Capítulo 1 do Volume 2: O começo e o fim (Controlados)
O começo e o fim | |
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Volume | 2 |
Parte | 1 |
Número | 1 |
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Em "O começo e o fim", primeiro capítulo de A Guerra da União, ...
Personagens[editar]
A fazer
Capítulo comentado[editar]
Fecha-se a porta do quarto. A luz ainda se esmagava, se humilhava para emprestar seu tom de mel à entortada mobília carmim da qual Anabel não tinha orgulho, mas tampouco tinha vergonha.
Seus dentes cor de creme compunham o sorriso enviesado enquanto, sentada na cama, apoiava-se no forro macio e alaranjado. Expôs de mansinho o lado direito do pescoço sem fissuras. O cabelo vermelho balançou para o lado, melindroso, diante daqueles outros dentes que surgiam debaixo de olhos sinceros, fixos, loucos que atravessam a carne da companheira. Ele já abandonara as roupas; ela também.
Encontrou um lugar para si com o joelho, recostando-se a ela por trás. Cada pedaço de pele encontrava seu par, ou assim queria fazê-lo: suas mãos subiam pelos braços dela enquanto os lábios encontravam os melhores espaços do pescoço para descansar, descansar, descansar antes de mudar de ideia e beijá-la de baixo a cima, chegando ao lóbulo da orelha com hesitação mínima, calculada com todo o engenho para fazer o coração pular uma batida.
Anabel não fingiu estar sem pressa. Tirou os cabelos da nuca com as mãos, fechou os olhos, encolheu a barriga arrepiada enquanto as mãos mornas de Gustavo faziam dali um novo lar; seu novo parque, seu novo ardor.
A natureza da relação
Tudo muito diferente da prisão ocre em que Anabel estava.
A não ser, talvez, pela amarelidão da cela subterrânea que podia ter provocado, afinal, a memória em primeiro lugar.
O ar traiçoeiro da noite se desfazia com a vitória de Roun --- ela podia senti-lo, mesmo longe da janela. Estimou que na sala em que estava caberiam umas trinta pessoas, se bem apertadas.
A porta que ela encarava há horas tinha duas fechaduras, uma perto do topo e outra da base. Quando um quadrado próximo ao chão de terra mal tratada abriu num deslizar para cima, um prato acobreado com pão, gordura quente e sal vermelho foi empurrado para dentro da saleta.
Dirigiu um único olhar para o pão antes de ignorá-lo. Abraçava as pernas, suspensas em um banco duro acoplado à parede de pedras rubras atrás de si. Não confiava naquela comida.
Os mesmos policiais sem uniforme que vieram prendê-la na noite passada vieram buscá-la. Estavam aglutinados no corredor além da porta, tampando o já fraco vento que vinha da única janela do lugar. Ao vê-los, Anabel repensou seu espaço: talvez naquela cela não coubessem nem mesmo dez pessoas.
Controlou a respiração, olhando e se deixando olhar. Infelizmente não era o olhar de Gustavo, que tanto adestrara. Monitorava seu castelo em Neborum com zelo total; fechara as janelas, escurecera as salas, instalara novas trancas na porta.
Acompanharam-na pelos corredores do prédio-prisão dentro do círculo coeso que seus corpos formavam; ela mal conseguia andar sem ter que medir os passos para não tropeçar em quem estava à frente.
O motivo da formação
Chegaram a uma porta no final de um curto corredor no que parecia ser o segundo andar; a formação se abriu pela frente e os cinco recuaram, bloqueando a passagem de volta.
Antes de entrar, sentiu o iaumo do entrevistador tão colado à porta de seu castelo pelo lado de fora quando o seu pelo lado de dentro. Apertou os dedos sobre a ranhura do portão, alerta.
A luz na sala era fraca. Uma cortina de goma escura aquietava o sol com seu peso, e um minério de luz vermelho que brilhava muito pouco jazia bagunçado em cima do que parecia ser uma mesa.
--- Sente-se, Anabel. --- Disse o delegado.
Anabel sentou, analisando o que conseguia ver: cabelos e olhos escuros, um meio sorriso costurado no rosto --- involuntário, fazia parecer que nasceu sorrindo amarelo e não conseguia mais parar. Seu casaco azul-marinho aparecia mais àquela luz que seu rosto cheio de pelos aleatórios nas sobrancelhas. Não o sentia mais tão perto em Neborum.
--- Foi Jorge quem fez a sua denúncia. Ele é um mago competente... Conheço ele. Confio nele.
Anabel comprimia os olhos sem perceber. Tanto em Heelum quanto em Neborum.
