Direitos e Prioridades

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Faz um tempo ouvi que torcedores de um clube de futebol fizeram um protesto contra o time, que fazia uma campanha ruim na série A do Campeonato Brasileiro (o “Brasileirão”).

O que significa protestar? É preciso estabelecer que protestos são situações de exceção. Uma das tarefas mais significativas na formação de pessoas dentro de nossa sociedade é mostrar a elas que nada se consegue a não ser através da conversa, da luta dentro das regras do jogo: o choro é, depois de uma certa idade, inútil (uma situação que beira a chantagem, considerada imoral) e a briga é a imposição da vontade pela força – e só o Estado, como dizia Weber, tem o direito de usar a força. Nesse sentido, as coisas que um grupo social quer têm que ser conquistadas através de conversas e negociações; têm que ser construídas pouco a pouco, preparando as estruturas da sociedade para que uma nova situação seja alcançada.

Mas o que faz com que as pessoas queiram coisas? Se o que se quer é algo supérfluo, o resultado pode envolver uma resposta negativa. Florianópolis queria ser uma das sedes da copa do mundo no Brasil, mas havia várias cidades na disputa, portanto a cidade precisava mostrar razões para que ela fosse preferida. No final, não mostrou: outras razões foram melhores. Vencidos pelas propostas das outras cidades, ninguém se sentiu injustiçado por essa decisão. Não se pode ter tudo na vida.

No entanto, a modificação dos discursos dentro da sociedade (sério objeto de estudo dos cientistas sociais) pode levar uma população a crer que tem direito a algo. O direito ao décimo-terceiro salário, por exemplo, nem sempre foi tido como um direito: para que as pessoas pensassem nele como um dos direitos mais óbvios de qualquer trabalhador duradouro que se preze, foi preciso muita propaganda política junto à população. E quando um grupo social encara algo como direito, os protestos e as ações extremas (de certa forma, a força) podem entrar em jogo se as pessoas entendem que um direito foi violado. Quando a tradicional propriedade privada foi ameaçada nos anos 60, a classe alta brasileira deu um golpe militar que durou décadas.

Um protesto, portanto, é essa indignação materializada, feita por quem, via de regra, não tem voz. A indignação se justifica ideologicamente pelo fato de que alguma situação está, do ponto de vista dos indignados, ferindo um direito.

O que poderia, portanto, significar um protesto contra a má campanha de um time de futebol? Significa que o clube temria a obrigação de jogar bem. Ver o time ir bem seria um direito do torcedor. E, ora, isso é algo com o qual não posso concordar. Um campeonato é uma competição. As regras dizem que quatro times necessariamente cairão para a série B na próxima temporada. Todos os times tentam, mas nem todos conseguem jogar bem a ponto de permanecer na série A. Assim como a situação de Florianópolis na copa do mundo: nem todos podem ser felizes no final de uma competição. No que se baseia essa obrigação? Em algum contrato? Algum time está por acaso proibido de perder um jogo?

A pura observação do fenômeno traz informações importantíssimas para o cientista social. Em primeiro lugar, o protesto geralmente acontece – ou ganha atenção – com clubes grandes. Ou seja, é inadmissível para muitos que o Flamengo ou o Palmeiras sejam rebaixados – é uma “vergonha”. E isto, veja, não está só na boca do povo, mas no discurso das grandes redes de televisão: são dezenas de matérias todas as semanas sobre como o Palmeiras está lidando com a zona de rebaixamento. Mas onde está, na imprensa de alcance nacional, a cobertura sobre o Atlético Goianiense? Cair não é também uma “vergonha”, uma situação complicada e embaraçosa para este clube? E, mais importante, por que não se dá a proeminência (social e midiática) dispensada para protestos de futebol para protestos sociais sobre questões mais importantes na sociedade, como saúde e educação? Educação e saúde são, afinal de contas, direitos do brasileiro.

As prioridades e aquilo que as pessoas consideram como direitos não surgem espontaneamente: os valores que vêm de casa vão se misturando aos encontrados no espaço público e, em última instância, os grandes veículos de comunicação influenciam e muito não só o que as pessoas acham que são direitos, mas também como devem lutar por eles.

Partido sociológico alemão

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Marx e Weber foram importantes sociólogos alemães. Marx não pretendeu criar uma nova disciplina universitária ou coisa parecida. Ao contrário de Weber e Durkheim, que sabiam bem o que queriam (uma nova ciência humana), Marx tinha outros propósitos para as ideias que ele pensava como sendo filosóficas e econômicas: agir politicamente sobre o mundo.

Como venho tentando dizer em muitos dos artigos, a ação social exige (ou no mínimo se beneficia de) conhecimento. Marx estava preocupado com a superação do capitalismo. Weber estava pensando no modo correto de abraçá-lo para maximizar a glória do Império Alemão da época. Os dois viviam em uma realidade confusa; cheia de ideias, opiniões e eventos diferentes acontecendo ao mesmo tempo. Procuraram encontrar ordem a partir das informações que essa bagunça fornecia. Propuseram atitudes para alcançar aquilo que cada um achou melhor. Para um, o fim do capitalismo. Para outro, o avanço do capitalismo.

