Impressões sobre o 10º Encontro da ABCP (Parte 3) – O ponto cego

Este ano participei do 10º encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, apresentando um pôster em co-autoria com minha amiga Maria Teresa sobre congruência política. Numa série razoavelmente curta de posts falarei um pouco sobre as ideias com as quais tive contato – devo dizer que uma proporção mínima do que realmente aconteceu, já que o evento é enorme e tinha dezenas de debates simultâneos acontecendo a todo momento!

Pôster e Dona Preta

De manhã não tinha nada que me chamou muita atenção, então pude dormir mais (compensando o fato de ter ficado até tarde no lobby do hotel lendo Woodcock e Ranciére). Levantei “cedo” só pro café da manhã mesmo e pra pendurar o meu pôster.

Resolvi que não queria shopping de novo e procurei no Maps lugares em que “os locais comem”. Achei um restaurante aparentemente simpático a 500 metros do hotel; tinha um laguinho com peixe e tudo. Descobri um buffet mais barato que no shopping e uma comida que é uma delícia. Dona Preta, o nome. Com suco natural também, um ótimo laranja com abacaxi.

O "laguinho" do Restaurante Dona Preta.
O “laguinho” do Restaurante Dona Preta.

Apresentei o pôster junto a outras pessoas da mesma área. Trabalhos interessantíssimos, diga-se de passagem; um alô para a Mariani, o Mateus, a Anne e o Leonardo! Parabéns para nós, pessoal! Ah, e também um agradecimento para a Gabriela Tarouco, nossa debatedora, super querida. Os quarenta e cinco minutos passaram voando.

Direitos humanos internacionais

Se a primeira coisa que mais me impressionou na produção acadêmica é a presença de Habermas, a segunda foi o quanto ainda falam de Rawls. Sim, você sabe que Rawls foi relevante em sua época, mas nem desconfia do quanto não deixam esse cara em paz até ir num congresso como esse e ver uma infinidade de coisas sobre teoria da justiça, sempre com referência a ele.

Na minha PIBIC com o Ricardo Silva acabei lendo dois livros que me influenciaram em particular na direção de não gostar muito dele, o Liberalism and the Limits of Justice e o Democracy’s Discontent, ambos do Michael Sandel. Filosoficamente falando, ele destrói o Rawls – ainda que reconheça a engenhosidade do argumento, como ressaltou o Diogo Tourino. A mesa que eu vi, aliás, foi composta por ele, Alvaro de Vita, Renato Francisquini e San Romanelli Assumpção, tendo Rúrion Melo por debatedor.

Alvaro falou sobre justiça global no contexto de direitos humanos. Uma visão minimalista dos direitos humanos é muito fácil de cumprir e impossível de violar, citou ele; isso tem a ver com um tal de Grifin (ou Griffin?), autor que compôs uma noção “minimalista” de direitos humanos internacionais que serviriam como “constraints” (limites) aos Estados quanto a questões-chave. É uma noção minimalista porque, para não entrar em conflito com peculiaridades e especificidades da soberania de cada Estado nacional, procura-se estabelecer padrões mínimos do que são os direitos humanos. O problema, como especificado ali na anotação, é que se os direitos tiverem tão pouca substância, fica difícil você argumentar que eles foram violados em uma dada circunstância, e aí deixam de ter efeito real.

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Photo by shannonkringen

Essa é uma discussão tão interessante! Afinal, a própria interpretação do que significa “ter direito a algo” é super complicada. Ter direito a alimentação saudável significa que ela só precisa existir em algum lugar, e você é que tem que ir buscá-la, não importa quão difícil, caro, complicado? Ou significa algum esforço específico por parte da coletividade (infelizmente em geral entendida como “o Estado”) em direção à ampliação do acesso à comida mais saudável possível? Ter direito à moradia significa que um Estado pode simplesmente dizer “olha, fazemos o possível para que a economia funcione direito e todo mundo possa ter um lugar pra morar” ou significa que, caso verifique-se que alguém no momento não tem onde morar, o Estado tenha obrigação de providenciar um lugar? Para mim as primeiras opções são sempre cínicas, considerando o capitalismo em geral, mas certamente possíveis do ponto de vista operacional-lógico tendo em vista o fraseamento dos direitos humanos.

Não é à toa que o tal Grifin se foca naqueles que são mais óbvios, como “não massacrarás uma etnia inteira“. E tem outra complicação: a mediação que o Estado faz esconde outras alternativas, em outras configurações, porque agora “ter direito a algo” significa sempre um pedido de “por favor” a alguma autoridade; parece-me até que falar de direitos no contexto não-Estatal sequer faz sentido (não porque você não os teria, mas porque não precisaria deles para ter acesso ao conteúdo deles). É uma complicação danada o fato de que os direitos muitas vezes servem para proteger o indivíduo do Estado (como uma concórdia com os anarquistas de que o perigo mesmo é o poder estatal) e no entanto é o próprio Estado que deve “realizá-los”. Hmm…

Anotei isso aqui mais pro final da apresentação do Alvaro: “direitos humanos internacionais não podem ser aqueles do Rawls distributivo, porque o mundo todo não pode se responsabilizar pela execução dos direitos; têm que ser direitos de emergência”. Em outras palavras, já que o mundo está configurado principalmente em termos de Estados, direitos substantivos seriam extremamente complicados de garantir sem interferências perigosas. Mas, anotei em seguida consoante à fala do Alvaro, “o que se perde deixando de exigir algo mais substantivo?”

Comunitarismo, Rawls e o maldito ponto cego

Então veio Diogo Tourino, que no meio de tanto liberal Rawlsiano veio falar a partir de uma perspectiva “comunitarista”, usando Sandel como aríete e puxando Aristóteles como fonte para sua reflexão sobre a amizade. Com um texto chamado “das formas não-contratuais de obrigação política”, ele quis discutir o seguinte: para termos uma república funcional, temos que reviver a capacidade de fazer vínculos de simpatia. Isso se contrapõe ao modelo contratual – que é um método que se utiliza de artifícios racionais, com base no “indivíduo acabado rawlskantiano” e na ideia de pacto para construir a obrigação política. Isso, obviamente, não vem de Rawls; está presente em Hobbes, Locke, Rousseau, etc. Um texto que escrevi como avaliação para uma disciplina no primeiro semestre fala também sobre isso, mas a partir de uma perspectiva anarquista (o que faz, como veremos, toda a diferença). Quem sabe publico-o aqui depois.

Para Diogo, a pior consequência desse contratualismo é que ele fragiliza a obediência ao regular o mundo público pela lógica privada do contrato. Mas, pior do que isso, como brilhantemente argumentou Sandel, ele presume (ou deseja) uma certa neutralidade e um certo modo de ser humano que não é possível ou desejável.

Tomar uma decisão, continuam minhas anotações, não é um ato autônomo livre, mas sim uma (re)interpretação da própria história daquele que decide – uma que não se faz necessariamente no isolamento da individualidade. A amizade, mais do que uma forma de gostar, é uma maneira de conhecer; levar a sério as deliberações dos meus amigos quanto à minha história, quanto àquilo que devo fazer, significa deixá-los afetar a minha identidade. Em outras palavras, a república precisa desse tipo de sentimento para consolidar o espírito público de comunidade, sem o qual ela se enfraquece de várias formas.

Aí veio San Romanelli, que já começou com um chute na boca falando que era “belicosa” e tava ali pra discutir mesmo (adoro). Seu texto, chamado “propósitos inconciliáveis”, pretendia dizer que não tinha como conciliar o liberalismo e comunitarismo, como vinham querendo fazer alguns autores que queriam ter o melhor dos dois mundos (ah, esse pessoal do “deixa disso”…).

Ela faz algumas provocações interessantes – e outras nem tanto, na minha opinião. Ela argumenta, por exemplo, que alguns críticos dos liberais atacam “questões de ontologia” ao falar de “questões de defesa”, ou vice-versa; em suma, eles marretam os elementos errados da teoria, confundindo-os. Para mim, pessoalmente, tanto faz se foi o ombro esquerdo ou o direito o atingido; a bala pegou, e fez estrago. Falta de rigor? Talvez. Parece mais o liberalismo querendo jogar com as regras debaixo do braço. Mas o que mais se poderia esperar de procedimentais, não é mesmo?

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Photo by Nestor’s Blurrylife  Mano, o Flickr não sabe brincar não – Fui procurar por “tongue in cheek” para falar sobre essas gozações acadêmicas e achei essa matéria-prima de pesadelos aqui…

Ela veio com um argumento justo sobre o fato de que algumas coisas que os comunitaristas criticam nos liberais podem também ser usadas para criticar o comunitarismo – e isso é absolutamente razoável. Mas isso aqui não é uma equação; o fato de que a crítica se sustenta para o outro não a cancela dos dois lados. Pelo contrário, ela permanece relevante contra o alvo original. Mas, de qualquer maneira, uma vez que você fica confortável como uma certa indeterminação das coisas, a faca de dois gumes que algumas críticas constituem não é realmente um problema. Nenhum sistema é lógico enquanto proposta política porque sempre trata de uma questão de valores.

San pergunta: “que comunidade é essa em que a auto-identificação com uma noção de bem não é excludente ou coercitiva?”. Contextualizo: para os comunitaristas, a discussão política deve envolver valores, isto é, não se pode esperar que uma comunidade discuta apenas o que é “certo” em vez do que é “bom”, deixando para a esfera privada apenas o que cada um quiser entender por bom (para sua própria vida). No fim, inclusive, ela aproveita seus quinze segundos de resposta aos comentários do público para dizer que considera o comunitarismo mais conservador que seu liberalismo.

Mas a resposta, San, é muito simples. Que comunidade é essa que, apesar de confortável com a discussão de valores, não é excludente ou coercitiva? É a ANARQUISTA, porra!

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Photo by RM Ampongan

O problema é a droga da obrigação política de que eles tanto falam, seja em termos de contrato ou de “amizade”. Na perspectiva da comunidade obcecada com a unidade, com o processo decisório majoritário e com o reino da lei, é óbvio que é um perigo trazer a discussão dos valores para a arena pública, uma vez que essa arena se confunde com o Estado, o campeão da coerção e da violência (“em toda a parte e sempre”, escreve Tolstói, “as leis são impostas utilizando os únicos meios capazes de fazer com que algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é, pancadas, perda da liberdade e assassinato”). A conversa é absolutamente outra sob a luz de princípios e objetivos anarquistas.

E aqui está o ponto cego da ciência (e principalmente da teoria) política. O pessoal não conhece o anarquismo, não quer saber do anarquismo, e isso é simultaneamente uma pena, uma burrice, e um problema conceitual. É uma pena porque, oras, é como uma comunidade de pintores que se recusa a usar uma cor de tinta; de músicos que não querem tocar um Fá sustenido; de cineastas que não querem usar fotografia hand-held. É uma burrice e um problema conceitual porque lhes causa um ponto cego que limita perspectivas. Alguns “problemas” e “desafios” da teoria são absolutamente não-triviais quando a perspectiva ácrata entra em cena, e discutirei isso em alguns outros momentos – porque a grande maioria dos comentários que consegui fazer para os autores têm a ver com isso. 

O ideal de justiça de Rawls não é (só) o ideal da convivência plural. É o ideal do império, que tem que fazer valer a paz do mercado em meio à diversidade; como disse San (se entendi bem), uma certa noção de indivíduo é para Rawls não ontológica, mas normativa. Sim, é o que esse liberalismo deseja produzir; pessoas que retiram voluntariamente discussões de valor da arena pública.

A auto-identificação voluntária dos comunitaristas é despótica, diz San, mas essa é uma descontextualização típica dos liberais (embora, de novo, um pouco justa considerando uma cultura de Estado). Quer-se vender uma análise que pressupõe um tempo congelado, uma artificialidade absurda em que o filósofo pergunta a cada indivíduo “e aí, com que valor você se identifica?”, e determina que a imperatividade dessa pergunta em um dado momento seria repressiva. Mas nós temos uma história de vida de onde essa identificação vem; temos nascimento, pais, família, primeiras impressões do mundo, primeiros imprintings de valores, primeiros amigos, primeiros amores, primeiros medos, primeiras frustrações. Os liberais têm razão ao insistir na observação kantiana de que somos tão objeto quanto sujeito, e todos esses “primeiros” podem virar fraca lembrança diante de mudanças. E é verdade também que os pais podem ter mentes mais abertas e estimular seus filhos a questionar sempre seus valores, suas perspectivas, seus pensamentos (e nisso não poderia haver um pouco de conciliação com certas prerrogativas liberais?). Mas quanto ao viver comunal em si seria perfeitamente aceitável que uma determinada comunidade optasse por certos valores de bem como dirigentes, importantes, estruturantes – valores esposados por anarquistas ou por republicanos. Retornando a Sandel, não fazer isso inclusive é impossível; pais, por mais abertos que sejam, estruturam a vida dos filhos de acordo com certos valores inevitavelmente (se não pudessem fazer isso, não conseguiriam fazer nada). Lembra um pouco a discussão sobre a tal “escola sem partido” – como se a própria existência da escola, sua estrutura típica e seu funcionamento cotidiano, não fossem carregados de ideologia… E lembra, claro, Fish, na resposta ao comentário subsequente dos liberais: “ah, sabemos que é um ideal apenas, mas dá pra tentar…”. Qual é a porra do sentido de “tentar”? Como tentar realizar o que não pode vir a ser orientaria a ação nesta ou naquela direção?

Uma pergunta que fiz ao Diogo é se ele não vê, inclusive, essa escolha comunitária por valores, hoje, num contexto pós-moderno, como necessariamente uma escolha racional. Somos todos cínicos demais, informados demais por livros de história e antropologia, para sinceramente acreditar que alguns valores possam ser naturalmente superiores a outros. Invariavelmente as comunidades que vivem de acordo com certas prioridades têm que se ver às voltas com justificativas racionais, decisões deliberadas sempre renovadas (como num pacto) quanto à escolha de seus valores. O preço da liberdade, talvez? Ou talvez eu que sou pós-moderno demais?

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Photo by tarale  Está é a realidade dos fatos.

Perguntei-lhe também por que ele escolheu “amizade” e não “fraternidade”. Ele reconheceu que não tinha pensado nisso. E faz uma diferença danada – afinal, em tese nós escolhemos nossos amigos; os irmãos, não. E, já que ele estava falando de obrigação política, fraternidade talvez até fosse mais próximo da proposta dele.

A tal da legitimidade

Renato Francisquini falou sobre “democracia e igualdade” num “argumento pelo diálogo interinstitucional”. O debate começou forte, interessante, com ele dizendo que queria investigar o que leva as pessoas a considerar uma decisão legítima sob a luz das teorias da “última palavra” – quem, afinal, decide o que vai acontecer em última instância, se os representantes ou os juízes.

Por exemplo: uma lei x é aprovada. O Supremo Tribunal Federal determina que a lei é inconstitucional. No caso brasileiro, quem dá a “última palavra” são os juízes do STF – deve ter recursos e tudo o mais, mas se eles decidem, está decidido. Em outras configurações políticas, a saída pode ser outra, e os representantes podem fazer escolhas que contrariem julgamentos mesmo assim. Há quem diga que isso é mais democrático – que a sociedade (por meio de representantes) deve ser livre para decidir sobre coisas como o equilíbrio entre liberdade e controle. O problema todo, é claro, está na injustiça, como por exemplo na proteção a minorias (razão pela qual essa fala está nessa sessão em especial). Dahl, por exemplo, dizia que seria injusto condenar esse processo só porque ele pode gerar resultados injustos.

Francisquini cita uma questão: “se não há equilíbrio entre justiça e democracia, qual é preferível?”. Aquilo começou a me dar uma coceira, rapaz – veja, não é nada contra Fracisquini, que foi ótimo, e sim contra esse conto do vigário. Se a grande preocupação com a democracia ser injusta é a tal “tirania da maioria”, o problema é justamente a definição de democracia enquanto o domínio da maioria, e toda a cultura que isso implica.

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Photo by BlaisOne  Que foto massa, hein?

Entendem, como escrevi na segunda parte dessa série, a importância da definição de democracia? E também, como acabei de falar, da cegueira em relação ao anarquismo e a ideia, que se encontra hoje muito em Graeber, do processo decisório baseado em consenso? Ou, como em muitos anarquistas que criticam o conceito de democracia de todo, a própria ideia de um processo decisório em primeiro lugar? Ele até mesmo fala numa hora sobre o fato de a legitimidade dos processos depender de decisões que nenhum grupo “razoavelmente rejeite”. Ora, isso tem tudo a ver com o processo decisório baseado em consenso!

