ser potencialmente cada vez mais tratado como alguém sem voz, incapaz de tomar à frente de qualquer coisa; um coitado, traumatizado, danificado, que inspira mais caridade que respeito.

Mais que isso, a institucionalidade em torno da justiça fornecida pelo Estado enquanto serviço demanda a vítima perfeita no sentido de submissão a seus procedimentos. A vítima não é aquela que lidera sua comunidade em busca não só de restauração mas de transformação; é aquela que reclama a ação de outros – dos agentes estatais que lhe perscrutarão os interiores e tomarão decisões que devem ser reconhecidas por todos. Pode ser que o Estado tenha procedimentos “avançados” para lidar com vítimas “imperfeitas” no que tange ao seu histórico de vida, as circunstâncias do estupro, a demora na acusação, etc. Ele nunca poderá, porém, por sua própria posição arrogada em relação à adjudicação da questão, deixar de fazer com que a vítima precise incorporar o papel social de vítima nesse sentido mais estrutural. E por essa passividade, quando saber a “verdade” de uma situação e fazer “justiça” fica nas mãos de uma estrutura burocrática estrutural e historicamente associada a desequilíbrios de poder mil, teremos mais decepção que responsividade – ou, no mínimo dos mínimos, um processo em que essa relação entre autoridade e subordinado, entre soberano e humilde suplicante, é reafirmada. E aí podemos nos perguntar em que medida isso se relaciona com a continuidade de uma posição precária da parte das vítimas usuais – ex. mulheres (especialmente de minorias étnico-raciais), dissidentes sexuais, etc. – que não ajuda, a médio e longo prazo, a prevenir estupros.

Isto é, afinal, o grande objetivo, não? A prevenção de estupros. Já é difícil fazer com que seja assegurado a “vítimas imperfeitas” solidariedade suficiente para superar os danos e assumir agência em processos de justiça transformadora (causar mudanças positivas na vida de outras pessoas – evitando, por exemplo, novos estupros da parte do mesmo estuprador). Mas como fazer com que haja menos vítimas em primeiro lugar, e em particular menos dessas vítimas “imperfeitas”?

Eu já vou chegar em respostas melhores e mais, digamos, “clássicas”, mas queria passar primeiro por uma questão que não vejo ser tão discutida. É um assunto um tanto estranho, mas que levam a reflexões interessantes.

Algumas dessas “imperfeições” de “vítimas imperfeitas” têm a ver com as situações em que estupros ocorrem. As vítimas podem estar embriagadas, por exemplo, ou podem estar sozinhas com o estuprador, caso em que todo processo legal necessariamente derrete sob o imperativo ético de que não é possível escolher, para efeitos de punição criminal, entre a palavra de uma pessoa e a palavra de outra.

Fico pensando que é curioso como nossas conversas sobre como lidar com estupros nunca abordam diretamente esse tipo de circunstância. Isso é simplesmente naturalizado – no mínimo, é o “dado da realidade” que temos que presumir ao pensar nas soluções para o problema. A gigantesca maioria dos estupros ocorrem entre pessoas que se conhecem, que convivem; e, tirando os estupros coletivos, que imagino serem estatisticamente muito poucos a despeito da atenção que (com justiça) se lhes dá, em circunstâncias de seclusão. Estou falando de premissas básicas da nossa “cultura sexual”, digamos assim; dos ritos e das expectativas associadas à sexualidade. Básicas porque não me refiro aqui a “novidades contemporâneas” como o Tinder. Estou falando de coisas muito mais estruturantes, historicamente profundas – e por isso mesmo simples. A mais importante, talvez, a presunção de que a relação sexual “normal” é aquela que ocorre entre duas pessoas, digamos, “isoladas” de outras.

Entendo que existem no mínimo três razões interconectadas para não questionar esse aspecto fundamental da nossa cultura sexual. Em primeiro lugar, não é uma resposta adequada a curto prazo. Esses questionamentos podem levar a um movimento, digamos, contracultural – bem, não seria o primeiro – mas este demoraria para fazer efeito; enquanto isso, os problemas continuarão para indivíduos que, é preciso dizer, não podem ser culpados por querer exercer sua sexualidade dentro da cultura às quais foram integrados desde que nasceram. “Culpados”, aliás, leva imediatamente à segunda razão: o quanto isso se parece com (mas não é) culpabilizar vítimas (é possível imaginar um cruel “quem mandou ir pra cama com ele sozinha?”). E, em terceiro, a sugestão obviamente soa como o uso de um problema sério e legítimo para fins de “safadeza”.

Mas quais as razões para pensarmos criticamente acerca disso? Ora, apliquemos à sexualidade uma análise social de aspecto mais genérico. Malatesta certa vez disse que “o que de fato rouba a liberdade e torna a agência impossível é o isolamento que deixa uma pessoa impotente”. Isso se aplica, para um simples exemplo, a como empresas odeiam sindicatos, já que reclamações individuais podem ser processadas (ou simplesmente ignoradas, claro) de forma muito mais fácil e benéfica para patrões e acionistas do que aquelas coletivamente (ou até publicamente) compartilhadas, pensadas, e adotadas como mote para disputas abertas. Se você está “sozinho”, tende a ter menos recursos para reagir à opressão: recursos materiais, sociais, até mesmo psicológicos. Afinal, é corriqueiro questionarmos nossa própria razoabilidade quando não sabemos que nossas insatisfações são compartilhadas por outros – “Será que estou errado? Será que estou exagerando? Será que estou maluco? Sou o único que pensa assim?”.

É curioso lembrar, por exemplo, de um tropo clássico de histórias, digamos, de “iniciação na vida romântica”: a pessoa insegura que fica frustrada por nunca encontrar oportunidade para conversar com o objeto de suas afeições, pois este nunca está sozinho. Este tropo, não fujamos dos fatos, é classicamente heteronormativo – na maioria das vezes estamos falando de meninos reclamando que meninas “andam sempre em bando, até para ir ao banheiro”. Como é curioso que, tivesse o menino típico seus desejos atendidos, a situação ficaria mais conveniente para ele, mas não necessariamente para ela. A questão é: por que cada menina entende que deve deixar “o bando”, digamos, para trás, embrenhando-se sozinha em algum lugar recluso com outro indivíduo, quando se trata do ato sexual? Numa circunstância mais anárquica, com mais igualdade de gênero, por que cada parceiro, independente de gênero – especialmente em atos sem comprometimento de maior prazo (como com o Tinder), ou em contextos marcados por insegurança e maior probabilidade de prejudicar outrem por ignorância ou inexperiência – por que cada parceiro não entenderia ser mais apropriado ter alguém de confiança junto, na situação, para cuidar do que acontece “entre quatro paredes”?

Novamente, é fácil descartar essa ideia sob a justificativa de que ela é mero fruto de alguma lascívia descarada da parte de quem a propõe. Mas há objeções melhores a essa ideia. Pode-se dizer que isso colocaria as pessoas envolvidas diretamente no ato sexual em maior “risco social”, pois seriam julgados por suas “performances”, principalmente à boca pequena. Em resposta, poder-se-ia dizer que isso já acontece o tempo todo, exceto que com menos testemunhas para corroborar – ou contradizer, inclusive – tais fofocas; assim, em vez de mais risco, ter-se-ia na verdade maiores chances de minimizá-lo.