Para muitos Marx é marxismo, marxismo é comunismo, e portanto Marx deve ser um idiota. Não é bem assim. Existe a parte crítica da obra de Marx, em que ele identificou estruturas básicas do capitalismo e seu desenvolvimento histórico. Qualquer um que queira entender o modo como nós vivemos precisa estudar o que ele pensou. Mas existe também a parte propositiva, em que ele diz o que ele acha que é preciso fazer para sair da situação que ele vê como ruim. Mas assim como não é preciso concordar com todas as partes da crítica, tampouco é preciso concordar com as soluções propostas por Marx para ver o mérito da crítica. Os social-democratas, por exemplo (inspiração teórica do PSDB, que a maioria deve conhecer) concordam em grande parte com a leitura que Marx faz do capitalismo, mas não concordam com as soluções que ele apresentou para melhorar as coisas.

Weber quis entender de onde vem o poder do Estado, ou seja, por que as pessoas aceitam obedecer ao Estado. Quando o Estado é aceito, ele é chamado de legítimo, e Weber queria entender de onde vem essa legitimidade. Não era mais como antes, tempo em que o Estado era legítimo porque todos eram ensinados que as coisas “sempre foram assim”. Numa época de racionalização das práticas, a legitimidade do governo passa a vir de sua eficiência. O governo é obedecido porque é bom e útil fazer isso.

Para que uma sociedade funcione dentro desse esquema de coisas, os governos precisam ser competentes: a máquina administrativa tem que funcionar bem, e o modo mais racional de se controlar esta máquina, de acordo com a resposta que a própria modernidade trouxe, é a democracia parlamentar baseada em partidos. Weber era elitista. Isso, para a sociologia, não quer dizer esnobe: Weber acreditava que em toda sociedade humana há aqueles que naturalmente se destacam dos outros em quanto ao carisma. A competição entre essas pessoas por apoio e votos garantiria uma máquina eficiente, que levaria a nação a um futuro bom.

Para os problemas e valores de Weber, ele via uma solução (que envolvia os partidos, hoje a base de praticamente todos os países de tradição ocidental). Marx, com seus problemas e valores, via outra. Por exemplo: a eficiência do Estado era para quem, afinal? O que o Estado faz é no interesse da maioria da população ou da parte rica da população? Essas são perguntas que um sociólogo pode se propor a estudar. Para Marx (a grosso modo) não adianta ser eficiente se a eficiência não é justa – e o Estado jamais poderia ser justo através do capitalismo.

Marx também era elitista de certo modo, embora essas tendências apareçam com mais força (e ao mesmo tempo mais eufemismo) em pensadores posteriores como Gramsci e Lênin. Para Gramsci, a sociedade é complexa demais para esperar que uma “revolução” transforme o capitalismo em socialismo. Para ele era preciso construir o socialismo pouco a pouco, através de partidos comunistas (dentro das quais haveria, é claro, elites), controlando o sistema a favor da justiça social.

Com Marx e Weber podemos entender como o estudo da sociedade nos influencia na hora de fazer política – e não é preciso se envolver com partidos para fazer política. Os anarquistas, por exemplo, não confiam nesse esquema de coisas, já que para eles a própria existência do Estado faz a organização da sociedade ser muito pior do que precisa ser. Nesse sentido, se recusar a votar ou votar nulo não deixa de ser, a despeito do que o TSE quer levar você a crer, um ato bastante político.

Línguas e realidades

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

No meu retorno ao curso de ciências sociais depois da greve de professores e servidores da UFSC, recebo como texto para leitura uma entrevista com Steven Shapin, professor de história da ciência na Universidade de Harvard. Ele é um historiador e sociólogo renomado, que deu uma entrevista lúcida e intrigante, mas que, como a maioria das entrevistas, não oferece uma explicação completa de uma ideia (geralmente apenas uma extensão para quem já conhece as ideias).

Interessado, busquei saber mais. Descobri que nenhuma de suas obras está disponível em português, e só um exemplar no original em inglês (de apenas um de seus cinco ou seis trabalhos já publicados) pode ser encontrado na Biblioteca Universitária da UFSC. Não encontrei nenhum livro dele que pudesse ser comprado como e-book (ou sequer baixado!) pela internet.

Em suma, se eu quiser saber mais sobre ele, eu tenho que falar inglês.

Se isso parece uma anedota comercial para o fato de que sou professor de inglês, não estreite os olhos ainda; isso é antes uma reflexão maior sobre as línguas e as realidades que nos cercam – realidades que as línguas ajudam a construir.

Um dos maiores desafios de um professor de línguas é fazer com que os estudantes – especialmente os iniciantes – “pensem” segundo a lógica da língua nova ao invés de traduzir tudo da língua materna. Isso não é apenas uma questão de entendimento, para que o aluno possa participar de uma discussão com o mesmo nível de inteligibilidade e expressão que os outros; aprender uma outra língua é aprender a pensar nela e incorporar sua lógica aos nossos esquemas de pensamento. Qualquer outra coisa é trabalhar com uma língua com diferentes níveis de habilidade, mas não de fato dominá-la como dominamos uma atividade que nos é completamente familiar e (palavra perigosa para um cientista social) natural.