E aí vem a parte do cagão do Habermas em que a minha coceira se tornou úlcera. E olha, eu não fui o único – se não me engano o próprio debatedor da mesa comentou que a parte sobre deliberacionismo lhe pareceu completamente desnecessária (e olha que ele leu o artigo; eu só ouvi a apresentação de quinze minutos). Basicamente, o que Francisquini argumentou é que a legitimidade está no diálogo interinstitucional, que é pautado no diálogo público, no sistema deliberativo, incluindo a cultura pública de fundo, etc. Em suma, decisões que, não importando muito quem dê a última palavra, sejam baseadas num amplo diálogo (numa deliberação) com a sociedade “em todos os seus aspectos”.

Na pergunta que fiz pra ele, disse que aquilo era muito bonito e tudo o mais, mas que no contexto das “democracias” atuais existe um negócio chamado polícia, que as faz cumprir mandando um dedo do meio pra deliberação. Aliás, a deliberação já fica mais difícil com uma maravilhosa lei chamada apologia ao crime. E aí existe também outra beleza, que é a lei do desacato à autoridade. E, por fim, existe um aspecto muito importante, que é o da temporalidade. Quando um juiz ordena um mandado coletivo de busca e apreensão e a decisão se faz cumprir a ferro e fogo (pela, veja bem, polícia), não há tempo pra “diálogo interinstitucional” não. Até o STF julgar a merda da escola sem partido como inconstitucional (ha, fingers crossed) a caça às bruxas já começou e faz vítimas.

A resposta dele é que aquele é um sistema ideal, é um sistema teórico. É justo, mas eu respeitosamente discordo. Quando um físico teórico me diz que ele faz testes em simulações computacionais, suas simulações têm a ver com expectativas sobre a realidade do, sei lá, modelo atômico dele. Ele não mexe com o átomo diretamente porque não consegue, mas se pudesse o faria. Da mesma forma, considerações teóricas de um Bourdieu têm a ver com expectativas por parte dele de que elas tenham alguma correspondência com a realidade. Ele não consegue abarcar toda a realidade com dados que demonstrem o que ele quer teorizar porque não consegue, mas se pudesse, certamente o faria. Nesse sentido, pode-se dizer que “isso é só teoria”; tratam-se, nos dois casos, de modelos da realidade que, apesar de se admitir não serem a Realidade, desejam falar sobre algo que se convencionou chamar de realidade, nossa experiência comum nesse mundo. Há razões para ser cético – não seria a empreitada científica um ceticismo organizado? Um duvidar arrumadinho? Um “sei não, hein” de jaleco limpo? – mas também há razões para levar em conta o que é dito na hora de, sei lá, viver.

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Photo by LindaH É bem gelado na terra da Rainha de Neve.

Mas se o físico me diz que aquelas simulações são só um jogo matemático que ele não espera que tenham qualquer correspondência com a forma com a matéria se comporta, então… Qual é o sentido? Qual o sentido dessa teoria deliberacionista das instituições estatais que parecem quase completamente errar o alvo acerca de como elas operam? Que levam a uma espécie de “no true scotsman” das democracias, em que nenhuma democracia real funciona como a teoria diz, e portanto em vez de servir como material para crítica à democracia enquanto tese, funciona como crítica à realidade – não, não é uma democracia de verdade, porque democracia de verdade teria diálogo interinstitucional. Assim como comunismo “de verdade” não leva ao autoritarismo e o livre mercado “de verdade” leva ao céu na Terra. No Brasil o problema das operadoras de telefonia, por exemplo, é que não há competição o bastante – porra, mas 4, tirando as regionais, não é o bastante? Quantas têm que ser? 10? 20? 50? A mesma quantidade dos Estados Unidos? (Spoiler alert: eles têm essencialmente 4 também. T-mobile, Verizon, Sprint e AT&T. Todas as outras são “virtuais”, usando a infraestrutura dessas quatro).

Quanto mais as instituições têm que “dialogar” pra que uma democracia seja verdadeira ou legítima?

A mesa do republicanismo

Depois veio a mesa sobre o “republicanismo, novo e antigo”, coordenada e debatida pelo Ricardo Silva. Participaram dela Luís Alves Falcão, Ivo Coser, Tiago Losso (meu orientador!) e Sandro Amadeu Cerveira. Marcos Valente, outro amigo nosso do NEPP, infelizmente não veio. Uma pena, porque eu realmente queria ouvir sobre o Amartya Sen.

Conhecia já o que o Tiago ia dizer, então tive nada a acrescentar. O Sandro falou sobre republicanismo e cristianismo, que é uma discussão muito interessante – embora eu senti que foi meio um cop out o fato de que qualquer questão se dissolvia em “há vários republicanismos e vários cristianismos, então fica difícil dizer qualquer coisa”. É verdade, mas também é frustrante pra caramba (deve ser pra ele também, aposto). O Luís Falcão também foi muito bem, e sua provocação sobre a incompatibilidade entre o monarquismo e o republicanismo foi mais interessante do que eu tinha percebido à primeira vista, especialmente porque foi algo que não ficou muito bem resolvido no debate.

A apresentação mais interessante pra mim foi a do Ivo Coser: ele falou sobre polêmicas contemporâneas do conceito de liberdade, e mencionou que existe um fenômeno recente relativo, por exemplo, aos protestos que vêm ocorrendo desde as jornadas de junho 2013: um grupo que vigia o poder sem necessariamente querer ocupá-lo.

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by wienergesellschaftshoelle  A questão é essa: não houve nenhuma exigência.

Isso foi realmente um bom insight, porque permite ver o que muitos críticos desse movimento não conseguem. Por exemplo, os governistas (agora necrogovernistas, como diz o Henrique Kopittke) reclamavam: “será que vocês não conseguem ver que criticando a Dilma vocês fortalecem os inimigos, que são piores que nós?”. Outros, inconformados com uma suposta “ineficácia” das manifestações, reclamavam: “mas será que vocês não entendem que têm que levar essa indignação das ruas para dentro do sistema político, usando os espaços institucionais de participação e a via eleitoral?”. Ao que o povo da rua respondia, tipo, foda-se.

Essa mesma dinâmica também é visível na corrida presidencial dos EUA. Quando Bernie Sanders atacava Hillary nas primárias, diziam-lhe: “você não vê que Drumpf é pior que a Clinton?”. Agora que ela foi nomeada como candidata dos democratas, dizem ao pessoal que não se conformou com a derrota (e principalmente com o tratamento que lhes foi dispensado, os esforços anti-sufragistas do establishment, etc): “vocês não veem que não votar na Clinton e criticá-la só fortalece Drumpf?”. É a “política do medo”, diz Jill Stein; a do menos pior, essa que dominou também a discussão sobre o “voto crítico” Dilma x Aécio nas últimas eleições presidenciais do Brasil. Ah, e sem esquecer a segunda objeção: aqueles que viram na “revolução do Bernie Sanders” algum futuro agora sentem-se traídos, entendendo (de novo) que o jogo é de cartas marcadas. O próprio Sanders abandonou Tim Canova de um jeito nojento (de dar raiva, mesmo), e finalmente deu motivos para entenderem que ele é, como qualquer outro, um político profissional. Parte do mesmo sistema de uma Clinton, de uma Dilma, de um Aécio, de um Cristóvão, de uma Genro. Se eu acho que a vitória (e, tudo bem, a própria campanha) de Sanders teria um resultado positivo, em geral? Sim, achei. Mas… Ainda é um político.

Minha questão com o Ivo Coser foi, novamente, o que o anarquismo ousa ver: não se trata apenas de vigiar o poder, mas de ignorá-lo. Na Argentina, assim como no Occupy Wall Street, a tônica foi não fazer exigências aos políticos, justamente para pressioná-los a darem o melhor de si para convencer a população de que podem fazer algo de útil. Essa ideia é importante, e fecho essa reflexão com uma conjectura de Graeber sobre o ódio em relação ao anarquismo que, no caso da ciência política, pode explicar por que há essa ignorância quanto a ele, às vezes deliberada: nós, ácratas, achamos o Estado não apenas nocivo, mas desnecessário.

É isso que eles não aguentam. Se você é Marxista, você dá bola pro Estado, que pode ser malvado às vezes mas ainda assim é uma força admirável que você quer usar pros seus propósitos. Os anarquistas não estão nem aí, e é essa ferida no orgulho dos estatistas e dos comentaristas do poder que não se pode tolerar. O esnobismo é o que lhes irrita até o osso.

Ivo, super gente boa, respondeu que achou a provocação interessante – mas que apesar de uma dinâmica em que se pode querer ignorar de todo o poder, ainda assim ele tem efeitos de responsividade e na dinâmica do poder, que é o que ele está pensando em analisar. Justo!

As bolsas, a moção e o Vesúvio

À noite, novamente não quis atravessar o elevado para ir ao shopping. Para minha sorte, o tal do shopping sobre o qual ficava o hotel estava fazendo uma “calçada cultural” em que um pessoal vendia algumas coisinhas – roupa, quadros, itens de decoração; tinha música ao vivo e uns food trucks que, apesar de caro como costumam ser, até que valiam a pena. Um deles, o Vesúvio, vendia uma baguete com costela desfiada bem servidadeliciosa.

Essa aqui, acho.
Essa aqui, acho.

“Jantei”, assim, com o Daniel, um professor de Pelotas maluco pelo Inter e super gente fina. Juntaram-se a nós dali a pouco professoras do Rio Grande do Sul e uma do Rio de Janeiro, e a conversa em geral se voltou para a questão das bolsas de mestrado e doutorado. Não tá fácil pra ninguém. Uma das professoras confessou que quando seus alunos perguntam o que vai acontecer com as bolsas, ela diz que não sabe, mas ela confessa que teme muito um apagão geral de recursos. Senti na voz dela aquela preocupação maternal / paternal que muitos professores desenvolvem com seus alunos. Sabe? De dizer que o cachorro virou estrelinha no céu para não assombrar demais os pequenos.

Antes disso, aliás, teve a Assembleia Geral da ABCP. Eu não fui – estava entretido demais na discussão dessa última mesa, do republicanismo, que foi bem além do tempo esperado. Daniel, inclusive, conta que chegou atrasado. Estavam votando a moção de repúdio ao golpeachment e uma amiga sua, deliberacionista (ha), berrou pra ele em meio a certa balbúrdia: “LEVANTA A MÃO!”. “PRA QUÊ?”, ele questionou; “A MOÇÃO!”, respondeu ela. Ele levantou, fez parte da maioria, e o troço foi à frente.

Mais perto da meia noite, quando estava de novo usando o computador no lobby, fiquei ouvindo a conversa de duas professoras, que esperaram o elevador por um tempo estranhamente longo. Uma delas estava indignada que a outra não foi na assembleia, e a outra em questão reclamava que ninguém tinha avisado nada por Whatsapp. A primeira então comentou, a tom de fofoca (depois de dizer que, porra, assembleia é sempre na quinta), quem foram os poucos que votaram contra a moção. Estava indignada com os filhos da puta. E eu pensando comigo que certamente havia outros mais naquele encontro que votariam contra – exceto que justamente estes não devem ter ido à Assembleia em primeiro lugar. Posso estar errado, mas o encontro, segundo me disseram, contou com mais de 1300 acadêmicos; na assembleia, segundo me disseram, estavam uns 100.

Algumas coisas que anotei para pesquisar ou ler mais tarde

Esse artigo do Diogo Tourino, que não é a tese de doutorado dele mas parece de alguma forma “resumir” algumas coisas importantes sobre ela. O que eu queria mesmo era a tese, mas quem não tem cão…

Impressões sobre o 10º Encontro da ABCP (Parte 1) – O luxo da ciência política

Este ano participei do 10º encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em Belo Horizonte, apresentando um pôster em co-autoria com minha amiga Maria Teresa sobre congruência política. Numa série razoavelmente curta de posts falarei um pouco sobre as ideias com as quais tive contato – devo dizer que uma proporção mínima do que realmente aconteceu, já que o evento é enorme e tinha dezenas de debates simultâneos acontecendo a todo momento!

A viagem

Foi a primeira vez que viajei de GOL e realmente o espaço para as pernas é melhor que a TAM; para mim, totalmente compensa o biscoitinho com água (que eu achei bem bom, inclusive). Só acho que o pessoal do aeroporto de Florianópolis podia ter avisado sobre a necessidade de despachar o banner. Ele não cabia na minha mala, e eu tive que comprar um daqueles tubos pra levá-lo separadamente. Disseram que eu podia levar como bagagem de mão. De Floripa a Sampa foi o que eu fiz, mas ao embarcar pra BH… Surpresa!

Enfia.
Enfiar.

Mas que bom que deu tudo certo (ainda que na hora da esteira o tubo não veio com a mala; alguém ficou abanando ele pela cortina) e prosseguimos até o hotel; estávamos eu, o professor Yan Carreirão (a quem, aliás, agradeço imensamente por tudo!) e colegas que encontramos no mesmo voo. Não tenho como falar quase nada de Belo Horizonte, porque pegamos um ônibus que me deixou na porta do hotel e até o dia em que voltei pro aeroporto não saí de perto dali – do hotel em que fiquei eu fui só pro hotel do evento (do lado), para um shopping (à frente, atravessando a avenida por um elevado) e para um restaurante (atrás). Então… Sei lá. Estava quente.

Abertura

Quase todos os outros personagens me eram estranhos (encontrei Aglaé, uma amiga de graduação que eu não fazia ideia que viria): eu não conhecia o rosto mesmo de gente cujos textos eu já tinha lido. Quem eu conhecia melhor – mais professores da UFSC – só chegariam mais tarde, na hora dos comes e bebes, e quando eu estava de saída.

As palestras de abertura ficaram por conta do australiano John Dryzek e do francês Yves Sintomer. Dryzek tem aquele charme de Gandalf, falando tranquilamente sobre democracia deliberativa, mas ignorando confortavelmente uma forte produção anarquista que expandiria bem sobre o tema dele (esse é um tema que vai aparecer com frequência nesse relato, e reservo algumas conclusões quanto a isso para mais tarde). Consegui encontrá-lo depois, no jantar, parabenizá-lo e agradecê-lo pela fala, e perguntar se ele tinha tido contato com a literatura anarquista em questão – e também se estava acompanhando o que estava acontecendo em Rojava. Ele me disse que leu algo sobre Bookchin (claro) e que basicamente o que sabia sobre Rojava era que eles também tinham lido Bookchin. Disse a ele que lhe enriqueceria muito conhecer o debate contemporâneo sobre a questão democrática / deliberativa no anarquismo e, não querendo ser o chato que toma tempo demais de pessoas que não me conhecem, logo me despedi.

Por dentro ele é bem impressionante.
O hotel do evento, o “Ouro Minas”. Por dentro ele é bem impressionante.

Yves foi um querido. Bem humorado, fez uma apresentação mais prática, falando basicamente das mesmas coisas que Dryzek mas tanto problematizando-as quanto trazendo exemplos mais concretos. Falou em espanhol (“Não posso falar em francês porque a França não é mais o centro do mundo”, ele brincou). Depois disso deveríamos ter um lançamento de livros – mas todo mundo atacou o buffet ostentação e eu nem vi onde exatamente eles estavam. Deve ter sido um pouco frustrante pros autores, mas talvez foi só um problema meu mesmo.

O que mais me impactou na abertura (já que as palestras, apesar de interessantes, foram meio que entradinhas sem muita substância) foi uma luxuosidade que eu, na minha santa inocência, não esperava. Um professor entrou comigo no lobby na manhã seguinte e eu comentei que achava um pouco desnecessário aquela pompa toda – não pela ritualística, mas pelos espaços requintados, os lustres da época do império, enfim, o cenário que explicava tacitamente porque a minha inscrição antecipada custou 200 reais (houve quem pagasse 600, dependendo da circunstância). E ele, o professor, esbofeteou-me de volta com uma agridoce colocação: “É. Combater a desigualdade social.”