Pode-se dizer que a proposta, ao basicamente normalizar o voyeurismo, poderia provocar mais inibição e insegurança, reprimindo a experimentação segura da autenticidade individual. Por um lado, isso ignora que tal cultura jamais poderia ser erigida com base na relação que a maioria das pessoas atualmente têm com seus corpos e suas sexualidades, ao menos no Brasil; as futuras gerações precisariam se acostumar a tratar o sexo com uma naturalidade ainda inimaginável. Mas por outro lado, seria justo argumentar que o ato sexual perderia uma característica importante: justamente a experiência de entregar-se a uma profunda vulnerabilidade diante de outro indivíduo, (ao menos idealmente) igualmente vulnerável. De fato, sentir a necessidade de ter outras pessoas por perto nesse momento seria uma recusa a essa entrega, e portanto um bloqueio à construção de uma confiança genuína, profunda, íntima, que sabemos que pode existir em relações afetivas saudáveis.

A melhor réplica a isso pode ser que, então, o “acompanhamento seguro” de atos sexuais poderia se limitar a momentos em que os indivíduos envolvidos não têm ainda (ou não pretendem ter) uma relação sólida entre si, ou são (sentem-se) ainda inexperientes demais para se entregar em completa vulnerabilidade. Na verdade, colocando as coisas dessa forma, é estranho como entendemos que não é bom deixar alguém fazer sozinho pela primeira vez a grande maioria das coisas “perigosas” da vida. Ninguém faz bungee jumping, escala montanhas, ou voa de asa delta pela primeira vez sozinho. Ninguém aprende a dirigir sozinho, e no Brasil há uma exigência legal de que se aprenda em instituições específicas, com carros adaptados com freios para os instrutores. Mas quando se trata de sexo, achamos normal que duas pessoas igualmente inexperientes aprendam sozinhas, ou aprendam com os piores manuais possíveis (manuais em geral já são pouco eficazes, mas a pornografia é especialmente ruim). Ou, então, que uma pessoa inexperiente se torne vulnerável ao transar pela primeira vez com alguém mais experiente, colocando-se portanto em vias de ser muito mais facilmente “manipulada”, no sentido abusivo do termo. Há atividades, inclusive, que nunca se faz sozinho mesmo que a pessoa já seja experiente – pilotos de aviação comercial, por exemplo, sempre têm copilotos; certamente há cirurgias que poderiam ser feitas por uma única médica mas que se beneficiam da presença de vários profissionais. Se pensarmos que o sexo sempre terá um grau considerável de perigo, e que este é inerente à relação entre duas pessoas, por que não torná-lo sempre uma coisa que exige um cuidado mais amplo, isto é, envolvendo mais que as duas pessoas cuja interação gera o perigo?

Uma tréplica é que essa proposta implica um retorno à tutela de sexualidades, como nos “anos de antigamente” em que as pessoas “faziam a corte” acompanhadas de seus pais e basicamente não deveriam fazer nada de particularmente picante antes do casamento (e, claro, muitas vezes nem depois, com o homem procurando “emoção” fora de casa, etc.). Uma possível resposta é que é claro que uma proposta progressista não desejaria reavivar esse cenário, mas que o progressismo não se confunde com individualismo. Propor que as pessoas normalizem fazer coisas juntas, de fato fazer todo tipo de coisa juntas – em, bem, “grupos de afinidade” – não seria uma nova máscara do patriarcado. Isso, claro, se as pessoas estiverem juntas justamente para fornecer apoio para experimentações, para ousadias, e não para policiar a segurança do status quo. Tal policiamento tornaria a amizade em questão “chata”, e aí cada indivíduo escolheria outra pessoa, outro grupo, para ajudá-lo a se aventurar. E, claro, subjacente à possibilidade de rescindir uma tal relação de cuidado está a possibilidade de não escolher ninguém e simplesmente encarar as situações sozinho. A questão é que uma mudança cultural significaria encarar tal escolha pela solidão como algo “esquisito”, acima de tudo “não-recomendável”, ainda que não necessariamente ilegal ou motivo para ostracismos.

Em muitas menos palavras, pode-se colocar a questão da seguinte forma: assim como o isolamento social em geral de mulheres é uma prática emblemática do patriarcado, o isolamento de um casal durante o ato sexual pode ser entendido como uma prática cultural que, embora obviamente não se resuma a isso, é conveniente para abusadores, e portanto perigosa em contextos tão marcados por inúmeras desigualdades sociais que podem incidir sobre violências sexuais, seja questões de gênero, raça, classe, deficiências, neurotipicidade, etc.

Um argumento semelhante pode ser feito à própria questão do álcool, pois em uma sociedade cujas pessoas têm em geral um conhecimento tão precário sobre práticas sexuais respeitosas e sadias, muitos, por exemplo, podem escolher se embriagar para transar, algo que legitimamente desejam, para que consigam suportar o fato de que a transa não será muito boa. Assim, não é que qualquer pessoa seja culpada por um estupro que aconteça enquanto estiver bêbada, mas podemos pensar que nossas práticas culturais relativas ao sexo meio que incentivam o uso de álcool para que o sexo ocorra, o que é conveniente para abusadores no momento em que reduz a capacidade de se defender e gera “vítimas imperfeitas” (com memórias incompletas ou incoerentes sobre o que ocorreu, por exemplo). Isso, claro, ocorre em conjunção com a outra prática cultural – a transa isolada entre duas pessoas – de modo que uma forma de subverter isso culturalmente seria consumir álcool somente acompanhado de outra pessoa, um acompanhamento que não pode terminar até o retorno da sobriedade, mesmo que uma das pessoas desmaie, mesmo que uma das pessoas queira ficar sozinha, mesmo se uma das pessoas quiser transar com outrem.

Pensando bem, isso não seria muito diferente (em espécie, ainda que seja radicalmente diferente em grau) do pacto para eleger um “motorista da rodada”, membro do grupo de beberrões que não bebe para poder dirigir.  Seria simplesmente uma repactuação do ato social de se embriagar, a ideia de que deve haver uma parceria de cuidado para este momento, que no momento fica aquém de questões sexuais mas poderia abrangê-las.

E ao fazê-lo, inclusive, levantaria questões interessantes. Dizemos, por exemplo – entre progressistas, claro – que uma pessoa bêbada não pode fornecer consentimento, mesmo que esteja consciente. Mas por quê? Este é o caso porque consideramos que a pessoa não está pensando direito? Que as coisas que decide fazer não seriam uma expressão verdadeira do seu eu? Isso presume que a bebida alcoólica altera substancialmente a identidade de alguém – algo que já ouvi dizer, de pessoas que bebem, não ser bem o caso: “as pessoas acham que a gente vira outra pessoa quando bebe”, uma amiga uma vez me disse, “mas a gente só fica mais intensamente o que já é”. Segundo essa lógica, se alguém não transaria num certo momento se estivesse sóbrio, não quer dizer que sua decisão de transar (tomada enquanto bêbado) não represente um desejo real, nem que satisfazer esse desejo seja um desrespeito à sua autonomia pessoal. Seria então mais razoável dizer que o problema do consentimento alcoolizado está no fato de que a pessoa pode não se lembrar de ter consentido. Isso significa que, para o resto dos seus dias, no futuro projetado para além daquele momento de estupor, ela não terá o registro subjetivo, a certeza fundamentada na memória, de que ela agiu como queria, de que a outra pessoa não a enganou, não “tirou vantagem” dela, não desrespeitou sua vontade, não ignorou sinais contraditórios – ela não terá certeza de que a outra pessoa não a agrediu, efetivamente; que não traiu sua confiança e pisou em sua humanidade, o que perturba mesmo na forma de mera dúvida. Porém, se houver outra pessoa de confiança no quarto no momento em que o consentimento alcoolizado é conferido, não seria esse consentimento menos eticamente comprometido? Afinal, a outra pessoa estaria ali para garantir que ao menos seu eu alcoolizado sabia o que queria e teve sua autonomia respeitada. O “eu sóbrio” pode até se arrepender, mas arrependimento não implica violência; é apenas um desconforto – a discrepância entre seus desejos em diferentes estados de consciência – que a pessoa terá que processar sem poder exigir que a pessoa com quem transou assuma um papel de agressora em sua vida.

