Este ano participei do 10º encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, apresentando um pôster em co-autoria com minha amiga Maria Teresa sobre congruência política. Numa série razoavelmente curta de posts falarei um pouco sobre as ideias com as quais tive contato – devo dizer que uma proporção mínima do que realmente aconteceu, já que o evento é enorme e tinha dezenas de debates simultâneos acontecendo a todo momento!
Pôster e Dona Preta
De manhã não tinha nada que me chamou muita atenção, então pude dormir mais (compensando o fato de ter ficado até tarde no lobby do hotel lendo Woodcock e Ranciére). Levantei “cedo” só pro café da manhã mesmo e pra pendurar o meu pôster.
Resolvi que não queria shopping de novo e procurei no Maps lugares em que “os locais comem”. Achei um restaurante aparentemente simpático a 500 metros do hotel; tinha um laguinho com peixe e tudo. Descobri um buffet mais barato que no shopping e uma comida que é uma delícia. Dona Preta, o nome. Com suco natural também, um ótimo laranja com abacaxi.
Apresentei o pôster junto a outras pessoas da mesma área. Trabalhos interessantíssimos, diga-se de passagem; um alô para a Mariani, o Mateus, a Anne e o Leonardo! Parabéns para nós, pessoal! Ah, e também um agradecimento para a Gabriela Tarouco, nossa debatedora, super querida. Os quarenta e cinco minutos passaram voando.
Direitos humanos internacionais
Se a primeira coisa que mais me impressionou na produção acadêmica é a presença de Habermas, a segunda foi o quanto ainda falam de Rawls. Sim, você sabe que Rawls foi relevante em sua época, mas nem desconfia do quanto não deixam esse cara em paz até ir num congresso como esse e ver uma infinidade de coisas sobre teoria da justiça, sempre com referência a ele.
Na minha PIBIC com o Ricardo Silva acabei lendo dois livros que me influenciaram em particular na direção de não gostar muito dele, o Liberalism and the Limits of Justice e o Democracy’s Discontent, ambos do Michael Sandel. Filosoficamente falando, ele destrói o Rawls – ainda que reconheça a engenhosidade do argumento, como ressaltou o Diogo Tourino. A mesa que eu vi, aliás, foi composta por ele, Alvaro de Vita, Renato Francisquini e San Romanelli Assumpção, tendo Rúrion Melo por debatedor.
Alvaro falou sobre justiça global no contexto de direitos humanos. Uma visão minimalista dos direitos humanos é muito fácil de cumprir e impossível de violar, citou ele; isso tem a ver com um tal de Grifin (ou Griffin?), autor que compôs uma noção “minimalista” de direitos humanos internacionais que serviriam como “constraints” (limites) aos Estados quanto a questões-chave. É uma noção minimalista porque, para não entrar em conflito com peculiaridades e especificidades da soberania de cada Estado nacional, procura-se estabelecer padrões mínimos do que são os direitos humanos. O problema, como especificado ali na anotação, é que se os direitos tiverem tão pouca substância, fica difícil você argumentar que eles foram violados em uma dada circunstância, e aí deixam de ter efeito real.
Essa é uma discussão tão interessante! Afinal, a própria interpretação do que significa “ter direito a algo” é super complicada. Ter direito a alimentação saudável significa que ela só precisa existir em algum lugar, e você é que tem que ir buscá-la, não importa quão difícil, caro, complicado? Ou significa algum esforço específico por parte da coletividade (infelizmente em geral entendida como “o Estado”) em direção à ampliação do acesso à comida mais saudável possível? Ter direito à moradia significa que um Estado pode simplesmente dizer “olha, fazemos o possível para que a economia funcione direito e todo mundo possa ter um lugar pra morar” ou significa que, caso verifique-se que alguém no momento não tem onde morar, o Estado tenha obrigação de providenciar um lugar? Para mim as primeiras opções são sempre cínicas, considerando o capitalismo em geral, mas certamente possíveis do ponto de vista operacional-lógico tendo em vista o fraseamento dos direitos humanos.