O hotel e a programação

O Ramada (ou seria Encore?) ‘Minascasa’ é um hotel simpático. Com uma decoração moderninha, duas águas de graça na entrada, cartões em vez de chaves e um café da manhã que faz jus à fama de Minas, me pareceu bem bom pelo preço e pela conveniência de estar do lado do evento. Dividi o quarto com o professor Tiago Borges, que só chegou mais tarde. Compartilhamos histórias de aviões e congressos pregressos (dele), além de prospectos para os próximos dias. Antes de dormir, inclusive, escolhi o que ia ver, aproveitando suas dicas para dar preferência a alguns eventos e cortar outros (por exemplo, naqueles em que eu só estava interessado mesmo em um trabalho a ser apresentado, fui nos anais do evento e baixei o que já estivesse lá). Nas próximas partes deste relato falarei sobre os dias do encontro em si, das coisas que vi e ouvi por ali, e principalmente das ideias que vi circularem no evento.

Algumas coisas que anotei para pesquisar ou ler mais tarde

O livro “The Representative Claim”, de Michael Saward.

Não conseguimos parar de acreditar: sobre magia e política

Tradução de “Can’t Stop Believing: Magic and politics”, texto por David Graeber, publicado no The Baffler em 2012.

I.

Políticos são desonestos por definição. Todos os políticos mentem. Mas muitos observadores da política dos Estados Unidos concordam que, nos últimos anos, tem havido uma espécie de mudança qualitativa na magnitude dessa desonestidade. Em certos subgrupos de partidos, parece haver uma tentativa consciente de mudar as regras para que se permita um tipo de mentira flagrante e exagerada sobre os oponentes políticos que raramente vemos em outros países. Sarah Palin e seus “painéis da morte” foram pioneiros no novo estilo, mas Michele Bachmann rapidamente levou as coisas a patamares ainda mais espetaculares com suas afirmações malucas quanto a uma conspiração do governo para impor a lei islâmica nos Estados Unidos, ou planos secretos para abandonar o dólar pelo yuan chinês. Mitt Romney não superou Palin ou Bachmann na grandiosidade e na magnificência das mentiras, mas tentou compensar na quantidade, tendo baseado sua campanha presidencial inteira em uma sequência sem fim de fabricações. É quase como se os republicanos desafiassem a mídia e os democratas a chamá-los abertamente de mentirosos.

Como analisar isso? Primeiro, não pode ser uma coincidência que os três políticos supracitados são profundamente religiosos. Sarah Palin e Michele Bachmann são evangélicas; Romney foi um bispo mórmon. Nesses círculos religiosos, crenças e mentiras são coisas que se referem ao estado interno de alguém. É por isso que os apoiadores religiosos de tais candidatos não se preocupam quando a mídia revela que o que dizem é falso. Quando muito, esses apoiadores provavelmente vão ficar indignados com qualquer jornalista que sugira que mentir é o resultado de uma desonestidade consciente.

Carismáticos e evangélicos abraçam uma forma de cristianismo em que a fé é quase tudo que existe. Não se pode questionar a pureza das intenções de pessoas de fé, daqueles que se abriram ao espírito divino. E então algum elitista da mídia secular liberal vem e diz que eles são mentirosos?

O que a direita republicana está fazendo é uma versão teológica de um estilo essencialmente mágico de performance política: eles estão fazendo um universo “vir a ser” através de atos conscientes de fé. O limite é que – desde que o outro lado não seja burro o bastante para ecoar Bob Dole com a frase “pare de mentir sobre o meu histórico!” – a mágica só funciona naqueles que já os veem como moralmente superiores.

Para os liberais, é claro, isso tudo significa que os republicanos vivem num mundo de sonhos que eles mesmos produzem. Eles veem a si mesmos como uma comunidade de pessoas baseadas na realidade, o pessoal que insiste em agregar fatos e evidências e examinar o mundo do jeito como ele realmente é.

O origem dessa expressão (comunidade com base na realidade) já diz muito. Ela vem de um ensaio na revista do New York Times escrito pelo correspondente do Wall Street Journal Ron Suskind. Chamado “Fé, certeza e a presidência de George W. Bush”, o ensaio é, em grande parte, uma elaboração do mesmo argumento que acabei de apresentar, que para os fãs de Bush, a pureza de suas convicções interiores é só o que importa. Mas a passagem que fez fama a Suskind é uma em que ele faz menção a uma conversa com um “conselheiro sênior de Bush” anônimo que, diz ele, “vai ao cerne do mandato de Bush”:

O conselheiro disse que pessoas como eu estavam “naquilo que chamamos de uma comunidade com base na realidade”, que ele definiu como pessoas que “acreditam que as soluções surgem de um estudo judicioso da realidade discernível”. Eu fiz que sim e murmurei algo sobre princípios iluministas e empiricismo. Ele me interrompeu. “Não é assim que o mundo funciona mais”, ele continuou. “Nós somos um império agora, e quando agimos, criamos nossa própria realidade. E enquanto você está estudando a realidade – judiciosamente, como vocês fazem – nós vamos agir de novo, criando outras novas realidades, que você pode estudar também, e assim que as coisas vão ser. Nós somos atores da história… E vocês, todos vocês, vão ficar estudando o que nós fazemos”.

Para os liberais, essa passagem confirmou tudo em que eles sempre quiseram acreditar. Bottons e camisetas anunciando “orgulhoso membro da comunidade com base na realidade” logo apareceram. A frase se tornou um slogan. Mas há razão para acreditar que mesmo aqui as coisas não são exatamente o que parecem. Desde então outros jornalistas apontaram que o trabalho de Suskind geralmente combina uma suspeita frequência em que é muito bom para ser verdade com citações cujas fontes, quando são identificadas, veementemente negam terem dito o que Suskind afirma que disseram. Nenhuma outra pessoa alguma vez disse ter ouvido um conselheiro de Bush dizer algo remotamente parecido com isso. É possível que o próprio Suskind tenha inventado a história toda.

Seria a própria ideia de uma “comunidade baseada na realidade” uma premissa extraordinária? Na verdade, o que é realmente intrigante no debate político nos Estados Unidos hoje é que ambas a direita convencional (leia-se: extrema) e a esquerda convencional (leia-se: centrista) foram tão longe criando suas próprias realidades que uma conversa significativa se tornou impossível. Houve um tempo, por exemplo, em que liberais e conservadores poderiam discutir as raízes da pobreza. Agora eles discutem a existência da pobreza. No passado debatiam sobre como acabar com o racismo. Agora é comum ouvir conservadores insistirem que, justamente como os únicos mentirosos são aqueles que os acusam de mentirosos, os únicos racistas são os que acusam os outros de racismo. Mas o outro lado faz a mesma coisa. Se um conservador cristão quer discutir a dominância de uma “elite secular liberal” na cultura mainstream dos Estados Unidos, ou se um apoiador de Rand Paul quer falar sobre a relação entre a Reserva Federal e o militarismo do país, eles vão encontrar a mesma muralha de incredulidade.

Parece muito estranho que a esquerda convencional se identifique com a tradição do empiricismo iluminista quando seus grandes avatares passaram a última geração destruindo a própria ideia de uma realidade objetiva. A classe liberal tem seu próprio equivalente à igreja, afinal de contas, e ela é a universidade. A universidade tem os equivalentes aos teólogos, que interpretam os trabalhos de Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida com a mesma reverência que pensadores radicais têm diante de Karl Marx. E o que tais autores fazem exceto jogar o projeto inteiro do iluminismo no lixo?

Tanto a esquerda democrática mainstream quanto a direita republicana, em outras palavras, têm trabalhado por muito tempo na tradição americana da mistificação, do hype e da fraude; mas eles o justificaram de formas diferentes. A direita tem dependido de uma lógica de fé e convicção interna; a esquerda já prefere uma retórica científica, e agora uma espécie de anti-ciência pós-estrutural – mas ambos realmente se resumem à mesma coisa.

Ambos são apropriados à base social de seus respectivos partidos – o 1% que os provê com fundos, culturas e sensibilidades. Os republicanos são, notoriamente, o partido dos negócios. É pouco surpreendente que idolatrem a confiança interna do CEO determinado e estejam dispostos a dizer o que for preciso para fechar negócio, e então fazer o que for necessário para gerenciar a empresa. Os democratas são o partido do que Barbara Ehrenreich há muito tempo chamou de “a classe profissional-gerencial” – um partido de professores, administradores de hospitais, advogados, trabalhadores sociais e psicoterapeutas. Pouco surpreende, portanto, que a maior expressão de seu weltanschauung seja os trabalhos de Michel Foucault, por pelo menos vinte anos um deus da academia contemporânea dos Estados Unidos, um homem que argumentou que os discursos profissionais são formas de poder que criam as próprias realidades que eles dizem administrar. Ou que durante os anos noventa e 2000, décadas em que a economia do país se tornou mais e mais explicitamente uma bolha econômica e o dinheiro de Hollywood e Wall Street em especial choveram no partido democrata, falar dessas ideias em círculos intelectuais se tornou algo mais e mais extravagante.

Não estou sugerindo uma conexão simples e direta aqui. Não é como se os acadêmicos americanos inclinados à esquerda fossem diretamente influenciados pelo dinheiro de Wall Street. Mas a beleza do sistema é que eles não precisaram ser. Eles viviam num mundo-bolha tanto quanto qualquer outra pessoa, e suas disposições teóricas existentes, nascidas do senso comum cotidiano de um mundo profissional em que o controle das impressões é tudo, refletiu a lógica de uma bolha econômica.

Eu lembro bem de conferências e seminários exatamente antes da crise de 2008, em que eu ouvia a apresentações complexas e cheias de jargão por parte de estudantes de teoria das culturas ou estudos da ciência, ou mesmo de cientistas políticos radicais. Eles diziam que a lógica emergente de “preemptividade”, “segurança” e “financialização” era um sinal não apenas do nascimento de formas novas e jamais vistas de poder social, mas também uma transformação da própria natureza da realidade. “Nós da esquerda precisamos aprender com os neoliberais”, eu lembro de ouvir um jovem graduando dos estudos culturais dizer (graduandos dos estudos culturais geralmente consideram a si mesmos a crista da onda da esquerda global, mesmo que não tenham nenhum ativismo político), “porque, para ser sincero, eles estão na nossa frente de várias maneiras. Quer dizer, esses caras descobriram como criar valor a partir do nada!”

Eu me lembro de responder “Sabe, o pessoal de Wall Street têm um nome para esse tipo de coisa. Chama-se ‘fraude'”. Mas eu não acho que as pessoas me ouviram. A maioria dos radicais acadêmicos se limitaram a uma linguagem teórica de acordo com a qual a própria ideia de fraude quase não faz sentido. Ao transformar ciência em anticiência, empiricismo iluminista em seu oposto, a esquerda acadêmica ficou com a noção de que a performance realmente é tudo que existe.

As tendências intelectuais foram do surgimento da “teoria da performance” em si no final dos anos 80, à emergência, nos anos 90, da teoria ator-rede, com sua insistência de que mesmo os objetos da pesquisa científica são criados por processos políticos de negociação, persuasão e construção de alianças entre cientistas, instituições, objetos, animais e micróbios. Mas a essência da questão é: durante o período em que a economia dos Estados Unidos (e por extensão a de todo o atlântico norte) se tornou cada vez mais baseada na produção de bolhas financeiras de um tipo ou de outro, seus intelectuais simultaneamente parecem ter decidido que absolutamente tudo é simplesmente o produto da performance política. A economia de bolha foi uma espécie de apoteose da magia política.

Mas como qualquer verdadeiro mágico (ou político bem-sucedido) pode revelar, não é assim tão simples. É verdade que todos aceitamos que um presidente é acima de tudo alguém que sabe como agir como um presidente; nós criticamos os candidatos por qualquer incapacidade aparente de atuar nesse papel. Mas se um candidato abertamente dissesse que ter “jeito” de presidente é a única qualificação necessária para ser presidente, suas chances de ser eleito seriam próximas de zero. No mundo real, todos os jogos de ambiguidade permanecem em ação. Tudo que temos feito é inventar razões para não refletir sobre eles.

Pelo menos o (possivelmente imaginário) conselheiro de Bush do Ron Suskind tinha ciência de que a fé não é suficiente quando se trata de criar novas realidades: você precisa de força militar também. A diferença entre o mágico e o político é exatamente essa: o conhecimento de que este último pode, se isso um dia se tornar necessário, solicitar a ajuda de homens armados – sejam eles do exército ou da polícia. Essa é a carta na manga.

Realidades políticas são sempre uma combinação obscura de medo, desejo e pensamento ambíguo. Você deve se perguntar se o cidadão médio acredita que a ordem política vigente é justa, ou se ele acredita que todos os outros cidadãos acreditam que ela é justa. Você deve se perguntar se ele acredita que há uma forma de realizar suas melhores ambições de outra forma que não em um mundo que ele já acredita ser uma fraude; você também deve se perguntar se ele acredita que tentar mudar as coisas, ou mesmo dizer em voz alta que o mundo todo é uma fraude, pode deixá-lo em maus lençóis (como revelou o recente destino do Occupy Wall Street, mesmo quando brancos de classe média vão às ruas dizer verdades inconvenientes nos Estados Unidos de hoje a violência é uma possibilidade real). E então você deve se perguntar se todo mundo acredita que vão ser violentados se eles tentarem mudar as coisas – ou apenas se todo mundo acredita que todo mundo acredita que é isso que vai acontecer. O salão de espelhos não tem fim.

II.

Entre as distorções rotineiras, as meias-verdades oportunistas, e as ideologias chiques que agora compõem o discurso político, qualquer interlocutor honesto tem que se debater com a questão sobre como o auto-engano funciona como um sistema de crenças auto-administrado. Estudantes da arte da propaganda têm notado há muito tempo a imitação formal de ciência empírica que ela é, mas o fato de ela ser uma embalagem falsa não trata dos dilemas mais profundos quanto à crença autoconsciente em um método predileto de propaganda. A fórmula clássica do problema questiona como algumas pessoas podem se forçar a acreditar em algo que parece ser ilusório para outras pessoas. Mas essa fórmula presume que as pessoas não podem estar erradas quanto ao que elas acreditam. Será possível pensar que você acredita em algo quando, na verdade, não acredita, ou pensar que você não acredita em algo quando, na verdade, você acredita?

Na verdade, há toda uma corrente de pensamento dedicada a entender como isso pode ser possível. O termo fetichismo aparentemente foi cunhado por comerciantes europeus no oeste da África, para explicar como seus colegas africanos faziam tratos comerciais. Isso foi nos séculos XVI e XVII, quando os europeus estavam atrás de ouro, em geral antes de começarem a comerciar escravos. Parece que em muitas cidades portuárias africanas daquele tempo, era possível improvisar um novo deus em virtude da ocasião comercial; era só trazer algumas miçangas, penas e pedaços de alguma madeira rara, ou então só pegar qualquer objeto peculiar ou de aparência significante que calhou de você encontrar ao longo da praia, e então consagrá-lo com uma promessa mútua. Fetiches mais elaborados que serviam para proteger comunidades inteiras poderiam consistir em esculturas, geralmente deslumbrantes, a qual as partes contratuais poderiam arranhar com as unhas, irritando o deus recém-criado para garantir que ele estivesse no clima certo para punir transgressores. Mas para um mero acordo comercial com um estrangeiro, uma tábua qualquer servia.

O ato de fazer uma promessa transformava o objeto num poder divino capaz de causar uma destruição terrível em qualquer um que violasse seus novos compromissos. O poder do novo deus era o poder do acordo. Tudo isso estava a um passo de significar que um objeto era um deus porque os humanos diziam que ele era, mas todos insistiriam que, não, na verdade, os objetos estavam agora investidos com um poder terrível e invisível. E se alguma catástrofe inesperada realmente acontecesse com uma das partes – o que não era nada incomum, considerando que os europeus quebravam seus navios em tempestades ou morriam de malária o tempo todo – alguém poderia sempre dizer que nada disso teria acontecido se os homens mortos não tivessem de alguma forma quebrado suas promessas.

Os comerciantes africanos realmente acreditavam no poder de seus fetiches? Muitos pareciam pensar que sim, mesmo que se eles com frequência agissem como se os fetiches fossem apenas conveniências comerciais. Mas o mundo dos encantamentos mágicos está cheio desses paradoxos. O que é absolutamente certo é que os europeus, acostumados a pensar em termos teológicos, simplesmente não conseguiam entender essa prática. Como resultado eles tendiam a projetar sua própria confusão nos africanos. Logo a própria existência de fetiches servia como prova de que os africanos eram absolutamente confusos quanto a assuntos espirituais; filósofos europeus começaram a discutir se o fetichismo representava o estado mais baixo possível da religião, um em que o fetichista estava disposto a adorar absolutamente qualquer coisa, uma vez que ele não tivesse teologia sistemática alguma.

