Da descrença [na teoria] política

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 12 de novembro de 2015. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

Muitas e muitas análises e ideias da teoria política são baseadas numa consideração peculiar da condição humana em relação à sua organização: estamos procurando sempre lógicas, mecanismos e sistemas que mantenham certas condições que consideramos ideais de acordo com certos valores e certas prioridades. Hobbes queria um poder soberano porque com a desistência do direito individual a tudo cada um ficaria na sua. Pra Maquiavel é importante que uma República fosse militarmente expansiva porque o povo seria mais rico, já que ele seria uma peça fundamental da geração de riqueza da República. Tocqueville achava que os magistrados seriam mais regulados e menos arbitrários numa monarquia porque o príncipe teria medo de que eles lhe tirassem o poder, e o povo teria medo que eles abusassem o seu, e assim cada lado os regularia e cuidaria de que eles tivessem regras explícitas, que os limitariam. Dahl considerava que a poliarquia não favorece a tirania da maioria, porque a faccionalidade e as coalizações tornam difícil a formação de grandes maiorias que desrespeitariam os direitos de minorias.

Mas e se cada indivíduo não ficar na sua, ou o soberano resolver, com o poder que tem, desrespeitar o único limite que não pode cruzar (o ataque à vida)? E se o povo não for rico e for, na verdade, meio desfavorecido e mal tratado, até mesmo os militares, como reclamam tantos veteranos e tantas famílias de militares nos EUA, e a ideologia do patriotismo e a glória cívica de servir “compensassem” isso a um nível cultural? E se alguma aliança específica de poder fizesse os magistrados do monarca serem pró-ativos e arbitrários? E se uma maioria se formar em torno de uma minoria que, pela percepção cultural, não merece ser protegida de qualquer forma?

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Photo by Joi

Esses não são “e se” pequenos e desprezíveis. São coisas que acontecem de novo e de novo e de novo na história da civilização Ocidental e não necessariamente põe em dúvida as teorias em si; elas são arrumadinhas e fazem todo sentido no papel, mas a questão é que são análises estruturais, falando de pessoas mais como personagens e assets de um jogo de RPG do que necessariamente o suporte mais básico de todas essas estruturas – suporte que tem que ser ativo e continuado através da legitimação e do comprometimento com um determinado sistema.

Por mais frágil que um sistema fosse do ponto de vista estrutural (mas abrir essa brecha poderia significar tal e tal coisa!) um povo consciente disso e rejeitando essa “tal e tal coisa” poderia fazer dar certo. O argumento, é claro, é que se a estrutura for melhor vai ser menos trabalhoso “fazer dar certo”, mas esse comprometimento é uma necessidade. Nesse sentido, o argumento da eficiência de uma democracia representativa em contraposição a, digamos, uma democracia direta anarquista, perde um pouco a força porque à medida que ambas as estruturas específicas da implementação de cada uma não tenham falhas óbvias o nível de comprometimento necessário pra que cada uma “dê certo” é virtualmente o mesmo. Numa república democrática representativa se pede (para que realmente “dê certo”) que o povo seja instruído e tenha tempo para dedicar à análise do que está acontecendo, para poder, depois do momento do voto, continuar “fiscalizando” o representante, e se a decisão tomada pelo parlamento for impopular e indesejada ainda é preciso verificar que canais de participação estão disponíveis para expressar o desgosto e ir até os últimos passos institucionais de expressão até que o assunto esteja resolvido… Sem falar da fiscalização mais específica dos atos executivos, das finanças do Estado, etc.

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Photo by Mona Okiddo-Eberhardt

Dá muito trabalho fazer qualquer sociedade “dar certo” do jeito como imaginamos. Relegar isso completamente às leis ou a esquemas políticos responde bem a uma utopia (raramente chamada por esse nome, mas é o que ela é) de que não precisaremos um dia nos preocupar tanto assim com os assuntos comuns, porque o sistema orientará nossas opiniões e ações na direção mais justa possivelmente concebível. Mas isso é uma ilusão: há que se fazer escolhas baseadas em valores e, na minha opinião, em estruturas que permitam uma organização que incentive o engajamento público necessário para esse comprometimento (como, por exemplo, uma economia em que se dedique menos tempo ao trabalho e mais à vida cívica). Como diria Tocqueville (que teorizava muito mas, seguindo o exemplo de Montesquieu, tinha os pés no chão): “as leis são sempre pouco firmes, enquanto não se apoiam nos costumes; os costumes são a única força resistente e duradoura num povo”.