Um dia, no ônibus, fiquei ouvindo uma conversa entre um idoso e uma estudante de direito. Ele falava sobre a situação política no país (da qual ela não sabia muito – nem tinha ouvido falar das contas suíças de Cunha) e comentava que agora é com ela: a bola de resolver todos esses problemas estava com os jovens.
Ele repetiu isso algumas vezes e, confesso, foi me dando uma coceira na garganta. Não falei nada – estava cansado demais pra isso, mas me peguei pensando depois em quão injusto é esse senso comum de fácil aceitação. O futuro é dos jovens; pena que isso não é bem verdade…
Velhos morrerão, jovens crescerão
Em parte a lógica é sólida: quem está velho hoje não vai durar pra sempre e quem está jovem um dia vai compor a massa dos “líderes” – o tipo de pessoa que toma decisões na sociedade que impactam todo mundo; o tipo de pessoa que “rule the world”. John Mayer, meio-complacente-meio-irônico, já cantou isso em alto e bom tom: um dia vamos ser maioria, então só vou ficar aqui esperando o mundo mudar (será que ele é um daqueles marxistas que acredita na implosão espontânea do capitalismo?).
O problema lógico é gritante: o futuro pertence aos jovens apenas à medida que esses jovens fiquem velhos. O futuro (amanhã) pertence aos jovens de hoje, que amanhã não serão mais jovens, e por conseguinte o futuro na verdade pertence aos velhos.
A força da juventude
Muitos que dizem que os jovens são o futuro da nação o fazem segundo um certo otimismo, que costuma aparecer quando alguma criança, adolescente ou jovem adulto faz algo interessante e aí os mais velhos dizem: “é, bom mesmo, porque o futuro é de vocês!”
A questão é que essa “coisa interessante”, especialmente quando ela se trata de uma inovação ou de um grande esforço em prol de alguma mudança, pode estar ligado justamente ao estado mental do jovem enquanto jovem. O jovem costuma ter menos amarras à tradição, porque foi amarrado por menos tempo a ela (e às vezes quer definir sua identidade em oposição a ela); costuma pensar diferente, “fora da caixa”, e ser “ingênuo” o bastante para acreditar que mudanças profundas podem acontecer (a primeira condição pra que mudanças profundas de fato aconteçam).
Mas e quando este jovem estiver mais velho? A “força” que vinha de sua juventude muito provavelmente já era. Ele entrou no establishment e está envolvido com ele até o pescoço: mudar o status quo não é mais uma prioridade. As condições que possibilitaram a ele ser inovador, radicalmente engajado e descomprometido com velhas e desgastadas estruturas já foram erodidas. Isso não quer dizer que pessoas mais velhas não possam agir assim, mas essas são as qualidades que quem diz que o futuro é dos jovens em geral aponta como sendo dos jovens.
Mas pode ser o caso que não seja lícito (digamos, estatisticamente) pensar assim. Os mais velhos não perdem essa capacidade de transformação e inovação; isso é uma coisa de seres humanos, não só dos humanos jovens. Então, não seria o caso de cobrar deles (dos nossos “líderes” atuais, não dos vindouros) as mudanças que queremos?
As pessoas fazem a história…
Mas não fazem do jeito que querem, mais ou menos escreveu Marx. Existem condições específicas pra cada decisão; limites ideológicos e práticos do possível. No fundo Marx só reafirmou o óbvio, mas às vezes as pessoas parecem esquecer disso: o futuro é dos jovens porque eles um dia entrarão no governo, serão os gerentes e diretores das empresas, vão ser os artistas populares, etc, e vão mudar as coisas.
Óbvio que mudanças geracionais se acumulam e provocam mudanças culturais ao longo do tempo. Alguma mudança é inevitável, especialmente no campo dos costumes, dos gostos, do que é socialmente aceitável. Mas ainda assim esses jovens, tanto na educação quanto na formação profissional, ideológica, etc, foram profundamente impactados pelo que os mais velhos disseram e fizeram. Não só isso, mas a situação em que eles agiram quando jovens e na qual vão agir quando começarem a “liderar o esquema todo” quando mais velhos não é uma folha em branco; é antes um jogo cujas regras foram bem solidificadas pela geração anterior.