Não demorou muito, é claro, para que figuras europeias como Karl Marx e Sigmund Freud se perguntassem: “mas somos realmente tão diferentes?”. Como Marx notou, a história ocidental é a história de nós criando coisas e então nos ajoelhando diante delas, adorando-as como deuses. Na Idade Média o fazíamos com hóstias, cálices e relicários. Agora o fazemos com dinheiro e objetos de consumo. Daí o famoso argumento de Marx sobre o fetichismo da mercadoria. Estamos constantemente manufaturando objetos pra nosso uso e conveniência, e então falando deles como se eles estivessem carregados com algum poder sobrenatural estranho que os torna capazes de agir por sua própria vontade – em grande parte porque, de uma perspectiva imediata e prática, isso bem que pode ser verdade.

Quando um negociante de commodities abre o Wall Street Journal e lê que o ouro está fazendo isso, o petróleo e a carne de porco estão fazendo aquilo, ou que o dinheiro está fugindo desse mercado e migrando para outro lugar, ele acredita no que lê? Certamente ele não acha que o faz. Não haveria nenhum sentido em chamar o negociante à parte e explicar que ouro e petróleo são objetos inanimados que não podem fazer nada por eles mesmos. A resposta seria pura irritação. É claro que é só um modo de dizer! O que você acha que eu sou, algum otário? Mas em todos os sentidos pragmáticos, ele de fato acredita nisso, porque todo dia ele vai até a bolsa de valores e age como se isso fosse verdade.

Uma defesa Nietzscheana do anarquismo

O livro “A Nietzschean Defense of Democracy: An Experiment in Postmodern Politics” foi escrito por Lawrence Hatab, professor da Old Dominion University. Tive o prazer de conhecê-lo em um colóquio ano passado na UFSC, junto com a professora Christa Acampora. Ambos foram incrivelmente gentis e me providenciaram uma cópia de seus livros (Acampora mandou dois, um deles o excelente Contesting Nietzsche), e agora pude enfim ler o de Hatab.

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Aqui a premissa é a seguinte: Nietzsche estava errado. Não pela perspectiva de seus críticos, mas por sua própria – ele detestava a democracia, e no entanto Hatab procura demonstrar “por eliminação” que esse é o único sistema político que Nietzsche conseguiria aprovar.

Hatab escreve incrivelmente bem; é claro, conciso, engraçado – seu estilo e voz pulam das páginas. E ele é principalmente honesto – a mais importante característica de qualquer investigação científica. Ele não varre para debaixo do tapete aspectos problemáticos de sua pesquisa. Nietzsche não é realmente pós-moderno? Ele faz uma bela exposição sobre o pós-modernismo e explica por que Nietzsche pode ser considerado um. Nietzsche na verdade era, basicamente, um nazista? Bem, ele cita as partes problemáticas do filósofo e explica por que ele considera que ainda assim pode argumentar da forma como argumenta.

Para ser sincero, nada ali me pareceu muito polêmico ou absurdo. Hatab simplesmente prefere que a defesa da democracia não se dê através de ideias essencialistas como “igualdade” ou “direitos humanos”. Antes, o procedimento institucional competitivo, aberto a todos e justo, seria justificável porque nenhuma narrativa pode se arrogar o título de ser “a” Verdade com V maiúsculo (entre outras coisas). Não pretendo aqui fazer um resumo do livro, até porque não fiz anotações que lhe fariam justiça; digo só que as ideias se encadeiam com naturalidade, e se você gosta de pós-modernismo e Nietzsche é difícil não acabá-lo concordando com tudo que foi escrito.

O problema é que sou anarquista.

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Photo by Gigi Ibrahim

A insustentável leveza de ser pós-moderno

Um dos aspectos mais importantes do sistema que Hatab idealiza é o “agonismo” – ele chega até a usar o termo “agonarquia” em alguns momentos – que é basicamente o ideal da competição esportiva, uma competição em que você não quer aniquilar seu adversário; quer, antes, que ele seja capaz, já que isso dá significado à própria vitória (que glória há no Flamengo vencendo, no futebol, um time de ensino fundamental?).

Ele (e Nietzsche) pretende que essa forma de competitividade seja usada também na arena cultural, filosófica, política. Eu concordo em grande parte com isso, mas o que me incomoda é que pode haver uma razão pela qual esse tipo de competição é e sempre foi o padrão nos esportes e nos jogos – uma razão pela qual ela faz todo sentido nessa arena, mesmo que em outras ela nem sempre foi tão bem considerada ou posta em prática. O esporte é precisamente aquilo que não significa nada. Exceto pelo simbolismo, pela diversão e quem sabe pela possibilidade de treinar certas habilidades físicas… Nada. É como a arte, só que incluindo de forma mais direta comparações de performances. A atividade esportiva é esportiva justamente porque não importa. É virtualmente inconsequente. Se não o fosse, seria outra coisa. Caça, guerra, assembleia. Tarefas de casa… Sexo. Você pode “gameificar” algo ou transformar algo numa competição, mas o “esporte” enquanto categoria inclui coisas como futebol americano e esqui – em si mesmas, nenhuma aplicabilidade prática.

Mas quanto ao resto – especialmente a política – não seria melhor não tratar tudo com essa leveza inconsequente? Aliás… Não seria prerrogativa de quem não tem muito a ganhar, ou perder, adotar essa perspectiva enquanto política – enquanto sistema recomendável a todo um grupo ao invés de mera filosofia pessoal? O anarquismo que defendo não é o clássico, que pode ter enamorado a ideia de domesticar e eventualmente eliminar certos instintos, certas vontades humanas, e sim aquele que os reconhece como parte da experiência humana mas busca redirecioná-los culturalmente. A competição jamais acabará, mas isso não significa que ela precise ser o elemento fundante da dinâmica social, econômica e política. De forma semelhante, você pode ser “agonista”, viver sua vida dessa forma, e ainda reconhecer que na política talvez alguns limites e dispositivos sejam necessários pra salvaguardar certas coisas.

Desenvolvo: é perigoso associar o pós-modernismo a mero “privilégio”, pois isso é quase um ad hominem – mas o fato empírico é que, ao redor do mundo, as pessoas não estão exatamente numa corrida para abandonar suas origens e tradições e se tornarem sopas de legumes existenciais. Como diz Raewyn Connell, “somos informados de que vivemos […] na pós-modernidade[, mas] a maioria da população do mundo não vive”. Nesse sentido, para quem o pós-modernismo foi feito? Eu me empolgo com o pós-modernismo, mas por outro lado sou um exemplo de privilégio e caretice tirado direto de um livro didático. Só que o que me interessa no pós-modernismo é uma desconfiança epistemológica – não há como ter qualquer certeza quanto a nada. Não me interessa nada nele uma certa paralisia (que Nietzsche inclusive critica) que alguns tomam como corolário necessário: se você não tem certeza de nada e nada tem uma base metafísica, como pode presumir certas coisas como verdadeiras para ser funcional no mundo, ou como pode defender um valor político, ou como pode cultivar uma identidade específica?

Ora, posso porque posso, bolas. O pós-modernismo, para mim, tem um valor instrumental que se impõe da mesma forma que a evolução se impõe ao biólogo que se dê ao respeito e veja a porra das evidências; eu gosto da forma como ele afia a mente e impulsiona à criatividade e perceptividade (ou seja, creio que eu seria menos criativo e perceptivo se tomasse o mundo como um dado concreto e absoluto). Será possível que uma sociedade inteira seja pós-moderna e agonista e mesmo assim escolha princípios, valores específicos, para nortear seu sistema político? É claro que é. A diferença é que enquanto povos não-pós-modernos poderiam tratar esses valores como religiosos, tabu, questão de natureza humana, etc, os pós-modernos que tratassem tais valores como uma escolha não deveriam ser obrigados necessariamente a permitir que outros valores venham a concorrer por preponderância sistêmica. Um sistema político que se queira aberto e plural (como o anarquismo deve ser) ainda pode ser pensado com base em valores dos quais não pode abrir mão.

A desingênua neutralidade

O anarquismo é “humanista cívico” no sentido de considerar a participação uma coisa essencial. E uma comunidade anarquista elege certos princípios como a base da organização política. Hatab busca em seu arranjo institucional, ao contrário, uma espécie de mecanismo frio desprovido de tais princípios; um esquema neutro, “regras do jogo” que não transformam nenhuma (mera) narrativa em metanarrativa (geral), e assim é o mínimo essencial para que as narrativas possam competir pela vitória temporária na arena política.

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Pois me parece que Hatab não foi tão fundo no próprio pós-modernismo. Fish (um pouquinho aqui, mas principalmente aqui) demonstra que não há como chegar ao lado de fora. Uma lei que proteja a liberdade de expressão é útil mesmo que a liberdade de expressão “não exista” porque qualquer iniciativa que vise limitar a expressão terá que passar por um grande escrutínio. Mas esse escrutínio não é neutro – uma arena hipoteticamente feita sob medida para a discussão política mais abstrata do mundo jamais conseguiria ser neutra. Pombas, Sandel falou exatamente a mesma coisa em relação ao liberalismo deontológico e ele nem é pós-moderno (eu acho).

Mesmo um esquema governamental que se proponha “sem uma concepção de bem” definida ainda falha em ser realmente isento nesse sentido; ainda pressupõe necessariamente algumas coisas. A esquemática de Hatab não é diferente; pressupõe um povo pós-moderno, que valoriza o agonismo, o pluralismo absoluto – o tipo de moral bacana (sem ironia aqui) que Nietzsche expõe para o mundo.

Hatab provavelmente diria que não – não, a agonarquia não precisa pressupor nenhuma identidade fixa, nenhum tipo de pessoa ou grupo em termos de metanarrativa; a sociedade pode ser inteiramente composta por uma pluralidade de pessoas, sendo que nem uma única delas seria pós-moderna / agonista, e mesmo assim esse sistema funcionaria – já que, como dita o sonho liberal que ele não completamente rechaça, a diversidade absoluta pode conviver perfeitamente (se apenas tivermos os instrumentos corretos, puxa vida…).

Duvido. Mesmo que esse sistema seja mesmo adotado “por eliminação” – “como não há outra alternativa e não queremos uma mutually assured destruction, adotemos regras que não favorecem ninguém a priori” – isso significa adotar, em alguma medida, o agonismo e o pós-modernismo como metanarrativa. É esse tipo de coisa que meio que dá base (contradizendo agora o que citei antes da Connell) para que pensadores contemporâneos declarem que o pós-modernismo ganhou / está ganhando. Se ninguém em alguma medida valoriza esse agonismo como metanarrativa, então não vai haver ninguém para defendê-lo – ou mesmo para legitimá-lo como é preciso que seja para que, no mínimo dos mínimos, instituições repressivas funcionem (se nem a polícia defender essas “regras do jogo” que ninguém, aparentemente, precisa realmente adotar como filosofia de vida… Danou-se). Hatab faz crer que grupos e indivíduos podem adotar a narrativa filosófico-política que quiserem (inclusive narrativas que advoguem contra essas regras neutras do jogo) e tudo vai dar certo. Mas se não houver uma defesa desse agonismo fundamental enquanto princípio, ou vai haver o tipo de dominação silenciadora e tirânica que ele teme, ou vai haver guerra. É lindo que Hatab queira que a democracia possa ser defendida por aqueles que não suportam o racionalismo limitado de um Rawls. Mas se as sociedades acabam estruturadas da mesma forma, acarretando os mesmos problemas, que diferença faz?

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É certo que ao final do livro ele admite uma perspectiva trágica, segundo a qual não é bom salvaguardar essas regras do jogo contra certas subversões (por exemplo, não seria bom proibir qualquer discurso, inclusive o racismo, fascismo, etc). Eu posso respeitar essa decisão, e concordar com ela, mas não entendo porque isso seja pós-moderno, mas não uma sociedade adotar o pós-modernismo como metanarrativa mesmo escolhendo preservar certos valores como essenciais à organização política. Um de seus argumentos mais fortes é “deixe o fascismo e o racismo existirem para que o combate a essas ideologias fortaleça perspectivas justas (e, em certo sentido, algo parecido sempre existirá, então falar em “deixar que exista” me parece irrelevante). As coisas se constroem em oposição, diria Nietzsche, pois a vida é vontade de poder, e vontade de poder é vontade de superação. O sonho último iluminista / positivista / cristão de varrer o sofrimento e os problemas é contrário a esse impulso essencial da vida. No entanto, seria o caso de estimular o sofrimento por toda a parte para que haja superação? Obviamente que não. Portanto, deve-se alcançar um equilíbrio da agência humana que visa a superação – para que ela não se torne destrutiva ao desejar a superação daquilo que proporciona a superação em primeiro lugar. Eu só não estou convencido de que o arranjo institucional de Hatab é melhor nesse equilíbrio do que um arranjo parecido, anarquista, que escolha alguns valores como imprescindíveis. Isso nem precisa significar censura e prisão perpétua a fascistas (de novo, o argumento pragmático é bom), mas pode significar um discurso público, uma pedagogia, uma estrutura orientada para a manutenção de certos valores como anteriores à discussão política mais minuciosa.

O importante é que esses valores balizem as discussões políticas. O fato de a competição, de o procedimento ser justo, é o que torna o resultado justo, e portanto binding, diz Hatab. Novamente lembro de Sandel e sua discussão demolidora quanto ao óbvio ululante (depois que você lê): não, o fato de que um contrato é um contrato não necessariamente o torna justo. A competição precisa de um critério de avaliação que, dentro de uma comunidade, não está perenemente em disputa (obviamente que tudo está, na prática, em perene disputa cultural – o que não significa que o sistema político precise ser esquematizado a partir disso, assim como seria escroto estimular o sofrimento no mundo para que as pessoas possam superá-lo e assim como eu não preciso sofrer de paralisia intelectual porque sou pós-moderno).

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Photo by NobMouse

O que mais me fascina é: quem se beneficia desse mundo político em que não há esse critério e simplesmente a maior facção ganha? Quem ganha com o rechaço a certos valores pré-definidos que balizem a discussão? Eu não vejo essa discussão no livro de Hatab – embora certamente ela esteja acontecendo em outro lugar, e não o culpo por não inclui-la – mas sinto como se a democracia agonística satisfizesse um senso de coerência intelectual de quem gosta de Nietzsche e de democracia… E esse seja seu único mérito (voltarei a isso logo). Será que é absolutamente impossível ter um ambiente cultural de não-conformidade, de inovação, uma política tolerante e vivaz como a que ele descreve, sem a necessidade de manter um sistema político absolutamente aberto, destacado de quaisquer valores?

Faltou uma coisa aí

Tem uma hora que Hatab discute se é preciso algum tipo de “positive regard” pelos concidadãos na arena política. Ele diz que não – obviamente, considerando seu objetivo de purgar valores essenciais do esqueleto político agonárquico. Basicamente, só precisamos do respeito pelas outras pessoas – algo um tanto quanto kantiano, ele diz, sobre tratar os outros como fins em si mesmos – e, de qualquer modo, uma pessoa geralmente machuca as outras porque não é “alegre” o bastante.

O que ele sugere não só é absurdo, é sintomático do que foi dito anteriormente sobre o desejo de ser consistente quanto à Nietzsche. Ele precisa evitar essencialismos e assim está disposto a ignorar que muitas pessoas tiram alegria do sofrimento dos outros com bastante frequência.