--- E ele disse que você fez um ataque misto contra ele.
--- ... Acho estranho que ele sabia onde eu morava.
--- Ele era seu médico.
--- Nunca fui paciente dele! --- Respondeu ela, virando o pescoço para encarar o homem de lado.
--- Ele tem anotações sobre você de mais de uma estação atrás.
"Desgraçado. Ele planejou essa prisão mais do que eu pensava."
Planejamento
O delegado pôs as mãos abertas sobre a mesa. Paralelas, igualmente distribuídas, com as palmas para baixo; Anabel viu unhas bem cortadas e uma pele enrugada.
--- Então vamos lá, Anabel. Qual é a sua tradição original e qual você aprendeu depois?
As pupilas do interrogador brilhavam, e Anabel queria arrancar a garganta dele para não ouvir mais sua voz doce, levemente rouca, que não demoraria meio segundo para condená-la à morte.
--- De que cidade você é, Anabel? --- Insistiu ele, com a boca continuando aberta pela metade. --- Você é daqui?
--- Quero falar com o meu namorado.
O delegado fechou a boca e tirou as mãos de cima da mesa. Rolou de volta para a escuridão do encosto da cadeira, ponderando o pedido.
--- Quem é o seu namorado?
--- Tadeu.
Primeiro se moveu, como se tremesse de frio por um instante. Aproximou-se, ficando mais perto que nunca da luz débil do minério vermelho. Ela podia ver a confusão que se alastrava por seu corpo, partindo das pálpebras e chegando no cuidado com o qual as mãos apoiavam-se, cautelosas, na mesa que o separava dela.
--- Que Tadeu?
Em Neborum, permitiu-se sorrir.
--- O filho do parlamentar Galvino.
Quando Amanda abriu a porta, não sabia que receberia aquele tipo de Gustavo. Ele permaneceu de pé depois que entrou, cerrando os punhos como se suportasse alguma dor.
--- Você me invadiu. --- Começou ele.
Amanda franziu o cenho.
--- O quê? --- Defendeu-se, balançando a cabeça. --- Não!
--- Se duplicou, queimou minha porta e me invadiu.
Amanda tentava conectar uma coisa à outra, mas ficava irritada por falhar.
--- G-Gustavo, eu sou preculga, eu não uso fogo! E eu n-não sei o que é duplicar, eu não...
Parou. Se de início presumiu que ele fosse continuar parado na sala, relativamente inofensivo, chegou em Neborum a tempo de vê-lo fechar a porta do castelo dela pelo lado de dentro.
Segurou-se à escada circular para não cair; as luzes do sol de Neborum distorciam-se com sua atenção indecisa. Conseguiu se concentrar o bastante para ver o sorriso malicioso que a forçou a voltar a Heelum, só para garantir que ele não fazia nada lá.
--- Gustavo, por que... --- Começou ela, em Neborum.
Ele avançou. Da mão direita voltada para trás surgiu uma espada longa, e Amanda fez um punhal saltar da mão trêmula, desenhando um arco no ar enquanto caía com o antebraço esquerdo por cima da cabeça. As lâminas colidiram; e Amanda sentiu um corte no braço.
Esgueirou-se para perto da parede circular, mais assustada que sentindo dor --- não fazia ideia do que acontecia com sangramentos no iaumo. Gustavo cravou a espada no chão pelo qual Amanda se esquivava, tentando se levantar. As pedras redondas atrapalhavam sua subida, a desequilibravam, até que com um impulso desesperado ela conseguiu velocidade para ir até o outro lado do saguão.
Gustavo foi atrás dela tão rápido quanto ela fugiu. Amanda jogou o punhal nele de qualquer jeito, que ele tirou do caminho torto com a própria espada.
Pensou no mesmo aço que compunha o punhal abrindo-se num escudo que cobrisse seu corpo por inteiro --- recitava na cabeça que queria um grande círculo plano o bastante, metálico, com seu dedo de espessura, sem detalhes, sem desenhos, sem marcas...
Parou de se esquivar e se deixou cair no meio da sala: o ataque vertical de Gustavo chegava para atingi-la no tronco. Um enorme escudo expandiu-se a partir do próprio centro na barriga e bloqueou a lâmina quando ela chegava ao destino.
Gustavo olhou o escudo e sorriu enquanto recuava, fazendo a espada encolher até sumir.
Em seu lugar surgiu um longo machado, a grossa cabeça pendendo para o chão e fazendo subir o cabo que Gustavo pegou com a mão esquerda. Amanda não sairia de baixo do escudo enquanto pudesse, mas ele tinha pressa.