O inglês, por exemplo, possui um tempo verbal estranho ao português, o “present perfect” – e a forma diferente de construir tempos verbais têm um impacto na forma como estruturamos nosso pensamento. Da mesma forma, se muitos exaltam a beleza exclusiva da palavra “saudade” em português, eles ignoram que a palavra “miss” é igualmente poética e versátil, sendo “miss the point” uma expressão difícil de traduzir para a língua de Camões.

Dizem alguns pensadores que toda a filosofia clássica grega teria sido impossível sem a existência de um tempo verbal grego que reflete o mundo ideal de Platão. De forma semelhante, alguns linguistas dizem que o inglês e o francês são línguas pobres na hora de traduzir obras originais do alemão (como as obras de Nietzsche e Heidegger, por exemplo).

A questão em jogo é que, não são só as oportunidades pessoais, profissionais e acadêmicas que são ampliadas ao se aprender uma língua; aprendemos um novo jeito de pensar e entender o mundo que nos cerca. Há quem diga que se você não conhece uma palavra para um sentimento, não é capaz de senti-lo. Será que isso é verdade? Será que quem não conhece o conceito de um sentimento não o sente, já que ele não pode (num primeiro momento) ser encaixado na maneira como a pessoa vê o mundo? Ou sentimos todos as mesmas coisas, mas com frequências diferentes?

É interessante notar que, mesmo que não haja uma palavra para um sentimento, não significa que ela não possa ser aprendida de outra língua ou mesmo inventada. A invenção das palavras e as revoluções na gramática, fonética e ortografia de uma língua são corriqueiras na história da humanidade, e vêm apenas demonstrar uma teoria sociológica que já discutimos (em parte) aqui antes: a de Bourdieu e seu habitus. A língua pode estruturar nosso pensamento, mas para que haja língua é preciso haver falantes. É no uso contínuo da língua que nós a estruturamos, reformando as paredes da labiríntica mansão que nossas mentes, individual e socialmente falando, habitarão por toda a nossa vida.

Ainda assim, para mudar a cabeça de ares e bairros não há nada melhor que aprender várias novas línguas!

Quem é dono das ideias?

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Uma das áreas de maior interesse para mim nas Ciências Sociais é a investigação que se faz quanto às bases do nosso pensamento, ou seja, pensar quais estruturas e agentes da sociedade são responsáveis pela forma como pensamos. O sociólogo francês Durkheim (a despeito do que já falamos sobre ele aqui há algumas colunas) já sugeria que as religiões sempre refletiam a realidade social de um grupo — que todas as diferentes religiões eram, portanto, verdadeiras. Na verdade, resumir nisso suas ideias seria uma grosseria: o que ele sugeriu, na verdade, é que o pensamento simbólico depende da realidade social de um grupo.

Certa vez um monitor de ciência política me disse: para os gregos antigos nós não pensamos, nós somos “tomados pelo pensamento”. Entre alguns nativos das ilhas Trobriand as pessoas acreditam que uma criança já existe antes de nascer e é ela, na verdade, quem “decide vir ao mundo”. Esses sistemas de pensamento têm raízes fortes na vida desses povos. Mas quais são as raízes da nossa maneira de pensar?

Quando pensamos em uma ideia, logo a conectamos com quem a inventou. Mesmo as mais gerais e com longas ramificações, como capitalismo ou comunismo, costumam ter “donos”. Marx escreveu o comunismo; Adam Smith formulou o capitalismo. A vida acadêmica contribui pra isso: nas escolas ou nas universidades, somos levados a pensar em quem pensou o quê primeiro. Se desmistificamos origens, é só para cair no mesmo abismo: Marx precisou de outras ideias para formular o comunismo, mas todas elas também tinham dono: Engels, Hegel, Fourier…

Quanto mais voltamos no tempo, mais vemos como isso não pareceu ser tão relevante em outras épocas e em outras culturas. Mas pode ser que isso dependa da natureza daquilo que é pensado: Palavras raramente entram no léxico popular trazendo seu dono com a mão firme na coleira. Mas, se observarmos bem nossa época, veremos que mais e mais catalogamos a origem de palavras já pensando em quem as disse pela primeira vez, não apenas onde e como elas surgiram.

Uma das coisas que podem ter influenciado esta posição em relação às ideias foi a concepção particular de história que herdamos dos gregos. A imortalidade, para eles, estava nos grandes feitos registrados na história. Nem todos os povos possuíam uma noção tão arraigada de acurada continuidade histórica. Não é difícil pensar que as histórias de grandes personalidades possam ser transmitidas por tradição oral em povos sem um código de escrita, mas, como Mauss nos mostra, existem grupos humanos em que você só passa à condição de pessoa ao assumir uma personalidade, uma espécie de “máscara”, que muitas vezes passa para frente através de gerações — é como se você assumisse a identidade dos seus antepassados, sendo aquela pessoa durante sua vida ou durante parte dela. Com essências tão interconectadas e inexatas é difícil imaginar que a posse de ideias seja valorizada: o que significa dizer que “João” teve uma ideia tal se João foi uma personalidade assumida por dezenas de seres humanos? Significa algo profundo e interessante, certamente, mas nada útil para um sistema social em que possuir ideias é fundamental.