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Adivinha onde a gente vai parar de novo…

Mas há um aspecto aí (mais uma vez, vindo dos pós-modernos) que eu fiquei chocado que ele não analisou. Sendo fiel a Nietzsche, ele introduziu o conceito da multiplicidade do “eu” (que está mais esmiuçado em Contesting Nietzsche, diga-se de passagem) e como o “indivíduo”, o “sujeito” iluminista significa pouco. Mas mesmo explodindo o conceito de eu, as “partes” que compõem essa noção não vão além do indivíduo físico – ou seja, é o corpo que ainda limita os ingredientes que farão parte desse novo “eu” contingente e contextual. Em A ilusão ocidental da natureza humana, Marshall Sahlins diz:

As pessoas são partes umas das outras; elas existem não apenas dentro de si mesmas ou por si mesmas, mas em relações mútuas do ser — pode-se ler Marilyn Strathern e seu trabalho na Nova Guiné, em que uma pessoa se realiza dentro dessas e através dessas mutualidades do ser, a forma como “mãe” e “filho” ou “pai” e “filho” assim tornam-se pela atuação mútua da ligação que assim os identifica. E enquanto a mãe e o pai trabalham em prol do filho, ou os cônjuges em consideração um do outro, o “outro” parental está internamente presente enquanto causa da intencionalidade de alguém. Nessa condição de mutualidade do ser — que parece ser uma boa definição de parentesco — os interesses não são mais confinados às satisfações do corpo individual do que os “eu”s são confinados aos seus limites. Antropólogos de sociedades do Pacífico falam, ao invés disso, do “eu transpessoal”, o “eu” enquanto um “complexo terreno de relacionamentos” ou um “locus de relações sociais compartilhadas ou biografias compartilhadas”. Muitas são as sociedades ao redor do mundo em que parentes devem ser recompensados pela morte de alguém, pelas ofensas que alguém recebe, ou até mesmo por terem cortado o cabelo de alguém.

Ou seja – será pedir demais que ele seja um pouco mais pós-moderno e menos fiel a Nietzsche (afinal, era o que Nietzsche queria, não é mesmo?) e considere também na concepção “múltipla” de sujeito… Outras pessoas? Outros corpos? É esse pressuposto epistemológico quanto ao que define uma pessoa que torna a consistência dele meio tosca, ainda que rigorosa: ele não pode admitir que as pessoas propaguem, como parte de um projeto político, como valor político, que as pessoas cuidem mais umas das outras. Não; só o auto-interesse é inteligível, e se você quer que as pessoas não machuquem as outras, deixam-nas satisfeitas o bastante para que elas não queiram fazer isso (você já viu os efeitos que essa espécie de self-absorption tem em tantos filhos únicos? Multiplique por 100 sob esse discurso…). Bem, que tal, para ser consistente e não tapar o sol com a peneira, considerar que quando agimos em consideração de outra pessoa, fazemos isso porque essa pessoa é também parte de nós, e é assim que relações de afeto funcionam? Isso evita a fantasia de um altruísmo angelical como motivador, ao mesmo tempo que acomoda uma parte enorme da experiência humana.

Por que não?

Olha, eu realmente gostei do livro, tanto na forma como no conteúdo. As críticas que faço vêm do meu anarquismo. Ele mesmo avisa, logo no início do livro, que ele pressupõe um Estado – e no entanto, à medida que lia, pensava: grande parte do que ele diz para defender, a partir de uma perspectiva Nietzscheana e pós-moderna, a democracia, poderia ser dito também para defender o anarquismo contemporâneo.

Mas será que ele realmente entende o anarquismo? Na página 64 ele diz que ele não o considera viável para análise porque se trata de um “desarranjo” em que “nenhuma perspectiva domina” (tradução livre). Sim, ele não vê nenhum problema com a dominação de uma perspectiva na arena política: ele só deseja divisar mecanismos que tornem a dominação fruto de uma vitória obtida numa competição justa e aberta. No entanto, é absolutamente equivocado dizer que no anarquismo não há uma perspectiva dominante – seria o mesmo que dizer que não há sociedade numa sociedade anarquista; que se trata de um bando de indivíduos desagregados (e se a única coisa que ele leu foi Stirner, não o culpo por pensar assim). Se há comunidade, se há política, há um entendimento básico quanto a uma série de coisas – esse entendimento é o que permitefunda a comunidade; Bourdieu discute isso, em parte, em seu texto sobre a violência simbólica. A linguagem, os valores, uma certa visão de mundo – é preciso que uma comunidade compartilhe isso para ser minimamente funcional. É claro que uma perspectiva domina. A questão é: como domina?

Ela certamente não domina à base de força, repressão ou violência simbólica; e certamente não domina como resultado de uma “vitória” endógena. Graeber argumenta que a democracia majoritária só existe quando há a ideia de que todos devem ter uma “voz” nas decisões políticas e, ao mesmo tempo, quando há um dispositivo de poder capaz de forçar a minoria a obedecer a maioria. Para Hatab a glória da política é o agonismo do combate constante entre narrativas, propostas, ideias – ele não é capaz de imaginar o anarquismo porque ele precisa poder forçar a mão dos perdedores.

Na página 65, ele se pergunta “que tipo de política teríamos se, por exemplo, esperássemos por unanimidade ou algum tipo de super-maioria”. Algo próximo ao processo decisório por consenso, e é de fato uma política bastante diferente. Não porque não pode ser agonista; ela é diferente porque é balizada por alguns princípios específicos. O mesmo convite ao debate amplo é feito, e o debate ocorre, mas a resolução dele se encaminha por outros meios. A vontade de superação – vontade de poder – não vai sumir nesse tipo de organização sociopolítica. Vai ser redirecionada para outros alvos, outras relações.

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“No fim das contas”, ele escreve, no fim do livro, “devemos deixar as pessoas viverem as vidas que elas quiserem viver”. Realmente, bastante pós-moderno – e digno de aplauso. Mas a questão é: como isso realmente se traduz em organização política e na própria concepção de “pessoa”? Quem são essas pessoas – indivíduos ou povos? Que interesses regulam essa concepção? Hatab diz que é precisamente porque devemos deixar as pessoas viverem como quiserem que esse sistema democrático Nietzscheano é tão bom. Mas seu processo decisório envolve, a cada decisão (sendo generoso o bastante para imaginar que a minoria não seja composta sempre pelos mesmos), um grupo de pessoas que não vai “viver a vida que elas quiserem”. O processo decisório por consenso (que, é preciso lembrar, não serve para submeter cada passo de todo mundo a constante análise; para isso, bem, existem Estados…) arranja através da cooperação e do entendimento mútuo formas de superar problemas e desafios da vida social. Uma democracia pós-moderna Nietzscheana tem como base para a aceitação geral das pessoas no sistema político o fato de que não se pode pré-estabelecer quem está certo e errado, quem tem ou não tem direito a ser ouvido – mas se o resultado é uma menor possibilidade de que “vivam a vida que quiserem” em vários “setores” da vida, o que é que as impede de se separarem do “grande grupo”, ou mesmo que continuem “juntas” (geográfica ou ideologicamente), ajam à revelia das decisões majoritárias? Ah, é mesmo – o tipo de força que as obriga a se dobrar para a vontade de uma maioria que pode ser tão pequena quanto 51% (e uma defesa Nietzscheana da democracia não pode pressupor algum tipo de “consciência” que as faça voluntariamente querer se submeter, já que exclui essencialismos…).

Se esse for o caso, qual é o sentido dessa democracia? Possibilitar que mais pessoas vivam as vidas que quiserem viver? Ou satisfazer um valor abstrato quanto ao cumprimento de processos e procedimentos? Ou ainda gerenciar as massas de recursos humanos aparentemente necessárias para criar e manter o conforto material? Em qual dessas alternativas as pessoas mais são tratadas como fins em si mesmas?

Na fórmula “viver a vida que se quer”, ajustar uma sociedade para que seus indivíduos sejam livres e ainda concordem implica defender valores como essenciais à vida em comunidade, porque isso influi no sentido do termo “quer” – o debate de valores é o que permite que as pessoas queiram chegar a um comprometimento em que todos saem ganhando, ou no mínimo ninguém sai perdendo. Sem um querer culturalmente balizado, resta a coerção como princípio – e que Hatab não é tímido em aprovar. Não se deve ter moralismos em relação ao poder, diz; condições de liberdade são tão importantes para a criatividade quanto as de restrição, e toda sociedade tem que ser um equilíbrio entre ordem e liberdade. Sim, é verdade; mas isso não significa que não possamos repensar o que dá origemlegitimidade à ordem, além dos mecanismos através dos quais ela se mantém.

O livro é fantástico e vale a pena ler. Apenas acho que, como diz Graeber, o ataque à imaginação fez aqui uma vítima: de que mais formas essa ideia poderia ter florescido se o anarquismo não fosse preterido, enquanto possibilidade, já de antemão?

Bullying: sobre a estrutura fundamental da dominação

Tradução de “The Bully’s Pulpit: On the elementary structure of domination”, texto por David Graeber, publicado no The Baffler em 2015.

© RANDALL ENOS

Entre fevereiro e março de 1991, na Primeira Guerra do Golfo, forças dos Estados Unidos bombardearam, destroçaram, incendiaram milhares de jovens iraquianos que tentavam fugir do Kuwait. Houve uma série de incidentes desse tipo – a “auto-estrada da morte”, a “autoestrada 8” e a “batália de Rumaila” – em que o poderio aéreo norte-americano interceptou iraquianos em fuga, envolvendo-se em uma luta injusta em que inimigos acuados foram chacinados em seus veículos. Imagens de corpos carbonizados desesperadamente rastejando para fora de caminhões tornaram-se ícones da guerra.

Eu nunca entendi por que esse massacre de homens iraquianos não foi considerado um crime de guerra. É claro que, naquela época, o comando dos Estados Unidos tinha medo disso. O Presidente George H. W. Bush rapidamente anunciou um cessar-fogo temporário, e o exército se esforçou muito desde então para minimizar o número de causalidades, obscurecer as circunstâncias, difamar as vítimas (“um bando de estupradores, assassinos e bandidos”, insistiu mais tarde o general Norman Schwarzkopf), e evitar que as fotos mais reveladoras aparecessem na mídia do país. Há rumores de que existem vídeos do pânico dos iraquianos, feitos pelas câmeras montadas nas armas dos helicópteros, que nunca serão vistos pelo público.

Faz sentido que as elites se preocupassem. Afinal, aqueles eram em grande parte homens que tinham sido forçados a lutar e que, quando jogados no combate, fizeram precisamente o que alguém gostaria que todos os jovens numa situação como essa fizessem: mandaram tudo pro inferno, fizeram as malas, e tentaram ir pra casa. E por isso deveriam ser queimados vivos? Quando o Estado Islâmico fez isso com um piloto jordaniano no inverno passado, o ato foi universalmente denunciado como indescritivelmente bárbaro – e ele foi, é claro. Ainda assim, o Estado Islâmico poderia ao menos dizer que o piloto estava jogando bombas neles. Os iraquianos em fuga na “autoestrada da morte” e em outros exemplos de carnificina americana eram apenas garotos que não queriam lutar.

Mas talvez foi justamente essa recusa que fez com que os soldados iraquianos não ganhassem muita simpatia, não apenas nos círculos de elite, onde não dá para esperar tanto, mas também nas cortes da opinião pública. Em algum nível, vamos ser sinceros: esses homens eram covardes. Eles mereceram.

Parece haver mesmo uma falta de compaixão por homens não-combatentes em zonas de guerra. Mesmo relatórios de organizações internacionais de direitos humanos falam de massacres como sendo dirigidos quase exclusivamente contra mulheres, crianças e, talvez, os idosos. O que está implícito, quase nunca dito claramente, é que homens adultos ou estão lutando ou há algo de errado com eles (“Quer dizer que existem pessoas por aí atacando mulheres e crianças e você não estava lá os defendendo? Você é um homem ou um rato?”). Aqueles que cometem massacres são conhecidos por manipular de forma cínica esse recrutamento tácito: como célebre exemplo, os comandantes servo-bósnios que calcularam que poderiam evitar acusações de genocídio se, ao invés de exterminar populações inteiras nas cidades e vilas conquistadas, matassem apenas homens com idade entre quinze e cinquenta e cinco anos.

Mas há algo a mais circunscrevendo a nossa empatia pelos soldados iraquianos em fuga, vítimas desse massacre. O público dos Estados Unidos foi bombardeado com acusações de que eles eram na verdade um bando de criminosos que estavam pessoalmente estuprando, pilhando, e jogando recém-nascidos fora de suas incubadoras (diferente daquele piloto jordaniano, que estava apenas jogando bombas em cidades cheias de mulheres e crianças a partir de uma altitude, pensava ele, segura). Todos nós aprendemos que os valentões, aqueles que exercem o bullying, são na verdade covardes, então aceitamos que o inverso deve naturalmente ser verdade também. Para a maioria de nós, a experiência primordial de exercer e sofrer bullying está no fundo de nossas mentes em discussões sobre crimes e atrocidades. Ela molda nossa sensibilidade e capacidade para a empatia de maneiras profundas e perniciosas.

A covardia também é uma causa

A maioria das pessoas não gosta de guerras e acha que o mundo seria um lugar melhor sem elas. Mesmo assim, o desprezo por covardes parece ter mais força. Afinal de contas, a deserção – a tendência que têm as pessoas forçadas a participar da glória de um exército pela primeira vez de escapar da marcha, procurar esconderijo na floresta ou fazenda mais próxima e então, tendo a tropa passado, descobrir uma forma de voltar pra casa – é provavelmente a maior ameaça às guerras de conquista. Os exércitos de Napoleão, por exemplo, perderam bem mais soldados para a deserção do que em combate. Exércitos recrutados à força geralmente têm que usar uma significativa parte de suas unidades para ameaçar o resto da tropa com tiros contra fugitivos. Ainda assim mesmo aqueles que dizem odiar as guerras sentem-se desconfortáveis celebrando a deserção.

Quase a única verdadeira exceção que conheço é a Alemanha, que ergueu uma série de monumentos rotulados como “Ao desertor desconhecido”. O primeiro e mais famoso, em Potsdam, lê: “A UM HOMEM QUE SE RECUSOU A MATAR OUTROS HOMENS”. Mesmo assim, quando falo sobre o monumento com meus amigos, eu geralmente encontro um retraimento instintivo. “É de se perguntar: eles realmente desertaram porque não queriam matar ninguém ou porque não queriam morrer?”. Como se tivesse algo de errado com isso.

Em sociedades militarísticas como os Estados Unidos, é quase axiomático que nossos inimigos devem ser covardes – especialmente se o inimigo pode ser rotulado como um “terrorista” (isto é, alguém acusado de desejar criar o medo em nós, transformando-nos, logo a nós, em covardes). Faz-se então necessário um ritual de inversão das coisas para insistir que não, eles é que têm medo. Todos os ataques contra cidadãos americanos são por definição “ataques covardes”. O segundo George Bush estava falando do 11 de setembro como um “ato de covardia” na manhã seguinte aos ataques. Mas se você pensar, isso é estranho. Afinal, não faltam coisas ruins que alguém possa dizer sobre Mohammed Atta e seus comparsas – pode escolher – mas com certeza “covarde” não é uma delas. Destruir uma festa de casamento à distância usando um drone pode ser considerado um ato de covardia. Pessoalmente chocar um avião num arranha-céus requer coragem. De qualquer maneira, a ideia de que uma pessoa pode ser corajosa defendendo uma causa ruim parece não ser um discurso público aceitável, apesar do fato de que muito do que passa por história consiste em incontáveis narrativas de pessoas corajosas fazendo coisas terríveis.

Sobre falhas fundamentais

Mais cedo ou mais tarde, todo projeto de liberdade humana vai ter que entender por que aceitamos que as sociedades sejam classificadas e ordenadas por violência e dominação em primeiro lugar. E me veio a ideia de que nossa reação visceral à fraqueza e à covardia, nossa estranha relutância em nos identificarmos até com as formas mais justificadas de medo, pode ser uma pista.

O problema é que o debate até agora tem sido dominado por proponentes de duas posições igualmente absurdas. De um lado, há aqueles que negam que é possível dizer qualquer coisa sobre seres humanos enquanto espécie; de outro, há aqueles que presumem que o objetivo é explicar por que é que alguns humanos parecem se comprazer com o sofrimento dos outros. Estes últimos invariavelmente acabam formulando teorias sobre babuínos e chimpanzés, geralmente para dizer que humanos – ou pelo menos aqueles de nós com testosterona o bastante – herdaram de nossos ancestrais primitivos uma tendência inata à agressão auto-engrandecedora que se manifesta na guerra, que por sua vez não pode ser eliminada, apenas canalizada rumo à atividade competitiva no mercado. Com base nessas presunções, os covardes são aqueles a quem falta um impulso biológico primário, e não surpreende que nós não gostemos deles.