Não é à toa que o tal Grifin se foca naqueles que são mais óbvios, como “não massacrarás uma etnia inteira“. E tem outra complicação: a mediação que o Estado faz esconde outras alternativas, em outras configurações, porque agora “ter direito a algo” significa sempre um pedido de “por favor” a alguma autoridade; parece-me até que falar de direitos no contexto não-Estatal sequer faz sentido (não porque você não os teria, mas porque não precisaria deles para ter acesso ao conteúdo deles). É uma complicação danada o fato de que os direitos muitas vezes servem para proteger o indivíduo do Estado (como uma concórdia com os anarquistas de que o perigo mesmo é o poder estatal) e no entanto é o próprio Estado que deve “realizá-los”. Hmm…
Anotei isso aqui mais pro final da apresentação do Alvaro: “direitos humanos internacionais não podem ser aqueles do Rawls distributivo, porque o mundo todo não pode se responsabilizar pela execução dos direitos; têm que ser direitos de emergência”. Em outras palavras, já que o mundo está configurado principalmente em termos de Estados, direitos substantivos seriam extremamente complicados de garantir sem interferências perigosas. Mas, anotei em seguida consoante à fala do Alvaro, “o que se perde deixando de exigir algo mais substantivo?”
Comunitarismo, Rawls e o maldito ponto cego
Então veio Diogo Tourino, que no meio de tanto liberal Rawlsiano veio falar a partir de uma perspectiva “comunitarista”, usando Sandel como aríete e puxando Aristóteles como fonte para sua reflexão sobre a amizade. Com um texto chamado “das formas não-contratuais de obrigação política”, ele quis discutir o seguinte: para termos uma república funcional, temos que reviver a capacidade de fazer vínculos de simpatia. Isso se contrapõe ao modelo contratual – que é um método que se utiliza de artifícios racionais, com base no “indivíduo acabado rawlskantiano” e na ideia de pacto para construir a obrigação política. Isso, obviamente, não vem de Rawls; está presente em Hobbes, Locke, Rousseau, etc. Um texto que escrevi como avaliação para uma disciplina no primeiro semestre fala também sobre isso, mas a partir de uma perspectiva anarquista (o que faz, como veremos, toda a diferença). Quem sabe publico-o aqui depois.
Para Diogo, a pior consequência desse contratualismo é que ele fragiliza a obediência ao regular o mundo público pela lógica privada do contrato. Mas, pior do que isso, como brilhantemente argumentou Sandel, ele presume (ou deseja) uma certa neutralidade e um certo modo de ser humano que não é possível ou desejável.
Tomar uma decisão, continuam minhas anotações, não é um ato autônomo livre, mas sim uma (re)interpretação da própria história daquele que decide – uma que não se faz necessariamente no isolamento da individualidade. A amizade, mais do que uma forma de gostar, é uma maneira de conhecer; levar a sério as deliberações dos meus amigos quanto à minha história, quanto àquilo que devo fazer, significa deixá-los afetar a minha identidade. Em outras palavras, a república precisa desse tipo de sentimento para consolidar o espírito público de comunidade, sem o qual ela se enfraquece de várias formas.
Aí veio San Romanelli, que já começou com um chute na boca falando que era “belicosa” e tava ali pra discutir mesmo (adoro). Seu texto, chamado “propósitos inconciliáveis”, pretendia dizer que não tinha como conciliar o liberalismo e comunitarismo, como vinham querendo fazer alguns autores que queriam ter o melhor dos dois mundos (ah, esse pessoal do “deixa disso”…).
Ela faz algumas provocações interessantes – e outras nem tanto, na minha opinião. Ela argumenta, por exemplo, que alguns críticos dos liberais atacam “questões de ontologia” ao falar de “questões de defesa”, ou vice-versa; em suma, eles marretam os elementos errados da teoria, confundindo-os. Para mim, pessoalmente, tanto faz se foi o ombro esquerdo ou o direito o atingido; a bala pegou, e fez estrago. Falta de rigor? Talvez. Parece mais o liberalismo querendo jogar com as regras debaixo do braço. Mas o que mais se poderia esperar de procedimentais, não é mesmo?