No entanto, o melhor argumento contra essa ideia (de que mudanças em certas práticas culturais sexuais básicas ajudaria a prevenir estupros) é o de que isso não parece realmente atuar sobre a intenção de cometer estupros. Pelo contrário: mesmo que isso seja sobre expectativas compartilhadas, e não comportamentos individuais – e portanto não se preste à culpabilização – isso ainda coloca sobre os ombros de vítimas potenciais a responsabilidade por evitar a vitimização.

É claro que isso poderia ser lido de outra forma: seria muito esquisito entender a ação direta dos de baixo contra os de cima (em termos de luta anticapitalista, antiautoritária, etc) como “colocar a responsabilidade por evitar a opressão nos ombros dos oprimidos”. Pensando melhor, esse argumento de fato existe: já ouvi pessoas dizerem que ações diretas de solidariedade com o objetivo de, p. ex. financiar autonomamente projetos dentro de escolas públicas, são ruins porque naturalizam o fato de que esse dinheiro deveria estar vindo do Estado. A briga, segundo essas pessoas, é para que esse dinheiro venha “de onde deveria vir” (especialmente porque já pagamos impostos demais). Ora, são os oprimidos que querem mudar as coisas; para anarquistas, esperar até que os opressores façam algo – mesmo que a espera seja “ativa”, com reclamação, cobrança, protesto – é contraproducente, inclusive porque reforça a hierarquia e a exclusividade de iniciativas que não nos educa, na prática do dia a dia, a sermos uma força ativa em nossas vidas. Se formos continuar acreditando que a única forma de combater o estupro é esperar que estupradores em potencial não realizem seu potencial, estamos mantendo as vítimas em potencial numa posição de passividade; estamos, de fato, adiantando sua “vitimicidade” antes mesmo de elas “realizarem” seu potencial de vítima. Em outras palavras, se há algo que elas podem fazer, por que não fazê-lo?

Mas há uma forma mais contundente de frasear essa objeção. A questão não é quem deve ser o agente da mudança progressista: a questão é que transformar nossas práticas por medo seria, em certo sentido, ceder à ameaça. Ou seja, se devemos extirpar nossos desejos por certas coisas – como ter uma experiência íntima de fato íntima, com um único outro indivíduo – porque existe quem nos ameace quando realizamos esse desejo, quão diferente isso é de mulheres que deixam de andar sozinhas à noite em lugares ermos porque sabem que são “vítimas em potencial” por fazê-lo? Ainda que os argumentos em favor de uma cultura sexual mais “coletivista” (por falta de termo melhor; alternativas incluem “não-solitária” ou “socialmente profilática”) fossem persuasivos, talvez seja mais utópico (no sentido de desejável) lutar por transformações sociais em que não houvesse motivos para desconfiar tanto assim que a intimidade possa ser convertida em abuso.

Mas isto é sequer possível? Será que não há algo de fundamental na intimidade que a transforme numa dessas contradições inescapáveis da vida? Ou seja, ela ser algo que desesperadamente queremos, que nos faz muito bem quando é boa, mas justamente por isso pode se converter no pior dos abusos, um potencial de dano que não pode ser prevenido sem impossibilitar, ao mesmo tempo, alcançar suas mais nobres alturas.

Uma crítica a essa forma de ver as coisas é uma resposta clássica à questão do abuso: a intimidade corre mais risco de se converter em abuso quando há outras desigualdades sociais, outras opressões estruturais, que invadem e corrompem esse núcleo da experiência humana. Em outras palavras, ninguém veria a intimidade como oportunidade para opressão se não houvessem motivos nem apoios externos para tanto.

Explico melhor: segundo esse argumento, seria muito menos corriqueiro que a intimidade se transformasse em abuso se fazê-lo não resultasse no reforço de certas vantagens materiais ou sociais externas à intimidade – se homens não quisessem ser brutos para “pagar de machões” para outros homens (desigualdade relativas a papeis de gênero e heteronormatividade), se não quisessem tratar mulheres como seres inferiores para reforçar um patriarcado que lhes reserva vantagens no sistema capitalista, se a desumanização de certas minorias étnico-raciais, de pessoas trans, ou pessoas com deficiência, por exemplo, não transformasse certos corpos em corpos com os quais, por exemplo, homens brancos cis sentem que podem “experimentar” fantasias de violência impunemente, etc. Em outras palavras, sem opressões estruturais que “premiam” certos comportamentos em que se busca submeter outras pessoas (o estupro como arma de submissão), e que tornam as palavras e a integridade física dessas certas pessoas menos respeitadas – que de fato as deixam com menos armas para combater esses abusos – teríamos menos abusos.

Mas essa resposta parece levar muito pouco a sério o impacto, sobre essas próprias desigualdades, de questões culturais relativas à organização da intimidade. Será mesmo que uma ampla e interseccional igualdade de salários e de propriedades (a curto prazo) ou a comunização dos meios de produção (a longo prazo) daria um golpe fatal nos esquemas cognitivos e narrativos que produzem “vítimas imperfeitas”? Por exemplo: será que ninguém mais, tendo sido agredido durante um ato sexual, se sentiria envergonhado por ter, digamos, “confiado na pessoa errada”? Apoios comunitários seriam assim tão fortes, e a participação integral da pessoa em diversas comunidades tão equânime e consequente, que ela realmente conseguiria mover outras pessoas e comunidades (as envolvidas com o agressor) a empreenderem esforços por compensações e transformações, mesmo sem conseguir provar decisivamente o que aconteceu, tendo revelado o ocorrido muito tempo depois?

Podemos talvez pensar que num futuro mais anárquico – e especialmente “pós-escassez” – a questão passe menos pelo crivo da “prova” e mais pelo crivo da manutenção de boas relações, algo, aliás, que podemos encontrar em inúmeros procedimentos de mediação não-ocidentais. Em outras palavras, simplesmente não é de bom tom ofender as pessoas – que se imiscuem conosco em inúmeras outras relações e empreitadas – chamando-as de mentirosas sem evidências claras da mentira (mesmo que tampouco haja evidências inequívocas da ocorrência). Se uma pessoa diz que foi agredida, mesmo que ela esteja mentindo, ela está precisando de alguma coisa – tudo bem, é uma grande sacanagem mentir sobre isso, mas pra chegar ao ponto de fazer isso a pessoa está, digamos, doente; ela precisa de alguma ajuda. Como fazer para organizar essa ajuda sem legitimar uma acusação falsa, reintegrando as pessoas em vez de expulsando-as e condenando-as (e as próprias comunidades) a uma escalada dos problemas em vez de sua resolução, lidando ainda com os (justíssimos) ressentimentos e raivas que um processo desse causaria… Isso tudo é um desafio que não só não pode ser resolvido a priori, com fórmulas independentes de contexto, como também não pode ser visto como algo menor no desafio de manter anarquias enquanto formas políticas duradouras de relação.