Há vários problemas com essa linha de pensamento, o mais óbvio que ela simplesmente não é verdade. A perspectiva de participar de uma guerra não ativa automaticamente um gatilho biológico no macho humano. Considere a “parábola das tribos”, de Andrew Bard Schmookler. Cinco sociedades compartilham o mesmo rio em um vale. Elas podem viver em paz apenas se todas elas se mantém pacíficas. O momento em que um “mau elemento” é introduzido – digamos, os jovens de uma tribo decidem que a melhor forma de lidar com a perda de um ente querido é cortar a cabeça de um estrangeiro, ou que seu Deus os escolheu para serem os flagelos dos infiéis – bem, as outras tribos, se não quiserem ser exterminadas, têm apenas três opções: fugir, se submeter, ou reorganizar suas sociedades para favorecer a efetividade militar. Essa lógica parece difícil de refutar.

Contudo, como sabe qualquer um familiar com a história de, digamos, a Oceania, a Amazônia ou a África, um grande número de sociedades simplesmente se recusou a se organizar em termos militarísticos. De novo e de novo, encontramos descrições de comunidades relativamente pacíficas que simplesmente aceitavam o fato de que, a cada tantos anos, eles teriam que correr para as montanhas porque algum grupo local de malvados chegou para pôr fogo em suas vilas, estuprar, pilhar, e fazer infelizes retardatários de troféus. A grande maioria dos humanos do sexo masculino se recusou a perder tempo treinando para a guerra, mesmo quando era de seu interesse imediato fazê-lo. Para mim, isso é prova positiva de que seres humanos não são uma espécie particularmente belicosa.[*]

Ninguém pode negar, é claro, que humanos são criaturas falhas. Praticamente toda língua tem algum análogo ao inglês “humane”, ou expressões como “tratar alguém como um ser humano”, o que significa que simplesmente reconhecer outra criatura como um outro humano implica a responsabilidade de tratá-la com um certo mínimo de candor, consideração e respeito. É óbvio, no entanto, que em nenhum lugar os humanos consistentemente mantêm-se fiéis a esses ideais. E quando falhamos, deixamos para lá e dizemos que “errar é humano”. Ser humano, então, é ao mesmo tempo ter ideais e não conseguir alcançá-los.

Se é assim que vemos a nós mesmos, não é surpreendente que ao tentar entender o que possibilita estruturas violentas de dominação, tendemos a perceber a existência de impulsos antissociais e nos perguntar: por que algumas pessoas são cruéis? Por que elas desejam dominar outras pessoas? Essas, contudo, são precisamente as perguntas erradas a se fazer. As pessoas têm uma variedade infinita de desejos. Eles geralmente nos puxam ao mesmo tempo em diferentes direções. A mera existência de impulsos antissociais não significa nada.

A questão que deveríamos estar fazendo é não por que pessoas são cruéis às vezes, ou mesmo por que algumas pessoas são frequentemente cruéis (todas as evidências sugerem que verdadeiros sádicos são uma porção extremamente pequena da população geral), mas como acabamos criando instituições que encorajam esse tipo de comportamento e que fazem crer que pessoas cruéis são de alguma forma admiráveis – ou pelo menos tão merecedoras de simpatia quanto aquelas que elas violentam.

Aqui eu acho que é importante olhar com cuidado para a maneira como as instituições organizam as reações dos espectadores. Geralmente, quando imaginamos o cenário primordial da dominação, pensamos em algum tipo de dialética hegeliana mestre-escravo em que duas partes competem por reconhecimento mútuo, o que leva a uma sendo permanentemente vencida. Deveríamos imaginar ao invés disso uma relação de três elementos, que consiste em agressor, vítima e testemunha, uma relação em que ambas as partes em disputa apelam para o reconhecimento (validação, simpatia, etc) de um outro alguém. A batalha hegeliana por supremacia, afinal, é só uma abstração. Uma história qualquer. Poucos de nós testemunharam dois homens crescidos duelarem até a morte para que um reconheça o outro como verdadeiramente humano. O cenário de três elementos, em que uma parte machuca a outra enquanto ambas apelam para que aqueles ao redor reconheçam sua humanidade, é um que todos nós testemunharam e do qual participamos, em um ou outro papel, milhares de vezes desde a pré-escola.

A estrutura (do ensino) fundamental da dominação

Estou falando, é claro, do bullying no pátio da escola. Bullying, eu proponho, representa um tipo de estrutura fundamental da dominação humana. Se quisermos entender quando tudo começa a dar errado, é aqui que devemos começar.

Nesse caso também, condições devem ser estabelecidas. Seria muito fácil cair em argumentos evolucionários simplistas. Há uma tradição – A tradição Senhor das Moscas, podemos chamá-la – segundo a qual os valentões da escola são uma encarnação moderna do “macho alfa” primordial e ancestral, que instantaneamente restaura a lei da selva uma vez que não seja contido pela autoridade racional de um macho adulto. Mas isso é claramente falso. Na verdade, livros como O Senhor das Moscas são mais propriamente lidos como reflexões sobre os tipos de técnicas precisas de terror e intimidação de que as escolas públicas britânicas se serviam para transformar crianças de elite em oficiais capazes de gerenciar um império. Essas técnicas não vieram da ausência de autoridade; eram técnicas projetadas precisamente para criar um tipo de autoridade adulta, masculina, calculista e sangue-frio.

Hoje a maioria das escolas não são como a Eton e a Harrow dos dias de William Golding, mas mesmo naquelas que se orgulham de seus programas antibullying ele acontece em formas que de maneira alguma vão contra, ou ocorrem a despeito da, autoridade institucional. O bullying é mais como uma refração dessa autoridade. Para começar com uma coisa óbvia: as crianças não podem sair da escola. Normalmente, o primeiro instinto de uma criança quando ela está sendo atormentada ou humilhada por alguém maior é ir para outro lugar. As crianças na escola, contudo, não têm essa opção. Se elas insistirem em fugir rumo à segurança, autoridades as trarão de volta. Essa é uma das razões, eu suspeito, para a existência do estereótipo do valentão como o puxa-saco do professor ou monitor de corredor: mesmo quando não é verdadeiro, ele se alimenta do conhecimento tácito de que o valentão depende da autoridade da instituição pelo menos nessa única forma – a escola está, basicamente, segurando as vítimas para os valentões baterem. Essa dependência da autoridade é também a razão pela qual as formas mais extremas e elaboradas de bullying acontecem em prisões, onde os condenados dominantes e os carcereiros formam alianças.

Ainda mais importante, os valentões geralmente têm consciência de que o sistema provavelmente vai punir as vítimas que reajam mais fortemente. Assim como uma mulher que, confrontada por um homem que talvez tenha o dobro de seu tamanho, não pode se dar ao luxo de lutar de forma “justa”, e ao invés disso deve aproveitar um momento oportuno para infligir o maior dano possível ao homem que a tem abusado – uma vez que ela não pode deixá-lo em condições de revidar – também a vítima de bullying na escola deve responder com força desproporcional, não para incapacitar o oponente, mas para fazê-lo hesitar da próxima vez que quiser atacar.

Eu aprendi essa lição por experiência própria. Eu era magricela, mais jovem que os outros – eu pulei um ano – e então era um alvo perfeito para algumas das crianças maiores que pareciam ter desenvolvido uma técnica quase científica para dar socos em tampinhas como eu de forma rápida, dura e incisiva o bastante para evitarem ser acusados de terem atacado alguém. Quase não havia dia em que não me batiam. Finalmente, decidi que já era hora de aquilo acabar, encontrei o momento certo, e mandei um imbecil particularmente irritante voando pelo corredor com um soco bem dado na cabeça. Eu acho que posso ter rachado o lábio dele. De certa forma, funcionou como eu queria: por um ou dois meses os valentões, em geral, ficaram longe. Mas o resultado imediato foi que nós dois fomos levados ao diretor por brigar, e o fato de que ele me atacou primeiro foi determinado como irrelevante. Fui considerado culpado e expulso dos clubes de matemática avançada e de ciências (Uma vez que ele não tinha notas muito boas, não havia nenhum clube do qual pudesse ser expulso).

“Não interessa quem começou” são provavelmente as quatro palavras mais pérfidas da língua portuguesa. É claro que interessa.

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Crowdsourcing a crueldade

Muito pouco desse foco no papel da autoridade institucional é refletido na literatura da psicologia sobre o bullying, que, uma vez que é escrita principalmente para as autoridades escolares, presume um papel totalmente benigno para elas. Ainda assim, pesquisas recentes – e tem havido muitas desde Columbine – têm revelado, eu penso, várias coisas sobre essa forma fundamental de dominação. Vamos mais fundo.

A primeira coisa que essas pesquisas mostram é que a enorme maioria dos incidentes de bullying acontece na frente de um público. A perseguição privada é relativamente rara. A humilhação é uma grande parte do bullying, e seus efeitos não podem realmente ser produzidos sem alguém para testemunhá-los. Às vezes, o público instiga o valentão, rindo, incitando, ou ajudando. Mais frequentemente, o público fica passivo e quieto. É raro alguém defender um colega de classe sendo ameaçado, ridicularizado ou fisicamente atacado.

Quando pesquisadores perguntam às crianças por que elas não intervieram, uma minoria diz que eles acharam que a vítima teve o que mereceu, mas a maioria diz que eles não gostavam do que estava acontecendo, e certamente não gostavam muito do valentão, mas decidiram que se envolver podia significar que eles acabariam recebendo o mesmo tratamento que a vítima – e isso só ia piorar as coisas. O interessante é que isso não é verdade. Estudos também mostram que, em geral, se um ou dois observadores protestam, os valentões deixam a agressão de lado. Mesmo assim, a maior parte das testemunhas se convence de que o oposto vai acontecer. Por quê?

Primeiro porque quase todo tipo de ficção popular à qual eles provavelmente estão expostos diz a eles que vai. Super-heróis de quadrinhos o tempo todo entram em cena para dizer “Ei, pare de bater nele” – e invariavelmente os vilões de fato passam a odiá-los, o que resulta em todo tipo de problema (se há uma mensagem subliminar nesse tipo de ficção, ela com certeza é algo como “É melhor você não se envolver nesse tipo de coisa a não ser que possa lidar com um monstro interdimensional com lasers nos olhos”). O “herói”, como mostrado na mídia dos Estados Unidos, é principalmente um álibi para a passividade. Pensei nisso pela primeira vez quando vi um jornalista de TV local elogiar um adolescente que pulou num rio para salvar uma criança que estava se afogando. “Quando eu perguntei por que ele fez isso”, o jornalista disse, “ele disse o que os verdadeiros heróis sempre dizem, ‘eu só fiz o que qualquer pessoa faria nessas circunstâncias'”. Quem está assistindo deve entender que, é claro, isso não é verdade. Não é qualquer pessoa que faria isso. E não tem problema. Heróis são extraordinários. É perfeitamente aceitável que você, nas mesmas circunstâncias, fique parado e espere uma equipe profissional de resgate.

Também é possível que as crianças nas escolas reajam de forma passiva ao bullying porque elas já perceberam como a autoridade dos adultos opera e presumem erroneamente que a mesma lógica se aplica às interações com seus pares. Se é, digamos, um policial que está abusando de algum adulto desafortunado, então sim, é absolutamente verdadeiro que intervir vai provavelmente te dar uma séria dor de cabeça. E todos nós sabemos o que acontece com “dedos-duros” do governo (Você se lembra do secretário de estado John Kerry exigindo que Edward Snowden “fosse homem” e se submetesse a uma vida inteira de bullying sádico nas mãos do sistema de justiça criminal americano? O que é que uma criança inocente deve concluir disso?). Os destinos dos Mannings ou Snowdens do mundo são propagandas de alto nível para o princípio maior da cultura Americana: abuso de autoridade pode até ser ruim, mas apontar abertamente que alguém está abusando de autoridade é muito pior – e merece a mais severa punição.

Um segundo surpreendente dado de pesquisas recentes: os valentões não sofrem, na verdade, de baixa auto-estima. Psicólogos há muito tempo presumiram que crianças malvadas estavam descontando suas inseguranças nos outros. Não. Acontece que a maioria dos valentões agem como babacas mimados e arrogantes não porque estão sendo atormentado por duvidarem de si mesmos, mas porque são na verdade babacas mimados e arrogantes. Na verdade, a autoconfiança deles é tanta que eles criam um universo moral no qual seu “estilo” e violência se tornam o padrão a partir do qual os outros devem ser julgados; ser fraco, distraído, meio desajeitado ou reclamão não são apenas pecados, mas provocações que seria errado deixar de corrigir.

Aqui também eu posso oferecer um testemunho pessoal. Eu lembro bem de uma conversa com um atleta que eu conheci no ensino médio. Ele era um tonto, mas era querido. Eu acho que até ficamos chapados juntos uma ou duas vezes. Uma vez, depois de ensaiar para um drama de época, achei que ia ser engraçado entrar no dormitório em trajes renascentistas. Assim que ele me viu, partiu com tudo para cima de mim. Fiquei tão indignado que esqueci de ficar com medo. “Matt! Que porra é essa? Por que você quer me bater?”. Matt parecia tão surpreso que ele esqueceu de continuar a me ameaçar. “Mas… Você entrou no quarto usando calça de malha!”, ele protestou. “Quer dizer, o que é que você esperava?”. Será que Matt estava lidando com profundas inseguranças sobre sua própria sexualidade? Não sei. Provavelmente. Mas a verdadeira pergunta é por que presumimos que sua mente problemática é tão importante? O que realmente importa é que ele sentiu de verdade que precisava defender um código social.

Dessa vez, o valentão adolescente estava usando de violência para fazer cumprir um código de masculinidade homofóbica que também faz parte da autoridade adulta. Mas com crianças menores, esse geralmente não é o caso. Aqui vem um terceiro dado surpreendente da literatura psicológica – talvez o mais revelador de todos. No começo, não é a menina gorda, ou o menino com óculos, que tem mais chances de ser atacado. Isso vem depois, à medida que os valentões (sempre atentos às relações de poder) aprendem a escolher suas vítimas de acordo com os padrões dos adultos. Antes disso, o principal critério é como a vítima reage. A vítima ideal não é a absolutamente passiva. Não, a vítima ideal é aquela que enfrenta o valentão, mas o faz de uma maneira ineficaz, esperneando, chorando, ameaçando contar tudo pra mamãe, ou fingindo que vai lutar e depois fugindo. Fazer isso é precisamente o que torna possível criar um drama moral em que o público pode dizer a si mesmo que o valentão deve, em algum sentido, estar certo.

Essa dinâmica triangular de valentão, vítima e público é o que eu quero dizer com a estrutura profunda do bullying. Ela merece ser estudada em livros didáticos. Na verdade, ela merece estar em todo lugar em letreiros de neon gigantes: O bullying cria um drama moral em que a forma da reação da vítima a um ato de agressão pode ser usada como justificação retrospectiva para o próprio ato original de agressão.

Esse drama não aparece apenas no começo da infância; é precisamente o aspecto que permanece na vida adulta. Eu chamo isso de falácia “parem com isso vocês dois”. Qualquer um que frequenta fóruns de mídia social vai reconhecer o padrão. O agressor ataca. O alvo tenta ser superior a isso e não diz nada. Ninguém intervém. O agressor ataca com mais força. O alvo tenta ser superior e nada faz novamente. Ninguém intervém. O agressor ataca de novo.

Isso pode acontecer uma dúzia de vezes, cinquenta vezes, até que finalmente o alvo responde. Então, e só então, uma penca de vozes imediatamente surgem, dizendo “Treta! Treta! Olha só esses dois idiotas batendo boca!” ou “Será que vocês não podem se acalmar e aprender a ver o ponto de vista um do outro?”. O valentão esperto sabe que isso vai acontecer – e que ele não vai perder nenhum ponto por ser o agressor. Ele também sabe que se ele afinar sua agressão no tom certo, a resposta da vítima pode ser ela mesma representada como o problema.

Joselito: Você é um cara bacana, Pedrinho, mas eu tenho que dizer que você é um pouquinho idiota.

Pedrinho: Um pouquinho… Quê? Que caralhos você quis dizer com isso?

Joselito: Viu só? Te acalma, cara! Eu disse que tu era um cara bacana. Pra que falar palavrão? Você não viu que tem damas lendo a conversa?

E o que é verdadeiro quanto à classe social também é verdadeiro quanto a qualquer outra forma de desigualdade estrutural: daí epítetos como “mulheres loucas”, “nordestinos vagabundos” e uma variedade sem-fim de termos semelhantes. Mas a lógica essencial do bullying vem antes de tais desigualdades. É a matéria da qual são feitas.

