História da magia (Controlados)
A magia em Heelum é histórica porque não é uma habilidade própria dos humanos desde sempre - ela tem um surgimento e toda uma tradição associada ao uso que dela se fez ao longo das diferentes auroras e guerras que compõem a história desse mundo.
Origens
A magia enquanto acesso a Neborum começou a ser experimentada e compreendida pela primeira vez na Quarta Aurora. Algumas pessoas começaram a ter visões de uma realidade distinta, tendo seus sentidos invadidos por uma outra experiência de realidade, um outro "mundo" em que podiam agir, com o qual podiam interagir, mas que outras pessoas não pareciam fazer ideia que existisse e que pudesse ser acessado - de forma que nem mesmo essas pessoas sabiam se estavam imaginando coisas ou se haviam de fato "esbarrado" sem querer em alguma coisa importante. As reações foram diversas: em alguns casos a pessoa que se descobria capaz de visitar Neborum escondia isso, tentava até rechaçar a experiência de visitar o local; sua habilidade, no entanto, permitia que fizesse a visita assim que se permitisse ter vontade de experimentar a sensação novamente, prazer culpado que se atualizava no retorno daquilo que temiam para assombrá-los sempre mais uma vez (embora com o tempo ficasse certo que aquilo não apresentava uma ameaça, pelo menos a curto prazo). Outras contavam sobre a experiência, mas recebiam descrença: o que falavam não fazia sentido algum para os outros, aqueles que não conseguiam ver Neborum. Aqueles poucos que não foram demovidos da narrativa pela descrença, contudo, adquiriram a habilidade de ver o que esses "visionários" viam - até estar em presença deles em Neborum, o que certamente colaborou para a lenta e gradual percepção de que existisse mesmo uma outra realidade, acessível para algumas pessoas. O que isso significava era incerto até mesmo para as pessoas que acessavam Neborum, visitavam seus castelos entendendo que suas existências (as dos castelos) eram dinâmicas e que havia um castelo por pessoa. A notícia que se espalhava se modificava cada vez que atingia uma nova cabeça, o que contribuía para uma confusão geral sobre o que era aquele novo mistério.
Herdeiros do Yutsi Rubro
A maioria daqueles que começaram a interagir com Neborum não era composta por pessoas comuns ou pobres: em sua maioria eram os mestres, nome dos líderes que, com variável nível de relevância política, mantinham uma tradição mais ou menos herdada dos mestres originais, os guerreiros que venceram o (e inadvertidamente absorveram os restos mortais do) Yutsi Rubro. Essa relação, que podia ser por linhagem, afinidade ou uma combinação de ambos, manteve nas cidades um "representante" dos mestres através das gerações. Sobre eles recaiu a primeira "habilidade mágica".
"Os guerreiros aproveitaram que o Yutsi estava fraco e ele finalmente foi derrotado de vez. Naquele momento, todas as cidades ficaram sabendo do que aconteceu pela Rede de Luz, e todas as pessoas comemoraram a morte do Yutsi Rubro. [...] Mas eles não sabiam do que aconteceria depois. [...] Enquanto os guerreiros se davam parabéns, o corpo do yutsi começou a se desintegrar!" Lamar conta a história da Primeira Guerra para seu filho, A Aliança dos Castelos Ocultos, capítulo 3 (ler no site de leitura / ler capítulo comentado)
À época da reconquista da Cidade Arcaica a "absorção" involuntária do corpo do Yutsi Rubro havia sido vista sob formas variadas, mas todas com cores boas e positivas; quando a notícia de que os mestres, e outros, estavam tendo visões com terras ermas e castelos, a história começou a ser reinterpretada. Quando a magia foi mais compreendida como uma forma de influência, as notícias aumentaram exponencialmente - aqueles que estavam tendo as visões eram capazes, se se acreditasse nos boatos que chegam aos quatro cantos do mundo, fazer alguém fazer o que fosse - em suma, manipular a pessoa em qualquer sentido. Logo a reinterpretação da história ganhou um julgamento popular definitivo: a absorção do Yutsi Rubro não era um misterioso símbolo de vitória, e sim uma forma de o Yutsi continuar assombrando os humanos mesmo após a morte.