Dito de outra forma, a intimidade – ou talvez nossa cultura sexual, a nossa organização pragmática da intimidade – tende a criar situações de “impossibilidade de saber o que realmente aconteceu” que nos deixam extremamente desconfortáveis. E aqui chegamos a uma questão fundamental. Tendo em vista que essas situações vão ainda acontecer quanto a outras coisas – que não têm nada a ver com sexo – como deve ser nossa reação a isso? “Nossa” reação porque reação social: podemos, em outras palavras, julgar nossas instituições pela forma como abordam essa questão e conseguem produzir felicidade ao processá-las adequadamente. Como, então, devemos nos organizar em relação a essas situações? Como nossas instituições devem processá-las? Em geral, há duas abordagens possíveis: ou nos organizamos para sistematicamente tentar diminuir a quantidade de situações em que não sabemos bem o que aconteceu – não sabemos os “fatos duros” da questão; ou, simplesmente aceitamos que a vida é assim e não fazemos nada para diminuir a quantidade dessas circunstâncias (ainda que ainda precisemos de alguma maneira de lidar com elas quando surgem).

Se pensarmos, talvez de forma iluminista, “prometeica”, que nós conseguiremos diminuir a quantidade de acusações de agressão em que não sabemos dos fatos, quão desejável isto é? Afinal de contas, pode-se dizer que é isso que Estados dizem que tentam fazer quando assumem a responsabilidade por investigar acusações de estupros. Enquanto indivíduos, não podemos ser imparciais; não olhamos para o mundo pelos olhos de um deus onipresente. Mas gigantescas burocracias de investigação com poderes soberanos são criadas e mantidas para criar tais olhos divinos, embora apenas a posteriori: é preciso poder coletar provas de todo tipo e investigar até poder descobrir o que aconteceu. Mas, claro, legitimar esse poder soberano tem um custo – para anarquistas, uma gigantesca perda de liberdade inerente ao desequilíbrio de poder que a soberania estatal representa. Conseguiríamos nós, autonomamente, de forma libertária, diminuir significativamente o número de situações em que não se sabe o que aconteceu entre quatro paredes, mas sem recurso à soberania estatal? Daí a discussão acima: um modo de fazer isso seria mantendo uma cultura sexual em que sempre “há testemunhas” de atos sexuais, ou pelo menos para aqueles que ocorrem entre pessoas sem uma intimidade sólida já estabelecida. Ainda que isso seja possível, ainda que algum antropólogo diga inclusive que isso já existe ou existiu em algum lugar, inclusive… Isso lá valeria a pena?

De qualquer forma, qualquer separação rígida entre materialidade e cultura está fadada a problemas tanto analíticos quanto políticos. O progresso material em direção ao igualitarismo de recursos, de meios de produção, etc. que anarquistas desejam certamente virá acompanhada (sem nenhum julgamento de causalidade aqui) de transformações culturais, e muito provavelmente de transformações na nossa cultura sexual (afinal, falei bastante de patriarcado mas pode-se dizer que este texto é um comentário sobre a sexualidade burguesa). Pode ser que uma cultura sexual em que sempre se exige a participação de múltiplos corpos e olhares (múltiplos no sentido de mais que dois) não seja o melhor caminho. Eu sequer discuti neste texto questões como poliamor/não-monogamia ou anarquia relacional, que talvez respondam melhor a algumas dessas inquietações. Ainda assim, resta a reflexão de que pode ser frutífero pensar as culturas de sexualidade que possam corresponder a uma materialidade mais anárquica.

Marx, o político

Eu tive um professor na UFSC, Jean Castro, que frequentemente comentava como Marx era um pensador bem menos moralista do que a maioria das pessoas o presumia. Por esse prisma, ele não teria sido tão intelectualmente movido por compaixão em relação à situação da classe trabalhadora, por um senso de que a situação dela era imoral, mas por uma análise mais fria de que o capitalismo ruiria sob o peso do proletariado.

Eu acho essa análise particularmente interessante porque colabora com a retirada de Marx do pedestal dos profetas no qual ele é frequentemente colocado. Isso na verdade o aproxima de pessoas como os estrategistas políticos dos partidos contemporâneos, que, no contexto da tarefa de “chegar ao poder” – de acumular poder – estudam, hoje, questões como “como conquistar o público evangélico”, ou “como captar o eleitorado feminino”. No próprio 18 de Brumário, em que ele aprofunda sua análise de classes (que de outro modo é apenas um rascunho), ele basicamente mostra como o Bonaparte alavancou uma determinada classe para chegar ao poder; suas próprias análises basicamente implicariam que, conforme os tempos mudam, será cada vez mais importante apelar para outra “classe” – ora, podemos até imaginar que ele teria usado o termo como hoje se falaria de “grupos”, “segmentos”, etc., ainda que o critério de classificação dele seja particularmente bom. O objetivo da acumulação de poder pode ser diferente para cada ator que contrata cada estrategista (com Marx no caso sendo ambos contratante e contratado nesse cenário), e isso certamente afeta a análise, mas o propósito da análise é semelhante. Pode-se pensar, por exemplo, que a tese do estrategista Marx sobre o proletariado industrial como público-alvo chave ou falhou ou simplesmente não é mais verdadeira; que é imprescindível, hoje, enfocar o precariado ou explorar clivagens raciais.

Que Marx tenha sido um revolucionário não invalidaria essa perspectiva. A despeito de se ou quando ou com que intensidade tenha se convertido em social-democrata, em algum momento apoiou a revolução da classe trabalhadora como um todo num sentido socialista do termo. Mas a completa legitimação de governos representativos burgueses não ocorreria até o pós-segunda guerra; pode-se dizer que o terreno político em que o estrategista se movia era outro, com golpes de estado e guerras civis no menu do dia o tempo inteiro. O próprio movimento do marxismo em direção à social-democracia é justamente a atualização da análise conforme a topologia foi mudando: o proletariado industrial até pode ser a chave, mas a porta agora tem duas fechaduras, e só abre junto com eleições.

Analisar Marx como uma amálgama de político profissional e do estrategista que hoje em dia é um profissional contratado pelo primeiro é uma forma de reenquadrar a contribuição do marxismo para o socialismo. Ele não é um “irmão”, com quem brigamos mas temos afinidades fundamentais, mas sim uma espécie de chefe paternalista. Além, claro, de tornar muito mais natural e óbvia a acusação de eurocentrismo que pesa sobre seu arcabouço teórico. Como teórico aclamado das leis das Sociedades Humanas, isso causa polêmica – mas se ele é simplesmente um político & publicitário, é muito normal. Afinal, ninguém espera que Lula vença uma eleição na Índia, ou que João Santana rode uma campanha na Islândia. Marx queria ganhar poder no lugar que conhecia, onde nasceu e foi criado, e é claro que suas análises políticas serviam (quando muito) à sua região. Isso não significa que sua análise do capitalismo esteja errada, nem que seu eurocentrismo a torne inútil – afinal, de fato uma dominação global deste sistema econômico, de modo que, por conta disso, mesmo que ela seja eurocêntrica ela ainda é fértil. Não obstante, em relação ao que se deveria fazer uma vez que se compreenda a situação, ele se torna muito pouco distinguível de um político profissional.