Ela veio com um argumento justo sobre o fato de que algumas coisas que os comunitaristas criticam nos liberais podem também ser usadas para criticar o comunitarismo – e isso é absolutamente razoável. Mas isso aqui não é uma equação; o fato de que a crítica se sustenta para o outro não a cancela dos dois lados. Pelo contrário, ela permanece relevante contra o alvo original. Mas, de qualquer maneira, uma vez que você fica confortável como uma certa indeterminação das coisas, a faca de dois gumes que algumas críticas constituem não é realmente um problema. Nenhum sistema é lógico enquanto proposta política porque sempre trata de uma questão de valores.
San pergunta: “que comunidade é essa em que a auto-identificação com uma noção de bem não é excludente ou coercitiva?”. Contextualizo: para os comunitaristas, a discussão política deve envolver valores, isto é, não se pode esperar que uma comunidade discuta apenas o que é “certo” em vez do que é “bom”, deixando para a esfera privada apenas o que cada um quiser entender por bom (para sua própria vida). No fim, inclusive, ela aproveita seus quinze segundos de resposta aos comentários do público para dizer que considera o comunitarismo mais conservador que seu liberalismo.
Mas a resposta, San, é muito simples. Que comunidade é essa que, apesar de confortável com a discussão de valores, não é excludente ou coercitiva? É a ANARQUISTA, porra!
O problema é a droga da obrigação política de que eles tanto falam, seja em termos de contrato ou de “amizade”. Na perspectiva da comunidade obcecada com a unidade, com o processo decisório majoritário e com o reino da lei, é óbvio que é um perigo trazer a discussão dos valores para a arena pública, uma vez que essa arena se confunde com o Estado, o campeão da coerção e da violência (“em toda a parte e sempre”, escreve Tolstói, “as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes de fazer com que algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é, pancadas, perda da liberdade e assassinato”). A conversa é absolutamente outra sob a luz de princípios e objetivos anarquistas.
E aqui está o ponto cego da ciência (e principalmente da teoria) política. O pessoal não conhece o anarquismo, não quer saber do anarquismo, e isso é simultaneamente uma pena, uma burrice, e um problema conceitual. É uma pena porque, oras, é como uma comunidade de pintores que se recusa a usar uma cor de tinta; de músicos que não querem tocar um Fá sustenido; de cineastas que não querem usar fotografia hand-held. É uma burrice e um problema conceitual porque lhes causa um ponto cego que limita perspectivas. Alguns “problemas” e “desafios” da teoria são absolutamente não-triviais quando a perspectiva ácrata entra em cena, e discutirei isso em alguns outros momentos – porque a grande maioria dos comentários que consegui fazer para os autores têm a ver com isso.
O ideal de justiça de Rawls não é (só) o ideal da convivência plural. É o ideal do império, que tem que fazer valer a paz do mercado em meio à diversidade; como disse San (se entendi bem), uma certa noção de indivíduo é para Rawls não ontológica, mas normativa. Sim, é o que esse liberalismo deseja produzir; pessoas que retiram voluntariamente discussões de valor da arena pública.