A retroalimentação positiva e a onda de negatividade
Se a princípio os magos não viam a si mesmos como dotados, mas sim como portadores em potencial de alguma forma nova de mistério que podia tanto destruí-los - por que não? - quanto salvá-los - seria um prefácio ao retorno da rede de luz? - eles certamente passaram a entender o mPARECE BOMistério de forma mais mundana a partir dos próprios boatos. Se não tentaram com afinco usar o espaço de Neborum, ao ouvir os boatos de que alguns dos visionários (já insipientemente chamados de magos) conseguiam influenciar pessoas, isso certamente foi tentado. Se antes essa não era prática comum, os magos descobriam aos poucos que essa não era uma ideia absurda, sendo antes uma possibilidade verdadeira. Com o tempo a magia adquiriu um status de realidade inegável e uma certa coerência narrativa na forma como ela era reconhecida: algumas pessoas podiam de fato influenciar outras, a algum nível, através desse novo mistério. Os magos então não formavam grupos exclusivos, muitas vezes um mago sequer conhecia outro, e quando conhecia ele mesmo havia introduzido este novo mago ao mundo de Neborum, como dito acima. Praticavam magia primitiva apenas. Não ocupavam posição de tanto privilégio nas cidades, e até mesmo estes (os mestres) faziam parte do tecido social e dele não gostariam de ser excluídos, de forma que quando passaram a comentar abertamente sobre as habilidades que descobriam, não gostaram da forte pressão que receberam. A opinião geral era de que a magia não era nada boa. A situação da magia foi um elemento que impulsionou fortemente a teoria do renascimento social, em voga na época. Convencidos de que os magos, aliados ao ainda em expansão sistema de posse individual, enganariam a todos e se tornariam opressores, a sociedade deveria ser reorganizada para garantir a manutenção de uma certa ordem igualitária. As instituições políticas foram mais valorizadas e fortalecidas do que nunca, o que se fez sentir materialmente, de certa forma, por grandes reformas e construções que davam posição central aos parlamentos e lugares em que discussões públicas podiam tomar corpo. Mesmo que o trabalho assalariado e a posse individual em si já não fosse mais questionada, o uso do ouro, e especialmente grandes riquezas, começou a ser inspecionado mais de perto pelas instituições políticas em muitas cidades.
As primeiras organizações
Isolados e começando a sofrer certa hostilização - além de causar a queda definitiva da aura de heroísmo e benevolência que orbitava a tradição dos mestres - os magos se viram sozinhos e incompreendidos. Novos magos já preferiam não se declarar como tal, guardando para si a descoberta de Neborum. Foi quando os primeiros grupos de magos começaram a se formar; reuniões em que podiam contar com a presença de pessoas que não os hostilizariam, nem teriam medo deles, nem desconfiariam deles, ou assim eles pensavam. Passando por problemas semelhantes e pelo grande problema em comum que os unia nas reuniões em primeiro lugar, podiam encontrar descanso e conforto, já que estariam entre seus pares. Mas não foi exatamente o que aconteceu.
As reuniões e organizações que começaram a surgir logo feneceram, não ganhando mais tração do que o boom inicial. Isso porque o compartilhamento de informações sobre Neborum e magia levou ao entendimento geral, por parte dos magos, de que Neborum era uma plataforma de controle a nível individual; representantes da realidade, os castelos poderiam ser modificados e, com as atuações certas, efeitos poderiam ser causados nas pessoas que deixassem seus castelos serem invadidos. Isso logo gerou uma realização terrível: estar nessas reuniões é estar em um lugar cheio de pessoas perigosas, que poderiam causar influências sem que o influenciado jamais soubesse. A descoberta das técnicas passou a ser escondida ao invés de alegremente compartilhada: e se outra pessoa usasse a técnica? Aparentemente só o que era preciso para o aprendizado era contar o efeito que uma determinada ação causava em Neborum. O medo da não-reciprocidade, da traição, da maldade e da opressão pareciam ser marcas fundantes da civilização humana que veio após a grande não-reciprocidade do Yutsi Rubro. A busca por uma socialização mais individualista gerou o sistema de aprendizado por discípulos que nunca foi quebrado ou abandonado, mesmo quando as tradições mágicas se formaram mais tarde. Os magos escolhiam apenas uma pessoa, de confiança, para passar os conhecimentos e junto a ela desenvolver formas de melhor agir em Neborum. Quanto mais a magia foi ensinada, no entanto, mais algo ficava óbvio: qualquer pessoa poderia, com paciência e treinamento, aprender "magia", aprender "a ser mago". Isto também era motivo de medo, até porque o aprendizado podia ser espontâneo como se deu com os