Não estou dizendo que ele seria um fisiocrata, um membro do Centrão; ele certamente era idealista. A liberdade marxista consiste na superação da imposição da natureza (entendida aqui como arbitrariedade, aleatoriedade; o oposto do controle racional humano); isso em nada contradiz toda a ideologia eurocentrada de progresso que bem conhecemos. O futuro, dizia, se parece mesmo com uma grande fábrica; quem falou em desaparecimento do Estado no futuro comunista foram outros – Marx mesmo via no máximo o fazia desaparecer retoricamente, no sentido de que uma vez que o Estado fosse usado legitimamente pela classe trabalhadora (esta desaparecendo também enquanto classe), ele seria completamente absorvido no âmbito da sociedade e deixaria de ser uma força opressiva sobre ela. Mas isto não quer dizer a desaparição da burocracia, das relações hierárquicas que conformam o Estado como instituições de governo – ele deixar de ser opressivo é basicamente uma interpretação de como as pessoas se relacionariam com ele, não uma observação sobre diferentes formas de sociabilidade e organização da tomada de decisões.

Sim, ele falou sobre o futuro dever ser obra dos próprios trabalhadores. Mas o que isso exatamente significa? Lembremos que o primeiro congresso da AIT deliberou sobre a presença de “intelectuais” na organização; pra muitos delegados só deveria estar ali quem estava de fato trampando em alguma fábrica ou com algum ofício. Se esta resolução tivesse sido aprovada Marx acabaria tendo que sair. Há várias formas de dizer que um movimento coletivo foi “obra dos trabalhadores”: várias desculpas pra fazer com que alguns indivíduos os representem. Pode-se até pensar na crítica que Bakunin fez sobre, sim, um trabalhador pode ascender ao poder, mas aí deixará de ser trabalhador, sim? Um antídoto antecipado ao veneno gramsciano do intelectual orgânico.

Estou dizendo que Marx poderia muito bem ser compreendido como um político profissional, um estrategista, um publicitário, ainda que idealista, cheio das melhores intenções – alguém que buscou a ciência de quem governa, como colocou Malatesta; a busca por aliados entre o povo contra as classes, e entre as classes contra as massas. Estou dizendo isso aqui, e não num periódico acadêmico, porque não estou com saco pra fundamentar com citações paginadas tudo que digo, nem de pesquisar quem já fez esse argumento antes, já que não é possível que eu tenha sido o primeiro – mas certamente é preciso observar que não o faço para desqualificar a esquerda em geral. Muito pelo contrário: estou dizendo isso porque, como anarquistas, temos sempre os dois pés atrás em termos de reforçar projetos e iniciativas que acabem servindo de trampolim para políticos profissionais. Nos guardamos contra isso o tempo todo; alertamos as pessoas quanto a isso. Acho que valeria a pena nos guardarmos também contra a possibilidade de sustentarmos o culto à personalidade de Marx, ainda que os efeitos não sejam os mesmos, estando ele morto há muito tempo. Ocorre que está muito vivo em muitas iniciativas com as quais podemos colaborar, mas a colaboração pode ser esperta em termos de não reforçar uma imagem que ele não merece, assim como não quisemos reforçar a imagem do Getúlio pai dos pobres, ou do Lula, etc. A ideia do grande teórico das ciências sociais que dá a linha de parte substancial de toda análise socialista – do vocabulário mais fundamental que usamos, muitas vezes – pode ser desconstruída à esquerda.

References for “Mechanical failures and anarchist freedom”

In this essay, I talk about metaphors for freedom among anarchists. I particularly discuss a metaphor concerning failure in complex systems, pointing out that anarchists relate freedom to the deep transformation of social patterns. Here are the references I cited in this essay:

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    • I have reviewed this book here.
  • DIAS, Álvaro Machado. Por que algoritmos decisórios falham. Folha de São Paulo, 2023. Available from: https://tinyurl.com/22cyarw7. Visited on: 4 Nov. 2023.
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    • There’s an English version here, but it’s just excerpts, the one I’m referencing is much longer.
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  • ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. London: Profile Books, 2019.

Transcript:

Anarchists often employ metaphorical imagery when discussing liberty, but it is often hard to tell when metaphor ends and literal allusion begins. For example, David Graeber conceived of freedom as a tension between a “play” principle in human activity and the rule-bound games we generate when we play. Is this a metaphor, or are we literally to conceive of all human institutions, like the family, capitalism, or the state, as akin to football or poker? What about Murray Bookchin’s “ecology of freedom”, seeing as we are, indeed, animals?

Some turn to zeitgeist-capturing technology to make a point: for Guy Debord, writing during the rise of the television in 1968-ish France, people were becoming an audience to their own lives; for Eric Laursen, the State is like a computer’s operating system. Others prefer physical terms, in different levels of abstraction. Heckert wrote that to hold tightly — to shame, resentment, or any emotion or any story of how the world really is — is to be held tightly, and this is not freedom; to hold gently is to be held gently, which is freedom. Kropotkin, as Richard Morgan writes, employed images and tropes from bio-political science but took them literally and made them real in a radical political framework.

Élisée Reclus once warned us that proverbial formulas (often metaphorical) are dangerous, as one happily acquires the habit of repeating them like a machine, as if to avoid reflection. This message also contains a metaphor about machines. I think this is actually a very useful figure of speech to discuss what liberty means within anarchism. This is for lots of reasons. It symbolises — as noted by Reclus — unconsciousness even amidst action. Also, anarchism took shape as the industrial revolution took flight, the latter demanding, as Cedric Robinson wrote, a kind of submission which invaded every recess of the worker’s existence. It therefore references the anarchist criticism of humans literally made to perform inhuman rhythms.

In this essay I want to discuss anarchist freedom by digging a little deeper into a particular metaphor using the figure of the machine: the notion of “failure in complex systems”, an idea from the field of engineering, at least as I read it through the work of David Woods and colleagues. I am also going to be quoting Josh Pelton a lot: he’s an engineer with a penchant for philosophy and sociology and a marvellous Youtube channel called Thunk, which I highly recommend.

When operating large-scale machinery, such as aeroplanes or nuclear reactors, people tend to notice and fix what looks broken, but if everything is shut down every time a light bulb needs changing, nothing is ever going to get done. Such systems are thus usually designed with enough margins for errors that allow them to keep running in spite of issues; repairs happen when they’re necessary or when there’s a convenient opportunity. Complex systems, then, run in a constant state of slight disrepair.

Sometimes, however, a combination of things left unfixed leads to catastrophic failure, hurting people. When this happens, it is common to search for a single cause that explains the disaster, especially if it allows for attribution of guilt. Quote-unquote “Human error” is quickly found, for even if the cause was mechanical, someone may, for example, have missed evidence that something was wrong, or not have planned adequately for it from the beginning. To avoid future issues, the culprits might be exiled, punished, or simply retrained.

However, Woods and colleagues explain that there is no such thing as human error. Different knowledge of events and context, or different goals, lead to different judgments of people’s performances. As Pelton summarises, human error is above all an artefact of hindsight bias, which recontextualises something as if it obviously contributed to the disaster in a way that anyone should have seen coming. In other words, there will always be ways to explain failure through negligence or incompetence, just because in a complex system there’s always something going wrong. Erroneous actions should only be the starting point for an investigation, but one that inquires the system itself. Human error, Woods and colleagues write, is not some deficiency or flaw or weakness that resides inside people, being rather a result of their interaction with the system.

