Piotr Kropotkin: bem-estar para todos e todas, por Ruth Kinna

Este artigo, cujo título original em inglês é “Peter Kropotkin: well-being for all”, foi publicado pela primeira vez em português, pois Ruth Kinna o escreveu para esta edição especial da revista sobre Kropotkin, e eu fiquei responsável por traduzi-lo.

Ruth Kinna é professora de teoria política na Loughborough University, editora do jornal Anarchist Studies [Estudos Anarquistas] desde 2007, e autora de vários livros sobre anarquismo e anarquistas, incluindo: Anarchism: A Beginner’s Guide [Anarquismo: Guia para Iniciantes] (2009), Kropotkin: Reviewing the Classical Anarchist Tradition [Kropotkin: Revisando o Anarquismo Clássico] (2017), e The Government of No One [O Governo de Ninguém] (2019).

Piotr Kropotkin é mais conhecido por seu conceito de apoio mútuo e sua defesa do anarcocomunismo. No primeiro caso, ele é geralmente apresentado como cientista, naturalista e/ou filósofo da ética; o anarquista que “provou”, no fim do século XIX, que a natureza se ordena por hábitos de cooperação instintivos e ambientalmente condicionados, em vez de se resumir a “dentes e garras sangrentas”, como diziam darwinistas sociais. No segundo, Kropotkin aparece como um teórico da política, um estrategista; líder do trio completado por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, que convenceu o Congresso de 1880 da Federação de Jura a fazer do comunismo seu objetivo revolucionário.

É raro que alguém ligue os dois pontos da obra de Kropotkin e, no entanto, eles são igualmente essenciais para o que ele chamava de “bem-estar para todos e todas”. Esse conceito, mero rascunho em seus textos, destaca tanto sua abordagem econômica holística quanto sua crença no poder transformador das ideias.

Apoio mútuo e comunismo

Hoje, tanto o apoio mútuo quanto o comunismo são comuns no pensamento de anarquistas, mas eles foram absorvidos em seus discursos políticos com diferentes graus de entusiasmo. Sem provocar muita controvérsia, “apoio mútuo” tornou-se palavra-chave para comunistas libertários logo depois que Kropotkin começou a falar dele na década de 1880, se não antes. “Comunismo” ganhou força nos movimentos anarquistas mais devagar e provocou bastante debate. Nenhum conceito tinha um significado claro ou preciso. Kropotkin descrevia o “apoio mútuo”, por exemplo, como um fator negligenciado da evolução, e o usou de duas formas: para descrever a capacidade cooperativa de indivíduos e para classificar tipos ou níveis de sistemas sociais; ele o usou tanto para analisar as forças sociais que promoviam ou atuavam contra sociedades de apoio mútuo quanto para explorar uma ética antiautoritária “sem obrigações”, que viesse da auto-organização cooperativa. Mas a confusão sobre o termo “comunismo” causou mais dificuldade para anarquistas que a flexibilidade da ideia de apoio mútuo.

Anarquistas se afastavam do comunismo por duas razões. Uma era que a palavra cheirava a autoritarismo. Essa impressão começou já na década de 1840, quando Pierre-Joseph Proudhon rejeitou o comunismo como um tipo monástico e autoritário de socialismo, uma doutrina de igualdade realizada através de ditaduras. No rescaldo da Revolução Francesa, “comunismo” lembrava conspirações, jacobinismo e o terror. Em segundo lugar, “comunismo” se ligava ao princípio de “distribuição conforme a necessidade” e, portanto, à realização de um programa socioeconômico que, para alguns, parecia diluir o impulso libertário do anarquismo. Era assim que alguns anarquistas espanhóis entendiam a posição anarcocomunista. Da perspectiva deles, era menos uma questão de princípios que uma limitação doutrinária. Eles defendiam o “anarquismo sem adjetivos” e o abandono de todos os sufixos, para mostrar que não queriam determinar demais os objetivos revolucionários. Mais tarde, a pró-feminista Voltairine de Cleyre seguiu essa linha, dessa vez considerando as consequências políticas das posições rivais “individualista” e “comunista”. Ela argumentou que ambos os tipos de “economia” podiam ameaçar a liberdade igualitária.