A auto-identificação voluntária dos comunitaristas é despótica, diz San, mas essa é uma descontextualização típica dos liberais (embora, de novo, um pouco justa considerando uma cultura de Estado). Quer-se vender uma análise que pressupõe um tempo congelado, uma artificialidade absurda em que o filósofo pergunta a cada indivíduo “e aí, com que valor você se identifica?”, e determina que a imperatividade dessa pergunta em um dado momento seria repressiva. Mas nós temos uma história de vida de onde essa identificação vem; temos nascimento, pais, família, primeiras impressões do mundo, primeiros imprintings de valores, primeiros amigos, primeiros amores, primeiros medos, primeiras frustrações. Os liberais têm razão ao insistir na observação kantiana de que somos tão objeto quanto sujeito, e todos esses “primeiros” podem virar fraca lembrança diante de mudanças. E é verdade também que os pais podem ter mentes mais abertas e estimular seus filhos a questionar sempre seus valores, suas perspectivas, seus pensamentos (e nisso não poderia haver um pouco de conciliação com certas prerrogativas liberais?). Mas quanto ao viver comunal em si seria perfeitamente aceitável que uma determinada comunidade optasse por certos valores de bem como dirigentes, importantes, estruturantes – valores esposados por anarquistas ou por republicanos. Retornando a Sandel, não fazer isso inclusive é impossível; pais, por mais abertos que sejam, estruturam a vida dos filhos de acordo com certos valores inevitavelmente (se não pudessem fazer isso, não conseguiriam fazer nada). Lembra um pouco a discussão sobre a tal “escola sem partido” – como se a própria existência da escola, sua estrutura típica e seu funcionamento cotidiano, não fossem carregados de ideologia… E lembra, claro, Fish, na resposta ao comentário subsequente dos liberais: “ah, sabemos que é um ideal apenas, mas dá pra tentar…”. Qual é a porra do sentido de “tentar”? Como tentar realizar o que não pode vir a ser orientaria a ação nesta ou naquela direção?
Uma pergunta que fiz ao Diogo é se ele não vê, inclusive, essa escolha comunitária por valores, hoje, num contexto pós-moderno, como necessariamente uma escolha racional. Somos todos cínicos demais, informados demais por livros de história e antropologia, para sinceramente acreditar que alguns valores possam ser naturalmente superiores a outros. Invariavelmente as comunidades que vivem de acordo com certas prioridades têm que se ver às voltas com justificativas racionais, decisões deliberadas sempre renovadas (como num pacto) quanto à escolha de seus valores. O preço da liberdade, talvez? Ou talvez eu que sou pós-moderno demais?
Perguntei-lhe também por que ele escolheu “amizade” e não “fraternidade”. Ele reconheceu que não tinha pensado nisso. E faz uma diferença danada – afinal, em tese nós escolhemos nossos amigos; os irmãos, não. E, já que ele estava falando de obrigação política, fraternidade talvez até fosse mais próximo da proposta dele.
A tal da legitimidade
Renato Francisquini falou sobre “democracia e igualdade” num “argumento pelo diálogo interinstitucional”. O debate começou forte, interessante, com ele dizendo que queria investigar o que leva as pessoas a considerar uma decisão legítima sob a luz das teorias da “última palavra” – quem, afinal, decide o que vai acontecer em última instância, se os representantes ou os juízes.
Por exemplo: uma lei x é aprovada. O Supremo Tribunal Federal determina que a lei é inconstitucional. No caso brasileiro, quem dá a “última palavra” são os juízes do STF – deve ter recursos e tudo o mais, mas se eles decidem, está decidido. Em outras configurações políticas, a saída pode ser outra, e os representantes podem fazer escolhas que contrariem julgamentos mesmo assim. Há quem diga que isso é mais democrático – que a sociedade (por meio de representantes) deve ser livre para decidir sobre coisas como o equilíbrio entre liberdade e controle. O problema todo, é claro, está na injustiça, como por exemplo na proteção a minorias (razão pela qual essa fala está nessa sessão em especial). Dahl, por exemplo, dizia que seria injusto condenar esse processo só porque ele pode gerar resultados injustos.
Francisquini cita uma questão: “se não há equilíbrio entre justiça e democracia, qual é preferível?”. Aquilo começou a me dar uma coceira, rapaz – veja, não é nada contra Fracisquini, que foi ótimo, e sim contra esse conto do vigário. Se a grande preocupação com a democracia ser injusta é a tal “tirania da maioria”, o problema é justamente a definição de democracia enquanto o domínio da maioria, e toda a cultura que isso implica.