E por que em nosso sistema social possuir ideias é algo interessante? Ora, lembremos do sistema de patentes, e o quanto ele se tornou importante nos países capitalistas. Uma ideia é uma fonte potencial de lucro; é preciso proteger uma ideia, tornar conhecido e oficial quem é seu dono. Mas há quem comece a repensar isso. Em um mundo colaborativo, alguém pode realmente ser considerado o dono de uma ideia? Para que uma ideia surja, uma série de relações sociais é necessária; um sem-número de pessoas e conceitos prévios, inspirações acidentais ou propositais. É assim que o conhecimento humano é construído: passo a passo, tijolo a tijolo. Ser dono de uma ideia seria algo absurdo.

Mas, por enquanto, uma antiga cosmologia, a moderna economia e o direito contemporâneo influenciam, de maneira profunda, o modo como pensamos. Do jeito como lidamos com nossa imagem perante o mundo, ter e manter ideias é essencial. Para nós, nem ideia de bêbado fica sem dono.

A verdadeira questão quanto ao aborto

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Há dois problemas distintos quanto ao aborto: a prática em si, ou seja, a decisão da mulher grávida de não ter mais um bebê, e a legalização do aborto, ou seja, as políticas públicas voltadas para as práticas de aborto. É possível dizer que o mesmo ocorre quanto à polêmica das drogas leves: uma coisa é consumi-las, outra é o que o governo faz em relação ao consumo.

Tenho minhas opiniões pessoais quanto a essas duas faces do aborto. A maioria das pessoas transfere a resposta de um problema para o outro: se são contra o aborto e, são contra a legalização dele. Se são a favor, também costumam ser a favor de sua legalização. É possível tomar caminhos mistos: ser favorável ao aborto, mas não a sua legalização, ou ser desfavorável ao aborto enquanto decisão pessoal, mas pensando que não o governo não deveria coibi-lo. Enquanto sociólogo, me interesso pela verdadeira e única questão social quanto ao aborto, uma questão que estes estranhos caminhos mistos silenciosamente nos revelam.

Atualmente é certo para nós que o governo nunca deveria interferir na vida de um casal, mas até recentemente o adultério ainda era crime. A sociedade como um todo mudou de ideia: traição não é algo que o grupo deve levar em conta; isso é problema dos indivíduos, tidos isoladamente.

Qual é a linha, então, que divide os problemas individuais dos públicos? Qual é o critério? Se não lavo as mãos, fico mais vulnerável a doenças respiratórias, mas isso é problema meu; no entanto, o governo se sente no dever de tratar isso como uma questão de saúde pública, interferindo nos hábitos dos cidadãos. Uma questão antes colocada como individual, agora é tratada como pública.

Não estou dizendo que isso é arbitrário ou aleatório: realidades sociais diferentes geram razões diferentes para que diferentes decisões culturais sejam tomadas. Há argumentos para que um assunto seja ou levado aos cuidados públicos ou mantido fechado dentro de uma residência. Se apenas um indivíduo deixa de tomar as precauções devidas contra gripes fortes, vulnerabiliza todo um grupo de pessoas. É justamente por haver argumentos que há debate.

A verdadeira questão quanto ao aborto, que junta suas duas facetas em uma única moeda, é: a quem cabe determinar o aborto? Quem tem o direito de decidir sobre ele? O indivíduo ou a sociedade, esta corporificada no governo? Por quê? Qual é o critério?

O critério, aliás, é outro elemento importante desses cabos-de-guerra em que se puxa o pensamento mais para o lado privado ou mais para o público. Isso porque, ao transportar a opinião que se tem quanto ao aborto para a opinião quanto às políticas públicas sobre o aborto, o que se está fazendo é tentando tratar de maneira moralista algo que não tem nada a ver com moralidade – ou seja, “abortar é errado, então é claro que o governo não deveria permitir que isso aconteça”. Ora, o governo deve adotar outra perspectiva; deve fazer o que é melhor para a população, seja lá o que isso for. Quem quer que use a moralidade como justificativa para a proibição do aborto não está de fato justificando a proibição. Está, contudo, mesmo que inconscientemente, respondendo à questão implícita: isso é da conta do governo? Deveria ele – deveria a sociedade – intervir quando o assunto é aborto?

A linha que separa o público do privado e como ela está sendo flexibilizada neste exato momento por uma grande variedade de movimentos sociais é de extremo interesse para os cientistas sociais. Aqueles que estudam discursos, por exemplo, procuram entender como diferentes grupos sociais se envolvem nestes debates, e por quê se envolvem em primeiro lugar. Cientistas políticos querem entender melhor a relação entre a sociedade civil e as instituições de política, justiça e aplicação da lei. Destrinchamos o aborto, mas poderíamos ter igualmente discutido a legalização da maconha, a proibição do cigarro ou mesmo a intervenção nova-iorquina sobre os refrigerantes de que há algum tempo falei aqui no jornal. Todos esses debates estão em nossas cabeças, e são nossas cabeças que irão legitimar o espaço que julgamos ser o adequado para a linha entre público e privado. O papel dos cientistas sociais é, ao compreender melhor a cabeça de todo mundo, levar esse conhecimento a cada cabeça para que todas elas, juntas, possam pensar melhor que cabeças separadas.

A tradição francesa

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

A França é um país que forma com o Brasil interessantes laços e conexões. Fazemos piada com o povo francês, que, dizem por aí, não toma tantos banhos quanto deveriam. Por outro lado, muito da maneira como pensamos foi influenciado por pensadores e cientistas franceses.