primeiros magos - não havia lógica que garantisse que no futuro todos não seriam tomados pela visão de Neborum e eventualmente ganhassem a mesma habilidade. A visão de um mundo tomado por pessoas capazes de sub-repticiamente influenciar as outras era motivo para temer a magia, o que incentivou um uso extremamente restrito dela, e um ensino ainda mais seletivo. Foi o que impediu, por exemplo, que os magos passassem adiante o que sabiam para a ampla difusão que Ia-u-jambu conseguiria promover. Se as reuniões foram esvaziadas e seu caráter de compartilhamento de conhecimento foi quase esquecido, um efeito secundário foi a criação de vínculos de amizade. Essas redes de contatos começaram a formar relações interurbanas, de forma que o valor social de conhecer magos era uma vantagem desses grupos que fazia com que valesse a pena continuar a frequentá-los. O "networking" valia para relações comerciais, por exemplo, de forma que participar das reuniões dos magos poderia gerar bons contatos para futuros negócios. Portanto embora o elemento do conhecimento tinha sido diminuído, o valor social - tanto interesseiro quanto de identificação com um grupo hostilizado - deu relevância aos grupos antes que eles fossem extinguidos pelo pânico inicial das possibilidades, além de conferir o ar elitista que foi moldando o contingente de magos como numa dialética que se reforça num ciclo.
Quinta Aurora
Esta foi a época do surgimento das Doenças da Noite. Todas as cidades foram afetadas de um jeito ou de outro, o maior preço pago tendo sido as vidas perdidas. No contexto do combate às doenças as associações de magos foram cruciais, pois percebiam que algo deveria ser feito, mas o mais importante é que eles percebiam que podiam fazer alguma coisa. A notícia de que haveria uma grande reunião de magos em Dun-u-dengo para tomar ações contras as Doenças da Noite espalhou-se pela rede de contatos dos magos e muitos, em geral vindos das cidades do norte, compareceram.
A fundação dos Bomins
A reunião, que durou por vários dias (tornando-se uma espécie de convenção) centrou-se primeiramente na estupefação e na novidade da grande primeira reunião de magos de Heelum. Depois os aspectos práticos e amedrontadores foram enfrentados: o que fazer? Como conclusão, perceberam que o sistema de centralização e distribuição (em oposição à posse individual) deveria ser adotado o máximo possível durante o período das Doenças, pois contribuía para a boa distribuição de alimentos, que do contrário deixaria muito mais pessoas com fome e em privação. Mas logo a questão foi atacada por outro ângulo: é preciso que as pessoas voltem a trabalhar ou logo a produção de alimentos não conseguiria alimentar a todos satisfatoriamente. E então o método mágico passou a ser discutido: técnicas para influenciar pessoas a voltarem a trabalhar. Um plano de ação foi fundado: eles iriam atacar os humanos de Dun-u-dengo, o maior número possível, para que se mobilizassem. Fariam isso em grupos, que iriam de porta em porta tentar convencê-los a seguir normalmente com a vida em sociedade, que precisava da bravura de todos para que todos sobrevivessem. Esse convencimento se daria pela palavra, mas ao mesmo tempo em que uma pessoa do grupo falasse, outra estaria aplicando as técnicas que soubesse utilizar, sendo que muitas foram compartilhadas durante a convenção: como fazer a pessoa ter vontade de trabalhar, vontade de viver, vontade de conversar, vontade de se alimentar; como fazer ela ter coragem, perseverança, determinação, e como eliminar ou neutralizar o medo. Grupos seriam enviados a outras cidades para incentivar os magos destas cidades a fazer o mesmo - e, ao mesmo tempo, ensiná-los as técnicas mágicas necessárias. No entanto, para que alguém pudesse ensinar, alguém precisaria ser treinado para garantir a eficácia das técnicas. A garantia da eficácia das técnicas só poderia vir da continuação daquela reunião, daquele experimento: eles precisavam aprimorar as técnicas. A comunidade precisava ser institucionalizada. No entanto, mais um problema foi trazido à tona: o conhecimento mágico é perigoso (algo que as gerações dos primeiros magos inscreveram no próprio modus operandi dos magos ao adotar o esquema de ensino para discípulos). Havia não-magos presentes na reunião, inclusive. A institucionalização se tornou completa, portanto, com a escolha de um código de honra: sob pena de isolamento público e até de morte, o conhecimento adquirido dentro daquele grupo não poderia sair dali. Para além do ensino de alguns magos em cada cidade, as técnicas mágicas só podiam ser passadas adiante por um mestre para um discípulo apenas, e os não-magos presentes precisariam ser instruídos para a magia. Eles passaram a se denominar bomins, inspirando-se no vocábulo na-u-min bomo, que quer dizer sentimento, emoção.