On the other hand, there is a counterproductive way to focus on the system. One may, Woods and colleagues write, restrict the range of human activity, perhaps by policing practitioners so they more closely follow the rules, or by introducing more automation to quote-unquote “eliminate people” from the process altogether. But, as Pelton notes, adding more moving parts to take humans out of the loop mixes in new variables that might fail, and therefore tends to produce even more errors — and crucially, more judgments of human error. Emphasis on increasing efficiency generates more pressure on operators, write Woods and colleagues, and additional technology creates new burdens and complexities for already beleaguered practitioners, leading to new modes of failure.

How can we reliably avert disaster, then? Well, failures must be seen as opportunities to learn and change. Instead of using investigations to find out how others failed (presumably to punish them), information flow must be rewarded so that better decisions can be made and issues are less likely to be overlooked. Pelton summarises the best way to prevent critical failures in complex machines as simply… Empowering people to spot and fix problems as they crop up, making the system more adaptive and robust. He also notes that repair is messy, idiosyncratic, unpredictable, and unlike assembly lines, not conducive to automation or rote procedure; it is artisanal work, requiring artistry, problem-solving, expertise, as well as the time needed to experiment. Hence empowering autonomous, decentralised repair includes training and experience, but also providing ample resources, as well as understanding what pressures we’re applying to individuals that will influence how they make everyday decisions about safety.

If the metaphor isn’t obvious yet, I’m going to spell it out. Anarchists can be seen as making a similar case, with the “complex machines” in question standing for “societies” or “social patterns”, machines made of their own operators, who “run” themselves to perform the “task” of… living their own lives! Interaction in a sufficiently large group always involves conflict (that is, “we” too collectively live in constant “slight disrepair”). Yet, people do not usually suspend every commitment they have as the result of a quarrel until their relationships are perfectly harmonious. Everything goes on until “rituals”, from phone calls and meetings to interventions and assemblies, provide “convenient opportunities” for “fixes”, that is, for restoring people’s willingness to cooperate with one another. Still, a lot can be missed because of all the complexity involved. Problems might compound and combine until they cause harm on a greater scale.

Anarchists were not the first to point out that such harm is not a matter of human error. A lot of post-republican Roman thinkers, for example, basically said as much when they concluded that the Republic ruined not because people lacked virtue, but because of constitutional shortcomings. However, for anarchists the solution cannot be bureaucratic, like “taking humans out of the loop”. With machines, after things go wrong we often notice overlooked signals that could have indicated vulnerabilities. With social relations it’s similar, and improving social consciousness, that is, seeing and appreciating the significance of such signals, should be the bread and butter of how we relate. This would empower us to recognise potential problems and act directly on them (you know, “to spot them and fix them as they crop up”) in a collective, yet decentralised manner, even if this means deep social transformation (that is, in the metaphor, the system is made “more adaptive”). Doing so requires education (in the metaphor, “training”), sharing and rotating responsibilities (in the metaphor, “experience”), and common access against the artificial scarcity of private property (in the metaphor, “ample resources”) to combat relevant inequalities (in the metaphor, the “pressures applied on individuals that influence their decisions”) so that people retain their capacity to keep on “fixing” and therefore improving their relations.

Moreover, this metaphor also fits anarchism well in the sense that ongoing negotiation and adjustment is emphasised over social blueprints — and by this I don’t mean to contrast repair with creation but to think of repairing as creative activity. Of course it involves forecast and planning for robustness (also known in engineering as designing for tolerance); it encompasses, speaking of societies rather than machines, accounting for path dependence and keeping in mind the coherence between means and ends. Still, obsessing over the initial moment of creation misses the point that, by fixing something, someone might in the future, as Pelton discusses the fixing of broken objects, think of how fun it was to see the insides of the thing, how they’ve learned the right way to do something, and how a friend helped them out. These are all things that can’t be designed into a system: people have to decide how to restore its functionality, and that decision may change or subvert the values of the designer.

Metaphorically, then, this is all about institutions that are constantly reassessed by confident, socially conscious individuals. Of course sovereignty-supporting political traditions, I’m talking here about Marxists, liberals, social democrats, etc., of course they also want to “avoid disasters”. But if you think about it, for them a disaster is when predetermined ideal outcomes are threatened — not necessarily causation of harm. After all, they are in favour of there being national armies and police and prisons and whatnot, which are meant to cause harm and threaten those who would threaten their ideal constitutions.

Indeed, the point of all conformist social engineering is to induce people to not mind being harmed; as Kathy E. Ferguson writes, bureaucracies seek to “tie up our loose ends” and reduce us to a reflection of an organization. In this sense, society under patriarchy, white supremacy, statism, capitalism, and other forms of intersecting domination really begins to resemble an aeroplane or a nuclear reactor: a machine tied to a specific purpose regardless of what kind of machine people might require in their lives now or in the future – in yet other words, the designer’s values cannot be subverted.

Even further, each individual becomes like an expendable, replaceable part, evaluated according to their “performance”: they are increasingly rendered… machine-like. To respect state representatives, ponders Peter Gelderloos, is to mistake them for reasonable human beings rather than the organic masks that an insatiable machine wears in order to extend its power.

Of course, every social system is self-reinforcing, and that is actually good; anarchists also want anarchy to be sustainable. But the kinds of social systems anarchists envision are qualitatively different. They include in their own enacting a way to undo themselves, as Francisco Varela puts it; anarchism, Klee Benally analyses, is a dynamic politic that invites its very destruction while maintaining composure of core principles; it tries to create a healthy culture as Shaun Day-Woods defines it: one that doesn’t keep anything that can’t be destroyed.

Instead of humans becoming more like machines, the institutions that anarchists are intent on promoting are supposed to be more organic: balanced, open-ended, diverse. Creation is always anarchist, wrote Diego de Santillán, and so are creators if they do not create in view of automating themselves. As Ruth Kinna discusses regarding Kropotkin’s vision, his defence of organisational proposals being always open to revision and dissent ultimately meant that society should be a living, evolving organism. Even more, in the end, there is no “one”, single society; no single “social machine”; like the Zapatistas, who walk toward a world in which many worlds fit, anarchists also conclude that the challenge really is to integrate multiple utopias; to render diverse social machines interoperable without disasters.

In the end, the problem is not exactly machines themselves. Analysing romantic tropes, which were somewhat influential among anarchists, John Tresch notes that machines drew forth virtual powers and brought about conversions among hidden forces; they could be used to create new wholes and organic orders, remaking humans’ relationship to nature and renewing nature itself. Anarchists seem to draw a line between creating and using machines on one hand and, metaphorically or not, being one, being absorbed into one, on the other. If Hobbes himself described the Leviathan as a huge machine, anarchists often attacked this “mechanical” political reasoning, exploring what “more organic” relations would look like.

Of course, to heed Reclus’s warning, this metaphor is far from straightforward. If social machines are made of ourselves and our relational patterns, there may be a difference in how organic or mechanic they are, but the boundaries between creating, using, and being them are definitely blurred, to say the least. Even if the metaphor is not perfect, however, I still think it deserves attention given recent technological developments.

For Shoshana Zuboff, present-day global technology conglomerates commodify our behaviour, shaping it at scale through automated machine processes that nudge, coax, tune, and herd us toward profitable outcomes. It is no longer enough to automate information flows about us; increasingly the goal is to automate us. The enormous amount of data produced about us enables automated decision-making, private and public, leading to what Álvaro Dias calls dystopian iteration: when the future, conceived as a straight line, without surprises or chances of being transformed, is reified by algorithmic decisions, crystallising imbalances and externalities.

