O que impede a sociedade de se organizar em torno da cooperação é que a sociedade não tem mecanismos para garantir, com precisão, simplicidade e estabilidade, que cada um consiga viver bem independente de seus feitos individuais – em suma, a ideia de que a partir de uma situação de estabilidade, calma e bom humor as pessoas conseguem produzir, juntas, coisas boas, parece que tem que ser merecida, ganhada, só que dentro do escopo da competição que, se segundo sua própria lógica necessariamente cria perdedores, só alguns terão direito a essa situação.
Não podemos viver bem simplesmente para aproveitar a maravilha de viver; não, temos que partir de uma situação igual numa corrida maluca para alcançar uma situação boa como prêmio. Nesse sentido, o medo de compartilhar é o mesmo medo de dar ao outro a única arma que tem na corrida maluca; “e eu, como vou sobreviver assim?”. Ora, se essa pergunta não precisasse ser feita, não existiria problema algum quanto ao consumo de cultura, patentes ou comida.
Há uma filosofia de vida pervasiva e invisível em nossa cultura (embora não seja de forma alguma exclusividade nossa, seja lá quem esse “nós” de “nossa” seja) segundo a qual a vida boa é merecida; é aquela pela qual você luta. Mas imagino, arriscando-me aqui de propósito e aceitando críticas estatísticas, que quem mais acredita nisso é quem superestima seus próprios esforços ou quem se ferrou tanto na vida que quer ver seu esforço justificado – como o subalterno que suporta o sistema de “subalternidade” porque quer que outros sofram tanto quanto ele, que passem pelo que ele passou, pois isso legitima seu sofrimento e satisfaz o viés psicológico segundo o qual o mundo é justo.
Mas também, pensando melhor: quem sobra? Todo mundo quer ter seu sofrimento justificado. Todo mundo acha que sofre, e comparar sofrimentos é algo tão ridículo quanto necessário. Se Graeber pode argumentar que a solução para grande parte de nossos problemas econômicos é um perdão total da dívida, deveríamos poder também perdoar o uso inconsciente que fazemos dos sofrimentos uns dos outros – como armas; e deveríamos poder largá-las para enxergar-nos todos como merecedores de uma boa vida e como agentes conjuntos da empreitada cooperativa que nos poderia levar a buscá-la com mais sinceridade e leveza.