Muitas e muitas análises e ideias da teoria política são baseadas numa consideração peculiar da condição humana em relação à sua organização: estamos procurando sempre lógicas, mecanismos e sistemas que mantenham certas condições que consideramos ideais de acordo com certos valores e certas prioridades. Hobbes queria um poder soberano porque com a desistência do direito individual a tudo cada um ficaria na sua. Pra Maquiavel é importante que uma República fosse militarmente expansiva porque o povo seria mais rico, já que ele seria uma peça fundamental da geração de riqueza da República. Tocqueville achava que os magistrados seriam mais regulados e menos arbitrários numa monarquia porque o príncipe teria medo de que eles lhe tirassem o poder, e o povo teria medo que eles abusassem o seu, e assim cada lado os regularia e cuidaria de que eles tivessem regras explícitas, que os limitariam. Dahl considerava que a poliarquia não favorece a tirania da maioria, porque a faccionalidade e as coalizações tornam difícil a formação de grandes maiorias que desrespeitariam os direitos de minorias.
Mas e se cada indivíduo não ficar na sua, ou o soberano resolver, com o poder que tem, desrespeitar o único limite que não pode cruzar (o ataque à vida)? E se o povo não for rico e for, na verdade, meio desfavorecido e mal tratado, até mesmo os militares, como reclamam tantos veteranos e tantas famílias de militares nos EUA, e a ideologia do patriotismo e a glória cívica de servir “compensassem” isso a um nível cultural? E se alguma aliança específica de poder fizesse os magistrados do monarca serem pró-ativos e arbitrários? E se uma maioria se formar em torno de uma minoria que, pela percepção cultural, não merece ser protegida de qualquer forma?
Esses não são “e se” pequenos e desprezíveis. São coisas que acontecem de novo e de novo e de novo na história da civilização Ocidental e não necessariamente põe em dúvida as teorias em si; elas são arrumadinhas e fazem todo sentido no papel, mas a questão é que são análises estruturais, falando de pessoas mais como personagens e assets de um jogo de RPG do que necessariamente o suporte mais básico de todas essas estruturas – suporte que tem que ser ativo e continuado através da legitimação e do comprometimento com um determinado sistema.
Por mais frágil que um sistema fosse do ponto de vista estrutural (mas abrir essa brecha poderia significar tal e tal coisa!) um povo consciente disso e rejeitando essa “tal e tal coisa” poderia fazer dar certo. O argumento, é claro, é que se a estrutura for melhor vai ser menos trabalhoso “fazer dar certo”, mas esse comprometimento é uma necessidade. Nesse sentido, o argumento da eficiência de uma democracia representativa em contraposição a, digamos, uma democracia direta anarquista, perde um pouco a força porque à medida que ambas as estruturas específicas da implementação de cada uma não tenham falhas óbvias o nível de comprometimento necessário pra que cada uma “dê certo” é virtualmente o mesmo. Numa república democrática representativa se pede (para que realmente “dê certo”) que o povo seja instruído e tenha tempo para dedicar à análise do que está acontecendo, para poder, depois do momento do voto, continuar “fiscalizando” o representante, e se a decisão tomada pelo parlamento for impopular e indesejada ainda é preciso verificar que canais de participação estão disponíveis para expressar o desgosto e ir até os últimos passos institucionais de expressão até que o assunto esteja resolvido… Sem falar da fiscalização mais específica dos atos executivos, das finanças do Estado, etc.
Dá muito trabalho fazer qualquer sociedade “dar certo” do jeito como imaginamos. Relegar isso completamente às leis ou a esquemas políticos responde bem a uma utopia (raramente chamada por esse nome, mas é o que ela é) de que não precisaremos um dia nos preocupar tanto assim com os assuntos comuns, porque o sistema orientará nossas opiniões e ações na direção mais justa possivelmente concebível. Mas isso é uma ilusão: há que se fazer escolhas baseadas em valores e, na minha opinião, em estruturas que permitam uma organização que incentive o engajamento público necessário para esse comprometimento (como, por exemplo, uma economia em que se dedique menos tempo ao trabalho e mais à vida cívica). Como diria Tocqueville (que teorizava muito mas, seguindo o exemplo de Montesquieu, tinha os pés no chão): “as leis são sempre pouco firmes, enquanto não se apoiam nos costumes; os costumes são a única força resistente e duradoura num povo”.