Dizer que o futuro é dos jovens é mais um ópio do povo (por que estou pensando tanto em Marx hoje? Damn!), que se compraz em esperar pelo melhor que vem aí (já tá ali, ó, quase aqui) ao invés de cobrar de quem poderia fazer a diferença agora que, enfim, a faça! E isso é particularmente importante, porque se trata de cuidar que quem ocupa posições de liderança cuide das circunstâncias em que as novas gerações vão agir, deixando o melhor legado possível. É o que deveríamos querer, não é? Deixar o melhor mundo possível para nossos filhos e netos?
Mas dizer que o futuro pertence aos jovens pode significar também outra coisa: antes de representar esperança e estafa frente a uma situação que parece impossível de mudar com “quem está lá” no momento, pode ser uma cobrança.
Onde estão os jovens?
Me diga: quando vocês pensam em um síndico, o que vem à cabeça? Provavelmente um homem ou uma mulher que, se não está aposentado, é mais velho. Em muitos prédios, também, o perfil de quem costuma ir à reunião de condomínio é dos que têm, no mínimo, uns 30 anos de idade.
Alguns que dizem que o futuro é dos jovens costumam apontar dedos: são vocês que têm que garantir a mudança. Fazendo protestos e, em geral, participando politicamente (tendo a “consciência política” que “falta a esses jovens de hoje em dia” (sigh)).
O que é bizarro é esperar isso dos jovens e, ao mesmo tempo, ter um limite de idade mínima pra ser candidato a certos cargos, como deputado, senador e chefes de executivo. Não é curioso? O que essa realidade normativa (os limites de idade) e descritiva (quem costuma participar de reuniões de condomínio, bairro, etc e exercer o cargo de síndico) nos revela? Ora, que é estranho conferir à participação política dos jovens o papel de protagonista no processo político de uma sociedade.
Jovens estão acordando pra tantas coisas pela primeira vez: não só quando se fala de adolescentes, mas mesmo ao longo dos anos 20 de alguém ocorrem descobertas vocacionais, profissionais, identitárias – existenciais mesmo. Além disso, o começo da vida é uma fase não só de planos (e dá mesmo pra culpar aqueles cujos planos só marginalmente incidem sobre a “política da nação”?) como também de preparação, um inferno técnico ao qual a sociedade contemporânea sujeita os jovens, mas que não obstante é real e exaustivo. Aqueles jovens de alta instrução, nos quais muitos depositam grande esperança, são aqueles que vão se matar de estudar a ponto de não realmente ter muito tempo pra política (como a estudante de direito que não sabia de um escândalo sobre o qual, tipo, ninguém para de falar). Os jovens de baixa renda e/ou instrução são aqueles que, quando estudarem (e cada vez mais fazem isso, o que é ótimo), vão conciliar isso com um emprego; quem sabe até dois.
Quando você já tem um trabalho que paga o bastante pra viver sem grandes preocupações; quando tem uma casa própria e seus filhos já cresceram e se não saíram de casa ainda, estão quase… É nessa hora que você começa a ter tempo de sobra pra observar e analisar a política (ou, sei lá, o próprio condomínio em que vive). Não só tempo, aliás, mas experiência. Uma noção melhor de muitas coisas, desde a administração até como lidar com pessoas e opiniões diferentes, que você vai ter encontrado muito na vida (e algo que, numa sociedade com um ethos mais democrático, seria mais comum e forte nos mais jovens e mais uniforme entre os mais velhos).
Os jovens pertencem ao futuro
Com tudo isso não quero sugerir que os jovens devam parar de se preocupar com política, nem que é justificável que não o façam. Também não quero dizer que é inútil todo movimento político da juventude, que na verdade tem bastante força em determinadas situações, e por mim, sinceramente, quanto mais, melhor. Mais ainda, tampouco pretendo cair no inverso da lógica que critico, desacreditando a juventude por falta de experiência. Uma vez que eu mesmo ainda seja jovem, seria o cúmulo da internalização da opressão uma besteira dessas.
O que pretendi mostrar é como essa ideia de que o “futuro pertence aos jovens” revela uma estratégia que convém ao status quo à medida que põe em evidência o pior lado da esperança: o fato de que ela é, em geral, passiva. Não há razão pra não lutar por toda sorte de melhoria e progresso hoje, tanto os jovens quanto os adultos, independente de quem ocupa posições de liderança. Jogar tudo nas costas de uma parcela da população ou desistir, esperando por condições melhores (quando os jovens de hoje mandarem na parada), é que parece ingênuo: ignora-se ou o quanto é demais pedir que a juventude carregue o fardo do progresso, ou o quanto essas condições futuras vão sendo moldadas constantemente e sempre por quem está no topo da pirâmide agora.