In other words, if anarchists criticise the building of agency-crushing sovereign “machines” out of our own actions and dispositions, this is becoming less metaphorical as time passes. The automated, racist control of predictive policing, credit scores, and algorithmic bosses; advances in the emulation of human likeness and knowledge; the grim suffocation of war by drone surveillance and AI-targeted strikes; the invasiveness of pregnancy-guessing gadgets: all of this seems to strengthen the anarchist case for a rethinking of what “freedom” means. At least, that is, if this notion is at all to remain a guiding aspiration for the future.

Uma proposta para a abolição de notas em avaliações, por Paul Goodman

Trecho do livro Compulsory Miseducation (“Deseducação Obrigatória”).

Que meia dúzia de universidades de prestígio – Chicago, Stanford, a “Ivy League” toda – abandonem as notas e usem os testes apenas e inteiramente para fins pedagógicos, conforme a conveniência dos professores.

Qualquer pessoa que conheça o temperamento frenético das escolas atuais entenderá a transvaloração de valores que seria afetada por essa modesta inovação. Para a maioria dos alunos, a nota competitiva passou a ser a essência do processo. O ingênuo professor aponta para a beleza do conteúdo e para a engenhosidade da pesquisa que o produziu; o aluno esperto pergunta se isso cai na prova.

Deixem-me falar logo de uma objeção cuja unanimidade é fascinante. Acho que a grande maioria dos professores concorda que a avaliação atrapalha o ensino e promove um espírito ruim, que leva a trapacear e plagiar. Tenho diante de mim a coletânea de ensaios Examining in Harvard College, e esse é o consenso. No entanto, afirma-se uniformemente que a avaliação é inevitável, pois de que outra forma as escolas de pós-graduação, as fundações e as empresas saberão quem aceitar, premiar e contratar? Como os caçadores de talentos saberão a quem recorrer?

Testando os candidatos, é claro, de acordo com os requisitos das tarefas específicas da instituição que os quer, da mesma forma como são testados os candidatos ao serviço público ou a licenças para a prática de medicina, direito e arquitetura. Por que os professores de Harvard deveriam estar fazendo esses testes para as empresas e fundações?

Essa objeção é ridícula. Dean Whitla, do Escritório de Testes de Harvard, ressalta que os testes de aptidão escolar e de desempenho usados para admissão em Harvard são um índice excelente para o desempenho geral em Harvard, melhor do que as notas do ensino médio ou as notas de cursos específicos de Harvard. Presumivelmente, esses testes de admissão à faculdade são feitos sob medida para o que Harvard e instituições semelhantes desejam. Pela mesma lógica, não seria melhor se um empregador aplicasse seu próprio teste de aptidão profissional em vez de confiar nos caprichos dos especialistas de Harvard? Na verdade, duvido que muitos empregadores se preocupem em analisar essas notas; é mais provável que estejam interessados apenas num diploma de Harvard, seja lá o que isso signifique para eles. As notas têm mais peso nas escolas de pós-graduação – aqui, como em qualquer outro lugar; o sistema funciona principalmente para seu próprio benefício.

É realmente necessário lembrar aos nossos acadêmicos a antiga história das provas. Na universidade medieval, o objetivo principal da prova exaustiva era aceitar o candidato como colega ou não. Sua defesa de mestrado era uma obra que lhe permitia entrar na guilda. Não se tratava de fazer avaliações comparativas. Não era para eliminar e selecionar para um licenciador ou empregador extramuros. Certamente não era para colocar um jovem contra outro em uma feia competição. Minha impressão filosófica é que os medievais achavam que sabiam o que era um trabalho bom e que somos competitivos porque não sabemos. Mas quanto mais o status é alcançado por meio de uma avaliação competitiva amplamente irrelevante, menos saberemos.

(É claro que nossos exames americanos nunca tiveram essa orientação puramente de guilda, assim como nossas faculdades raramente tiveram autonomia absoluta; o exame era para satisfazer superintendentes, anciãos, regentes distantes – e eles, como superiores paternais, sempre gostaram mais de dar notas do que de aceitar colegas. Mas eu afirmo que essa configuração por si só torna impossível para o aluno se tornar um mestre, crescer e começar a trabalhar por conta própria. Ele sempre estará tirando 10 ou 9 para algum supervisor. E no cenário atual, ele sempre estará subindo no pescoço de seu amigo.)

Talvez os principais opositores à abolição das notas sejam os alunos e seus pais. Os pais devem ser simplesmente ignorados; sua ansiedade já causa problemas suficientes. Para os alunos, parece-me que um dos principais deveres da universidade é privá-los de seus penduricalhos, de sua dependência em avaliações e motivações extrínsecas, e forçá-los a enfrentar a difícil empreitada do conhecimento em si, e finalmente perder-se nela.

Um efeito lamentável das notas é anular os vários usos dos testes. A prova, tanto para o aluno quanto para o professor, é um meio de estruturar e também de descobrir o que está faltando ou o que está errado e o que foi assimilado e pode ser pressuposto dali em diante. A revisão – inclusive a revisão sob alta pressão – é um meio de reunir os fragmentos, de modo que haja rasgos de percepção sinóptica.

Há vários bons motivos para fazer testes e para vários tipos de testes. Mas, se o objetivo é descobrir os pontos fracos, qual é o sentido de dar nota baixa e puni-los, se isso convida o aluno a ocultar seus pontos fracos, fingindo saber algo, quando não trapaceando? A conclusão natural da síntese é o cair da ficha em si, não uma nota por ela ter caído. Para a importante questão do nivelamento, se for possível estabelecer no aluno a crença de que ele está sendo testado não para obter notas e fazer comparações injustas, mas para seu próprio benefício, o aluno normalmente deve buscar seu próprio nível, onde ele se sente desafiado porém ainda assim capaz de enfrentar o desafio, em vez de empurrar com a barriga um nível mais avançado. Se o aluno ousar aceitar a si mesmo como é, a nota do professor será um instrumento rudimentar comparado à autoconsciência do aluno. Mas é raro em nossas universidades que os alunos sejam incentivados a perceber objetivamente sua grande confusão. Ao contrário de Sócrates, nossos professores se baseiam em vontade de poder em vez de vergonha e idealismo ingênuo.

Muitos alunos são preguiçosos, por isso os professores tentam incitá-los ou ameaçá-los por meio de notas. A longo prazo, isso faz mais mal do que bem. A preguiça é um mecanismo de defesa do caráter. Pode ser uma forma de evitar o aprendizado, a fim de proteger a presunção de que já se é perfeito (mais além, o desespero de que nunca se conseguirá sê-lo). Pode ser uma forma de evitar precisamente o risco de falhar e ser rebaixado. Às vezes, é uma forma de dizer educadamente: “Não quero”. Mas como foram as exigências autoritárias dos adultos que criaram essas atitudes em primeiro lugar, por que repetir o trauma? Chega um momento em que devemos tratar as pessoas como adultos, com preguiça e tudo. Uma coisa é ter a coragem de tirar um malandro de sua aula; outra coisa bem diferente é dar-lhe um zero, como faz um chefe.