Pare de bater em si mesmo

E essa, eu proponho, é a principal falha do ser humano. Não é que como espécie somos particularmente agressivos. É que tendemos a responder mal a agressões. Nosso primeiro instinto quando vemos uma agressão sem motivo é ou fingir que ela não está acontecendo ou, se isso se torna impossível, igualar o agressor e a vítima, colocando-os ambos sob um tipo de lógica de quarentena que, espera-se, pode evitar que contagie os outros (o que explica o fato, descoberto pelos psicólogos, de que as pessoas detestam valentões e vítimas em proporções mais ou menos iguais). O sentimento de culpa causado pela suspeita de que isso é um jeito essencialmente covarde de se comportar – já que é um jeito essencialmente covarde de se comportar – abre caminho para um jogo complexo de projeções, no qual o valentão é ao mesmo tempo um supervilão invencível e um fanfarrão inseguro que dá pena, enquanto a vítima se torna simultaneamente um agressor (aquele que viola seja lá qual for a convenção social que o valentão tenha invocado ou inventado) e um covarde patético que não quer se defender.

Obviamente, estou oferecendo apenas o rascunho mais mínimo de uma psicodinâmica complexa. Mas ainda assim, esses insights podem nos ajudar a entender por que é tão difícil estender nossas simpatias a, entre outros, soldados iraquianos chacinados enquanto fugiam do combate. Aplicamos a eles a mesma lógica de quando assistíamos passivamente a algum valentão da infância aterrorizar sua vítima: igualamos agressores e vítimas, insistimos que todo mundo é igualmente culpado (note como, sempre que se ouve uma notícia de uma atrocidade, alguns vão imediatamente começar a insistir que as vítimas devem ter cometido atrocidades também), e simplesmente esperamos que ao fazer isso, não vamos nos contagiar com a violência.

Essas são coisas difíceis. Eu não afirmo entendê-las completamente. Mas se almejamos uma sociedade genuinamente livre, então vamos ter que reconhecer como a relação triangular e mutuamente constitutiva de valentão, vítima e espectadores realmente funciona, e então desenvolver formas de combatê-la. Lembre-se, não somos um caso perdido. Se não fosse possível criar estruturas – hábitos, sensibilidades, formas de sabedoria comum – que pelo menos às vezes evitam que essa dinâmica se inicie, então sociedades igualitárias de qualquer tipo jamais teriam sido possíveis. Lembre-se, também, de quão pouca coragem é geralmente necessária para parar valentões que não são apoiados por qualquer poder institucional. Acima de tudo, lembre-se de que quando os valentões são realmente apoiados por tal poder, os heróis podem ser aqueles que simplesmente vão embora.

[*] Mesmo assim, antes que demos um passe para os adultos do sexo masculino, devo observar que o argumento para a eficiência militar é uma faca de dois gumes: mesmo sociedades cujos homens se recusam a organizar a si mesmos efetivamente para a guerra também insistem, na gigantesca maioria das vezes, que as mulheres definitivamente não deveriam lutar. Isso é bem pouco eficiente. Mesmo se pudéssemos admitir que homens são, geralmente falando, melhor em combates (e isso não é de forma alguma claro; depende do tipo de luta), e se quiséssemos selecionar a metade da população com os corpos mais preparados para lutar, alguns destes corpos seriam femininos. De qualquer forma, em uma situação realmente desesperadora pode ser uma tática suicida não usar todos os recursos à disposição. Mesmo assim, várias e várias vezes encontramos homens – mesmo aqueles relativamente não-beligerantes – decidindo morrer em vez de quebrar seu próprio código social que diz que as mulheres jamais deveriam portar armas. Não surpreende então que tenhamos tanta dificuldade em ter empatia por vítimas masculinas de atrocidades: à medida que segregam as mulheres do combate, eles são cúmplices da lógica de violência masculina que os destruiu. Mas se estamos tentando identificar a falha principal ou o grupo de falhas na natureza humana que permite que essa lógica de violência masculina exista para começo de conversa, isso nos deixa com um cenário de confusão mental. Não temos, talvez, algum tipo de proclividade inata para a dominação violenta. Mas temos uma tendência a tratar aquelas formas de dominação que existem no momento – começando com a de homens sobre mulheres – como imperativos morais em si mesmos.

Nota do tradutor

Aconteceu de eu ler este texto logo depois de ver um vídeo do excelente canal Thunk. Eu absolutamente recomendo que você veja o seguinte vídeo como uma espécie de complemento – e também contraponto – ao texto traduzido acima.

Atualização: O vídeo abaixo conta agora com legenda em português brasileiro!

Um anarquista pode ser a favor do voto obrigatório?

Em geral, há dois tipos de pessoas contrárias ao voto obrigatório. De vez em quando as motivações coincidem, mas devem ser consideradas separadamente.

  • Diferencial de inteligência – Há quem faça uma apologia à “distribuição natural de talentos” entre os humanos. Ora, alguns são simplesmente mais inteligentes que outros, dizem; portanto, se nem todos forem obrigados a votar, escolheremos melhores representantes.
  • Uma questão de princípio – Há quem seja a favor da liberdade no maior número de circunstâncias possível, e que, por esta razão, não deveríamos ser obrigados a nada – especialmente não a votar. Nessa visão, é comum ouvir dizer que votar é um direito, não um dever.

A primeira motivação é na maioria das vezes alguma forma disfarçada de classismo ou racismo. As pessoas que eles querem que não votem são os “burros” – que, para eles, se resumem a pobres, negros, favelados, nordestinos. Nas últimas décadas sempre ouvimos essa ladainha depois da vitória do PT nas urnas. Ah, se apenas os mais ric… Quer dizer, os mais inteligentes escolhessem o presidente. Aí teríamos Aécio. Ou Alckmin. Ou Serra.

A segunda revela algo mais profundo sobre o estatismo moderno; se o voto é um dever, há algo que interessa nele aos poderosos. Não é caridade ou “virtude cívica”; não é achar que fará bem às pessoas. É porque esse é um instrumento de legitimação. Como todo mundo vota, fica fácil virar para os eleitores e botar toda a culpa dos sistemas social, econômico e político nas costas deles. Quando isso acontece, a individualização e internalização da culpa não está muito longe, porque na massa disforme e monolítica dos “eleitores” o engenho de misturar “vocês” com “você” é facilmente empregado. Foram vocês que colocaram esses políticos aí. Não está gostando? Se fode, você deveria ter escolhido melhor.

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Photo by manhhai

Eu sempre fui contra o voto obrigatório, mas por causa do segundo princípio. É o que leva quase todo anarquista, arrisco dizer, a ser contra o voto obrigatório.

Mas venho escrever essa postagem para tentar destrinchar um argumento complexo, mas relevante, em especial para a comunidade anarquista: não importa muito por que ser contra o voto obrigatório; se é o motivo 1 ou o motivo 2. No final, o resultado acaba sendo o primeiro.

Uma vez que o voto obrigatório se desfaça em uma sociedade desigual e com baixo capital político como a da nossa população, o primeiro cenário se concretizará; não porque os “burros” não vão votar, mas porque quem é assim classificado pelos proponentes do primeiro cenário são aqueles que estariam mais propensos, por diversas razões, a não votar; desde a desilusão com o sistema até condições socioeconômicas e culturais.

Por outro lado, obviamente o voto não mudará nada. O que me leva a um jeito de explicar o que estou tentando dizer ao refrasear o título: votar torna um anarquista menos anarquista? Eu creio que não, porque aquilo que o anarquista sabe que é irreal, o tipo de feitiço que ele tenta quebrar em outras pessoas e na batalha cultural mais ampla, é a ligação entre voto e mudança sistêmica. O anarquista é aquele que olha para o voto e, embora possa até votar (seja pra evitar se incomodar com a multa depois ou por alguma outra razão), o que faz a diferença em sua ideologia é a perspectiva com a qual aborda seu próprio voto, em especial as expectativas em relação ao voto. O importante é saber que o voto não vai mudar nada. A diferença entre um petista e um anarquista votando no segundo turno das eleições presidenciais de 2014 são as expectativas que cada um guarda em relação ao processo eleitoral.

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Photo by dcJohn

Agora, esse parece ser um argumento bastante subjetivista; se não há diferença prática (os dois votam), então não há diferença, ponto. É justo argumentar dessa forma, mas é preciso entender que só abordei o lado indivíduo-a-indivíduo da questão: o voto obrigatório é um tópico social, e precisamos abordar esse lado também. O “cenário 2” do início da postagem trata simplesmente de direitos individuais. Há um outro, e gigantesco, lado da moeda.

O voto obrigatório traz a discussão política (ou pelo menos tem a intenção, e oportunidade, de fazê-lo) para dentro das casas de quem normalmente não discutiria política. É uma forma de envolver a todos no processo político. Ao meu ver, o anarquista que se opõe ao voto obrigatório está colocando uma picuinha pessoal (e admito que esse era eu: “mas que droga, eles estão me forçando a votar. Ugh…”) acima de uma boa oportunidade de desenvolver a discussão política. Isso tem a ver também, aliás, com uma visão contraproducente de liberdade – mas não creio que seja saudável contestar isso nesta postagem…

Em nossa visão de futuro, de sociedade desejável, queremos que as pessoas se envolvam. Queremos a responsabilidade de cada um pelas decisões da comunidade. Como faz sentido rejeitar esse mesmo envolvimento nesse exato instante? – Não é o mesmo envolvimento, responderiam alguns; e nem o mesmo modelo de sociedade. Sim, é verdade, é tudo verdade. Mas é algo próximo, próximo o bastante para servir como oportunidade de discutir princípios e ideias anarquistas. De acostumar quem não está acostumado a debater ideias, projetos, valores, caminhos, e também pessoas. Sim, porque a verdadeira democracia do anarquismo não pode funcionar sem o tipo de responsabilidade pessoal por projetos que implicam a discussão de pessoas para além da discussão de representantes que temos hoje, mas não muito aquém.

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Photo by marthax

O voto obrigatório deve ser dimensionado de forma apropriada pelo anarquista; não é solução para nada – nem o obrigatório nem o voluntário – mas no esquema mais amplo das coisas como estão hoje, opor-se a ele não só ajuda o projeto de poder de quem está muito mais à direita dos anarquistas que a esquerda estatista, como também significa fechar os olhos para uma maré de discussão política que pode ser melhor aproveitada para nossos próprios objetivos.

Sandel, republicanismo e anarquismo

Recentemente fiz a leitura de dois livros do filósofo Michael Sandel: “Liberalism and the Limits of Justice” e “Democracy’s Discontent”. Esses livros oferecem uma visão interessante da corrente republicana de pensamento dentro da ciência política (especialmente a nível mundial, ou seja, descontando o sentido partidário que a palavra “republicano” tem nos Estados Unidos). Ao longo da graduação conheci e me envolvi, em termos de pesquisa e leitura, com essa tradição de pensamento. Cheguei até ela através do debate sobre o conceito de liberdade: ser livre é mais do que ter mais possibilidades, mais caminhos para escolher; tem a ver com o fato de que você não está arbitrariamente dominado por outrem. Os republicanos se importam com instituições e práticas que garantam o autogoverno – a liberdade do indivíduo por meio de sua participação na comunidade política. Isso é importante: simplesmente olhar para o próprio umbigo e querer se livrar de amarras para fazer o que quiser não é ser livre; a liberdade não é apenas uma questão individual, mas sim um fenômeno social. Certas restrições à liberdade individual são necessárias não apenas para alcançar uma liberdade mais igualitária (ou seja, mais possibilidades para todos) como também é a participação na comunidade que garante as liberdades individuais em primeiro lugar.

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Photo by dok1

É difícil conceituar em poucas linhas a tradição republicana de pensamento; em geral ela é muito mais que o parágrafo anterior, mas a ideia é mais ou menos essa.

Eu gosto dessa forma de pensar. Ela bate de frente (e forte) no liberalismo político e econômico que serve de base para o capitalismo que anarquistas em geral detestam. Isso é bom. Por outro lado, gostar não significa concordar com tudo – e a minha alegria intelectual de me jogar na complexidade e conviver bem com diversas ideias conflitantes vem justamente da oportunidade que seus adversários proporcionam para que você fortaleça suas ideias, caso não as modifique de todo. O que quero dizer é que, mesmo sendo um anarquista, toda minha vida acadêmica passou por ter uma boa relação com marxistas, liberais, republicanos e a ocasional direita (quando ela não é simplesmente beócia).

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Photo by s58y

E isso é fantástico – se encaixa no que eu já pensava antes sobre o anarquismo e o que considero um dos nossos principais problemas teóricos: a questão da relação entre indivíduo e comunidade, que se reflete por sua vez na existência do anarcocapitalismo e na consequente briga quanto ao conceito de liberdade. Anarquistas em geral detestam o capitalismo porque veem nele uma força opressiva – mas em que sentido a liberdade afloraria mais? Com um capitalismo mais puro, em que os mercados seriam “verdadeiramente livres”? Ou adotando um outro sistema econômico? Existem grupos anarquistas de língua inglesa na internet que são dominados, ou amplamente influenciados, por anarcocapitalistas. A “tagline” de um que me lembro era algo como “numa sociedade realmente livre, os mercados também não deveriam ser livres?”.

A resposta é não, e o republicanismo é essencial para se chegar a essa conclusão. Todo o papo sobre liberdade como a coisa mais fundamental do mundo é excelente e fascinante sobre o anarquismo, mas enquanto você bebe somente dessa fonte pode cair no tipo de cilada em que tudo vale, tudo tanto faz como tanto fez – então por que não ter mercados livres? Porque nem toda liberdade favorece a liberdade – isto é, um certo sentido de liberdade é enganador, pois não é capaz de nos oferecer uma parte importante do que entendemos por liberdade em primeiro lugar (mas que às vezes é esquecido).

Nem toda liberdade é igual. Por mais que o conceito pareça claro, ele não é; é complexo e sem definição única. Se o anarquismo se focar na concepção liberal de liberdade, vai cair na armadilha da “inevitabilidade” do capitalismo, ou no mínimo, no caso, dos mercados abertos: se preocupar com o indivíduo a tal nível que se destrua completamente a ideia de comunidade e a importância de nos importarmos uns com os outros, a necessidade de construirmos uma vida comum que negue algumas possibilidades justamente para preservar a autodeterminação democrática do grupo – uma certa igualdade social, a política, a preservação e continuidade desse estado de coisas de liberdade que se considera bom.

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Photo by MikeSpeaks

O anarquismo se separa do republicanismo, contudo, no que tange à possibilidade de democracia direta; no que tange à ideia de que não se deve haver instituições separadas da população que contenham em si um poder coercitivo (Estado); de que deve haver esse tipo de “mediação” da população e do poder com vistas a gerar um “bom governo” (uma constituição mista). A forma que o anarquismo toma tem a ver menos com estabilidade do que com o respeito a princípios como liberdade e igualdade. O debate permanece, entre os anarquistas, sobre qual é o ponto de equilíbrio entre comunidade e indivíduo; para mim, adotar um sentido completamente liberal, negativo (no sentido Hobbesiano), voluntarista de liberdade e assim pressupor que toda comunidade anarquista deve ter como objetivo a liberação total do indivíduo frente ao grupo é um grande erro.

No entanto, são tantos os alarmes de teóricos políticos que soam bem, e devem ser ouvidos – brados contra a tirania da maioria e “groupthink”; a favor da criatividade, da individualidade, etc. Eles são importantes e relevantes caso um anarquista tente argumentar demais em favor da supremacia da comunidade. Para mim, o ponto de equilíbrio (o que não é dizer muito pois isto é abstrato e, como qualquer outra empreitada social, impossível de ser praticado à perfeição) significa uma comunidade forte, fortalecida e respeitada pelos indivíduos – cujo objetivo é justamente fortalecer a independência e a liberdade dos indivíduos.

Os republicanos põem extrema importância na lei, mas, sinceramente, essa é a parte que eu mais detesto no republicanismo. A lei não garante nada. O que garante a aplicação dela ou não são concidadãos imbuídos do espírito que ela pretende representar. Se a comunidade não estiver unida, constituída (e, mais que isso, constituindo os indivíduos) através do gosto e da defesa da liberdade individual e da igualdade (e reconhecendo que às vezes um pouquinho de liberdade individual pode ter que ser sacrificada para que se proteja uma liberdade mais ampla, proporcionada pela comunidade), nenhuma constituição vai proteger a liberdade e a igualdade.

Anarquistas e republicanos veem um grupo com dificuldades políticas e se perguntam: “como esse grupo deve agir para resolver seus conflitos?”. Aí as diferenças ganham contornos curiosos.