O impulso anticomunista de Proudhon era forte na Federação de Jura. Em 1871, no ápice dos duros debates entre Mikhail Bakunin e Karl Marx, na Primeira Internacional, os seguidores “antiautoritários” de Bakunin se chamavam “coletivistas”, não “comunistas”. Para bakuninistas, estas não eram só correntes rivais dentro do socialismo; elas eram incompatíveis. Uma apontava para uma federação descentralizada e ações localmente determinadas, e a outra, para a organização centralista, um programa revolucionário detalhado e uma organização partidária. Kropotkin e seus aliados argumentaram que não era bem assim: embora as diferenças entre “antiautoritários” e “autoritários” eram reais e insuperáveis, os rótulos passavam uma falsa impressão.

Kropotkin começava dizendo que socialistas se comprometiam com um mesmo princípio anticapitalista: a posse coletiva. Mas sua preocupação era que socialistas marxistas na verdade prejudicavam esse projeto ao usar sistemas governamentais de Estado para fazer a coletivização. Esses socialistas discutiam estratégia – se deviam ser reformistas ou insurrecionários – mas imaginavam que a coletivização seria a transferência de poder institucional e a introdução do planejamento socialista: “eletrificação + poder dos sovietes”, como dizia Lenin n’O Estado e a Revolução. “Socialistas científicos” – aqueles que defendiam a teoria da história de Marx – também esperavam por uma fase de “transição”; um período em que planejadores ficariam definindo os detalhes de seus esquemas igualitários, especificamente como fazer uma economia baseada no trabalho virar uma economia que atende necessidades. De qualquer forma, a ação revolucionária de massa era apenas um catalisador da transformação social. O governo revolucionário é que era a forma correta de trocar o capitalismo pelo socialismo.

No anarquismo, argumentava Kropotkin, a coletivização seria feita independentemente da máquina política existente, pela expropriação direta de terra e de recursos e pela criação de novas instituições comunais. O objetivo era evitar o governo revolucionário e a reafirmação do controle estatal. De acordo com preceitos anarquistas, o objetivo revolucionário era facilitar a transformação de instituições políticas que possibilitavam a exploração econômica, não utilizar essa infraestrutura para prover igualdade por dentro do Estado. Não fazia sentido revolucionar relações econômicas deixando estruturas políticas intactas. Em 1919, Kropotkin disse isso para Lenin, chamando de autocrático e destrutivo seu projeto de inundar as organizações revolucionárias com trabalhadores partidários em nome do iluminismo político.

O argumento de Kropotkin para a Federação de Jura era estratégico: enquanto “antiautoritários” continuassem se chamando de “coletivistas” em vez de “comunistas”, as pessoas não iriam entender como sua concepção de revolução era diferente. Em outras palavras, era muito fácil confundir o coletivismo com modelos marxistas ou social-democratas de coletivização. Embora Marx tinha reivindicado o “comunismo” quando escreveu o Manifesto em 1848, Kropotkin acreditava que o “comunismo” entendido corretamente tinha a ver com a ação direta descentralizada vista na Comuna de Paris em 1871. No ano em que Apoio Mútuo foi publicado pela primeira vez em forma de livro, Kropotkin voltou ao seu debate com James Guillaume, companheiro próximo de Bakunin, na Federação de Jura. Em 1902, ele disse a Guillaume que em 1880 ele acreditava que associar o socialismo em geral ao princípio de posse coletiva era perigoso, pois apagava as diferenças entre os coletivismos autoritário e antiautoritário, e que só “comunismo” podia deixar clara a determinação anarquista de coletivizar ao “tornar comum”. Ele reconheceu que a mudança de nomes criou tensões no movimento anarquista, mas não achava que isso mudava sua posição política. Sendo comunista, Kropotkin também defendia o princípio de distribuição de acordo com as necessidades, uma posição que o colocava contra anarquistas individualistas e propositores do “anarquismo sem adjetivos”. Mas sua rejeição quanto a recompensas individuais era um argumento acerca da melhor defesa institucional do coletivismo contra o ressurgimento do monopólio, não sobre o princípio de posse comum. Em princípio, dizia ele, a adoção anarquista de “comunismo” tinha tudo a ver com a crítica anticomunista de Proudhon e a posição “coletivista” de Bakunin.