O mais importante de tudo é que, muitas vezes, é óbvio que hesitar em fazer um trabalho, especialmente entre os jovens brilhantes que ingressam em grandes universidades, significa exatamente o que parece. O trabalho não é adequado para mim, nem para essa matéria, nem para esse momento, nem para essa escola, nem para a escola como um todo. O aluno pode não ser estudioso no sentido clássico de viver com a cabeça nos livros; ele pode estar cansado da escola; talvez seu desenvolvimento deva tomar outra direção agora. Mas, infelizmente, se esse aluno for inteligente mas inseguro de si, ele pode ser intimidado a tirar nota para passar, e isso confunde tudo. Meu palpite é que estou descrevendo uma situação comum. Que desperdício terrível de uma vida jovem e do esforço de um professor! Esse aluno não reterá nada do que botou na prova para passar […].

E, ironicamente, o inverso também é provavelmente verdadeiro. Um aluno reprovado e eliminado mecanicamente está realmente pronto e ansioso para aprender em um ambiente escolar, mas ainda não pegou o jeito. Um bom professor pode reconhecer a situação, mas o computador faz o que quer.

Que se foda o poder, por Benjamin Zephaniah (1958-2023)

“Que se foda o poder – e vamos só cuidar uns dos outros. A maioria das pessoas sabe que a política está fracassando. O problema é que não conseguem imaginar uma alternativa. Lhes falta confiança. Eu simplesmente parei de prestar atenção em propaganda. Desliguei a televisão que só conta mentiras e comecei a pensar por mim mesmo. Aí eu realmente comecei a me encontrar com pessoas – e acredite em mim, não há nada mais maravilhoso que encontrar e conhecer as pessoas que só estão tentando viver suas vidas. Plantando, ensinando, e até gerenciando economias em que ninguém tem poder. É por isso que sou um anarquista.” – Benjamin Zephaniah

Zoe Williams está certa: anarcafeminismo é a resposta para os problemas na relação com os nossos corpos

por Ruth Kinna e Peterson Silva

Originalmente publicado em inglês no Anarchist Studies Blog em 13 de fevereiro de 2023.

Em uma coluna publicada mês passado no The Guardian [leia a tradução aqui], Zoe Williams diz que o anarcafeminismo é a melhor resposta para as infinitas (e frequentemente disfarçadas) demandas por conformidade que assediam meninas e jovens mulheres. Isso é verdade, mas ela termina o texto deixando no ar a pergunta: “por quê?” O que o anarcafeminismo tem de tão especial contra todo esse discurso misógino de mercado?

Pra começar, o anarcafeminismo ataca as preocupações gêmeas de Williams: o capitalismo e o patriarcado. Para anarquistas, apagadas da história feminista já nos primórdios do movimento por questionar o direito ao voto como seu objetivo maior, essas instituições se reforçavam mutuamente. A mulher era dominada em parte por causa da discriminação no mercado de trabalho, mas as leis trabalhistas refletiam preconceitos que vinham da importância do mercado de casamentos. Moldadas para serem esposas, amantes ou prostitutas, elas eram sempre vistas como auxiliares e dependentes. Religiosos ensinavam que isso era “natural”, uma justa punição pelo pecado original. Governos institucionalizavam esse status subordinado que, por exemplo, restringia o acesso de garotas à educação e legalizava a violência domestica e o estupro conjugal. O papel das mulheres era se conformar a esse sistema que, com a desculpa de “protegê-las”, na verdade as deixava sujeitas a uma rotina de abusos.

Um dos argumentos de Williams é que a real mensagem por trás de conselhos como “ame o seu corpo” e “seja saudável” é na verdade “seja magra”. Investigando as consequências sociais, culturais e econômicas da “escravidão sexual”, militantes como Emma Goldman e Voltairine de Cleyre seguiram os passos de Mary Wollstonecraft, para quem a magreza era o lado visível de uma sublime incapacidade. Magreza era paciência, docilidade e ternura, e isso servia para controlar as mulheres física e mentalmente; pra piorar, o ideal romântico da pálida beldade indefesa esparramada no sofá produzia um estereótipo extremamente racializado.

Mulheres anarquistas em geral aprovavam a liberalização dos mercados de trabalho, mas alertavam que só ter um emprego não levaria à independência ou à interdependência social, o objetivo anarcocomunista. Elas estavam certas: a inclusão de mulheres em sistemas brutais não feminiza esses sistemas; simplesmente reforça as hierarquias de classe que já existem, ao mesmo tempo em que deixa certos preconceitos intactos. A exploração continua, com o capitalismo gerando lucro ao jogar as mulheres umas contra as outras e cada uma contra si própria. Como trabalhadoras, elas competem por empregos, abaixando salários. Como consumidoras, fornecem a demanda por bens ou serviços, de nicho ou de massa, que prometem sucesso individual em contextos sociais e profissionais.

Mulheres e meninas precisam tentar conciliar duas mensagens “progressistas” contraditórias: “aceite a si mesma como você é” e “você pode ser o que você quiser”. A tensão lembra a frase de Oscar Wilde: “seja você mesmo”. Hierarquia e desigualdade sistêmica, para Wilde, fazem disso uma tarefa impossível tanto para ricos quanto para pobres – ou, alias, tanto para homens quanto para mulheres. Aceitar a si mesma como se é também significa aceitar seus próprios desejos; sua própria vontade de se desenvolver, de experimentar, de se rebelar e se transformar naquilo que se quer ser. Em termos de corporalidade, significa avaliar a si mesma a partir de seus próprios critérios e valores em termos de como se apresentar para outras pessoas. Mas esse processo é afetado por estruturas e instituições sociopolíticas mais amplas.

No capitalismo liberal, ser “o que você quiser” é uma mensagem facilmente manipulável por conceitos como “oportunidades iguais”, mobilidade social e empreendedorismo. Indivíduos são aparentemente livres para viver ao máximo quando não desafiam as normas e desigualdades de poder como elas são. Na verdade, viver ao máximo é ser uma empresária, uma política, a primeira mulher a ocupar algum cargo no exército ou na polícia, talvez uma top model ou influencer – uma mulher tão determinada a subir na pirâmide do poder quanto o estereotípico “macho alfa”. Por outro lado, valores dissidentes acabam ridicularizados e demonizados, quando não criminalizados. Essa é a experiencia histórica dos grupos marginalizados, incluindo as comunidades trans.

Anarcafeministas falam sobre livre expressão e crescimento pessoal, mas também sobre os obstáculos à ajuda mútua, precisamente o fator que permite que os indivíduos abracem o que há de único neles enquanto seres sociais. J. S. Mill argumentava que desafiar normas, fazer diferente a despeito da pressão dos demais e encontrar novas formas de viver é essencial para criar uma sociedade dinâmica. Mulheres anarquistas compartilhavam dessa visão. Centenas se recusaram a casar (e mesmo assim ter filhos), cortaram seus cabelos e compartilharam informações sobre contracepção e aborto, arriscando o ostracismo e até mesmo serem presas. Mas, para anarquistas, os princípios de Mill (não-interferência, minimização de danos) são imperfeitos para estimular a criatividade porque presumem a existência do Estado e a competição de mercado. Anarcafeministas argumentam que o bem-estar individual não pode ser encarado como algo desconectado de mudanças sociais coletivas.

Essa é a solução que anarcafeministas encontram para a ansiedade e a depressão que vêm de ter que se conformar a normas repressivas e homogeneizadoras. A multinacional de cosméticos L’Oreal usa a frase “porque você vale muito” para vender seus produtos. A visão de Voltairine de Cleyre sobre a libertação das mulheres oferece um contraponto perfeito: “a liberdade não vale nada para as mulheres até que elas a conquistem”.