Embora para a política a influência francesa tenha começado com personagens como Montesquieu e Rousseau, para a sociologia tudo começou mais tarde, com Comte – que, inclusive, intentou a palavra sociologia. Comte propôs um tipo de filosofia chamada “positivismo”. Os positivistas viveram uma época de euforia científica e tecnológica, e meio que exageraram na dose: para eles a ciência seria capaz de, com o tempo, resolver todo e qualquer problema humano – inclusive a moral, as relações entre as pessoas, etc. Parece meio bobo hoje em dia, mas não se engane quanto ao alcance dessas ideias: a frase estampada na bandeira do Brasil é o lema desta filosofia, que através da ordem busca o progresso: progresso rumo a um estágio em que tudo de errado e ruim será conquistado pela ciência e tudo será bom.

Para Comte a sociologia seria a ciência responsável por entender como deve funcionar a sociedade perfeita. Foram-se os anéis, ficam os dedos: Durkheim, sucessor de Comte, não pensava exatamente em descobrir a sociedade perfeita, mas enxergava a sociedade (todos os tipos de sociedade) como um organismo perfeito, em que cada pessoa e cada instituição funcionaria como uma célula, um órgão, um tecido: todos juntos trabalhando para manter o “corpo” funcionando. Se a sociedade vai mal, é porque há uma doença: alguma coisa está errada com alguém.

Durkheim continuou o trabalho de Comte, e embora possa ser assim, “de leve”, considerado como um positivista, é melhor descrito como um funcionalista. Mauss, seu aprendiz e continuador, expandiu os horizontes desse funcionalismo ao levar à sociologia para o debate com outros campos. Mauss queria entender o ser humano a partir de três perspectivas: fisiológica, sociológica e psicológica.

Mauss era um homem à frente de seu tempo; certamente excepcional. Causou furor o próximo na linhagem francesa de pensadores que abalaram a sociologia e a antropologia: Lévi-Strauss. Esse antropólogo (que inclusive lecionou no Brasil e fez diversos trabalhos de campo aqui) propôs uma teoria conhecida como estruturalismo. Tão em baixa quanto o positivismo hoje em dia, ela propõe que, na maneira como pensam, todos os homens são iguais. Pode parecer atestar o óbvio, mas na época a questão da superioridade de algumas sociedades sobre outras era bem forte.

Lévi-Strauss não se preocupava muito com a experiência sensível; aquilo que podemos ver, sentir, ouvir. Ele é um pensador das estruturas (daí vem o nome, estruturalismo), porque ele aproveita todos os fatos já conhecidos sobre as sociedades humanas para procurar o que há de igual entre elas. É nessa igualdade que ele busca a ideia de humanidade.

Quem vem para atacar Lévi-Strauss com força é um personagem do qual já falei em outra coluna: Pierre Bourdieu, sociólogo que se pergunta como é possível pensar nas estruturas sem pensar naquilo que as constrói. Afinal de contas, é muito cômodo pensar que os homens são de um jeito porque esse é o jeito deles e pronto – além disso, ignorar as gigantescas diferenças entre os diversos grupos humanos, vendo neles apenas detalhes cosméticos sem maior importância, é justamente perder a riqueza cultural que a humanidade veio a criar. Não existe apenas uma estrutura humana, e sim muitas estruturas, que cada sociedade vai desenvolvendo a partir de um fino equilíbrio entre prática e convenção inconsciente.

Existem outros pensadores importantes na tradição francesa, embora nem todos sejam diretamente importantes para a sociologia ou gostem dela – afinal, que dizer de Foucault, gênio da percepção sobre nossa sociedade, que considerava-se um filósofo e a sociologia, uma ciência menor? Sartre e Derrida são outros dois bons nomes para investigar. De qualquer maneira, a sociologia francesa tem um grande impacto sobre a brasileira; mais marcante, duradouro e singular que perfume francês.

A (variada) liberdade

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

O que significa ser livre? Em geral, fala-se nos movimentos, nas decisões, na vontade: fazer o que dá na telha, sem que ninguém ou nada impeça. Sem interferência.

Esse ideal de liberdade fica em cima de um muro que divide o “eu” do “resto do mundo”. Quanto mais o mundo me pressiona, menos eu sou livre. Para que eu seja livre eu tenho que ampliar as minhas possibilidades, a minha “liberdade de escolha”. Mas esse conceito de liberdade vai ainda mas fundo: ele divide a nós mesmos. Nós somos vistos como um amontoado de partes: nossos sentimentos, nossas razões, nossa força de vontade… Mas perceba que o uso do possessivo “nossos” já pressupõe que alguém possui essas coisas. Quem é esse verdadeiro “eu”? Os desejos fisiológicos e impulsos emocionais? Ou nossos pensamentos, nossa razão? Quando o que sentimos atravessa a frente dos nossos planos, temos que nos libertar do controle dos nossos impulsos ou chutar a razão de lado?

