O filme “Idiocracy” é fantástico: a premissa é que, como cada vez mais as pessoas inteligentes têm menos filhos, no futuro o QI médio da humanidade vai cair tanto que todos vão ser idiotas completos. Ponha no meio disso um soldado americano (o mais “medíocre” que o exército conseguiu achar) e uma prostituta (tiveram que apelar para a iniciativa privada, no caso da mulher), que serviram como cobaias num experimento de criogenia. Quando eles acordam, 500 anos depois de serem congelados, a Terra está um desastre porque eles não conseguem fazer nada direito.
O caso é que fui ver esse filme depois que ele me foi indicado no contexto de uma discussão em que o argumento de quem o indicou era o de que, caso a realidade que Huxley previu em Admirável Mundo Novo fosse verdadeira, a culpa seria nossa. Nesse sentido, nós não damos valor ao estudo, à educação, à inteligência, e vamos pagar o preço por isso. Não consigo deixar de perceber um certo tom, nessa acusação – posso estar errado, mas sabe quando você fica coçando o queixo com aquela incomodação na cabeça? – de uma visão individualista, de sociedade atomizada, em que quando se diz que a culpa é nossa o que se quer dizer é “a culpa é minha, e a culpa é sua, e a gramática transforma isso em nossa”. O que se defende é transferir a culpa de um “ser” “outro” que não controlamos (porque assim é muito fácil reclamar, de fato) para nós, relacionar as nossas ações com suas devidas consequências e repercussões sociais. Isso é ótimo, e necessário, para não falarmos sempre de um fantasma abstrato – o duro “sistema” – sem revisarmos nosso próprio umbigo.
Só que uma revisão de umbigos por si só nunca é o suficiente, esta é a questão. Especialmente por causa 1) do alcance das nossas ações individuais; e 2) do fato de que elas não existem no vácuo, mas dentro de uma cultura, de expectativas e percepções sobre o funcionamento da sociedade. Sociedade que, pra ser o advogado do diabo durkheimiano, precisa ser construída por nós para que, quando “pré-existir” às crianças do futuro, seja uma boa influência para elas nessa coisa de valorizar a inteligência, etc.
Quando se diz, por exemplo, que o racismo é uma instituição e não um sentimento ou forma de pensar, o que se quer dizer é que se conseguirmos fazer todo mundo deixar de pensar (e sentir, o que é muito importante) de forma racista, não vai adiantar nada se a maioria da população negra mora nas favelas (ou na ordem contrária de palavras); não vai mudar muita coisa se as profissões de prestígio e os cargos de chefia são em sua maioria dos brancos e os negros sempre são os serventes, os faxineiros, os invisíveis que fazem o espetáculo acontecer para quem tem dinheiro para entrar no teatro da vida contemporânea. Isso porque a mudança dessas condições requer uma revisão de umbigos, mas a revisão de umbigos precisa levar ao próximo passo: quando os umbigos se encontram (não muito perto, que aí já é outra coisa) para combinar esforços e agir politicamente. Tomar providências para alterar uma situação que, quando injusta, não é uma coincidência posto que existem raízes históricas para ela (não adianta dizer que hoje não existe racismo [embora ele exista sim], importa é que ainda hoje se sentem os efeitos de sua preponderância absoluta no passado). Da mesma forma o passo de rever a individualidade não é o passo completo – até porque ela depende também de um fator cultural.
Marshal Sahlins, em seu belíssimo “A ilusão ocidental da natureza humana“, diz que a ideia de natureza humana no imaginário social corresponde, sutilmente, a um “cenário imaginado de adultos masculinos ativos, excluindo mulheres, crianças e idosos”. Quero focar aqui numa parte fundamental da frase: crianças. Essas decisões que fazemos são feitas em relação a um referencial. Em um maravilhoso vídeo da RSA Animate sobre educação, há uma parte que nota a disjunção atual, em muitas partes do mundo, entre educação acadêmica e um mínimo sucesso na vida – o que faz com que, é claro, mais pessoas busquem primeiro a segurança, e depois o sucesso, sem necessariamente passar por um processo em que adquira coisas como consciência política e social, conhecimentos especializados sobre sua área de atuação, ou coisas como o hábito de leitura, que podem tornar nosso raciocínio mais arguto. Deveriam fazê-lo? Há milhões de formas de argumentar que sim – mas dadas as circunstâncias e nosso ambiente cultural, não fazê-lo não é uma escolha perfeitamente racional? Porque ela é, sim.
Então a questão é que, embora essa possa não ter sido a opinião de quem me indicou o filme, há quem vá interpretar essa ideia como uma questão de consciência “que vai de cada um”: não adianta ficar “enchendo o saco” por causa da falta de protagonismo feminino em Hollywood; não adianta reclamar do tipo de entretenimento que é exibido nas concessões públicas de TV (como BBB – eu tinha um link pra colocar aqui mas o site saiu do ar – ou Malhação, que faz poucos dias vi, numa televisão ligada a esmo por aí, glorificar um beijo à força com música fofinha), e por aí vai; tudo cai na conta da liberdade absoluta de cada agente do campo social fazer o que quiser e dane-se, você que tem que deixar de ver essas coisas. Educação e entretenimento não estão separadas. As pessoas gostam de achar que são porque associam educação à escola, mas as crianças aprendem a agir em sociedade, ou seja, a se tornarem proficientes em viver em meio às pessoas ‘ao redor’ dela, os modelos de humanidade que lhe aparecem como reais e positivos, a cada minuto de suas vidas – e todas as horas que elas passam vendo televisão não são jogadas no lixo, mas são significadas e codificadas de uma maneira muito sutil, mas essencial.
Considero que a ação política, a ação social, a ação que vai além de simplesmente ser um “indivíduo melhor”, resistindo a qualquer “cultura de idiotização”, é a única resposta possível para reverter um quadro desse tipo e evitar uma “Idiocracia”. De um jeito ou de outro, assistam ao filme, que é engraçadíssimo.