Entendem, como escrevi na segunda parte dessa série, a importância da definição de democracia? E também, como acabei de falar, da cegueira em relação ao anarquismo e a ideia, que se encontra hoje muito em Graeber, do processo decisório baseado em consenso? Ou, como em muitos anarquistas que criticam o conceito de democracia de todo, a própria ideia de um processo decisório em primeiro lugar? Ele até mesmo fala numa hora sobre o fato de a legitimidade dos processos depender de decisões que nenhum grupo “razoavelmente rejeite”. Ora, isso tem tudo a ver com o processo decisório baseado em consenso!
E aí vem a parte do cagão do Habermas em que a minha coceira se tornou úlcera. E olha, eu não fui o único – se não me engano o próprio debatedor da mesa comentou que a parte sobre deliberacionismo lhe pareceu completamente desnecessária (e olha que ele leu o artigo; eu só ouvi a apresentação de quinze minutos). Basicamente, o que Francisquini argumentou é que a legitimidade está no diálogo interinstitucional, que é pautado no diálogo público, no sistema deliberativo, incluindo a cultura pública de fundo, etc. Em suma, decisões que, não importando muito quem dê a última palavra, sejam baseadas num amplo diálogo (numa deliberação) com a sociedade “em todos os seus aspectos”.
Na pergunta que fiz pra ele, disse que aquilo era muito bonito e tudo o mais, mas que no contexto das “democracias” atuais existe um negócio chamado polícia, que as faz cumprir mandando um dedo do meio pra deliberação. Aliás, a deliberação já fica mais difícil com uma maravilhosa lei chamada apologia ao crime. E aí existe também outra beleza, que é a lei do desacato à autoridade. E, por fim, existe um aspecto muito importante, que é o da temporalidade. Quando um juiz ordena um mandado coletivo de busca e apreensão e a decisão se faz cumprir a ferro e fogo (pela, veja bem, polícia), não há tempo pra “diálogo interinstitucional” não. Até o STF julgar a merda da escola sem partido como inconstitucional (ha, fingers crossed) a caça às bruxas já começou e faz vítimas.
A resposta dele é que aquele é um sistema ideal, é um sistema teórico. É justo, mas eu respeitosamente discordo. Quando um físico teórico me diz que ele faz testes em simulações computacionais, suas simulações têm a ver com expectativas sobre a realidade do, sei lá, modelo atômico dele. Ele não mexe com o átomo diretamente porque não consegue, mas se pudesse o faria. Da mesma forma, considerações teóricas de um Bourdieu têm a ver com expectativas por parte dele de que elas tenham alguma correspondência com a realidade. Ele não consegue abarcar toda a realidade com dados que demonstrem o que ele quer teorizar porque não consegue, mas se pudesse, certamente o faria. Nesse sentido, pode-se dizer que “isso é só teoria”; tratam-se, nos dois casos, de modelos da realidade que, apesar de se admitir não serem a Realidade, desejam falar sobre algo que se convencionou chamar de realidade, nossa experiência comum nesse mundo. Há razões para ser cético – não seria a empreitada científica um ceticismo organizado? Um duvidar arrumadinho? Um “sei não, hein” de jaleco limpo? – mas também há razões para levar em conta o que é dito na hora de, sei lá, viver.
Mas se o físico me diz que aquelas simulações são só um jogo matemático que ele não espera que tenham qualquer correspondência com a forma com a matéria se comporta, então… Qual é o sentido? Qual o sentido dessa teoria deliberacionista das instituições estatais que parecem quase completamente errar o alvo acerca de como elas operam? Que levam a uma espécie de “no true scotsman” das democracias, em que nenhuma democracia real funciona como a teoria diz, e portanto em vez de servir como material para crítica à democracia enquanto tese, funciona como crítica à realidade – não, não é uma democracia de verdade, porque democracia de verdade teria diálogo interinstitucional. Assim como comunismo “de verdade” não leva ao autoritarismo e o livre mercado “de verdade” leva ao céu na Terra. No Brasil o problema das operadoras de telefonia, por exemplo, é que não há competição o bastante – porra, mas 4, tirando as regionais, não é o bastante? Quantas têm que ser? 10? 20? 50? A mesma quantidade dos Estados Unidos? (Spoiler alert: eles têm essencialmente 4 também. T-mobile, Verizon, Sprint e AT&T. Todas as outras são “virtuais”, usando a infraestrutura dessas quatro).