Esse conceito de liberdade, que considera o indivíduo em relação a si mesmo e todo o resto do mundo, foi duramente criticado por Hannah Arendt. Para ela, essa ideia de liberdade surgiu a partir de um ponto de vista filosófico. Na Roma e na Grécia antigas, a liberdade não era um problema da filosofia. Era um problema da política. Uma pessoa só era livre em uma situação especial: quando estava discutindo o futuro da cidade junto às outras. Não é que alguém era mais livre em Atenas quando conseguia ter mais possibilidades de ação que os outros. Alguém só era livre quando participava da construção e da manutenção da sociedade, junto com todos, dentro da interferência de todos. Mais ou menos o que está em pauta quando (nas raras vezes que) ouvimos alguém dizer que só é livre de verdade quem vota. O voto, na nossa sociedade, é a maneira legal e reconhecida de participar dessa construção pública da vida.

Essa ideia foi criticada duramente por Isaiah Berlin em um clássico ensaio chamado “Dois conceitos de liberdade”. Ele chama a ideia de liberdade dos gregos antigos, que Arendt muito admira e defende, de conceito “positivo” — não porque ele é bom, mas sim porque exige do indivíduo certas condições para considerá-lo livre, isto é, exige uma presença de algo. Trocando em miúdos, é preciso ser alguma coisa e fazer alguma coisa específica para ser livre. Tudo que é preciso é pensar no ser humano como tendo uma natureza pronta e definida, e logo se tem um conceito positivo de liberdade.

Isso lembra os discursos da modernidade, para os quais chama atenção Foucault: ser um ser humano é ser saudável, é não ter vícios, é ser eficiente. Ações educadoras e punitivas de toda sorte visam libertar alguém de maus hábitos higiênicos, alimentares ou comportamentais; são restritivas, mas são vistas como cavaleiros da liberdade porque esses hábitos estariam impedindo a pessoa de ser aquilo que ela deve ser, ou seja, de atingir seu máximo potencial como ser humano.

A outra ideia de liberdade (a negativa) se relaciona com o que dissemos antes sobre a não-interferência. Isso é especialmente importante para Berlin, um pensador político pluralista, ou seja, que acredita que não existe apenas uma finalidade para a vida humana — que os homens não precisam todos escolher ser a mesma coisa, ter o mesmo “molde”. Estilos de vida diferentes precisam de uma ideia de liberdade que reconheça que ser livre é poder ser diferente.

Mas isso não é tudo. Há também o conceito republicano de liberdade. Para explicá-la, convém uma parábola: suponha que você seja um escravo. Seu dono, no entanto, é muito bom com você. Deixa você fazer o que quiser, e não exige nada de você, nem mesmo trabalho. Te dá até mesmo dinheiro para que você não precise trabalhar para mais ninguém. Você pode fazer o que quiser. A pergunta é: Você pode se considerar livre? Se disser que sim, está entendendo a liberdade a partir do conceito negativo. Mas se você acha que não, está pensando num conceito republicano: sua liberdade, nesse cenário, depende da “boa-vontade” de alguém. Tente discordar de seu dono e ele terá todo o direito reconhecido e instituído de te prender numa cela para o resto da vida se assim ele desejar. Para os republicanos, a liberdade é um status mais do que (ou antes que) a quantidade de possibilidades.

Esse debate todo, contudo, é bem recente. Há muito espaço para discussão e ideias novas sobre este ideal tão distinto que é a liberdade. Variada, multi-facetada e mutante liberdade.

A intervenção sociológica

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Há algumas semanas o prefeito de Nova York propôs uma nova lei municipal que visa proibir restaurantes e bares de vender refrigerantes em copos maiores que os de meio litro. A indústria de fast-food reagiu rapidamente, montando uma foto em que o prefeito está vestido como uma babá. Enquanto eles reclamam que a lei vai limitar a liberdade dos consumidores, muitos aplaudem a medida, que sentem como urgente para melhor a saúde pública. Nos EUA a obesidade é um problema cada vez mais sério. O comissário de saúde de Nova York, Thomas Farley, pensa ser possível salvar cerca de 500 vidas por ano ao reduzir o número de pessoas obesas na cidade em 10%.

Uma das mais interessantes defesas dessa lei, no entanto, é encontrada na coluna “Evolution’s Sweet Tooth”, publicada no New York Times por Daniel Lieberman, professor de biologia de Harvard. O artigo pode ser lido, no original em inglês, no endereço http://tinyurl.com/artigonyt.

A obesidade é causada por um desequilíbrio entre a energia que ingerimos e a que gastamos. Uma das melhores formas de ingerir energia, e então armazená-la (na forma de gordura) caso não a usemos, é o açúcar. Humanos evoluíram para desejar açúcar, que sempre foi escasso na dieta humana. O argumento de Lieberman é que agora nós vivemos em uma época com açúcar barato e em grande quantidade, mas nossos corpos desejam o açúcar da mesma maneira que antigamente.

Ao estudar as alternativas – que seriam fazer nada, ou educar o povo, ou coagir o povo – Lieberman se posiciona ao lado da última, que parece ser o que o governo nova-iorquino está tentando fazer. Seu argumento é sólido, mas precisa de ressalvas que a sociologia pode e deve fornecer. É interessante ouvi-lo dizer que, enquanto humanos, evoluímos para cooperar e ajudar uns aos outros a sobreviver e triunfar. Mas é amedrontador ouvi-lo dizer que evoluímos para precisar de coerção.