Kropotkin argumentou que mudanças no socialismo europeu, especificamente o surgimento da social democracia marxista no final do século XIX, confirmou que ele estava certo. Em 1902, Kropotkin confessou a Guillaume estar mais incerto que nunca sobre o futuro do socialismo anarquista e da revolução libertária. Trabalhadores erravam ao apostar suas fichas em charlatões partidistas e ao apoiar amplas nacionalizações econômicas. Isso não era comunismo, mesmo que seus defensores fizessem discursos a favor da distribuição de acordo com as necessidades. O programa coletivista social democrata alterou a base da propriedade, mas reforçou o princípio de propriedade, e ainda por cima aumentou o poder monopolizador do Estado. O coletivismo acabava sendo a distribuição de acordo com a burocracia. Kropotkin chamava isso de “socialismo de estado” e, reavivando a terminologia de Bakunin, “autoritário”. Continuando a defender a expropriação direta da terra e dos recursos e a criação de novas associações comunais, Kropotkin fez um novo apelo ao comunismo anarquista, descrevendo-o de forma ampla ao elaborar o conceito de “bem-estar para todos e todas”.

Bem-estar para todos e todas

‘Bem-estar para todos e todas’ foi o emblema de Kropotkin para uma nova economia. Significava o abandono das restrições produtivas artificiais a partir da determinação de preços; deixar de financiar a polícia, o judiciário, as prisões e a indústria das armas; redirecionar os recursos utilizados para fabricar produtos de luxo, que serviam para satisfazer “os gostos depravados da multidão da moda”; e repossuir a propriedade. Em essência, a ideia de Kropotkin não tinha a ver com pessoas diferentes gerenciando o sistema econômico que já existia, nem com igualar benefícios de acordo com as regras dominantes do capitalismo, mas com reformular a economia conforme princípios libertários. Kropotkin resumiu sua visão de “redesenvolvimento” econômico como o “estudo das necessidades da humanidade, e das formas econômicas para satisfazê-las”. Isso substituía a economia política, “a ciência do desperdício de energia sob o sistema de trabalho assalariado”. O redesenvolvimento do campo intelectual envolvia duas mudanças conceituais. Primeiro, as medidas de bem-estar e as avaliações sobre o crescimento humano seriam formuladas localmente por grupos e associações das comunidades: Kropotkin teria completamente rejeitado a imposição de barômetros universais como o Produto Interno Bruto (PIB). Segundo, as relações sociais seriam estruturadas por “livre acordo”.

A economia libertária naturalmente envolvia refletir sobre o que produzir e como produzir, mas ela conscientemente injetava na economia um propósito moral. Enquanto a economia política era moralizada pelo lucro e pela expansão, pela acumulação de dinheiro e pela exploração, a economia libertária era moldada pelo compartilhamento, pela generosidade e pela expressão criativa. Ela dispensava a análise abstrata de trabalho, valor, oferta e demanda, produção e consumo, e colocava no lugar os conceitos de desejo e possibilidades estimadas. Vendo no bem-estar um direito, Kropotkin o descreveu como o direito de “possuir a riqueza da comunidade”, o “fruto do labor das gerações passadas e presentes”:

E ao afirmar seu direito de viver com conforto, eles afirmam, o que é ainda mais importante, o direito de decidir por si mesmos o que esse conforto será, o que deve ser produzido para vivê-lo, e o que deve ser descartado por não ter mais valor.
O “direito ao bem-estar” significa a possibilidade de viver como seres humanos, e de educar as crianças para serem membros de uma sociedade melhor que a nossa…