Quanto mais as instituições têm que “dialogar” pra que uma democracia seja verdadeira ou legítima?
A mesa do republicanismo
Depois veio a mesa sobre o “republicanismo, novo e antigo”, coordenada e debatida pelo Ricardo Silva. Participaram dela Luís Alves Falcão, Ivo Coser, Tiago Losso (meu orientador!) e Sandro Amadeu Cerveira. Marcos Valente, outro amigo nosso do NEPP, infelizmente não veio. Uma pena, porque eu realmente queria ouvir sobre o Amartya Sen.
Conhecia já o que o Tiago ia dizer, então tive nada a acrescentar. O Sandro falou sobre republicanismo e cristianismo, que é uma discussão muito interessante – embora eu senti que foi meio um cop out o fato de que qualquer questão se dissolvia em “há vários republicanismos e vários cristianismos, então fica difícil dizer qualquer coisa”. É verdade, mas também é frustrante pra caramba (deve ser pra ele também, aposto). O Luís Falcão também foi muito bem, e sua provocação sobre a incompatibilidade entre o monarquismo e o republicanismo foi mais interessante do que eu tinha percebido à primeira vista, especialmente porque foi algo que não ficou muito bem resolvido no debate.
A apresentação mais interessante pra mim foi a do Ivo Coser: ele falou sobre polêmicas contemporâneas do conceito de liberdade, e mencionou que existe um fenômeno recente relativo, por exemplo, aos protestos que vêm ocorrendo desde as jornadas de junho 2013: um grupo que vigia o poder sem necessariamente querer ocupá-lo.
Isso foi realmente um bom insight, porque permite ver o que muitos críticos desse movimento não conseguem. Por exemplo, os governistas (agora necrogovernistas, como diz o Henrique Kopittke) reclamavam: “será que vocês não conseguem ver que criticando a Dilma vocês fortalecem os inimigos, que são piores que nós?”. Outros, inconformados com uma suposta “ineficácia” das manifestações, reclamavam: “mas será que vocês não entendem que têm que levar essa indignação das ruas para dentro do sistema político, usando os espaços institucionais de participação e a via eleitoral?”. Ao que o povo da rua respondia, tipo, foda-se.
Essa mesma dinâmica também é visível na corrida presidencial dos EUA. Quando Bernie Sanders atacava Hillary nas primárias, diziam-lhe: “você não vê que Drumpf é pior que a Clinton?”. Agora que ela foi nomeada como candidata dos democratas, dizem ao pessoal que não se conformou com a derrota (e principalmente com o tratamento que lhes foi dispensado, os esforços anti-sufragistas do establishment, etc): “vocês não veem que não votar na Clinton e criticá-la só fortalece Drumpf?”. É a “política do medo”, diz Jill Stein; a do menos pior, essa que dominou também a discussão sobre o “voto crítico” Dilma x Aécio nas últimas eleições presidenciais do Brasil. Ah, e sem esquecer a segunda objeção: aqueles que viram na “revolução do Bernie Sanders” algum futuro agora sentem-se traídos, entendendo (de novo) que o jogo é de cartas marcadas. O próprio Sanders abandonou Tim Canova de um jeito nojento (de dar raiva, mesmo), e finalmente deu motivos para entenderem que ele é, como qualquer outro, um político profissional. Parte do mesmo sistema de uma Clinton, de uma Dilma, de um Aécio, de um Cristóvão, de uma Genro. Se eu acho que a vitória (e, tudo bem, a própria campanha) de Sanders teria um resultado positivo, em geral? Sim, achei. Mas… Ainda é um político.