O plano e a fundação dos Preculgos
O plano foi posto em execução, e o risco que ele engendrava era enorme, para todos: era importante continuar a viver ou a causa das mortes não seria mais as Doenças da Noite, seria a fome. As pessoas que foram influenciadas pelos magos puseram Dun-u-dengo de volta nos eixos - mas o número de mortes cresceu, o que deu ainda mais trabalho para os magos, que precisavam agora fazer com que as pessoas ignorassem seus sentimentos quanto a isso o máximo possível. Muitos magos também morreram, aliás, expostos que estavam aos ventos frios que difundiam as Doenças da Noite. "Salvar" Dun-u-dengo era apenas parte do plano: seria preciso ir também a outras cidades, e assim foi feito. Expedições foram enviadas primeiro para Jinsel, Novo-u-joss, Inasi-u-een e Rirn-u-jir. Mais tarde, quando o processo estava começando a dar resultados, novos grupos foram enviados para outras cidades mais próximas da área já sob influência dos bomins - Enr-u-jir, Al-u-tengo e até mesmo a mais distante Al-u-ber. Um grupo foi para Imiorina mas, logo depois de chegar e ter feito uma reunião preliminar com alguns magos locais, o grupo morreu frente às doenças contraídas na viagem. No entanto aqueles que tinham ouvido sobre a ideia encorajaram-se o suficiente para levar a ideia adiante. Sem saber se poderiam se autoproclamar bomins - os bomins agora falecidos foram muito explícitos quanto a necessidade do controle rígido dos membros do grupo - eles fundaram um grupo separado. O separatismo e o novo nome se deram também por um reconhecimento de algo a mais: os bomins tinham dado alguns exemplos de técnicas compartilhadas pelo grupo, mas as técnicas não se pareciam nada com as técnicas que os magos de Imiorina conheciam. As técnicas se focavam nos sentimentos, nas sensações; as técnicas dos magos de Imiorina, em pensamentos, em argumentos, em ideias. Temendo ter que compartilhar suas técnicas sem receber as técnicas dos bomins em retorno (e preocupados com um domínio tão completo de ferramentas de dominação de um ser humano), eles se constituíram como a organização dos Preculgos (influenciados pela palavra em na-u-min para razão, argumento, pensamento, etc, preko), com dinâmica e objetivos idênticos mas técnicas diferentes. Os preculgos se espalharam para o sul e para o leste. Quando as duas tentativas de "colonizar" a iniciativa se chocaram em algumas cidades, a notícia dos preculgos logo se alastrou para os bomins, que pararam de aceitar novos membros, parando o treinamento de discípulos por alguns rosanos até que a situação fosse esclarecida - um discípulo poderia ser algum mago preculgo tentando obter também os conhecimentos bomins. Os preculgos se incomodaram menos com a suspeita, embora tomaram o distanciamento dos bomins como um certo sinal de hostilidade. Isso, no entanto, ficou como plano de fundo do objetivo maior das organizações naquele momento: um objetivo que já estava multiplicando as vítimas, tanto magos quanto não-magos, mas fazia as cidades continuarem a funcionar para garantir um mínimo de provisões. A marca de inimizade gerou uma oposição polar que ajudou a moldar, no interior de cada organização mágica, culturas e signos diferentes, identidades diferentes atreladas a cada tradição. Os bomins e os preculgos nunca organizaram uma reunião geral (pelo menos não aberta e para todos os membros): agindo nas mesmas cidades, complementando-se nas sombras, lutavam também por certo prestígio. Em cada cidade, passaram a usar suas técnicas para fazer com que o povo tomasse conhecimento do sacrifício dos magos, em especial de alguns indivíduos tornados "heróis" após o falecimento - magos que, reza a imagem que se queria construir, deram a vida para que os humanos tivessem uma chance de sobreviver. A magia era reabilitada nos corações do povo como uma potência humana que mostrava ali sua utilidade e sua razão de ser.