Descreveu um arco por cima de si, urrando ao fazer o esforço final, uma mão escorregando até bater na outra. O escudo estilhaçou com força por cima do iaumo desconcertado de Amanda no chão.
O sorriso bobo queimou quando Amanda o empurrou em Heelum; recuperou-se da surpresa e, na feição mais enraivecida que Amanda já havia visto em alguém, foi até ela e puxou seu cabelo, pondo-a de joelhos.
Gustavo já refazia a espada em Neborum quando parou, sentindo um impacto nas costas; sua visão escurecia enquanto observava o impreciso iaumo de Barnabás, com um arco na mão, parado à porta aberta.
Qual era o plano de Gustavo?
Largou Amanda, olhando neurótico para todos os lados até encontrar o parlamentar na porta de entrada. Disparou por ela sem pensar se ele tentaria pará-lo, deixando Amanda no chão com a mão nos cabelos magoados.
Ela suportou só um olhar do pai antes de correr escada acima, ecoando soluços pela casa.
Tadeu diminuiu a velocidade na descida das escadas quando viu que havia visitas à porta. Galvino olhava para ele com uma curiosidade que certamente tinha por função reprimir, só pelo tempo absolutamente necessário, alguns berros. Do umbral o provável grupo de magos o observava fixamente.
--- O-o que foi?
--- O delegado quer falar com você, filho.
--- Polícia? --- Reagiu Tadeu.
--- Não exatamente...
Polícia especial
Um dos homens na companhia de magos abriu espaço e fez um gesto com a mão, convidando-o a passar. Tadeu chegou até eles, e logo os magos o acompanhavam com firmeza, cercando-o por todos os lados.
No outro dia tudo havia se encaixado: o fracasso de seu plano inicial tinha sido completamente esquecido. Ele e Amanda ajudariam Anabel e Gustavo, e seriam ajudados de volta. Teriam disfarces perfeitos para se encontrarem e continuarem a viver do jeito que quisessem. O futuro sombrio que tinha se acostumado a visualizar com tanta facilidade nos últimos dias virou tola preocupação.
Mas ali estava ele, indo falar com "o delegado", seu corpo sitiado, seu pai silenciado.
Visitou Neborum. O castelo do pai, longe do círculo das robustas construções em volta da própria, estava fora de alcance --- os iaumos dos magos que o escoltavam estavam à frente de sua porta, garantindo passivamente que ninguém ali entrasse.
Ou, talvez, que ninguém dali saísse.
--- Tadeu, eu vou ser direto... Talvez indiscreto. --- Disse o delegado. --- Você tem uma namorada?
Tadeu estava preocupado demais com Neborum para prestar total atenção à conversa. Sabia que corria o risco de parecer um tolo em Heelum, mas não podia ignorar o que estava acontecendo. Olhou por todas as direções pelas janelas de seus andares mais altos, mas não conseguia mais encontrar o castelo de Anabel que podia jurar ter visto naquele prédio que parecia uma prisão.
Girou os olhos na direção da pergunta.
--- Não.
--- Anabel disse que você é o namorado dela.
Tadeu sentiu uma tontura ligeira, um arrepio no ombro direito --- fingiu não sentir nada, mas a garganta começava a secar. A cabeça pesou. Pendeu para frente um pouco. Corrigiu-se.
Suas costas doíam. O maxilar incomodava.
Não percebeu de imediato como estava difícil respirar.
--- A-Anabel e-era... --- Resistiu ao impulso de fazer tremer a perna esquerda. E de olhar para o pai. --- E-era uma amiga.
--- Não era uma namorada?
--- Não era uma namorada. --- Repetiu ele.
Galvino levantou-se de supetão, inclinando-se para frente. A ponta do dedo indicador ficando perto do rosto do delegado, que continuava impassível.
--- Ela deveria ser executada imediatamente pelas MENTIRAS que está contando! Isto é um ABSURDO!
O delegado riu, cantando agudo uma mensagem que lia "por favor!". Relaxou na cadeira, desviando o rosto enquanto deixava drenar a diversão que tirara do acontecido.
--- Ora, sente-se, Galvino. Deixe de teatro. --- Já parecia mais amargo enquanto Galvino sentava-se com a mesma postura de antes. --- E você conhece as regras, sabe que é assim. Ela aprendeu outras técnicas, então deve ter sido de alguém de Al-u-ber. Eu só quero descobrir quem é. Ela resiste, e como eu sou espólico, achei que o seu filho pudesse me dar umas respostas mais rápido que eu.