Ao tratar de um assunto eminentemente social como um assunto puramente biológico o colunista norte-americano nos apresenta o ser humano como um vampiro de açúcar que precisaria ser repelido com o “alho” da lei. A educação não funcionaria bem pela mesma razão de que não adiantaria tentar educar vampiros a não beber sangue. Está na natureza deles serem assassinos; na nossa, sermos preguiçosos.

Essa visão engendra vários perigos. Qualquer visão sobre o comportamento humano que explique nossas atitudes unicamente através de alguma espécie de essência imutável pode nos levar a uma situação em que discriminemos pessoas a partir dessa concepção pré-suposta. Que digam todos os grupos minoritários de nossa sociedade que sofreram e sofrem com preconceito. Com um pouco de exercício de linguagem, logo poderíamos considerar que os gordos foram erros do processo evolutivo: seres que não conseguem controlar a ânsia por açúcar. Obesos seriam, portanto, aberrações.

Em segundo lugar, isso mascara o real contexto da obesidade, que é muito mais complexo. Temos uma dieta desbalanceada por causa de nosso próprio modo de vida e produção. O stress engana o corpo: faz pensar que precisamos de energia – uma das razões pelas quais muitas pessoas comem mais quando ficam ansiosas. Criamos tecnologias que tornam mais prático consumir o lixo industrial que são os refrigerantes do que comidas e bebidas saudáveis. Temos menos tempo e oportunidades razoáveis para nos exercitarmos. Vivemos de uma forma a consumir mais açúcar; não somos de uma forma tal que consumiremos sempre quanto açúcar pudermos. Isso sem falar de educação, a simbologia das refeições (acontecimentos sociais por excelência) e todo tipo de costume que poderia vir a restringir culturalmente o consumo de açúcar.

Em terceiro lugar, o que mais preocupa é o adágio final da coluna. Não evoluímos para sermos coagidos. Vivemos em uma sociedade em que é muito lucrativo forçar (na prática) milhares de pessoas a hábitos alimentares prejudiciais, sociedade que é largamente ignorante disso. Nós evoluímos sim para cooperar uns com os outros. Não para competirmos desmedidamente, prejudicando a saúde de tantos no processo. A luta contra a obesidade é a luta contra todo um modelo de sociedade. De outra forma, será uma luta eternamente fadada à incompletude.

Assim ou assado

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Nós costumamos pensar bastante na nossa “natureza”. Qual é a natureza humana, afinal? Somos bons? Somos maus? Nenhum dos dois, algo entre eles, os dois ao mesmo tempo?

Mesmo tratando desse assunto indiretamente, cada um dos “fundadores” da sociologia tinha como fundamento alguma noção de natureza humana quando pensou em entender a sociedade. Durkheim via a todos nós como peças de um mecanismo, órgãos de um corpo: partes de um todo construídos de acordo com a nossa participação na sociedade, moldados pelas pressões da cultura, da moral, dos hábitos incucados. Weber, por outro lado, punha maior ênfase na capacidade que o ser humano tem de dar significado àquilo que faz. Marx falava de como o fato de que nós modificamos a natureza – através do trabalho – e como nos socializamos diz algo sobre nós.

Os teóricos clássicos da filosofia política, no entanto, voltaram-se para a questão de maneira mais obcecada. Hobbes supôs um mundo mecânico, de causa e efeito, em que os homens só pensam no próprio interesse e, se deixados sem um comando autoritário (cujo único direito a não possuir é o de tirar a vida de alguém), matariam uns aos outros em uma guerra de todos contra todos. Locke, floreando o pessimismo, pensou que o homem não era exatamente tão ruim, mas que mesmo assim a vida “antes” da sociedade traria inconvenientes. Para proteger a própria vida, a propriedade e a liberdade, os homens se reuniriam sob um contrato (assim como em Hobbes, mas um contrato diferente). Rousseau pensou também num contrato: um contrato, no entanto, que libertasse os homens, fazendo uso da política – que não é exatamente o ideal, mas o ideal já não seria mais alcançável uma vez que os homens se “perverteram” em relação ao estado de natureza de outrora.

Há grandes problemas com essas concepções de natureza humana. Elas supõem um “estado de natureza” que não existe no sentido pessoal (quando somos bebês não vivemos sem ligações com outras pessoas) e tampouco no sentido histórico, já que as sociedades humanas nunca foram “inventadas”. O homem sempre viveu em sociedades, das pequenas às grandes, e não existe um “verdadeiro eu” que se revelaria se nós não vivêssemos juntos a outras pessoas. As características que esses pensadores viam nos homens da época – e que também nós vemos nos nossos – são produtos de um longo processo histórico. A ideia de que somos indivíduos independentes e separados, lutando uns contra os outros devido à nossa natureza, é um subproduto do capitalismo (sobretudo industrial), que transformava selvagemente as sociedades à medida que se alastrava pela Europa após o fim da Idade Média. Foucault desenvolve ideia semelhante, embora sua explicação para o surgimento da ideia de “indivíduo” seja um tanto mais elaborada.

Quem mais tem a contribuir para a questão é a antropologia. Os pensadores políticos tomaram europeus como modelos únicos de seres humanos, igualando as duas coisas. Mas a verdade é que, ao percorrer os cantos do mundo e encontrar povos completamente diferentes, é difícil acreditar em algumas dessas frases feitas sobre o que é ser humano – o que é ser homem, mulher, jovem, idoso, branco, negro, heterossexual, homossexual. Cada um desses estatutos (e instituições, como família, propriedade, religião) é trabalhado de maneira tão diferente por cada povo que nada resiste: das bases de nosso entendimento sobre o mundo (com o perspectivismo ameríndio nos mostrando como nem todos os povos veem as ideias de “natureza” e “cultura” do mesmo jeito) às prescrições políticas (como Pierre Clastres expõe ao contar a história das sociedades não apenas sem, mas contra a autoridade centralizada, no estilo de nosso Estado, de nossos governos).

É por essas e outras que Bourdieu é o sociólogo mais citado (e segundo intelectual francês mais citado) no mundo. Ele desenvolveu a teoria do habitus, em que aquilo que somos é na verdade uma ponte entre nossa liberdade de agir e a estrutura da sociedade, que nos conforma à realidade social. Jogando a natureza humana pela janela, Bourdieu de certa forma nos faz olhar para aquilo que estamos, ao invés daquilo que somos. Se não traz respostas definitivas, parece ser – face a tudo que já vimos nesse mundo – a forma mais honesta de indagar, afinal, quem somos nós.

A expressão artística

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

A arte é uma parte importantíssima de nossas vidas. Existem vários tipos de arte, em vários meios e formas físicas, para vários tipos de público. Muitos convivem diariamente com músicas, fotos, peças publicitárias, eventualmente filmes, seriados e novelas – dependendo do lugar por onde passam, também artes plásticas na forma de esculturas e monumentos.

Mas quais são as relações entre arte e sociedade? Afinal, o que é arte? Toda e qualquer forma de expressão – de pichações a rabiscos nos cadernos de amigos – é arte? Ou há limites e contextos específicos? Será que essa palavra faz sentido para outras culturas, ou mesmo outras épocas de nossa própria sociedade?

A maneira clássica de analisar a arte por um ponto de vista sociológico é (mesmo que essa palavra não tenha sido usada desde cedo na sociologia) fazer uma “análise de discurso”. Isso significa analisar, a partir do conteúdo e da forma, o que uma obra de arte tem a dizer sobre uma sociedade. Na época em que a visão de mundo da Igreja Católica começava a ser questionada, os artistas escreviam e pintavam sobre a luta entre o sagrado e o profano. Quando Hitler tomou o poder na Alemanha, os filmes produzidos pelo governo continham nas entrelinhas (ou às vezes explicitamente) uma grande mensagem a ser passada – uma mensagem tão política quanto aquela presente nos filmes de Charlie Chaplin. Se hoje nossos filmes retratam como fundamental a preocupação com o meio-ambiente, isso certamente reflete aquilo que somos – no sentido de falar sobre os dilemas que enfrentamos – e a direção para onde queremos ir.

Mais do que mero reflexo de quem somos, contudo, a arte e a produção artística podem também influenciar quem nos tornamos. Essa é a perspectiva dos sociólogos alemães Adorno, Horkheimer e Benjamin, que estudaram a arte e o modo como ela nos transforma. Benjamin, por exemplo, é famoso por explicar como a nossa produção artística difere da de antigamente: hoje podemos reproduzir tecnicamente (copiar mecanicamente ao invés de manualmente) obras de arte, de forma que se perde aquilo que ele chamou de “aura”, que é toda a história particular de uma obra de arte e que diferencia a “original” das meras “cópias”. Em um mundo de mp3s compartilhados, copiados e colados, a música perde sua essência única e longínqua, e se torna algo próximo de nós, a um botão de distância.

Adorno, por outro lado, pensa que a arte faz mais do que nos dizer algo sobre a sociedade: a arte com a qual interagimos estrutura o nosso pensamento. Nesse sentido, a obra de arte contemporânea (filmes e televisão, principalmente), na forma como é produzida e consumida, faz principalmente duas coisas: esquematiza o mundo para nós ao invés de nos fornecer material para fazê-lo e, em segundo lugar, nos acostuma com o modo capitalista de produzir, viver e consumir, transformando-o em uma segunda natureza.

A obra de arte viria a ter esse efeito não tanto pelo conteúdo, mas pela forma. Adorno verifica que a produção artística em geral dava origem a obras de arte extremamente similares – e que são similares por um motivo; aqueles que têm poder econômico para controlar a produção de arte manobram para que a arte produzida exista dentro de certos moldes que muito lhes interessam. Nas histórias ficcionais há sempre uma dicotomia maniqueísta – o bem absoluto contra o mal absoluto – e as sequências de acontecimentos são previsíveis, transformando o clichê em hábito irrepreensível. Não é verdade que podemos encontrar na esmagadora maioria das músicas populares o padrão “estrofe – refrão – estrofe – refrão – ponte – refrão – refrão”?

Não é a totalidade dos sociólogos, entretanto, que pensam que a Indústria Cultural tem como consequência inescapável a homogeneização de todos. Viviana Zelizer é uma socióloga que acredita que os mercados são constantemente moldados por sistemas de significados atribuídos, ou seja, os produtos e símbolos culturais sempre se diferenciam ao cair nas mãos de pessoas – pois é isso que fazemos, afinal. Criamos e nos expressamos – em suma, transformamos.