Aurora da União
Foi na Aurora da União que os magos viraram o jogo político, social, econômico e cultural ao seu favor. Por um lado, tornam-se enfim uma elite dominante, uma elite que se caracteriza não apenas pela prosperidade como também pelo privilégio; não apenas pela fruição em oposição à obrigação de trabalho que assola os mais necessitados, como também pela participação e em alguns casos constituição por inteiro da vida política que decide sobre a organização das cidades. Elite também no sentimento e no orgulho, regulado por uma forte identidade de pertencença ou aos bomins ou aos preculgos, e elite no reconhecimento social desse status e da normalidade dele por parte dos não-magos.
— [...] Acho que eles são mais resistentes a treinar e a lutar ao lado de pessoas de cidades diferentes. Evan abriu os braços em um movimento contido, com as palmas das mãos para cima. — O que podemos fazer? — Houve um tempo em que isso não existia. [...] — Está falando da luz? — Um tempo de união em favor de um interesse comum? Isso não foi só a luz quem promoveu. — Certo.[...] Está falando da Aurora da União. Conversa entre Desmodes e Evan em A Aliança dos Castelos Ocultos, capítulo 44 (ler no site de leitura)
Tudo começou quando Ia-u-jambu descobriu que um minério, que até então permanecia sem um efeito catalogado, podia curar as Doenças da Noite. Existem muitos minérios distoantes dos já conhecidos, muitos deles até únicos, e a grande maioria é considerada um "erro", como uma mutação mal sucedida, de forma que eles não possuem efeito algum. No entanto, Ia-u-jambu conduz testes em todos que pode alcançar a fim de tentar perceber algum valor. No caso desse minério, o Hexagonal Roxo e Verde-escuro Opaco, descobriu-se que ele é capaz de destruir as Doenças da Noite. A relação de Ia-u-jambu com os bomins e os preculgos era de afastamento: em Ia-u-jambu um conhecimento secreto era uma perversão do próprio sentido do conhecimento, e o fato de que eles não compartilhavam o significado e a lógica da magia fazia daquilo algo muito suspeito. Naquela época, entretanto, eles ainda eram permitidos na cidade, sem reservas, e foi em parte a atuação dos magos que impulsionou a continuidade das pesquisas, o que levou à descoberta do efeito no minério que viria a ser conhecido mais tarde como "talismã". Os pesquisadores de Ia-u-jambu reconheceram que era essa a peça que faltava para combater as doenças, mas havia um problema: a demora na utilização do minério poderia significar uma ameaça para a própria humanidade, considerando o estrago abominável que ela já havia causado. Foi então que uma ajuda foi pedida aos bomins e os preculgos: que eles usassem da infraestrutura própria entre as cidades, e seus recursos, para espalhar o cultivo e o uso do minério por toda Heelum. E foi o que de fato aconteceu. Os magos ajudaram a aplicar o minério em grande escala. Plantações foram colocadas primeiramente em lugares estratégicos, em jirs mais afastadas dos centro urbanos, para impedir, assim que maturassem dentro das árvores, que os ventos frios trouxessem para dentro das jirs centrais mais doenças. As plantações exigiram um esforço concertado ainda maior do que o que já havia sido pedido das cidades, o que significava um uso maciço de magia. À medida que as doenças iam sendo combatidas com sucesso, um grande alívio começava a tomar conta das populações. A perspectiva de dias melhores estava no horizonte, e os magos também olhavam para o mesmo horizonte. Influentes e poderosos, o retorno à normalidade foi orquestrado de forma a definir de maneira bem clara que tipo de normalidade ela seria - uma em que o sistema de posse individual voltaria a vigorar com força, classificando o sistema de centralização e distribuição de bens como algo antiquado e que só servia para emergências extremas. O sistema voltaria, aliás, o mais desprovido possível de sistemas de controle e fiscalização como os vistos na época das teorias políticas do renascimento social. O sofrimento por aqueles que morreram era superado pelas (certamente infundidas pelos magos) ideias de que era preciso honrá-los para que