A segunda proposta de Kropotkin, sobre o “livre acordo”, era o princípio social que fundamentava a economia libertária. Ele entrava no lugar do contrato, base das relações no capitalismo. O contrato retrata as partes de um acordo de forma abstrata, como indivíduos iguais, e trata seus arranjos como justos porque conclui que foram feitos livremente. Assim, contratos de emprego supõem que trabalhadores aceitaram as regras dos patrões, e leis trabalhistas foram elaboradas para determinar as disputas entre eles. As origens dessa maneira de entender os acordos estão na ideia de propriedade e no princípio de troca, que para Kropotkin se tornaram o modelo para todas as relações sociais no capitalismo, até mesmo as mais íntimas. No casamento, como no emprego, as regras eram garantidas por lei e raramente se preocupavam com a igualdade de fato: mulheres faziam votos de casamento como subalternas, dominadas por seus maridos, sujeitas à disciplina deles e dependentes de sua boa vontade. Em contraste, o livre acordo era não-individualista porque se materializava no reconhecimento de uma herança comum e de um propósito compartilhado, e era antiautoritário porque dependia da confiança. Não havia autoridade externa que garantisse um livre acordo. Tampouco havia um governo central das organizações e instituições que o livre acordo estimulava, que Kropotkin imaginava que seriam “infinitamente variadas”, resultando do “contínuo crescimento das necessidades do homem civilizado”, substituindo assim a “interferência governamental”. A referência ao “homem civilizado” talvez deixe claros os limites da tentativa de Kropotkin de reimaginar a economia; ele continuava preso a ideias de desenvolvimento por meio da exploração de recursos naturais e da limpeza da terra, ideias que não combinam muito bem com as perspectivas ecológicas de hoje em dia. Mas seus dois princípios – o livre acordo e a comunidade local julgando o bem-estar – oferecem um esquema para um conceito ajustável e flexível de comunismo libertário anarquista que ainda é relevante hoje.

Ideologia

Kropotkin dizia que o bem-estar para todos e todas não era um sonho, mas uma genuína possibilidade. Isso revela que ele sabia da qualidade utópica desse ideal. O que o tornava real? A resposta de Kropotkin era o apoio mútuo. Os três componentes essenciais do bem-estar eram compreender a capacidade humana para cooperar, ver como comunidades históricas e atuais tinham criado ambientes que permitiam a cooperação e minimizavam a luta individual pela vantagem competitiva, e, por fim, entender a sociabilidade como a mola propulsora de uma ética do cuidado e da compaixão. A teoria do apoio mútuo explicava todos os três. Kropotkin separou a adequação biológica da competição individual, analisou o desenvolvimento da sociabilidade em sociedades tribais, comunidades, cidades-Estado medievais e associações voluntárias cotidianas, correlacionando essa sociologia com uma ética da dedicação não-recíproca.

Para Kropotkin, o apoio mútuo estava embasado na ciência, mas não era a mesma coisa que o “socialismo científico” de Marx. Em vez de demonstrar como o capitalismo seria transformado, ele frisava o que era preciso para tornar a transformação do capitalismo possível. Para Kropotkin, revoluções se construíam com confiança e convicção. Os ideais e as aspirações que animavam a ação direta eram cruciais para seu sucesso. O triunfo da burguesia francesa contra os sans culottes em 1793 e o golpe bolchevique de 1917 indicavam a veracidade dessa proposta. No prefácio de 1914 a Apoio Mútuo, ele observou que apenas a primeira parte de sua tese, “a ideia de que o apoio mútuo representava um importante elemento de progresso na evolução”, tinha ganhado aceitação na comunidade científica nos doze anos desde a publicação do livro. A segunda parte, o elemento sociológico de sua tese, ainda não era geralmente aceita. Os “líderes do pensamento contemporâneo”, ele observou, insistiam que “as massas tinham pouca preocupação com a evolução das instituições sociáveis do homem, e que todo o progresso feito nessa direção se devia aos líderes intelectuais, políticos, e militares da massa inerte”. O comunismo anarquista está sempre maduro, pronto para ser mobilizado, mas é preciso escapar às noções convencionais de liderança e planejar um salto de fé para estimular a destruição do capitalismo e o bem-estar para todos e todas.