Minha questão com o Ivo Coser foi, novamente, o que o anarquismo ousa ver: não se trata apenas de vigiar o poder, mas de ignorá-lo. Na Argentina, assim como no Occupy Wall Street, a tônica foi não fazer exigências aos políticos, justamente para pressioná-los a darem o melhor de si para convencer a população de que podem fazer algo de útil. Essa ideia é importante, e fecho essa reflexão com uma conjectura de Graeber sobre o ódio em relação ao anarquismo que, no caso da ciência política, pode explicar por que há essa ignorância quanto a ele, às vezes deliberada: nós, ácratas, achamos o Estado não apenas nocivo, mas desnecessário.
É isso que eles não aguentam. Se você é Marxista, você dá bola pro Estado, que pode ser malvado às vezes mas ainda assim é uma força admirável que você quer usar pros seus propósitos. Os anarquistas não estão nem aí, e é essa ferida no orgulho dos estatistas e dos comentaristas do poder que não se pode tolerar. O esnobismo é o que lhes irrita até o osso.
Ivo, super gente boa, respondeu que achou a provocação interessante – mas que apesar de uma dinâmica em que se pode querer ignorar de todo o poder, ainda assim ele tem efeitos de responsividade e na dinâmica do poder, que é o que ele está pensando em analisar. Justo!
As bolsas, a moção e o Vesúvio
À noite, novamente não quis atravessar o elevado para ir ao shopping. Para minha sorte, o tal do shopping sobre o qual ficava o hotel estava fazendo uma “calçada cultural” em que um pessoal vendia algumas coisinhas – roupa, quadros, itens de decoração; tinha música ao vivo e uns food trucks que, apesar de caro como costumam ser, até que valiam a pena. Um deles, o Vesúvio, vendia uma baguete com costela desfiada bem servida e deliciosa.
“Jantei”, assim, com o Daniel, um professor de Pelotas maluco pelo Inter e super gente fina. Juntaram-se a nós dali a pouco professoras do Rio Grande do Sul e uma do Rio de Janeiro, e a conversa em geral se voltou para a questão das bolsas de mestrado e doutorado. Não tá fácil pra ninguém. Uma das professoras confessou que quando seus alunos perguntam o que vai acontecer com as bolsas, ela diz que não sabe, mas ela confessa que teme muito um apagão geral de recursos. Senti na voz dela aquela preocupação maternal / paternal que muitos professores desenvolvem com seus alunos. Sabe? De dizer que o cachorro virou estrelinha no céu para não assombrar demais os pequenos.
Antes disso, aliás, teve a Assembleia Geral da ABCP. Eu não fui – estava entretido demais na discussão dessa última mesa, do republicanismo, que foi bem além do tempo esperado. Daniel, inclusive, conta que chegou atrasado. Estavam votando a moção de repúdio ao golpeachment e uma amiga sua, deliberacionista (ha), berrou pra ele em meio a certa balbúrdia: “LEVANTA A MÃO!”. “PRA QUÊ?”, ele questionou; “A MOÇÃO!”, respondeu ela. Ele levantou, fez parte da maioria, e o troço foi à frente.
Mais perto da meia noite, quando estava de novo usando o computador no lobby, fiquei ouvindo a conversa de duas professoras, que esperaram o elevador por um tempo estranhamente longo. Uma delas estava indignada que a outra não foi na assembleia, e a outra em questão reclamava que ninguém tinha avisado nada por Whatsapp. A primeira então comentou, a tom de fofoca (depois de dizer que, porra, assembleia é sempre na quinta), quem foram os poucos que votaram contra a moção. Estava indignada com os filhos da puta. E eu pensando comigo que certamente havia outros mais naquele encontro que votariam contra – exceto que justamente estes não devem ter ido à Assembleia em primeiro lugar. Posso estar errado, mas o encontro, segundo me disseram, contou com mais de 1300 acadêmicos; na assembleia, segundo me disseram, estavam uns 100.
Algumas coisas que anotei para pesquisar ou ler mais tarde
Esse artigo do Diogo Tourino, que não é a tese de doutorado dele mas parece de alguma forma “resumir” algumas coisas importantes sobre ela. O que eu queria mesmo era a tese, mas quem não tem cão…