seus esforços não fossem em vão, ao mesmo tempo que era preciso viver aproveitando pequenos prazeres, comemorando pela sorte de estarem vivos (que era tudo que importava, não era mesmo?). O individualismo, contudo, não foi "superado": seu crescimento silencioso que se concretou nos hábitos de uma geração que não saía de casa com medo das Doenças da Noite, que quase não construía um sentimento de comunidade, foi laureado também com ares de inevitabilidade. Quando as Doenças da Noite foram afastadas, logo se descobriu o que exatamente isso significava: elas voltariam de vez em quando; não podiam ser erradicadas, apenas combatidas. Como os magos previram, felizes com um bom retorno do investimento, os talismãs ainda seriam necessários. Não por coincidência, os lugares estratégicos em que as plantações foram feitas não eram quaisquer terrenos: eram territórios de posse dos magos, terrenos bem murados e protegidos. Os tempos de distribuição gratuita para salvação de todos acabaram, e a proteção teria um custo - elevadíssimo, é claro, pois era a vida que estava em jogo. Os magos convenciam a todos de que as Doenças poderiam voltar com a mesma força a qualquer momento, o que criava um certo pânico, fazendo a compra de talismãs ser tão necessária quanto a de comida. Outras ideias também circulavam - os talismãs funcionavam por um tempo, mas depois "perdiam a eficácia", o tempo variando de cidade para cidade de acordo com a ganância do dono dos terrenos (na verdade os talismãs não funcionam dessa forma; eles não "perdem o efeito", a não ser depois de já utilizados). Nas reorganizações comunitárias que faziam para garantir a sobrevivência de jirs menores e mais dispersas, magos tomaram posse de muitos territórios, estabelecendo uma situação de arrendamento com os antigos donos, garantindo assim dois motivos constantes de concentração de renda. Isso era apenas justo, pelo trabalho que os magos fizeram, o risco que tomaram durante o período das Doenças! Mas não eram todos que pensavam desta forma.
A Fúria de Ia-u-jambu
Quando Ia-u-jambu soube da situação que se repetia em muitas cidades - embora com menos alarde na própria - os pesquisadores e universitários em geral ficaram extremamente contrariados. Em uma invasão à sede política da cidade, deliberaram sobre a traição dos magos, que tomaram monopólio de um bem que, pelo papel que desempenhou para os humanos, deveria pertencer a todos indistintamente; ser plantado por governos e por eles distribuídos, até deixados ao léu para colheita gratuita se alguém tivesse a sorte de encontrar uma árvore que os produzisse. Os magos também tomaram posse dos mecanismos de decisão - os políticos - das cidades, causando expropriações e uma grande concentração de poder (tanto de riqueza quanto de terras), o que significava que eles estavam, em suma, se aproveitando da recuperação de Heelum de uma época sombria para criar uma oligarquia independente das cidades que causaria, na prática, a extorsão do povo.
Em um ato histórico, decidiram pela expulsão de todos os magos (conhecidos) da cidade e a proibição de sua presença. Uma grande muralha foi construída em volta do jir central da cidade, e regras foram criadas quanto a visitantes, garantindo um máximo controle populacional sobre a questão da magia. Ia-u-jambu começava sua longa guerra declarada - embora pouco proativa - à pretensão mágica do conhecimento elitista e opressor. A pouca proatividade, no entanto, foi certamente contrabalanceada pelo alcance que a influência da cidade teve. Como se acordassem repentinamente, várias cidades começaram a discutir o papel dos magos na sociedade. As conclusões a que chegaram foram variadas mas, considerando a composição dos corpos de representantes políticos, não é surpreendente que tenham sido, em sua maioria, favoráveis aos magos e à situação atual de privilégio. A contestação à liderança que os magos exerciam, no entanto, passou adiante e continuou como um motivo frequente das discussões políticas em cidades mais abertas como Al-u-een e Kor-u-een, além de ser uma potência latente a ser reativada mais tarde após as guerras modernas.