--- Quem fez a denúncia? --- Perguntou Galvino.
--- Jorge. Um médico preculgo.
Pai e filho balançaram a cabeça. Tadeu não fazia ideia de quem era aquele homem.
--- E onde estão os pais dela?
--- Os policiais que fizeram a prisão disseram que ela só tinha o pai, mas ele conseguiu fugir.
"Fugir daqueles cinco magos?", pensou Tadeu, levantando as sobrancelhas.
--- Gostaria de falar com ela, Tadeu?
--- Ele não gostaria. --- Atravessou-se o pai, respondendo por ele.
--- O seu filho pode ajudar, Galvino... Deixe ele entender o que significa fazer parte da comunidade.
Tadeu não tinha dito nada ainda, mas estava louco para concordar. Naquela situação, contudo, não queria contrariar o pai. Galvino olhava para baixo, como se preparasse uma resposta elaborada --- mas deve ter reconsiderado, porque apenas balançou a cabeça, fazendo o delegado sorrir de novo.
--- Então, Tadeu... Gostaria de falar com ela ou não?
Quatro dos magos que o haviam buscado em casa estavam em algum lugar no corredor atrás dele; um deles segurava as chaves da porta da cela, tinha a mão na maçaneta, e esperava que Tadeu desse o sinal para deixá-lo falar com a prisioneira.
Em Neborum, o castelo de Anabel estava próximo, ainda que silencioso. Mesmo assim, sabia que a amiga sentia sua presença.
Ele olhou mais uma vez para o mago segurando a porta, desgrudando um pouco os olhos da mesma direção estanque.
--- E-eu... Queria ficar sozinho com ela.
Aquilo não ia ajudar se queria convencê-los de que não era namorado dela, pensou Tadeu.
O mago balançou a cabeça para os lados.
--- Ela é perigosa.
Tadeu pensou rápido, sua mente formigando para achar uma solução. Eles também estariam em Neborum, prontos para entrar em ação caso ela saísse do castelo --- lugar que provavelmente defendia com todas as forças desde que foi presa. Não podiam conversar lá.
--- Vocês podem... I-ir um pouco para trás? Desde que v-vocês consigam ficar perto em Neborum, está bom. P-para me proteger.
O mago fez que sim com a cabeça, destrancou a porta e deixou Tadeu passar.
Por que a mudança?
Anabel se jogou em seus braços mais rápido do que ele pôde vê-la; o mago logo fechou as portas atrás dele e trancou de novo.
Tadeu ouviu passos.
--- Eu pedi para eles se afastarem... --- Quase sussurrou ele.
--- O que é que você vai fazer? Você tem que me ajudar!
O rosto da amiga parecia mais pálido; seus olhos, mais fundos, o roxo abaixo deles forte na pele fina e seca. Ela o segurava pelos ombros; ele mal encostava em sua cintura. Fios dos cabelos vermelhos dela se agarravam ao pescoço dele, retardatários do abraço.
--- A-Anabel, o que está acontecendo? S-seu pai fugiu!
--- Ah... --- Disse, perdendo o viço nos braços. --- Sim...
--- Estava tudo dando certo...
--- Sim...
Tadeu olhou para as paredes da cela. Tudo que sabia é que precisava ir embora.
--- O que eu posso fazer?
--- Diga a eles que é meu namorado. --- Explicou ela. --- Como a gente combinou antes, lembra? Sobre nós nos ajudarmos? Vamos seguir com esse plano!
O estômago de Tadeu se revirou. Ela estava condenada, e associar-se a ela...
Sua inocência seria presumida ou descartada?
--- M-mas Anabel, é a minha palavra contra a de um médico, u-um mago formado, mais velho, que...
--- Tadeu, se você não me ajudar eu vou morrer!
Tadeu passou a língua nos lábios, mas não conseguia molhá-los. Devia estar olhando para ela com o tipo de pena que se conseguia ao arquear as sobrancelhas no centro do rosto. Ela arregalava os olhos, mostrando com a boca semiaberta a necessidade de um braço que a tirasse daquele buraco.
Um segundo depois ela desfez o abraço, e a boca se fechou. Virou-se de costas. Tadeu já sentia-se um condenado; se não pelos magos, pela frieza por ela decretada ao sentar no banco no fundo da cela.
--- Se você não me ajudar eu confesso tudo, Tadeu.
Ela olhava para seus olhos, atravessando-os com mágoa. Não os desviou quando ouviu passos se aproximando da porta.
Como eles sabiam do fim?
--- Você tem até amanhã de manhã.