Republicanos são os geeks da ciência política – ou, quando mais afeitos às leis do mercado, são como os novos otimistas das startups cuja filosofia é a de que a tecnologia salvará o mundo.

“… Always turning to the market to find a solution for everything; like homelessness, like creating an app… It’s not that complicated, y’all! It’s not that crazy. We can actually, you know… We don’t have to… You know… Just keep on innovating, and like ‘yes, tech is going to save us’… No, it won’t.

Só que nesse caso não se trata de tecnologia “física”, mas sim de uma “tecnologia” cultural, social, política. Para eles, a solução para uma boa comunidade não é a constituição dela em si e a relação entre seus membros, mas as regras – o aparato estatal, as instituições, as leis.

Imagine a seguinte situação: um grupo de amigos está brigando a partir de várias disputas internas. O que fascina o tipo republicano é propor ao grupo qual é o melhor sistema que vai gerenciá-los para que eles possam conviver apesar das brigas. “Veja, toda vez que falamos sobre política não dá certo. Então vamos proibir esse tópico. Por outro lado, descobrimos que quando bebemos duas latas de cerveja ficamos mais relaxados e brigamos menos, então vamos adicionar isso a toda reunião”. Todo o objetivo é desenhar um sistema que funcione bem, e de forma autônoma, na geração de uma comunidade política harmoniosa. “Bom, temos que ter leis que se aplicam a todos, até a um eventual monarca, e aí temos que ter revezamento nos cargos eletivos, e aí também a separação de poderes…”. Digo de forma autônoma porque, com notáveis exceções, o republicanismo é a tradição do ponto de equilíbrio; do “Eureka” de quem faz a descoberta final. De Platão aos romanos antigos, a discussão gira em torno da mais aperfeiçoada forma de governo: a cultura é jogada pela janela como algo realmente decisivo na forma como um povo vai se organizar; a estrutura pode ser julgada como justa e eficiente por critérios independentes, e ela se aplica a qualquer grupo humano. É duplamente curiosa mais essa analogia entre o republicanismo e os nerds, especialmente a galera hardcore da computação: todo problema com o sistema vira mais uma oportunidade pra reclamar do usuário, que está provavelmente fazendo alguma coisa errada. Pra não ser injusto, a reação a partir daí pode ser informar o cidadão e promover um debate para que se tome consciência do suposto funcionamento do sistema; mas pode surgir como mais uma mudança no sistema.

Os anarquistas respondem à preocupação de um modo diferente. Ao invés de evitar trabalhar com o “material humano”, é nele que buscam as respostas: pro grupo de amigos, diriam que tem que haver acordo, e seria especialmente bom que ele fosse motivado pelo desejo livre de permanecerem juntos como um grupo de amigos que se gosta. Na comunidade política, questões substantivas têm vez – e nesse sentido Sandel é extramente próximo do anarquismo que defendo – e podem ser discutidas. A solução está sempre em apelar para os valores que constituem a comunidade e como isso pode resolver diferenças e levar a acordos.

Anarquistas, obviamente, não são insensíveis a regras ou sistemas; as pessoas continuam sendo pessoas, e tecnologias (sociais, como as que os republicanos gostam de planejar) são parte de quem somos. Mas, informadas por valores diferentes (e, portanto, propósitos diferentes) e baseadas em processos constitutivos diferentes, essas tecnologias são diferentes entre uns e outros. Anarquistas gostam do processo decisório baseado em consenso, e isso é radicalmente diferente. E, é claro, há a questão econômica – que nos leva de volta ao início do artigo.

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Photo by quinn.anya

A liberdade como conceitualizada pelos republicanos é muito importante para o anarquismo, e é exatamente por isso que o capitalismo não pode ter vez numa sociedade realmente anarquista. A desigualdade na distribuição do poder que ele produz é perigosa demais para aceitar se a igualdade política é um objetivo fundamental. Republicanos muitas vezes têm dificuldades em falar sobre economia porque se preocupam demais com o poder político sem ir até as últimas consequências do que dizem, isto é, sem pensar de forma mais humana sobre os sistemas que eles criam; é muito legal construir “castelos conceituais” sobre como distribuir de forma justa e inteligente o poder político numa sociedade, mas se a economia continuar sendo tratada como um campo neutralizado e completamente independente da política (como se o poder no campo econômico também não precisasse de um sistema que o distribuísse melhor, com vistas à liberdade), esses castelos provarão ser de areia da praia.

Reforma e revolução na pós-modernidade: pensamentos soltos sobre uma mudança silenciosa

Escrevi esse texto em 2011. Ao revisitá-lo em 2015 muitas partes me pareceram obscuras, e as reformulei ou excluí de todo. Ainda agora não tenho certeza se entendi tudo que escrevi, mas não quis deletar muita coisa porque, bem, vai que faça sentido pra alguém, não é mesmo?

O que achei interessante (e parte do motivo pelo qual decidi seguir em frente e republicá-lo) é como isso se aproxima ao que David Graeber fala sobre a “revolução” contemporânea, mesmo que eu só tenha conhecido Graeber de verdade em 2014, acho. Isso me deixa… Satisfeito.

O labirinto de concepções, pressupostos e estratégias argumentativas que se alimenta do ethos do pós-modernismo nos permite com relativa facilidade – e aí mora o perigo – dispensar possibilidades de transformação. E, à bem da verdade, o pós-modernismo não tem um papel tão importante quanto a ciência, com sua ambição analítica; vemos as partículas, mas esbarramos no todo, e o todo revela-se um rolo compressor (repressor) que nos asfixia à menor menção do agir.

É pensando assim que não formamos grupos para conseguir as coisas porque, bem, grupos nunca dão certo. Os próprios “trabalhos em grupo” com os quais nos acostumamos desde crianças por causa da escola são apenas oportunidades para criar (e mais tarde, reforçar) a certeza de que seres humanos são filhos da puta. De forma semelhante, quem quer que se proponha a defender o anarquismo vai encontrar quem aponte as falhas nas aspirações mais elementares da proposta – e fazem isso porque supõem que apenas o sistema econômico e o político vão mudar, quando na verdade a transformação deve se dar também na ordem do cultural, do social, do simbólico.

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Photo by JD Hancock

A questão é que toda proposta de modificação de um sistema deve necessariamente assumir a tarefa de reformular o sistema inteiro e não apenas uma parte. Seja a proposta reformista ou revolucionária, mudar uma parte da sociedade implica mudá-la por completo no fim das contas. Ser revolucionário significa querer mudar tudo de uma vez, e ser reformista implica agir em um único elemento (de cada vez). Descobrimos, aí, que a reforma pode parecer mais fácil, mas é na verdade tão difícil quanto a revolução, se não mais.

Primeiro porque ela estica a mudança no tempo, e isso por si só já indica maior desgaste. Para explicar a segunda razão podemos partir de uma pergunta fundamental: por que a reforma parece ser mais fácil? Porque quem opta pela reforma geralmente se foca em um setor, e lida indiretamente com as consequências sistêmicas da mudança – ou não lida em absoluto. Sendo assim, a reforma leva a dificuldades, sim, mas dificuldades descentralizadas e distribuídas. Enquanto isso, na revolução, especialmente aquela que têm líderes claramente definidos, carismáticos (um povo que segue suas ideias, que age como massa de manobra e não com autonomia) são eles os responsáveis por impulsionar a transformação, e portanto concentram a dificuldade, tornando-a aparentemente maior.

Como se espera mudar a lei sobre algo importante sem que isso signifique uma mudança nos costumes, nas práticas institucionais, nas reivindicações de determinados setores sociais? Tudo muda, tudo se transforma – mas os reformadores da lei não têm que lidar com todas essas mudanças e microrrevoluções. E, ao mesmo tempo, a transformação não se opera do dia pra noite: leva mais tempo, porque é como se cada setor da sociedade vivesse sua própria revolução, e a vitória de forças conservadoras ou progressistas alavanca ou põe uma barreira no desenrolar da vontade reformista, que vê com pesar seus aliados perdendo em diferentes regiões da sociedade, e com alegria suas pequenas vitórias em outros rincões.

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Photo by harrystaab

Até na ação reformista – que para a “microescala” dos proponentes da ação parece revolucionária – se faz sentir a grandeza de um mundo que não para pra perguntar aos seus habitantes o que eles querem, porque a vitória depende de tantas vitórias, tantas situações, tantas decisões que simplesmente não lhes pertencem… E isso que nesta análise eu sequer considero a diferença hierárquica entre as decisões que se tomam em uma associação de bairro e o supremo tribunal federal.

E a revolução, o que quer? A tudo transformar de uma vez. Mas existe um modelo que não signifique o exposto acima? O cenário de líderes vanguardistas que tenham a tarefa de reformular o mundo (deles)? É possível que todos queiram a transformação, tenham ideias sobre as transformações, e as ponham em prática, transformando em conjunto e sem hierarquias o conjunto (não de pessoas agora, mas de instituições)?

Ainda assim, se todos têm uma ideia diferente de realidade e de como a sociedade deveria se organizar, talvez o melhor caminho seria tomar como tarefa de tal força revolucionária a construção de mecanismos para a conversão e a interoperabilidade entre grupos de pessoas que decidam se organizar de uma determinada maneira. Isto é, que cada um encontre seus companheiros e forme comunidades de sentido, a cada um conforme sua vontade criativa sobre o tempo que lhe resta, mas que essa atomização não signifique o enfraquecimento dessa comunidade mais ampla que possibilitou isso tudo em primeiro lugar; até mesmo porque a união dessas microcomunidades pode ser, quem sabe, uma condição essencial para seu equilíbrio e continuidade. Então essas comunidades deveriam agir apenas para decidir padrões de comunicação horizontal.

Esse, creio eu, é um objetivo nobre para a revolução. Um objetivo que a reforma demoraria centenas de anos para conseguir; talvez jamais consiga porque o sucesso de uma área de atuação depende do sucesso das outras, e este processo seria tão lento... Mas, principalmente, talvez não consiga por causa da resistência a movimentos contraculturais, seja para fagocitá-los ou atacá-los. Ela é rápida, e os agentes, poderosos em seus campos: esse é o aspecto curioso sobre tanto um processo quanto outro (a revolução e a reforma).

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Photo by gruntzooki

Ser militarmente mais poderosa que outra, ser mais rica, ter mais indústrias, ter maior número de patentes, etc. Nunca se está satisfeito, na tradição ocidental, com a constância dos aspectos externos e materiais de uma sociedade; a estabilidade ganha sempre o nome de estagnação, e a vontade de progredir, crescer e expandir-se – expandir-se como um vírus no limite da vida – suprime toda a vontade das engrenagens da máquina de ter uma vida dobrada sobre si próprio. Isso tudo em troca de uma visão limitada, de requerimentos limitados, de conquistas pessoais limitadas, às vezes de liberdade limitada, de experiências limitadas. É o florescimento da sociedade visto no microscópio: as células vivendo a vida da planta em troca de alguns bocados de oxigênio.

Mas e hoje, o que temos? Vemos que as proposições raramente são a favor de obrigatoriedades. Ao invés disso, tenta-se abrir justamente opções – mas há quem não queira nem mesmo que outras pessoas pensem diferente… A questão, no entanto, é mais profunda, porque o pensamento diferente, como exposto acima, muda muita coisa, mesmo que pareça não mudar tanto assim. Vivemos interligados, às vezes por canais misteriosos. Somos um sistema.

Se pensarmos que aqueles interessados em viver uma vida diferente deveriam simplesmente se organizar para formar uma sociedade independente, à revelia da sociedade mainstream, então teremos uma ação que não é nem revolucionária nem reformista, porque não abarca quem não quer participar dela. O senso comum de estratégia, entretanto, diz que é preciso tomar cuidado, porque a partir do momento em que essa sociedade alternativa se forma, entra em competição ideológica com a outra, já estabelecida e ciosa de domínio sobre as mentes e corações dos humanos — mas entra fundamentalmente em competição por recursos, e aí o negócio se complexifica e velhas análises não parecem mais tão dispensáveis.

A estratégia óptima parece ser a criação de uma sociedade dentro da sociedade normal, utilizando de seus próprios recursos para formar uma rede que vai, pouco aos poucos, recriado os meios de subsistência e de expressão oficiais, substituindo-os por alternativas para conseguir, por fim, uma nova estrutura social que, uma vez completa e fortalecida do próprio sangue da antiga víbora, conseguirá se destacar e enfim viver por si só.

Outros de nós

Escrito em 2012

Eu estava apressado, tanto quanto as nuvens negras que sopravam gotas irritantes no solo pedregoso do estacionamento da Estácio de Sá. O pátio grande, quadriculadamente desajeitado e relativamente vazio servia como o caminho que melhor pesava segurança e rapidez no caminho do morro até a avenida do bairro. Estou atrasado para um trabalho que gosto de fazer, mas no qual não acredito completamente, embora não duvide que esteja em situação muito melhor que outros da mesma área. Um trabalho que, não por sua natureza, encontra-se pautado em rígidas e inescapáveis quase tradições do capitalismo contemporâneo. Ainda assim, visto uma camiseta velha e provavelmente desalinhada de tão usada; presente oblíquo e alienado, parcamente informado mas muito certeiro, de uma velha amiga. Uma camiseta preta com um grande “A” vermelho-quase-bordô e vergonhosamente rebelde de anarquia e anarquismo. Por força do sol, um casaco deslocado pendia do meu braço resmungão. Descia as escadas para entrar no estacionamento com passadas de dinossauro quando vi o cara.

O cara vinha na direção contrária. Senti imediatamente pena, como sentia de todos, porque eles teriam que subir um morro íngreme. Mas fui notando outras características. Um andar contido, que eu poderia adjetivar de militar se conhecesse direito algum militar, e um olhar indistinguível para a minha miopia exigente. Continuei andando, eu, e continuou andando, ele, e vi que ele também vestia uma camiseta preta. Uma camiseta que, com um pouco mais de classe, estilo e talvez vitalidade, estampava um outro A de anarquia e anarquismo. Um A de anarquização. Um A que pedia para ser visto, vistoso, e lambia as lens flares de um sol mexicano num cenário cheio de grama velha.

Meus passos tornam-se mais lentos já que a descida acabou, e os dele mais determinados. Parei de olhar para a camiseta e olhei para ele. Ele sabia que eu olhava para ele, e ele nem tentou disfarçar. Olhou para mim.

Tanta coisa podia ser dita. Quem seria aquele cara? Um militante? Um acomodado? Um adormecido, um incomodado? Um guerreiro, um filósofo, biólogo ou jornalista? Teria ele a alma jovem que o elixir rubro-negro (que nada tem a ver com o Flamengo) fazia se manter de pé perante injustiças, hierarquias e caralhos? Teria ele a mesma vontade de fugir às vezes, a mesma necessidade de realismo, a mesma vontade de tirar com os dedos uma costela de quem usa o termo de forma inapropriada, de quem confunde baderna com anarquia, de quem não acredita mais e quem não respeita quem sempre de fato acreditou no verdadeiro potencial humano de viver de boa numa lagoa?

Quem era aquele cara?

Nós nos olhamos e, com um sorriso discreto, um silencioso, nobilíssimo e pós-aristocrático aceno com a cabeça e, por fim, um conhecimento restaurado de que ainda há outros de nós por aí, seguimos nosso caminho pelas ruas de Barreiros.

Amo imensamente (Citação por Mikhail Bakunin)

“[…] Amo imensamente […]; devo e quero merecer o amor daquela que amo, amando-a religiosamente, quer dizer, ativamente; […] e devo libertá-la combatendo seus opressores e acendendo em seu coração o sentimento de sua própria dignidade, suscitando nela o amor e a necessidade de liberdade, os instintos de revolta e independência, lembrando-lhe o sentimento de sua força e de seus direitos. Amar é querer a liberdade, a completa independência do outro, o primeiro ato do verdadeiro amor; é a emancipação completa do objeto que se ama; não se pode verdadeiramente amar senão a um ser perfeitamente livre, independente não apenas de todos os outros, mas até mesmo, e sobretudo, daquele pelo qual é amado e que ele próprio ama. […] Querer, amando, a dependência daquele a quem se ama, é amar uma coisa e não um ser humano, pois este só se distingue da coisa pela liberdade; e também se o amor implicasse a dependência, ele seria a coisa mais perigosa e mais infame do mundo, porque criaria uma fonte inesgotável de escravidão e de degradação para a humanidade”