O Conselho dos Magos
Os magos perceberam o quão bem haviam "se incluído" socialmente após um período longo de exclusão e estigmatização. Pois não bastava passar a fazer parte da sociedade através de ameaça e influência, pois isso apenas daria material de apoio para qualquer detrator que tentasse provar que os magos seriam de fato opressores. Na verdade a mudança de opinião e comportamento foi arduamente conquistada, ainda que, admitidamente, com magia. Era preciso que a opinião pública voltasse a aceitar a magia como natural e até mesmo talvez desejável, não apenas tolerável. E, se não fosse pela interpretação do desfecho da Aurora da União que fez Ia-u-jambu, os magos gozariam de uma posição ainda mais invejável em Heelum. Era uma questão de tempo até que se reconhecesse a importância da união das tradições mágicas. Depois da "revolução" de Ia-u-jambu os magos-mestres de cada tradição resolveram tentar uma aproximação: apesar das diferenças, havia, afinal, alguns interesses em comum entre todos os magos, independentemente da tradição. Para agir em prol desses objetivos comuns, uma reunião específica foi institucionalizada: o Conselho dos Magos. O local foi escolhido, com um projeto sendo levado a cabo secretamente. O segredo, aliás, era importantíssimo: uma reunião daquela magnitude deveria ser sempre um segredo, pois alardearia a noção proveniente de Ia-u-jambu de que os magos estavam de fato unidos em uma espécie de projeto para opressão e dominação absolutos. Enquanto acreditassem que os magos também estavam divididos, acreditariam que não poderia haver tal cooperação que seria, para os não-magos, injusta e até, a nível de técnicas que as tradições poderiam compartilhar, perigosa. Foi decidido, aliás, que as técnicas continuaram separadas, com uma regra sendo mutuamente adotada para proibir a mistura dos dois conjuntos de técnicas. A reunião deveria ser composta por 10 membros, 5 de cada tradição, e cada tradição deveria escolher seus 5 mestres representantes pelos meios que quisesse.
Primeira e Segunda Guerra Moderna
Todas as guerras modernas se referem à ascensão de governores, um mago com poderes excepcionais, conseguindo influenciar centenas de pessoas simultaneamente sem ser consumido pelo dispêndio de forças necessário para tal. Todas as guerras modernas foram portanto causadas, direta ou indiretamente, pelas ações de um governor e as reações a elas.
"Sim, todos vocês conhecem a história. [...] Heelum teve uma guerra antiga, contra o Yutsi Rubro, e três modernas. A primeira contra Mosves, de Prima-u-jir. A segunda contra Fennvir, em Al-u-tengo, e a terceira contra Napiczar, da Cidade Arcaica." Jen explica as guerras modernas de Heelum em A Aliança dos Castelos Ocultos, capítulo 13 (ler no site de leitura / ler capítulo comentado)
No caso de Mosves e Fennvir, os governores da Primeira e da Segunda guerra moderna, respectivamente, as consequências de suas guerras para a história da magia são notáveis pois induziram, lenta mas progressivamente, rachaduras no edifício que os magos construíram para eles mesmos, e no qual moravam, simbolicamente falando. As ações arrogantes, gananciosas e opressoras causaram na população em geral um grande desencanto com os magos. De benfeitores da humanidade que mereciam os luxos de que desfrutavam, tornaram-se pessoas com um direito autoproclamado ao controle mental, resultando, em última instância, no tipo de pessoa perturbada que, com os poderes de um governor, poderia mobilizar tantas pessoas para a morte e para a destruição. Os magos só não voltaram a ser encarados como os elementos perigosos que simbolizavam na Quarta Aurora porque desta vez estavam fortes e organizados: mobilizaram todos seus recursos mágicos e materiais para influenciar a opinião e no mínimo relativizá-la um pouco. O plano de contenção funcionou bem, mantendo privilégios e desviando a atenção de assuntos importantes (como a redistribuição das terras que foram concentradas e favorecidas durante a Aurora da União). Mas era inevitável que a opinião geral tivesse se diversificado, e dado origem a consequências no plano político que foram, em alguns casos, prejudiciais para os magos: a perda de alguns direitos de participação política para eles em algumas cidades, por exemplo. Desde que os magos transformaram-se na força política dominante em Heelum, contudo, a história da magia deixou de ser simplesmente a transformação das técnicas e dos magos e virou também história militar, história do pensamento, história da política. Entre as consequências mais notáveis da primeira e segunda guerra moderna não estão apenas uma diversificação da opinião pública sobre os magos (o que influenciou a formação de políticas públicas contrárias à magia), nem o aparecimento inédito de magos com imenso poder, mas também devem ser incluídas uma transformação na perspectiva sobre a humanidade e, relacionado a isso, algo da maior importância: a transformação dos exércitos e do uso da força. No primeiro caso temos a formação