Aproxima-se a eleição e aumenta-se a quantidade de postagens de teor político compartilhadas na rede. Alguma delas, no entanto, são recicladas de quando em quando; embora já declare antecipadamente de que modo algum isso signifique algum apoio meu ao PT, Lula, Dilma ou o que seja, é interessante responder essa velha tirada dos compartilhamentos em mídias sociais:
Por que para ser funcionário público é preciso segundo grau completo e para ser político, não?
A força retórica dessa pergunta é profunda. A pessoa que a lê tem a impressão de que, ao não levantar a barreira da educação formal, nosso país permite que incompetentes tomem conta do poder – e ao fazer a comparação com o funcionalismo público, sente-se uma espécie de dissonância cognitiva, uma falha, um bug no sistema que buga o nosso cérebro. Na verdade, a força da pergunta é tão grande que as pessoas sequer copiam e colam a pergunta no google. Afinal, ela ainda é uma pergunta, não é?
As respostas que o Google dá não parecem tão relacionadas a todos os termos-chave simultaneamente – mas um dos resultados (pelo menos para mim) é interessante: uma pergunta no Yahoo! Respostas há 8 anos em que alguém faz uma pergunta com basicamente a mesma estrutura, mas troca o “funcionário público” por “gari”. A maioria das respostas são reações apaixonadas e irrefletidas, mas algumas chegam, na verdade, perto do ponto nevrálgico do assunto.
A educação formal
Se você perguntasse aos políticos atualmente eleitos no Brasil o que é que o conteúdo da educação formal lhes ensinou de relevante e essencial para a profissão pública que eles exercem, a resposta provavelmente seria um envergonhado nada. Se conseguissem lembrar de algo de história, geografia, sociologia ou filosofia (se eles tiveram essas duas últimas à época, e mesmo assim elas não costumam abordar a política de forma tão incisiva enquanto matérias escolares) que lhes fora marginalmente útil, como o momento em que o professor explica a diferença entre capitalismo e socialismo ou o fato de que no Brasil temos uma população idosa crescente, essas são coisas que eles certamente tiveram a chance de aprender muito bem (e melhor) durante a militância e o envolvimento que levam à eleição ou, hoje em dia mais do que nunca, através de uma breve pesquisa no Google.
O fato é que, por qualquer ângulo que se veja a função do político eleito, ela muito pouco tem a ver com coisas que se aprendem na escola – não estou falando de professores politizados, ou de eleições para o grêmio estudantil; estou falando do conteúdo programático da escola. Alguém aprende a ser político na prática política. É preciso que fique claro: nenhum nível de educação formal vai transformar, sozinha, alguém em um governante hábil, assim como nenhuma falta de educação formal vai garantir, por si só, a incompetência de um governante.
As três tarefas
A simples afirmação anterior ainda precisa ser sustentada de forma mais convincente. Afinal, como disse um comediante no 9gag que eu realmente não lembro quem é, “não existe isso de ‘uma coisa levou à outra’, isso é pura preguiça! O seu trabalho como escritor é me mostrar como uma coisa levou à outra, não só colocar ‘uma coisa levou à outra’ no meio da história”. Ou mais ou menos isso.
A questão é que podemos resumir da seguinte forma as coisas que um político deve atualmente fazer:
- Representar uma faixa da população; idealmente, sua base eleitoral (que corroborou, portanto, seu programa de governo);
- Conduzir o governo de forma que o Estado aja respeitando a constituição;
Isso nos leva aos motivos pelos quais alguém costuma ser eleito, isto é, um esquema básico das coisas que as pessoas avaliam na hora de decidir o voto:
- Seu futuro: o que o candidato pretende fazer quando eleito (isto é, tem boas propostas);
- Seu passado: o que o candidato fez garante que ele cumprirá suas promessas ao menos em parte; e seus mandatos garantem que ele é capaz de lidar com crises, decisões emergenciais ou problemas que não faziam parte do horizonte de problemas com os quais ele acharia que teria que lidar uma vez que eleito (isto é, é um administrador bom o suficiente para levar a cabo as propostas);
Quando as pessoas clamam pela necessidade de um governante formalmente educado, isso soa lógico porque tem-se a impressão de que a educação formal prepara alguém para ser um bom administrador. O problema está em esquecer de um detalhe importante: ninguém governa sozinho. Não estou falando apenas do fato de que os parlamentares compõem câmaras, ou de que o prefeito de uma cidade tem que estar em sintonia com os prefeitos de outras cidades, com o governador, o presidente, etc; digo isso porque existem assessores.
Pode-se argumentar, é claro, que os assessores, ao invés de indicados pelo político, deveriam ter educação formal, até serem concursados. Schumpeter, um elitista com o qual tenho lá minhas rixas (acho que quase todo cientista político hoje em dia tem), já clamava pela necessidade de um funcionalismo público vigoroso, independente e bem formado que auxiliasse os políticos – e com isto concordo parcialmente, mas não desviemos o foco. Todo e qualquer trabalho técnico para o qual um político não esteja preparado pode ser pesquisado e processado por seus ajudantes de tal forma que ele, ao se informar do problema, consiga basear uma opinião para formular uma política pública, um voto, uma decisão.
A questão vai mais além e mais fundo: os assessores ainda podem formar raízes da árvore que seria, nessa analogia, o político, para buscar um diálogo mais amplo com a sociedade.
Isso nos leva a uma classificação que fiz escapar do resumo anterior das atribuições dos políticos. Eles devem representar a população, respeitando a constituição. Mas isso não é tudo. Em uma sociedade democrática (por mais múltiplos sentidos que essa palavra tenha conquistado), os parlamentares devem debater, negociar, persuadir e lutar por um programa de governo, especialmente aqueles pelos quais foram eleitos. Essa é a função dos políticos que se aprende na vida política e na consciência que é, devido ao nossos sistema educacional, dificilmente introduzida e estimulada pela escola em si. Repito: essa é uma função essencial da vida política, e uma que não se aprende no conteúdo curricular da nossa escola (e nem poderia, pela natureza própria de nosso sistema escolar). Temos, portanto, três funções dos políticos: uma que prescinde da escola enquanto instituição provedora de educação formal (posto que não educa para a função), e outras duas que, muito mais técnicas, podem ser desempenhadas por ajudantes do político.
Consequências
Isaiah Berlin, em seu ensaio clássico sobre os dois tipos de liberdade, disse que quando os “fins” da política estão decididos de antemão, só o que sobra pra ser discutido são os meios.
Quando as pessoas falam da necessidade de ter educação formal para ser político, é claro que muitos apenas acham que isso seria benéfico – e de fato pode ser, e isso não disputo. É preferível, realmente, que o nível de erudição de um político seja alto, e quanto mais alto, melhor. Mas o contato com a realidade de sua base eleitoral é importante também: o não “descolar-se da vida prática” de um Platão (aquele babaca) ou dos pensadores que vieram antes da Revolução Francesa, como julgava Tocqueville. O saber conduzir o debate, entendendo na pele o jogo de forças que compõe a sociedade e as possibilidades reais de melhoria do nível de vida, é essencial — mas a erudição e o conhecimento, que, repito, não necessariamente vêm da educação formal, ajudam na conceitualização dessas ideias, na formação de um político com menos preconceito e mais consciência, com uma visão de mundo mais ampla e um sentido de justiça mais aprimorado.
O que argumento é que alçar a educação formal a nível de exigência demonstra, especialmente quando vamos fundo na argumentação de quem o faz, a disposição de colocar o político no pedestal do administrador, do bom burocrata, de mero tecnocrata. Se isso não estava claro quando a comparação era com os garis, fica explícito quando, na versão ressuscitada da crítica velada a Lula, a comparação é com os funcionários públicos.
Políticos são funcionários públicos, mas não “funcionam” da mesma forma. Eles não têm que realizar tarefas definidas, rotineiras, fora de qualquer debate no momento de sua execução, que são de importância sistemática para a “máquina” governamental. Funcionários públicos, e falo isso da maneira mais positiva possível, não me entendam errado, são as engrenagens da máquina: com a educação formal necessária recebem o óleo que precisam para mantê-la girando. Mas se ela deve girar para que o governo seja uma Ferrari e não um Fusca mal cuidado, não devemos esquecer que ainda é preciso pôr a mão no volante e decidir pra onde esse carro metafórico vai.
Entender essa “função” (que é, por que não, essência) da política é entender que reduzir politica a burocracia é perigoso. Não, políticos não devem ser bons burocratas. Devem ser algo a mais: pessoas em busca da implementação de programas que vão melhorar a vida das pessoas. Se tudo o que é preciso para um governante é fazer o carro andar — se nós nos deixamos levar por esse pensamento – então não vamos nos preocupar com a direção que o país toma e vamos esvaziar o debate político. Em tempos de eleições com candidatos grandes já bem esvaziados, isso é perigoso. Além de, sinceramente, entediante.
Se o argumento passa para o lado das propostas e argumenta-se que um candidato deve ter sim educação formal justamente para poder formular boas propostas, deve-se evitar ainda outro perigo: o de que o político não dialoga com a sociedade, nem com outras forças contrárias. A Maria da Padaria pode, a partir de sua convivência com sua comunidade e seu espírito cívico, candidatar-se a vereadora com ideias na cabeça mesmo sem ter segundo grau completo: não só é preciso que os eleitores sofistiquem-se politicamente para saber distinguir as propostas ruins das boas, as impossíveis das possíveis (vendo que as da Maria são das boas), como também acompanhem os debates dentro do mandato dela, que a fiscalizem, e que organizem-se enquanto sociedade civil em grupos de pressão que colaborem com os debates políticos que lhes interessem. Em suma, ao querer uma política pujante, a pessoa que clama pela necessidade da educação formal dos políticos deveria antes interessar-se pelo filtro que não deixaria, caso melhor educado, políticos ruins passarem: a educação política do povo (que inclui também uma revisão da palhaçada que são a educação formal e a mídia de massa brasileira, entre outras propostas de cunho civil que reestruturariam o espaço para uma vida com mais valores democráticos).
Há uma última coisa a se considerar. Num país desigual como o Brasil, é importante notar que esse discurso pode ser, antes de simplesmente tecnocrático, elitista: exigir a educação formal para a vida política significa excluir uma parte da população da vida pública já de antemão. Inserir essa barreira artificial (não é a educação, veja bem, mas a educação formal; não a capacidade constatável no dar-a-cara-ao-tapa do debate, mas o diploma) impediria, a curto e a médio prazo, a participação de uma série de pessoas da política que de outra forma participariam, e participariam bem.
Torçamos para que a melhoria da educação no Brasil se concretize de tal forma que não precisemos discutir esse tipo de coisa — mas caso o ensino fundamental e médio torne-se uma realidade para todos, que não se inicie, por favor, uma discussão sobre a necessidade de ter ensino superior para ser eleito.