dos monstros como os primeiros casos de transformação humana desde o Yutsi Rubro. Isso é alarmante, por um lado, mas é também curioso por outro: o poder que causou a transformação não foi um mistério, como no caso do Yutsi (em que a rede de luz o transformou), embora poder-se-ia argumentar que governores são mistérios, e em última instância a magia também o é. Mas o importante é que foram os próprios humanos, um subconjunto deles, que provocou uma alteração profunda e essencial na humanidade, o que abria precedentes aterradores. No começo da história da magia, o medo dos primeiros magos era que todos fossem transformados em magos eventualmente. Agora, o medo de todos era que todos fossem transformados em monstros pelos magos eventualmente. No segundo caso, temos que os exércitos eram antes reservas de homens dedicados a aprender mais sobre a luta, a defesa da cidade contra intempéries e quaisquer mistérios, até mesmo animais ferozes caso surgisse algo novo. Parte do exército, como ainda é o caso na grande maioria das cidades, formava a polícia, e esse era o ápice de organização da instituição. Quando foi preciso mobilizar forças para ataques maciços a cidades inteiras, a outras tropas concentradas em uma única localidade, as cidades ficaram claramente perdidas no sistema. Os exércitos, esses núcleos desgarrados de força, muitas vezes então patrocinados pelos magos, que gostariam de proteção particular em algumas jirs em especial, iriam ser agora mobilizados de forma nunca antes vista para um objetivo ainda mais esdrúxulo - matar os próprios companheiros humanos, esdrúxulo posto que fazia pouco sentido: as cidades são todas de uma origem comum e portanto a luta não fazia sentido, já que o inimigo acabaria por ser a própria humanidade, como uma luta de si contra si. Foi preciso, portanto, muita magia entre os militares para forçar não tanto a marcha quanto as batalhas em si, carnificinas desconcertantes e traumatizantes para exércitos que eram, ao contrário da gênese deles entre nós, estranhamente pacatos. Um movimento não apenas de organização e logística, mas também de formação de uma nova cultura de falta de sensibilidade, para tornar o exército uma arma mais eficiente à disposição da cidade - o que significava, por outro lado, uma arma à disposição de quem controlava os governos da cidade, que via de regra sempre tinham alguma representação mágica.
Terceira Guerra Moderna
A Terceira Guerra Moderna elevou o aprimoramento apressado dos exércitos para um novo patamar quando o novo governor mostrou-se particularmente obcecado com a formação de um grande, porém eficiente, contingente militar. A manobra e a manipulação em massa como ideal do poderio humano. O exército de Napiczar e as repercussões de seus movimentos iniciais, que causaram pequenas guerras paralelas em todo o continente, resultaram em um mundo extremamente (bem) militarizado ao final da guerra. Outro elemento foi a inclusão dos espólicos, antes marginalizados, entre as tradições mágicas respeitáveis (coisa à qual bomins e preculgos se opunham inicialmente). O Conselho dos Magos foi reformulado para incluir a nova tradição, e isso não apenas para acalmar os ânimos daqueles que reivindicavam por reconhecimento e proclamavam amor ao controle, ao poder, à disciplina, mas porque os próprios bomins e preculgos poderiam aprender algo com eles. Depois de tempos imemoráveis confiando sempre no poder da persuação, em um esquema que sempre colocará as ações em Neborum como definitivas e decisivas sobre as de Heelum, os magos perceberam a necessidade de dominar e fazer respeitar seu privilégio material através de formas materiais. Os exércitos são a materialização do poder histórico dos magos, apenas em um novo, mais bruto e realista, formato.
Aurora da Paz
A paz corrente entre as cidades não indica a tensão crescente entre os magos - o último grande desenvolvimento na história da magia foi o surgimento dos alorfos e a subsequente divisão em filinorfos, cujas convicções políticas não eram compatíveis com as ambições pouco ambiciosas dos alorfos. O Conselho dos Magos é apenas uma desconfiança para eles, que intuem um controle compartilhado (e calculado) das instituições e estruturas para garantir a oligarquia. Segue-se a um tempo longo de formação e propagação dos alorfos e filinorfos o tempo do Volume I da série. No mesmo Volume I vemos a ascensão de Desmodes como novo mago-rei (mago mestre do Conselho dos Magos). Podemos perceber como seus objetivos foram historicamente constituídos: a ideia dos magos como merecedores da fruição em decorrência do papel de liderança pela força que devem exercer é antiga. Quando Desmodes cita a Aurora da União no capítulo 44, "Tudo vai mudar" (clique aqui para ler no site de livro), ele o faz como referência a uma época em que os magos ditavam os rumos do mundo pelo próprio bem da humanidade; unidos, ainda que separados pelas tradições. Desmodes almeja esse estado de coisas, e arquiteta o plano para consegui-lo. Veja também: