Atenção: SPOILERS para TODAS as temporadas de Dark abaixo!
Mesmo envolvendo sociedades secretas e tecnologias apocalípticas na Alemanha do século XX, é curioso que Dark, a aclamada série da Netflix, ignore completamente o nazismo. Isso não necessariamente prejudica a narrativa, mas dá uma ideia de quão difícil é analisá-la politicamente. Suas ponderações sobre o livre arbítrio, por exemplo, seguem uma linha mais “psicológica” ou “filosófica”, que muitos já exploram bem. Será que existe algo a dizer sobre ela, politicamente?
É fácil e tecnicamente correto dizer que “tudo é político”, mas isso não ajuda muito. Parte do arco narrativo de Hannah, por exemplo, tem a ver com se tornar menos emocionalmente dependente de homens. Mas suas decisões dependem da autonomia que lhe é culturalmente conferida; ainda mais, importa que para a equipe criativa essa história pode ser contada e será bem recebida pelo público. Em outras palavras, esse arco depende de questões políticas mais amplas para existir, mas só estamos falando do fato de que a trama é um produto da indústria cultural que se passa, foi produzida, e é consumida, no século XXI (e não, digamos, no XV). Isso não quer dizer muita coisa. Certamente não quer dizer que a série é feminista em qualquer sentido substantivo do termo – ao menos não por isso.
É claro que há obras mais explicitamente políticas que outras. Política e Dark não são exatamente um “par perfeito”. Mesmo assim, acho que há coisas interessantes a explorar nessa relação. A série apresenta interações e conflitos humanos que se resolvem de certa forma; sendo uma ficção científica, estas questões são navegadas usando termos e conceitos das ciências exatas[1], mas minha intenção com este texto é, em certo sentido, “traduzir” esta linguagem para a da teoria política, analisando o que Dark tem a dizer sobre o tema, mesmo que o faça sem muita intenção.
Isso implica duas coisas.
- Antes de falar sobre política, devemos falar sobre os conceitos científicos com os quais a série brinca, para especular sobre o que de fato teria ocorrido nela[2]. Você até pode ir direto para a parte sobre política, mas pode não entender algumas coisas que eu digo sobre a sequência de eventos da série – e se tentar ler só a partir dessa parte, pode não entender por que eu acho que certos conceitos científicos usados pela série implicam que as coisas aconteceram dessa forma.
- Como meu entendimento de física é extremamente limitado, este será um edifício argumentativo bem delicado, podendo estar parcialmente incorreto. Minha esperança é que o fato de a série ser bastante fantasiosa “se cancele” com a minha compreensão medíocre da ciência exata envolvida. Quem sabe ao menos minha leitura dos eventos da série seja auto-consistente – e minha leitura política destes, inspiradora.
Tabela de conteúdos
- Dark e a ciência das viagens no tempo
- O que é o tempo?
- A possibilidade de voltar ao passado
- Introduzindo o determinismo
- Possibilitando viagens (deterministas) no tempo
- Os universos de Adão e de Eva envolvem CFTTs
- É difícil compreender CFTTs ao vivenciá-las
- Introduzindo o indeterminismo
- Interpretando a física quântica
- Não, Dark não tem nada a ver com a teoria dos muitos mundos
- Como é viver em Winden
- O plano de Tannhaus
- O efeito da máquina de Tannhaus
- Como a máquina de Tannhaus (poderia) funciona(r)
- O que é o “nó”?
- A dualidade partícula-universo
- Universos emaranhados
- Duas superposições
- O paradoxo no que nos dizem sobre o final
- O final Copenhague
- O final Ação Avançada
- Reinterpretando os eventos de Dark
- O passo estratégico de Claudia
- Entendendo as realidades paralelas
- Reenquadrando o que vemos na tela
- O que acontece no apocalipse do mundo de Eva
- Os possíveis papeis de Claudia 1
- As duplicações do terceiro apocalipse
- A Claudia 1 conheceu a Claudia 2?
- A última mentira de Claudia Tiedemann?
- O retorno da triquetra
- A filosofia política de Dark
Dark e a ciência das viagens no tempo
Há três coisas na série cuja conexão, mesmo após o fim, permanece misteriosa: como funciona a máquina de Tannhaus no mundo original, qual era a natureza e a dinâmica dos universos de Adão e de Eva, e o que aconteceu no último episódio, quando estes mundos[3] desaparecem para “consertar” aquele. A resposta a cada uma dessas questões ajuda a descobrir a resposta das outras (“tudo está conectado!”).
Por que a série não respondeu tudo satisfatoriamente? Considere o seguinte: se Jonas e Martha, cujas existências dependem do acidente de carro que levou Tannhaus a criar sua máquina, voltam para evitar o acidente e têm sucesso, o acidente tem que acontecer (não pode ser evitado) para que possa ser evitado[4]. Claudia diz a Jonas (Adão) que também usou o apocalipse para se mover em outra direção – mas cadê a “Claudia 2”?[5] Se todo “ciclo” só pode ocorrer devido à ocorrência de todos os outros, não faz sentido pensar em uma sequência de ciclos, muito menos na ideia de que as coisas podem mudar. A cadeia de causa e efeito é quebrada por uma fração de segundo no apocalipse; Eva sabe disso, e usa esse recurso. Mas a Martha “duplicada” no apocalipse de Adão não sabe. Como ela “se duplica”, então, se é uma questão de usar o livre arbítrio? Por que somente Jonas e Martha, que nem sabiam de nada disso, “duplicam-se” naquele momento? Por que não há uma segunda versão de cada pessoa no mundo inteiro que passou pelo apocalipse? Mais: se causa e efeito se quebram, então existe não só a possibilidade de fazer uma escolha “diferente”, mas uma aleatoriedade absoluta. Em cada fração de segundo, cada vez que o ciclo se repete – e, se formos acreditar em Claudia, isso aconteceu milhares de vezes – cada Martha pode ter tomado uma decisão diferente e assim se multiplicado milhares de vezes. Certamente haveria mais que duas Marthas. Uma salvou o Jonas, outra foi com Bartosz, outra se escondeu em algum lugar e sobreviveu sem ter feito nada disso, outra morreu, outra voltou com Bartosz mas não tornou-se Eva, etc. Na verdade, se causa e efeito “deixam de funcionar”, nada impede que Martha se transforme no Luan Santana de um momento para outro. E no entanto, a cada repetição, é preciso que Martha escolha apenas as duas coisas que dão origem às sequências de acontecimentos que deram origem àquele momento – se não, aquele momento sequer poderia ter acontecido. O que é que a interrupção do tempo e da relação de causa e efeito tem a ver com duas coisas acontecendo ao mesmo tempo?
DETALHE 1: Vale lembrar que não é possível supor que em um “ciclo” uma Martha escolhe uma coisa e que no “próximo” ela escolhe outra. Sempre que Martha escolhe voltar com Bartosz, Eva a faz matar o Jonas que só poderia estar ali se a Martha que escolhe salvá-lo já tiver feito isso ao mesmo tempo. Então não se trata de escolhas alternadas por ciclo; é realmente uma “multiplicação” de Marthas que ocorre ali.
Mais adiante, farei vários “chutes informados” sobre coisas que devem ter acontecido, mas que a série não mostrou. Creio que isso aconteceu por algumas razões. Gravar menos cenas é mais barato para a Netflix. Também possibilita varrer para baixo do tapete aspectos da trama que tornariam o final menos “heroico”. As “sementes” que a série deixa (como Claudia dizendo que usou o apocalipse, em vez de uma cena que mostra ela fazendo isso) são suficientes para permitir especulações sobre o que ocorreu sem exigir que todo mundo acompanhe todos os detalhes. Assim, foi uma boa estratégia: a maioria das pessoas curte o final, sente que ficou tudo resolvido, e só alguns nerds obcecados se propõem a entrar no buraco de coelho para seguir as pistas até o fim. Se quer saber até onde cheguei ao fazer isso, vamos começar falando sobre o tempo.
O que é o tempo?
A perspectiva que talvez melhor represente o senso comum sobre o que o tempo é se chama presentismo. Vivemos apenas e sempre no presente, e tanto o futuro quanto o passado não “existem” de fato. É como brincar com uma massa de modelar: só pode haver um “estado de coisas”, um jeito de a massa estar por vez, e o “tempo” faz referência à série de suas transformações de um estado para outro.
No entanto, você pode transformar uma massa de modelar mais ou menos rápido. Por acaso o tempo passa em tempos diferentes? Não faz sentido. Parece uma tentativa (circular) de evitar explicar o que o tempo é. Por sua vez, a perspectiva de “bloco crescente” vê a passagem do tempo como uma espécie de acúmulo de passado[6]. Seria como construir uma torre; os andares mais altos que aquele que você está construindo agora não existem ainda, mas os que você já terminou, permanecem abaixo de você. Já a teoria do “bloco universal”, também conhecida como eternismo, sustenta que “todos os pontos no tempo são igualmente ‘reais'” – isto é, incluindo o futuro. “Mover-se no tempo” é simplesmente como ir de um lugar para outro. Quando você está em casa, os outros lugares não deixam de existir. Eles “estão lá”, é só você que não está neles. O mesmo se aplica a eventos futuros.
A possibilidade de voltar ao passado
Em certo sentido, presentistas não podem admitir viagens no tempo, pois não existiriam outros tempos para onde viajar para começo de conversa. Já que só o “agora” existe, viajar para o passado só poderia significar (cretinamente) transformar todo o universo até recriá-lo exatamente como era no momento ao qual você gostaria de voltar. Já teorias de bloco crescente admitem viagens ao passado, ainda que de um jeito estranho. Um exemplo interessante é meu próprio livro M10, mas talvez o mais conhecido (haha) seja o filme No Limite do Amanhã (baseado no mangá All You Need is Kill). O passado vem a existir na medida em que o presente vai avançando. O passado se conserva; assim, seria possível visitá-lo. Só que, como só pode haver um tempo de referência – o “agora” – isso implica que visitá-lo significa retardar todo o “agora” para trás, apagando tudo que já havia acontecido depois do momento ao qual você volta. Na metáfora da torre, seria como se fosse necessário “desfazer” os andares que já tinham sido construídos até chegar de volta ao andar para onde você quer voltar (porque você só pode estar em um andar de cada vez, e nenhum andar acima do seu pode existir). Voltar no tempo, nesse caso, se não fosse uma coisa instantânea, seria como naquele clipe do Coldplay:
A questão é que a relatividade geral dificulta que vejamos no “agora” um momento “privilegiado”, pois o tempo depende do ponto de referência. Enquanto o presentismo e a teoria de bloco crescente definem que estamos todos juntos num mesmo ponto no tempo, que vai sempre na mesma direção, a relatividade geral já demonstrou que esse não é exatamente o caso. Cada elemento, cada objeto, cada pessoa, possui uma linha-mundo, que é o caminho por onde ele/a passa no espaço-tempo (o que aquela cena de Donnie Darko tentou representar). Não é o tempo que passa; nós é que passamos pelo tempo, cada um com uma linha-mundo própria, que pode inclusive passar por “deformações no tempo”. O filme Interestelar traz um exemplo interessante e 100% científico: ao aterrissar em um planeta próximo a um buraco negro, cada hora lá equivale a sete anos na Terra. Ou seja, deformações gravitacionais permitem ir do ponto “ano 2000” até o ponto “ano 2007” em uma hora (no chamado “tempo local”), enquanto as linhas-mundo que não são afetadas por essa deformação ainda demoram 7 anos para transitar entre esses mesmos pontos do tempo. Além disso, a relatividade também permite desconfiar da necessidade de uma única direção para o tempo, isto é, não há nada[7] no universo que force uma linha-mundo a ir sempre numa mesma direção no mapa, em direção ao “futuro”.
“A diferença entre passado, presente e futuro é uma ilusão, ainda que persistente” – Albert Einstein
Para a teoria de bloco crescente não seria possível fazer todo o “agora” retroceder; na prática, portanto, viagens no tempo fariam quase tão pouco sentido quanto para o presentismo. Já o eternismo sofre do problema oposto: se viagens no tempo são possíveis, por que não ocorrem? Embora “viagens”[8] no tempo no sentido relativista são bastante corriqueiras (o GPS nos nossos celulares não funcionaria sem levá-las em conta), por que não podemos, por exemplo, contar a nós mesmos no passado quais foram (serão) os números da mega-sena?
Introduzindo o determinismo
Para começar, deformar o espaço-tempo tanto assim, de forma tão específica, exigiria condições muito diferentes das que temos aqui, na superfície do planeta Terra. Voltarei a isso em breve. Primeiro, falemos sobre uma razão filosófica importante: o determinismo. Linhas-mundo são como correntes ligando cada momento de um elemento ao próximo. Toda causa tem uma consequência, e vice-versa. Desde que o universo surgiu do jeito como surgiu, cada momento vem causando o próximo de tal modo que uma quantidade inimaginável de energia seria necessária para “causar” um movimento de toda a matéria que a levasse “para trás” na dimensão temporal. Nada na cadeia de eventos desde a origem do universo nos permite imaginar que algo assim possa acontecer por aqui. Em outras palavras, teoricamente você poderia se mover para o passado na dimensão do tempo, mas na prática, as condições iniciais do universo (Big Bang) foram causando as próximas de maneira determinista, e nós somos o produto necessário dessa linha lógica.
“[Deus] não joga dados” – Albert Einstein
Deterministas presumem que, se tivéssemos todas as informações, sobre a realidade inteira – sobre todos os átomos, todas as energias, tudo – poderíamos saber com certeza como o futuro seria. Deterministas podem até aceitar que nunca teremos a potência (biológica, cognitiva, computacional) para realmente calcular o futuro em tal nível de detalhe, mas se apegam à ideia de que ele já está determinado mesmo assim. No fundo, tudo seria uma questão de conservação de matéria, de energia, e toda sorte de lei natural rígida que faz uma causa ter apenas uma consequência e vice-versa. Por outro lado, se não podemos prever o futuro por falta de informação, não é sempre o caso do passado. Podemos, por exemplo, dizer que se eu pudesse, em algum momento do futuro, voltar para me fazer ganhar na mega-sena semana passada, eu já teria feito isso, porque “semana passada” já aconteceu, já é um ponto determinado no espaço-tempo.
Possibilitando viagens (deterministas) no tempo
Se na prática a perspectiva eternista explica por que viagens no tempo não aconteceram ainda ou por que são provavelmente impossíveis, a possibilidade matemática ainda existe. Como o determinismo continua sendo uma condição – para toda causa deve haver uma consequência, e vice-versa – pensar uma linha-mundo (ou sistema de linhas-mundo) cuja trajetória leve para um ponto do tempo no passado implica uma trajetória “circular”: o passado deve causar que no futuro a linha volte para esse mesmo passado, assim como o futuro deve causar que no passado a linha siga para esse mesmo futuro.
Por essa razão, viagens no tempo, em uma perspectiva eternista, significam uma linha-mundo que constitua uma curva fechada de tipo tempo (CFTT). Como explica Leo Stein, uma CFTT “é uma trajetória que é perfeitamente normal em todos os lugares, sempre obedecendo às regras de se mover em uma direção tipo tempo [abaixo da velocidade da luz], sempre se movendo para frente no tempo (do ponto de vista local), e no entanto ela acaba onde (e quando) começou”. Esse cenário é possível se “o espaço-tempo possui uma geometria estranha”; como vimos acima, deformações – leia-se: curvas – no tecido temporal são causadas por diferenciais de gravidade. A ideia é imaginar uma deformação gravitacional tão gigantesca que as linhas-mundo se fecham num círculo. Como explica essa aula do The Great Courses Daily, tais “geometrias estranhas” poderiam ser causadas por buracos negros rotatórios ou por – aqui vamos nós! – buracos de minhoca.
Numa CFTT, o tempo sempre passa “para frente”, mas essa “frente” poderá ser um ponto do passado. Veja a figura 2 abaixo: é como dar a volta num círculo até um ponto “antes” de onde você estava: este ponto será ao mesmo tempo um ponto “depois” de onde estava, simplesmente porque essa é a relação entre quaisquer dois pontos de um círculo!
Os universos de Adão e de Eva envolvem CFTTs
Na série, vemos repetidamente que, como num círculo, “o começo é o fim”. Não há “uma origem” do que acontece. O livro de Tannhaus do mundo de Adão não é o único exemplo do paradoxo ontológico (ou “de bootstrap”); a série está cheia deles, incluindo a própria árvore genealógica d’O Desconhecido, tataravô (por parte de pai) e trisavô (por parte de mãe) de si mesmo. Uma das consequências mais notáveis dessa circularidade é que, já que as pessoas podem voltar no tempo, o futuro também influencia o passado, e se o futuro (consequência do passado) existe, então o passado deve, por necessidade lógica, ser igual – assim como o futuro, pois este já existiu quando influenciou o passado. Não há uma origem dentro do círculo. Em um universo com viagens no tempo aos moldes de uma CFTT, ninguém pode “alterar” qualquer coisa ao ir para o passado. CFTTs são formas de pensar viagens deterministas no tempo. No futuro, acontecerão coisas que serão causas de coisas ocorridas no passado, e portanto não é só o passado que não pode mudar, mas o futuro também: o futuro se torna uma forma de passado.
Podemos supor assim quais são as presunções básicas sobre o tempo nos universos de Adão e de Eva em Dark. Voltar no tempo não é como na teoria de bloco crescente: o passado e o futuro estão sempre “lá” para serem “visitados”. Precisam estar. O futuro tem que ter uma “materialidade”, já que já influenciou o passado (novamente: o futuro se torna uma forma de passado). Quando Hannah vai de 2020 para 1987, ela não fica mais jovem; o tempo (local) dela se mantém, ou seja, se ela ficou algumas horas lá, ela envelheceu de fato essas horas, mesmo estando em outro ano. Assim, as linhas-mundo vão sempre para “frente”, mesmo que sua “frente” seja um ponto no passado. O próprio site oficial da série representa as viagens no tempo com semicírculos, não com setas indicando pessoas indo “para trás” na linha (veja a figura 3 abaixo). Além disso, a causalidade parece ser rigidamente mantida; tudo que alguém volta ao passado para fazer já aconteceu, porque fez parte das causas dessa viagem para o passado. A depender de quanto tempo você volta, você acaba transitando pelo mesmo tempo que já viveu antes, ainda que com outra perspectiva. Porém, se não for o caso (se você voltar para muito antes de nascer, por exemplo), mesmo assim está causando as causas de você nascer e de ter crescido de modo a vir para onde está.
DETALHE 2: Quando falamos de um tempo “circular”, estamos usando o círculo como a representação mais simples de uma linha que se fecha em si (sem começo nem fim); qualquer forma geométrica bidimensional sem pontas soltas (quadrado, losango, triângulo, etc.) funcionaria tão bem quanto para representar a ideia de uma CFTT (não no sentido matemático-físico; apenas no sentido filosófico, do qual precisamos aqui). Precisaremos de figuras geométricas mais internamente complexas que um círculo para falar sobre Dark – mais adiante analisaremos, por exemplo, o “símbolo de infinito” que Eva usa para explicar o que acontece no apocalipse de 2020 do mundo de Adão (Figura 6 abaixo).
É difícil compreender CFTTs ao vivenciá-las
Mas nós não sentimos o círculo enquanto círculo – como dito acima na definição de Stein, a movimentação é “perfeitamente normal em todos os lugares”. A experiência de viver parece linear, porque vai sempre para frente no tempo. Como Jonas passa duas vezes pelo mesmo ponto no tempo (numa CFTT), acha que ele “acontece” duas vezes, mas ele só acontece uma. Seria como sair de uma casa e, ao entrar nela de novo, com ela em igual estado, você achar que ela tem que estar em outro lugar no mapa. Várias linhas-mundo podem passar pelo mesmo ponto no tempo; ele ainda é um ponto só.
Imagine que (seguindo a lógica de Dark) você resolva visitar uma festa em algum ponto no passado. Você viaja para lá uma vez quando tem 20 anos de idade, depois retorna para o tempo de onde veio; depois de novo, com 30 anos, e de novo com 40, e assim por diante. Cada vez que viajasse, chegaria lá e veria os seus outros “eu”s (de 30, 40, 50 anos de idade, etc.) porque tudo já teria acontecido, tudo sempre aconteceu dessa forma. Na sua cabeça, parece que são “ciclos”, porque você chegaria na festa e veria ela acontecer de novo e de novo – e no entanto não é uma coisa se “repetindo” várias vezes, e sim um único evento, um único ponto no círculo. Deve ser uma sensação esquisita: o seu “eu” de 80 anos verá o seu eu de 20 e pensará: “caramba, ele/a estará vivo/a depois que eu morrer – então ele/a vai estar aqui para repetir tudo isso!”. Em certo sentido, sim, a sua linha-mundo passará diversas vezes pelo mesmo ponto, o que é crucial. Nesse sentido limitado, há ciclos: sua linha-mundo só “passa” por ali, e depois da festa faz outra trajetória antes de voltar a passar por ela. Mas isso é só a forma como nós vivenciamos o tempo; o seu “eu” de 20 anos não teria como também ter oitenta para vivenciar essas duas perspectivas simultaneamente. Você não é o Dr. Manhattan; daí o “presentismo” do senso comum, segundo o qual apenas “o presente” é real; segundo o qual, cada vez que você chegasse na festa, ela estaria sendo recriada do zero, sem determinações. Porém, o determinismo eternista nos diz que, objetivamente, nenhuma versão de você poderia “mudar” qualquer coisa nessa festa, e que, subjetivamente, cada versão de você está ali pela primeira vez, porque você está sendo aquela versão de si pela primeira vez. Assim, não faz sentido pensar em “mudar” o que você fez se você está agindo pela primeira vez do ponto de vista de cada “você”.
A série brinca com essa ideia com as ações d’O(s) Desconhecido(s). Embora ele(s) tenha(m) sido ensinados por Eva, de acordo com quem as ações do Erit Lux mantêm o círculo, a atuação em concerto da versão mais jovem, adulta e idosa d’O Desconhecido simbolizam a imutabilidade do que quer que aconteça (todo lugar a que eles vão parece a “festa” que imaginei acima). Eles são inevitáveis a cada passo que dão. Quando assistimos à série, especialmente de início, nos perguntamos o que acontece “se as coisas forem diferentes dessa vez”. A resposta padrão é que isso não é possível (se Mikkel voltasse para 2019, Jonas não poderia nascer; Jonas não pode morrer porque Adão já existe, etc). Embora este seja outro paradoxo clássico de histórias de viagens no tempo, lá no fundo insistimos: “Certo, as coisas se repetem num círculo. Mas e da próxima vez que se repetirem? Não tem como ser diferente aí?”. Só que não existe “próxima vez”, porque cada ponto no tempo é um só. Os “ciclos” até existem, mas são completamente determinados.
Introduzindo o indeterminismo
Só existe uma pequena pedra no sapato desta forma de entender os universos de Adão e de Eva, e ela se chama física quântica (FQ)[9] – que é a pedra no sapato, na vida real, da relatividade geral. Embora objetos grandes, que vemos no dia a dia, comportem-se dessa forma “determinística” (toda ação tem uma reação, leis de Newton, gravidade deforma o espaço-tempo de forma calculável, etc.), não observamos o mesmo comportamento quando estudamos as partículas invisíveis a olho nu que as compõem. Um elétron, por exemplo, se comporta de duas maneiras: como partícula (como uma bola de tênis) ou como onda (como as que a água faria se você jogasse uma bola de tênis numa piscina). O vídeo abaixo explica de um jeito bem fácil o experimento que nos possibilitou descobrir isso:
Assim, toda partícula subatômica (vou usar elétrons como exemplo a partir de agora, por brevidade) é melhor representada por uma função de onda, uma equação que descreve esse seu comportamento duplo. Se você quiser saber onde está a partícula elétron – qual é a sua posição – você até consegue, mas vai deixar de ver o seu momento, ou seja, sua direção, sua energia, etc. Se você quer saber qual é o seu momento, você teria que ver o elétron como onda, mas se fizer isso, não sabe mais onde exatamente ele está – uma onda não tem uma posição só, certo? Mas por que uma função de onda descreve melhor o elétron, se ela é uma onda e uma partícula ao mesmo tempo? Porque a onda de um elétron representa uma “distribuição de probabilidades”, ou seja, os lugares onde há maior ou menor probabilidade de o elétron aparecer como partícula quando sua posição for determinada. Esse é basicamente o princípio de incerteza de Heisenberg, que talvez você já tenha ouvido falar no ensino médio. Você pode saber alguma coisa sobre um elétron, mas não tudo. E, o que é muito importante, sempre que você determina uma das coisas que se pode determinar, ela será determinada aleatoriamente.
“Einstein, pare de dizer a Deus o que ele deve fazer” – Niels Bohr
Era isso que tanto irritava Einstein. A existência de aleatoriedade verdadeira indica a impossibilidade de pura determinação de um momento para outro. Para Einstein, isso fazia da FQ uma teoria incompleta. Ele não estava totalmente errado; embora todas as coisas bizarras que a teoria diz que devem acontecer aconteçam em laboratórios, e façam sentido matematicamente, a relatividade geral também é inegável. Conciliar as duas teorias é um enorme desafio, até hoje inacabado dentro da física – e envolve a controvérsia de interpretar a FQ, ou seja, o que essas equações e esses experimentos nos dizem sobre a natureza da realidade.
Interpretando a física quântica
A interpretação clássica da FQ se chama “Interpretação de Copenhague“, e diz o seguinte: o elétron se comporta como onda até ser “observado” (medido por um aparelho), momento em que a onda “colapsa” na forma de uma partícula. O comportamento de onda implica uma característica importante da FQ: a “superposição”. Se o elétron tem locais superpostos, ele pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. Se ele tem 50% de chance de estar aqui e 50% de estar lá, é como se ele estivesse nos dois lugares ao mesmo tempo, e nos experimentos ele age como se estivesse mesmo. Na perspectiva Copenhague, quando o elétron é observado, a onda “colapsa” e ele se revela em algum lugar (aleatoriamente; probabilisticamente) enquanto partícula.
DETALHE 3: Para alguns, isso é apenas um problema instrumental. “Medir” uma coisa assim pequena inevitavelmente significa “interagir” com ela. Para ver alguma coisa, precisamos de luz. Embora acender uma lâmpada não nos faz cair da cadeira, a própria luz é composta por partículas subatômicas, e assim usá-la para estudar uma partícula é jogar uma partícula em outra. Qualquer tentativa de medir uma partícula, portanto, vai afetá-la.
Entretanto, as coisas não parecem ser assim tão simples. Elitzur e Dolev, por exemplo, argumentam que a indeterminação é ontológica, não apenas instrumental. Embora essa questão de “medir uma partícula com outra” mostre que não podemos medir a posição e o momento da partícula ao mesmo tempo, o experimento EPR-Bell parece indicar que as variáveis não são apenas “desconhecidas” antes de serem medidas, mas que elas não existem antes de serem medidas.
“Eu acho que posso dizer com segurança que ninguém entende física quântica.” – Richard Feynman
Conhecer a ideia de superposição, bem como a interpretação Copenhague, será útil mais tarde. Por enquanto, perceba que, segundo essa perspectiva, não há explicação física para esse “colapso” e, sinceramente, muitos/as não estão preocupados/as com isso: desde que os números nas fórmulas deem certo, tanto faz. Nesse “dar de ombros”, a física aceita a indeterminação: onde está o elétron? Sei lá. Sabemos que ele pode aparecer aqui, ou ali, ou lá… Mas, se não há certeza, as causas e efeitos até podem existir, mas somente retroativamente, não podendo ser definidas de antemão. Não pode haver determinismo. Deus joga dados; na verdade, Ele o faz o tempo todo.
DETALHE 4: O realismo crítico também oferece uma alternativa à explicação determinista do universo, partindo da ideia de “níveis emergentes” de complexidade. Contudo, não tenho certeza sobre o quanto ele interage com a questão da aleatoriedade quântica.
Não, Dark não tem nada a ver com a teoria dos muitos mundos
Uma das interpretações mais populares da FQ (não só entre cientistas, mas entre leigas/os) é a teoria dos muitos mundos. O tempo seria uma linha em constante bifurcação. Cada vez que um elétron deixa de estar superposto (colapsa probabilisticamente), o universo se divide em vários, um para cada posição possível. Então em cada “universo paralelo” o elétron colapsou em um local diferente; da perspectiva de cada um, ele só colapsa em um único local.
Essa teoria me irrita porque, para começo de conversa, nem é lá muito científica (é infalseável[10]). Dá para entender porque ela parece útil no contexto de Dark – uma série com “universos” e “realidades” paralelos, ao mesmo tempo. Porém, há dois problemas em usá-la para interpretar a série:
- A teoria não parece propor formas de se “deslocar” de um universo para o outro; na verdade, é o exato oposto. Os universos gerados a partir de um “colapso” da função de onda são mutuamente inacessíveis.
- A teoria não prevê que o universo se divida apenas em momentos especiais (como Tannhaus ligando sua máquina no universo original), mas sim zilhões de vezes a cada fração de segundo por todo o universo.
O determinismo da teoria, sendo retroativo apenas, até não conflita tanto com a série; de qualquer modo, vamos dispensá-la daqui em diante, já que ela não nos ajuda em nada.
Como é viver em Winden
Com isso, temos um vocabulário técnico bom o bastante para começar a investigar melhor as três questões do início dessa parte do texto. Qual é a natureza (interna) dos universos de Adão e de Eva? Podemos descrevê-la como determinista (por compor CFTTs) ou não (por não escaparem aos efeitos da indeterminação quântica)? Parece-me que se trata de ambas: os universos de Adão e de Eva são “semideterminados”.
Compare as cenas de suicídio de Michael abaixo (figura 4). Perceba como da primeira vez que o vemos acontecer, o dia está bonito. Da segunda vez, no entanto, está chovendo intensamente.
Embora nós ainda não entendamos bem como interpretar a FQ na vida real, a equipe criativa da série fez com que os universos criados por Tannhaus sejam não-determinísticos – isto é, funcionem de acordo com alguma interpretação de FQ que permita verdadeira aleatoriedade. Por outro lado, a “circularidade” temporal acaba exigindo uma consistência de causas e efeitos que se mantém a despeito dessas pequenas variações (como as meteorológicas). Temos, assim (nos universos de Adão e de Eva) uma mistura de eternismo determinista (por conta dos buracos de minhoca, que causam CFTTs) com FQ (que provoca indeterminação), resultando em pontos do tempo em que as mesmas coisas ocorrem, porém com pequenas variações cada vez que linhas-mundo passam por eles novamente.
DETALHE 5: Uma arma funcionar ou padecer de algum pequeno desalinho que a faça “travar” é bem o tipo de coisa que imaginaríamos que a variação quântica pudesse aleatoriamente decidir. No entanto, em ao menos duas oportunidades vemos armas falharem de formas bem convenientes (posto que fundamentais para a consistência da história). Fica em aberto se elas falham por alguma causa mais estrutural que se repete ou se, a despeito da variação quântica, alguma proteção cronológica está em efeito nos universos de Adão e de Eva. Talvez esta proteção seja um parâmetro necessário, imposto pela operação da máquina de Tannhaus, como veremos a seguir.
O plano de Tannhaus
Para entender como isso é possível, falemos um pouco sobre como esses universos foram criados. Heinrich Gustav Tannhaus é o relojoeiro de Winden. Seus antepassados acreditavam na possibilidade de viajar no tempo. Em 1986, ele conclui uma máquina na esperança de evitar um acidente de carro em 1971 em que morreram seu filho, sua nora e sua neta.
Se pensarmos que o universo de Tannhaus é como o nosso, viagens no tempo não são possíveis. Mesmo se acreditarmos no eternismo determinista, não há buracos de minhoca na Terra. Além do que, como no exemplo da mega-sena, se no futuro fosse possível voltar para o nosso passado, isso já teria acontecido, e com toda causa tendo uma consequência e vice-versa, a estabilidade seria mantida de qualquer forma. Não é possível mudar o que já aconteceu, pois isto já está inserido na cadeia de causas e consequências, tendo causado outras coisas que já aconteceram. Sem o acidente de carro, a máquina sequer teria sido criada por Tannhaus em primeiro lugar!
Tannhaus, ao contrário de seus antepassados, parece saber muito bem disso. Ao planejar sua máquina (T03E07, ênfases adicionadas), ele comenta:
[As pessoas] anseiam em vão por uma maneira de fazer o tempo voltar. Uma maneira de reverter a morte. Mas, se o tempo é relativo e nada realmente está no passado, e a sobreposição simultânea de realidades diferentes é possível, então também não deveria ser possível recuperar algo que acreditamos estar morto há muito tempo e criar uma realidade na qual os mortos voltam à vida?
Podemos concluir que Tannhaus, dispondo de mais conhecimento sobre as leis da física, não se propôs a “enganá-las”; ele sabe que isso é “em vão”. Ele projetou uma máquina para tentar mudá-las. Porém, ele logo deve ter chego a alguma discrepância que o fez mudar de planos (mudar as leis só valeria de “agora” em diante; não seria possível mudar as leis de um universo estando dentro dele – algo nesse sentido). Como descartamos a teoria dos muitos mundos acima, seu projeto não pode ser o de “acessar um universo paralelo”[11]. Ele deve ter concluído que sua única chance era criar um novo universo (vide citação acima), com leis diferentes, em que outra versão de si não tivesse que sofrer com a morte de sua família. Obviamente, não existe uma lei física que determine que um acidente de carro específico aconteça ou não. No entanto, existem aquelas que tornam mais difíceis as viagens no tempo. Assim, a estratégia mais promissora deve ter sido criar um universo parecido com o seu, mas em que as viagens no tempo são possíveis – não apenas teoricamente, mas na prática, em 1986, em Winden – para que uma outra versão de si pudesse evitar o acidente de carro. O acidente seria, no caso, evitado neste outro universo: o seu seria inevitavelmente destruído para dar impulso a esse salto de fé.
O efeito da máquina de Tannhaus
No último episódio da série, Claudia explica que o efeito da máquina foi “dividir e destruir” o mundo de Tannhaus. Ela diz que ele cometeu um “único erro”, que podemos interpretar que foi ter construído a máquina em primeiro lugar (é um erro da perspectiva dela, isto é, de uma pessoa condenada a ver – e fazer – sua filha sofrer e morrer). Repare também que em momento algum ela diz que Tannhaus queria “voltar no tempo”, o que reforça (ou ao menos não contradiz) a ideia de que ele queria criar um novo universo. Assim, ele não cometeu nenhum erro no sentido de que, se tivesse feito cálculos melhores, seu universo não teria sido destruído. Ele parece (T03E07, ênfase adicionada) conhecer as implicações de seu ato:
Todos os caminhos que seguimos em nossas vidas, toda decisão que tomamos, serão guiadas pelo nosso desejo mais profundo. Não podemos lutar contra esse desejo. Ele determina todas as nossas ações, mesmo que elas pareçam difíceis e inimagináveis.
O falso vácuo do Bóson de Higgs poderia explicar a destruição do universo. Faz sentido que o Bóson de Higgs (elemento subatômico que possibilita que a matéria tenha massa) esteja envolvido na operação da máquina porque 1) esta envolve criar um universo (com massa, portanto), e 2) interagir com toda a matéria do universo atual pode ser necessário para que o novo universo seja parecido com o antigo[12]. O Bóson de Higgs também é às vezes (toscamente) chamado de “partícula de Deus”, e se por um lado a série usa esse elemento de modo particularmente fantasioso, por outro pode haver uma explicação “interna” para isso: a ideia da máquina é justamente mudar as regras da física, e assim os universos que a série nos mostra (o de Adão e o de Eva) literalmente funcionam de acordo com outras leis.
Ou seja: poderia um buraco de minhoca existir por anos a fio, estável, numa caverna? Buracos de minhoca surgem a partir de matéria escura, que por sua vez surge de lixo radioativo? Provavelmente não, não e não, mas – tanto faz. A máquina de Tannhaus criou dois universos em que as coisas funcionam assim. Os mundos de Adão e de Eva são aqueles em que viagens no tempo se tornam possíveis, em 1986, em Winden; como sabemos, em cada um deles um acidente radioativo é provocado pelo(s) Desconhecido(s) em 1986. Isso cria um buraco de minhoca em cada caverna, que passa a conectar passado, presente e futuro – especificamente, 33 anos no passado e 33 anos no futuro, em cada universo. Isso muda muitas coisas, inclusive o passado: como vários eventos antes de 1986 tiveram que ser diferentes também, a diferenciação se estende por todo o espaço-tempo afetado. O efeito da máquina foi criar dois universos novos, com leis físicas que possibilitavam (e parâmetros adicionais escolhidos para causar) geometrias espaciais que induziam trajetórias como as CFTTs, alterando profundamente a cadeia de causalidade que os envolve.
Como a máquina de Tannhaus (poderia) funciona(r)
No entanto, se ele só precisava de um novo universo, por que dois (o de Adão e o de Eva) foram criados? Por que não apenas um? Por que não mais que dois?
Pensemos na complexidade da tarefa. Os parâmetros físicos do novo universo, podemos adivinhar, já vieram de Tannhaus (que buracos de minhoca funcionem assim, que o lixo radioativo seja assado, coisas do tipo). Há também os outros, mais diretos (como o fato de que a possibilidade de viagens no tempo deveriam ser possíveis em Winden, em 1986), que provavelmente não foram muitos. Mas isso é só o começo. É preciso equilibrar as consequências do universo ser assim diferente, acima de tudo as consequências projetáveis considerando as CFTTs resultantes desses parâmetros. Uma vez que a possibilidade de viagens no tempo esteja aberta, as coisas podem sair do controle muito rápido. Veja: se um acidente radioativo é necessário para possibilitar as viagens no tempo, isso já causa mudanças no passado, pois ou lixo radioativo de algum lugar teria que ir parar em Winden por alguma razão, ou teria que ser criado em Winden mesmo (a máquina foi com a segunda opção: os acontecimentos levaram à abertura de uma usina nuclear na cidade). Mais mudanças são necessárias: Doppler ficará sabendo do acidente; depois Claudia, e Aleksander, e assim por diante. Mais! – Se a caverna[13] é uma passagem 33 anos para trás e para frente, alguém pode entrar lá em 1978 e ir parar em 2001 (porque em 2001 ela já existe, então em 1978 ela também tem que existir).
Cada uma dessas diferenças provoca uma inconsistência de causa e efeito que a máquina tem que corrigir para que o “círculo” se feche. Para que os universos sequer possam existir, as cadeias de causa e consequência precisam ser estáveis, a despeito da pequena variação quântica, incalculável de antemão. A máquina não pode criar um universo com erros na cadeia de causa e consequência e ir empurrando a solução com a barriga, na esperança de que eventualmente as coisas se fechem – ou pelo menos podemos supor que Tannhaus não brincaria com o destino do próprio mundo com uma máquina que não “checasse” a cadeia causal antes de “ativar” um novo universo. No artigo da Wikipédia sobre CFTTs, lemos que “sua existência […] coloca restrições sobre os estados de campos de matéria-energia fisicamente permitidos”, isto é, não é qualquer estado de coisas que pode ocorrer, porque qualquer coisa que seja feita “deve eventualmente resultar no estado que é idêntico ao original”. O universo só pode existir quando a máquina “calcula” todos os momentos para que eles sejam minimamente consistentes entre si.
Assim, não deve haver muitos universos possíveis que satisfaçam os parâmetros de Tannhaus. Talvez dois tenha sido o maior número que a máquina atingiu. Talvez Tannhaus não teve nem tempo de escolher entre as duas possibilidades – ou, ainda, já que os dois universos estão juntos e se influenciam mutuamente (estão “emaranhados” – já chegaremos lá), eles precisaram ser criados da maneira como foram para satisfazer os parâmetros. Obviamente, a tentativa de explicar o que aconteceu em termos científicos esbarra no elemento mais fantasioso de todos, que é a própria máquina de Tannhaus. No entanto, se pudermos imaginar uma máquina com essa capacidade na vida real – criar universos a partir de fórmulas matemáticas – poderíamos imaginar que ela criou dois universos porque a fórmula gerou duas tendências possíveis, como num mapa logístico:
Assim como na equação do vídeo acima, imagine uma fórmula preparada por Tannhaus em que cada resultado sucessivo seria como a “cadeia de eventos” do universo a ser criado. Pode ter acontecido que, em vez de uma tendência única, a máquina gerou um equilíbrio entre duas tendências: uma história como a do mundo de Eva, e outra como a do mundo de Adão. De fato, universos são sistemas dinâmicos – os mais complexos que existem, evidentemente – e se uma fórmula pudesse descrevê-los, talvez ela contivesse atratores, que são “o conjunto de comportamentos característicos para o qual evoluiu um sistema dinâmico independentemente do ponto de partida.”
Atratores são extremamente relevantes para nossa análise de Dark. Uma vez que envolvem CFTTs, os universos de Adão e de Eva ocorrem em “ciclos”; assim, não importa muito se acompanhamos uma linha-mundo em 1986 ou em 2019, ela acaba evoluindo para comportamentos específicos, não é? A página da Wikipédia em inglês sobre o tema parece ter sido até fonte de inspiração para a equipe criativa da série: “valores do sistema que cheguem perto o bastante dos valores atratores permanecem perto mesmo que levemente perturbados”. Isto explica perfeitamente a ideia de um universo semideterminista: uma fórmula caótica (como a do mapa logístico) dá origem a universos “localmente instáveis mas globalmente estáveis”; há pequenas variações (como as quânticas), mas estas não são capazes de criar divergências muito grandes nos caminhos pré-determinados pelos parâmetros iniciais.
O que é o “nó”?
A dificuldade de criar um universo com linhas-mundo que evoluem em cadeias consistentes de causa e consequência vai muito além da “inconveniência” de coordenar “eventos”. Não se trata apenas de “fazer aparecer uma usina nuclear em Winden”, mas como isso ocorre em termos de motivação humana. No caso da usina nuclear, sabemos que a solução foi a intervenção d’O Desconhecido, algo que por sua vez precisou ser causado, como bem sabemos, por toda a história trágica de Jonas e Martha. De qualquer modo, a máquina não poderia simplesmente dizer “bem, e aqui, depois que tal pessoa viajar no tempo, ela vai decidir que isso não é importante e vai voltar para sua vida agindo como se nada tivesse acontecido”. Isso jamais aconteceria. Pela mesma razão, se a manutenção de um relacionamento afetivo entre duas pessoas está fazendo com que seja mais difícil fechar o círculo, a máquina não pode dizer “as duas pessoas deixarão de se amar e cada uma vai para o seu lado”. Se fizer isso, precisa preparar uma causa para esse desamor… Que, por sua vez, precisa de suas próprias causas! Se a máquina quer um efeito, precisa apresentar uma causa. E se quiser essa causa, precisa de uma causa para essa causa, e daí por diante.
O que as personagens da série chamam de “nó” nada mais é que a sequência “circular” de eventos (e seus estados subjetivos) que a máquina precisou programar a partir dos parâmetros de Tannhaus para que os novos universos fossem consistentes a ponto de existirem. Os eventos estão amarrados, o futuro ao passado, o passado ao futuro, um universo ao outro, uma realidade a outra, de uma forma pré-determinada pela máquina, que teve que fazer os mundos desse jeito porque de outro modo eles sequer poderiam existir. “Desse jeito”: planejando cada momento para preservar a consistência entre causas e efeitos.
Não há a menor chance de Jonas (jovem, adulto ou Adão) alterar qualquer coisa, não porque Eva o manipulou, mas porque nem mesmo Eva poderia alterar as coisas se quisesse, porque ela não pode querer diferente. “Não somos livres nos nossos atos porque não somos livres no nosso desejo” significa uma coisa muito mais aguda nas CFTTs de Dark: Martha/Eva queria preservar a vida de seu filho, mas esse amor maternal foi só mais uma coisa planejada para integrar o nó. Outros universos possíveis, em que ela não desejaria o que desejou, certamente não “fechavam” a cadeia de eventos, e por isso não foram soluções viáveis para a máquina. Seu amor maternal não é a causa da continuidade do nó, embora ela certamente pense que é. Conforme Claudia descobre (o que também faz parte do nó), a causa do nó é externa a ele próprio; é a operação da máquina de Tannhaus no mundo original. A indeterminação quântica explica pequenas variações, mas ela não é suficiente para alterar substancialmente a trajetória das linhas-mundo, assim como a FQ contradiz o modelo determinista da realidade sem tornar as leis de Newton inúteis[14].
A dualidade partícula-universo
Se sabemos como a máquina de Tannhaus destrói e divide seu universo, podemos passar com mais confiança à segunda das três questões iniciais: a dinâmica dos universos de Adão e de Eva. Se o universo é destruído devido à ativação do falso vácuo do Bóson de Higgs, teremos essencialmente um imenso vazio onde antes estavam a máquina, Winden, o planeta Terra… Só o que sobrou ali, em meio ao nada, foram duas partículas resultantes do processo para o qual a máquina foi feita em primeiro lugar. Duas partículas provavelmente “superdensas” (dividindo entre si toda a massa do universo original), mas partículas mesmo assim. Por dentro, a dinâmica de cada uma é cada espaço-tempo semideterminado que vemos na série (o mundo de Adão e o de Eva); por fora, sua dinâmica é como a de duas partículas no vácuo.
Assim como na FQ chamamos de “dualidade onda-partícula” o fato de que elementos subatômicos se comportam das duas maneiras, podemos chamar esse modelo de “dualidade partícula-universo”. Isso é útil porque se imaginarmos os dois universos dessa forma, podemos explicar três de suas características mais incríveis:
- Por que suas histórias estão tão profundamente interconectadas;
- por que existem “realidades paralelas” nas trajetórias das linhas-mundo; e
- o que o “tempo parar” tem a ver com “duas coisas acontecendo ao mesmo tempo”.
Universos emaranhados
O “emaranhamento quântico” ocorre quando uma partícula subatômica interage com outra de maneiras específicas e assim as duas passam a estar ligadas. A definição de emaranhamento que eu encontrei que mais se liga com Dark, e também calha de ser a mais simples, vem desse site:
Um par ou grupo de partículas está emaranhado quando o estado quântico de cada partícula não pode ser descrito independentemente do estado quântico da(s) outra(s) partícula(s).
Assim, embora Eva use o termo de um jeito um pouco estranho (não sabemos exatamente ao quê ela está se referindo), ainda podemos ler o que ela diz de maneira consistente com essa teoria: os dois universos estão emaranhados (tendo interagido, enquanto partículas, no momento em que a máquina os criou), de modo que o que acontece com um não pode ser descrito independentemente do que acontece com o outro.
Duas superposições
É essencial compreender que a superposição quântica não deve ser pensada apenas como “estar em dois lugares ao mesmo tempo”. Leia a seguinte explanação da física teórica alemã Sabine Hossenfelder (ênfases adicionadas):
O que você considera uma superposição quântica depende do que você quer medir. Um estado pode ser uma superposição para uma medição, mas não para outra. De fato a expressão “superposição quântica” não tem qualquer sentido se você não diz o que está superposto. Um fóton pode estar em uma superposição de várias diferentes posições, e não estar em uma superposição de momentos.
Na FQ, chama-se de “decoerência” o momento em que um elemento deixa de estar em sobreposição e passa a ter parâmetros bem definidos. Em geral, presume-se que a constante interação entre os elementos na vida real (com o ambiente; entre si) provoque a decoerência naturalmente (veja no vídeo a seguir, a partir de 1:52). No entanto, lembre-se de que os universos-partícula de Adão e de Eva estão, no contexto do universo original, à deriva, no vazio completo provocado pela destruição via falso vácuo do Bóson de Higgs. Em outras palavras, sem interação, as partículas-universo emaranhadas podem se manter coerentemente em sobreposição na medida em que evoluem no tempo.
Junte isso à explicação de Sabine sobre a sobreposição e temos um modelo elegante e simples para explicar as “realidades paralelas”: elas são o produto da sobreposição de cada universo. Às vezes, há sobreposição de local (estar em dois locais ao mesmo tempo): o Jonas que vai para o mundo de Eva, e o Jonas que vira Adão; a Martha que o traz para o mundo de Eva, e a que volta para tornar-se Eva. Mas quando o apocalipse “para o tempo por uma fração de segundo”, o que ocorre é que ele gera uma sobreposição de momentos (estar no mesmo local, mas com duas direções diferentes): a Martha que salva Jonas está no mesmo local que a Martha que não o salva; é a mesma Martha. Porém, ela consegue fazer duas coisas distintas.
Mais adiante, ao reler os eventos de Dark por essa chave, entenderemos de que forma isso altera nossa compreensão do que ocorreu na série. Por enquanto, é importante observar que o “tempo parar” no apocalipse não provoca uma indeterminação, uma aleatoriedade, um momento em que tudo pode acontecer (“Luan Santana”), mas pelo contrário se constitui como uma característica intrínseca dos universos, necessária para que o círculo de causas e consequências se fechasse. Como diz Hypnosifl no Stack Exchange, “não sabemos realmente que a linha do tempo pode ser ‘modificada’, apenas que ela pode ser dividida em duas versões diferentes de eventos […], mas essa própria divisão pode ser parte da estrutura 4D imutável de linhas do tempo em interação que são ‘o nó'”. Como é que de uma mesma realidade poderiam vir duas (ou mais) realidades paralelas? Não poderiam, porque não pode haver duas ou mais consequências para uma única causa sem um desequilíbrio na cadeia de causas e efeitos que a máquina custou tanto a equilibrar. Aliás, nem na própria metáfora da Eva as coisas são assim! Quando ela desenha o “símbolo do infinito” com o dedo e explica o que está acontecendo, não há “bifurcação” do tempo. A linha do tempo é a mesma, e é circular (loop), sendo possível percorrê-la “por dentro” ou “por fora”.
Assim, ao contrário do que Claudia diz, nada pode “mudar”. O começo é o fim. As realidades paralelas não são “geradas” porque elas já existem desde “sempre” – ou, no caso, desde quando os universos foram gerados enquanto partículas que mantêm a coerência no vácuo do universo destruído. A máquina teve que levar isso em consideração ao fechar as cadeias de causa e consequência. Não há um milhão de Jonas e de Marthas, apenas um punhado (como veremos), porque não há outras causas que poderiam interferir, em cada apocalipse, para gerar mais realidades além das duas que já existem: se houvesse, elas já teriam ocorrido. Não dá sequer para dizer que haveria milhões de Jonas e de Marthas se os ciclos pudessem continuar se repetindo, pois não teria como um único “ciclo” jamais ter ocorrido sem que os outros não tivessem ocorrido também. As propriedades quânticas dos universos de Adão e de Eva, enquanto partículas, explicam a sobreposição de realidades, mas essas mesmas propriedades dos universos enquanto universos não são capazes de causar, a partir da sobreposição, mudanças nesses sistemas dinâmicos cujos caminhos foram, em geral, bem delineados pelos atratores da fórmula da máquina de Tannhaus.
O peixe que a série tenta vender é literalmente um arenque vermelho – uma pista falsa, uma distração. A pista verdadeira de que tudo ocorre como sempre ocorreu está no fato de que o pequeno Jonas e a infante Martha já tinham visto seus “eu”s um pouco mais velhos no “corredor” entre os três mundos. Aquilo não foi um sacrifício de consistência narrativa em nome da pieguice; foi uma piscadela para a audiência, indicando que assim como em uma das realidades o “nó” se mantém, na outra, ele é quebrado – e as duas precisam uma da outra, mantêm-se uma à outra, como veremos mais adiante.
O paradoxo no que nos dizem sobre o final
Tendo compreendido a forma como a máquina de Tannhaus criou os dois universos e como isso determinou suas dinâmicas internas, podemos entender o que realmente ocorreu no fim de Dark. Aqui, duas interpretações são possíveis. Esse é o caso porque embora as CFTTs imponham uma perspectiva “eternista” aos universos de Adão e de Eva, não sabemos ainda como é a realidade do universo original. Já que podemos presumir que ela seja a mesma bagunça que a nossa (em que o relativismo e a FQ devem ser integrados, e só não sabemos como), ao menos duas interpretações são possíveis porque seguem diferentes interpretações (não-deterministas) da FQ.
Vamos começar por aquilo que a série nos mostra: Jonas e Martha impedem que o acidente de carro aconteça. Sem o acidente, Tannhaus nunca constrói a máquina. Sem a máquina, seus universos nunca foram criados. Como os universos nunca existiram, Martha e Jonas também deixam de existir.
O problema é a continuação necessária do parágrafo acima. Como os universos de Martha e Jonas nunca existiram, Martha e Jonas tampouco existiram. Mas, se eles nunca existiram, Martha e Jonas nunca poderiam ter impedido o acidente. Se não poderiam ter impedido o acidente, o acidente ocorre e a máquina do tempo existe… Fazendo com que Martha e Jonas existam. E com que eles evitem o acidente. E assim por diante. Como apontado lá no início, o acidente tem que acontecer para que ele possa ser evitado, e portanto se é evitado, não pode ser evitado. Paradoxos existem nos universos de Adão e de Eva, como o de Bootstrap; mas, como vimos acima, podemos entender que estes universos foram criados justamente de modo a acomodar consequências de viagens no tempo, então tudo bem. Existe uma causa exógena a um círculo paradoxal de causação. Trata-se de um paradoxo falsídico, não de uma antinomia. Já neste caso do final, não há explicação. Só podemos justificar que o universo original comporte paradoxos se imaginarmos[15] que ele também é diferente do nosso. No entanto, não precisamos disso para explicar o que realmente aconteceu.
O final Copenhague
“Estou de saco cheio desse negócio de bloco universal [eternismo]… Eu não acho que quinta-feira que vem está no mesmo nível que esta quinta-feira. O futuro não existe. Não existe! Ontologicamente, ele não está lá.” – Avshalom Elitzur
Se a variação quântica e a ausência de CFTTs fazem com que o universo original provavelmente não seja eternista, vamos supor, para esta interpretação do final da série, que ele funciona de acordo com uma lógica de bloco crescente, ajustada para acomodar a relatividade geral: o presente de cada linha-mundo existe, bem como seu passado – mas não o futuro. Assim, o passado desse universo (até 1986) permanece “conservado”, por assim dizer, para que seja acessado por Jonas e Martha.
Porém, nesta interpretação, Jonas e Martha não literalmente vão até o passado do universo original. Afinal, a viagem no tempo funciona segundo as novas leis da física de seus universos, não fora deles. Tannhaus criou esses universos justamente porque não conseguia viajar no tempo em seu universo. Assim, Jonas e Martha não teriam sido capazes de, no universo original, usar o orbe-relógio (figura 7 acima) para ir até 1971. Proponho, assim, que eles foram até o ponto no tempo em que o universo original se “conecta” com os dois universos-partícula (1986) para “colher dados” acerca do universo original – ou “colher energia”, como detalharei abaixo. Neste cenário, Jonas e Martha recriam o universo original, só que a partir de 1971.
Jonas e Martha não dão a entender que estão construindo um mundo novo, mas eles não precisariam saber disso para que o plano funcionasse: a operação poderia estar embutida no orbe-relógio (nem Jonas nem Martha sabem qualquer coisa[16] sobre aquela máquina, afinal de contas). Assim, eles podem ter tido que voltar a 1986 apenas para ter acesso aos “moldes” do universo original, com o orbe preparado para se aproveitar disso. Faz sentido que tudo que tenha “restado” do universo original destruído esteja no momento da gênese dos universos de Adão e de Eva, como uma “impressão digital” ao menos dos eventos que levaram à construção da máquina de Tannhaus. Por outro lado, também é possível que Claudia tenha descoberto os parâmetros necessários para recriá-lo, da mesma maneira como descobriu que ele existia em primeiro lugar, e assim já o deixou pré-configurado para criar um universo em que viagens no tempo não são possíveis, de modo que todas as pessoas cujas existências se devem a essa possibilidade não existirão. Nesse caso, a viagem até 1986 para criar tal universo poderia se dever à necessidade energética da tarefa: o orbe funciona bem para “viagens” entre o que já existe com seu combustível limitado, mas demandaria muito mais energia para criar um universo. Daí a necessidade de aproveitar os acidentes nucleares. É até possível, inclusive, combinar as duas explicações numa só. O passado do universo original, conservado de algum modo em 1986, bem como a energia liberada no uso da máquina original, são ambos aproveitados pelo orbe-relógio para criar um novo universo, com novos parâmetros.
Seja como for, pressuponho que o orbe-relógio possa criar universos porque ele pode ao mesmo tempo transitar no tempo e entre universos. Como os universos de Adão e de Eva (pelos quais o orbe permite transitar) são partículas criadas a partir de um processo matemático pela máquina de Tannhaus, podemos supor que o trânsito de uma para outra exija de algum modo “descobrir” a fórmula. Tal tipo de interação poderia muito bem implicar a capacidade de produzir uma nova fórmula – não apenas interagir com aquela. O que estou tentando dizer é que o orbe-relógio, como uma espécie de versão aprimorada da máquina original de Tannhaus, também consegue criar universos com leis naturais diferentes. Martha e Jonas, assim, não visitam o passado do universo que já existe: este precisa se manter idêntico para chegar a criá-los em primeiro lugar. O que eles fazem é criar um novo aos moldes do original (“ctrl+c / ctrl+v”), com a única diferença de que, neste novo, eles evitam o acidente que sabiam que aconteceria.
Mas por que os mundos de Jonas e Martha desapareceriam após a criação deste novo universo? Ora, porque agora há todo um outro universo com o qual as duas “partículas” emaranhadas interagem. A criação de um novo universo força uma “decoerência”, ou seja, o fim de suas superposições. O gato de Schrödinger está vivo e morto ao mesmo tempo (com suas realidades possíveis sobrepostas) apenas enquanto não for “observado”. Estando finalmente do lado de fora do nó, Jonas e Martha podem “observar” os universos construídos, e observadas, as realidades paralelas colapsam uma à outra (assim como a onda se colapsa em partícula). Com as realidades paralelas colapsadas, assim como no caso de um elétron que deve “decidir” em qual local aparecer, não pode haver várias Marthas e vários Jonas, apenas um de cada um. Sem essa sobreposição, as causas e efeitos que construíram a história dos universos emaranhados se desintegram, já que a consistência destes exigia a existência dessas diferentes versões dessas pessoas. E assim, os dois mundos se desintegram, restando apenas este novo.
O final Ação Avançada
No entanto, há uma outra interpretação da FQ que se aplica a nosso mundo, e portanto possivelmente ao mundo original de Tannhaus. Essa interpretação se chama hipótese da Ação Avançada [AA], e é descrita neste artigo de Avshalom Elitzur e Shahar Dolev com base em experimentos e em outras interpretações da FQ (como a interpretação transacional, do físico e autor de ficção científica John Cramer). Vamos precisar falar um pouco sobre a hipótese AA para entender como isso joga nova luz sobre o final de Dark.
Em seu artigo, Elitzur e Dolev explicam que não é bem verdade que não há nada no universo que impeça linhas-mundo de ir em direção ao passado, como vimos lá no começo do texto. Eles se apoiam na segunda lei da termodinâmica, que diz que a quantidade de entropia (variação ou desordem em um sistema) tende sempre a aumentar. A resposta eternista é que isto é apenas uma questão de “condições iniciais”. Uma vez que o universo é fruto de uma explosão, em que tudo que estava bem arrumadinho passou a expandir, poderíamos muito bem bolar uma condição inicial em que tudo comece desordeiro e acabe bem arrumadinho num só lugar. Essa é portanto uma noção simétrica, reversível, de tempo. Elitzur e Dolev argumentam, no entanto, que não é bem assim (veja a figura 8 acima); e se o tempo é uma propriedade assimétrica do universo, então a FQ validaria a teoria do bloco crescente tanto quanto a relatividade geral validaria a do bloco universal. Segundo os autores:
Esse argumento a favor da assimetria do tempo reabre a questão da passagem do tempo. Se o determinismo nem sempre se sustenta, então a física […] não pode mais se gabar da consistência entre negar a passagem do tempo e dispensar a assimetria do tempo[… Que são as duas consequências da relatividade geral vistas acima.] Na ausência de uma prova para o determinismo, não temos razão para acreditar que o futuro “já” existe, causalmente determinando o presente e o passado do universo. A ideia que pessoas leigas têm do devir, em que o futuro é ontologicamente inexistente, algo novo a ser criado, recupera credibilidade.
O que eles propõem é que o passado não só existe a cada momento que o presente deixa de ser o presente (bloco crescente), mas que ele pode ser retroativamente modificado pelo presente. Na interpretação da FQ segundo a hipótese AA (ainda de acordo com Elitzur e Dolev), “qualquer interação quântica surge não por uma função de onda mas pelo efeito combinado de duas (ou até mais) ondas, indo e voltando no tempo. A onda inicial vai da fonte até o(s) ponto(s) futuro de absorção[…], enquanto a(s) onda(s) recíproca(s), ‘avançada(s)’, retorna(m) à fonte no passado”. No artigo, os autores citam experimentos em que a única conclusão possível é que “a medição afeta não apenas o estado presente do sistema mas toda sua história”, ou seja, “a interação quântica envolve uma ‘re-escrita’ da evolução no espaço-tempo”.
Fica fácil assim de entender o que pode ter acontecido no final de Dark se supormos que esta interpretação da FQ está correta, ou seja, que ela é válida para o universo original, em cujo vazio os dois universos-partícula interagem “quanticamente”. O resultado da interação em que o nó se forma e se mantém (onda inicial) é a produção de uma “onda avançada” em que Jonas e Martha destroem o nó que reescreve a história do universo de modo a evitar o acidente de 1971. A antinomia do final como o conhecemos se transforma num paradoxo falsídico também, pois agora há uma explicação. Sim, o acidente deve acontecer para ser evitado, pois a própria realidade é feita de várias interações que, a nível quântico, podem “corrigir” suas trajetórias no passado. Assim como quase toda a ciência utilizada em Dark, isso é um enorme exagero; como diz Marshall Barnes, CFTTs são máquinas no tempo tanto quanto cachoeiras são máquinas de lavar roupas. Experimentos em que o passado é “reescrito” não devem ter durado mais que alguns segundos, e aqui seria necessário pensar que uma interação quântica seria capaz de reescrever mais de uma década de história universal. Mesmo assim, se for nisso que a equipe criativa estava pensando, trata-se de uma leitura poética de uma promissora interpretação contemporânea da física quântica.
Reinterpretando os eventos de Dark
A partir da bagagem teórica acima, conseguimos navegar pelos mistérios de Dark com algum grau de precisão. Sabemos o que a máquina de Tannhaus fez, a natureza dos universos de Adão e de Eva, e as possíveis formas como a dinâmica entre os dois (a depender de como interpretamos o universo original de Tannhaus) provoca o desfecho que vemos na série, ainda que ambas as possibilidades presumam que a série “mente” um pouco para o público. Esta “mentira” é, portanto, a primeira coisa que devemos entender: por que Claudia diz para Adão que as coisas podem “mudar”, quando não é bem isto que ocorre? Depois disso, veremos quais outras coisas a série pode ter “escondido” de nós, especialmente considerando que as realidades paralelas não são “geradas” no apocalipse mas, pelo contrário, sempre existiram, como efeito da sobreposição quântica dos dois universos.
O passo estratégico de Claudia
No episódio T03E08, Claudia diz o seguinte para Adão:
Você tentando destruir a origem já aconteceu milhares de vezes. Mas isso aqui, você e eu, é a primeira vez.
No entanto, Claudia muito provavelmente sabe que esse não é o caso. Logo depois dessa conversa, ela conversa com uma versão mais jovem de si (talvez até uma versão duplicada de si, como argumento daqui a pouco) e vai fazer todas as coisas que a vimos fazer na segunda temporada – algumas das quais, inclusive, ela sabe que já fez (como enterrar a máquina do tempo para si mesma). É possível que ela pense que, em outros “ciclos”, ela tenha feito tudo isto que ela faz depois da conversa, sem que a conversa tenha acontecido (especialmente se foi com uma versão duplicada de si que ela conversou após a conversa com Adão). Porém, não há muitas razões[17] para presumir isso. De qualquer modo, ou “acreditamos” na série no sentido de tomar por certo o que as personagens nos dizem, sem pensar que elas possam estar enganando a si próprias, outras pessoas, ou ambas, ou “acreditamos” que a série foi construída com tanta atenção aos detalhes que algo a mais deve estar acontecendo. Como você já deve ter percebido, talvez correndo o risco de dar crédito demais a uma série da Netflix, é na segunda alternativa que estou apostando aqui. Já até aventei lá em cima hipóteses sobre o porquê de certas coisas não serem mostradas. Para mim, os mundos de Adão e de Eva são repetições[18] (com pequenas variações) de tudo que ocorre, incluindo o momento em que Jonas e Martha destroem os universos. A questão é se Claudia sabe disso também, e assim mentiu para Adão, ou se ela é tão iludida quanto ele.
Mais adiante voltaremos a isso; de qualquer modo, há no mínimo uma razão estratégica muito importante para o que Claudia faz. A ilusão presentista, como discutimos acima, é muito forte; até mesmo Jonas, que tanto fala em “Deus é tempo” e “o começo é o fim” e tudo o mais, ainda parece se agarrar a uma visão instrumental da realidade circular, segundo a qual ele tem causado a circularidade do tempo, quando na verdade sabemos que ele faz parte de algo muito maior, determinado para além de sua vontade. A imagem que Jonas faz de si como “causador de eventos”, ao menos em potencial, é o fio de sanidade ao qual ele se agarra; sua promessa de “consertar tudo” o carregou nas costas até a vida adulta, e a de “destruir tudo” o levou na base do ódio até suas últimas atrocidades. Consertar, destruir; em ambos os casos, ele precisa sentir que é uma força ativa no mundo. No momento dessa conversa, portanto, Jonas mais uma vez (possivelmente a vez mais contundente) vê essa auto-imagem se estilhaçar.
A questão é que Claudia sabe disso. Ela tem manipulado todo mundo, mas principalmente Jonas, há mais de três décadas a essa altura. Ela sabe, portanto, que não seria possível convencê-lo a fazer qualquer coisa se dissesse que “isto faz parte do nó e portanto tem que acontecer”. Quando Claudia envia o Jonas adulto para as missões da primeira temporada, ela lhe pede para nunca perder a esperança. Ao fazê-lo acreditar que ele está fazendo algo inédito, ela age com o mesmo instinto, dando-lhe a motivação que ela sabe que ele precisa para agir.
Entendendo as realidades paralelas
No entanto, é claro que seria mais fácil acreditar que Claudia (e assim, a série) está dizendo a verdade. Será que conseguimos provar, a partir dos elementos que a série nos dá, que nada inédito aconteceu? Já citei, acima, a questão do Jonas e da Martha juvenis que veem seus “eu”s um pouco mais velhos indo destruir o nó. Porém, como provar que cada uma das realidades é determinada por decisões e eventos interiores à lógica da conexão entre os universos e realidades? Demonstrando que o “círculo” se fecha não só em relação ao tempo, mas também em relação às realidades paralelas, cujos pontos centrais de conexão são os apocalipses. Uma realidade causa a outra, e vice-versa, de modo que não haja pontas soltas.
Mesmo numa CFTT, a ideia de realidades paralelas como “sempre tendo existido” é bem fácil de entender com a própria metáfora que a série usa[19]. Ou seja: basta imaginar que é possível percorrer os pontos da linha (circular) do tempo “por dentro” ou “por fora” (o círculo simples à esquerda na figura 9 abaixo). Ainda é uma linha só, mas podem ser “realidades distintas” tanto no sentido da perspectiva quanto de atuação. Como elas nunca interagem, podemos imaginar eventos ocorrendo de forma diferente em cada realidade sem afetar a outra. Perceba também que o “símbolo de infinito” usado por Eva para explicar o emaranhamento quântico (figura 6 acima) ainda poderia ser o “formato” da “linha do tempo” sem problemas, pois ele manteria cada realidade separada: as rotas vermelha e azul no “símbolo do infinito” à direita na figura 9 abaixo são lados separados da linha.
No apocalipse, como vimos, a causalidade não se “quebra” realmente. Trata-se de uma sobreposição de momentos (definidos como “pontos no tempo”, mas também, no linguajar da física, como direções e forças). A interrupção temporal não quebra causas e efeitos mas, pelo contrário, causa uma abundância de causas e efeitos. A natureza “circular” das trajetórias de linhas-mundo nos universos se preserva; uma realidade causa a outra assim como o futuro causa o passado. O momento da sobreposição de momentos é fundamental para “misturar” as duas trajetórias, fazendo com que elas possam se causar mutuamente (na figura 9 acima: se não fosse esse “evento estranho”, as realidades poderiam permanecer completamente separadas).
DETALHE 6: É preciso observar que a sobreposição quântica – de locais e de momentos – é bastante conveniente enquanto dispositivo literário, já que a “loucura” do universo quântico pode explicar qualquer coisa. Em alguns momentos, existem duas versões de Martha por aí (sobreposição de locais), e o apocalipse força sua divisão porque é o momento em que duas causas atuam sobre ela, originando duas respostas (sobreposição de momentos). Depois disso, pode haver outros momentos como esses, de acordo com alguma lógica, como veremos, mas ainda conforme requerido pela história, simplesmente porque… Física quântica!
De qualquer modo, observe que não há sempre duas versões de tudo que acontece, só de cada evento diretamente impactado pelas consequências da sobreposição de momentos. Por exemplo: não existe uma versão do grupo de sobreviventes de 1921 no mundo de Adão que não foi visitada pela Martha que salvou Jonas, ou que foi visitada de forma diferente; a Martha que não salvou Jonas, tornando-se Eva, “atua paralelamente”, mas não formando uma versão alternativa daquele momento, que permanece um ponto no tempo apenas, consequência da atuação de ambas as realidades paralelas (neste caso, a Martha que não salva Jonas precisa tornar-se Eva para causar várias coisas que levam ao momento em que a outra Martha pode salvar Jonas… E visitar o grupo em 1921).
Mas espere: se voltarmos ao “símbolo de infinito” que Eva usa (figuras 6, 9), vemos que o momento de “encontro” da linha consigo mesma (representando o apocalipse) não chega exatamente onde queremos – um sistema em que a linha possa ser percorrida alternadamente “por dentro” e “por fora” de maneira consistente, com os lados “misturados”, permanentemente conectados na rígida relação de causa e efeito das CFTTs que viemos analisando até aqui. Em outras palavras: o símbolo que queremos é um em que você 1) começa num ponto, 2) escolhe uma direção, 3) vai sempre para frente, 4) segue as regras (nesse caso, trocar de lado sempre que passa pela sobreposição de momentos) e 5) acaba chegando no ponto de partida, tendo percorrido todos os pontos da linha pelos dois lados. Na figura 10 abaixo, vemos que isso não ocorre: cada parte do loop está colorida de acordo com os fluxos de realidades completamente separadas, com base na figura 9 acima. Há de fato uma “interação” entre os lados, já que metade do caminho do fluxo vermelho agora passa pelo lado azul, e metade do fluxo azul agora passa por um caminho que de outro modo seria todo vermelho. No entanto, as realidades ainda não necessariamente causam uma à outra. Podemos concluir, assim, que esse símbolo é tão inadequado para entendermos o que se passa quanto a própria compreensão de Eva sobre o que está acontecendo na série.
A seguir, vamos revisar o que sabemos de certeza (os eventos da série) e algumas coisas que podemos presumir; depois, faremos vários “chutes informados”, imaginando dois cenários possíveis. Por fim, chegaremos a um símbolo bastante familiar que servirá muito melhor para entendermos como as realidades paralelas estão interligadas em Dark de um jeito que contemple todas as características dos universos que vimos até aqui.
Reenquadrando o que vemos na tela
Observe bem a figura 5 acima; se puder, reveja a cena. Existe a Martha que entra na casa de Jonas para salvá-lo, e a outra, que volta com Bartosz para o mundo de Eva. No primeiro caso, contudo, não acontece que Martha ouve o que Bartosz tem a dizer e decide ignorá-lo. Ela só… Entra. Podemos concluir, assim, que é porque Bartosz não está lá. Esta é a diferença que provoca o puxamento da “alavanca”, como diz Eva. É bom lembrar também que Martha vai salvar Jonas de seu apocalipse bem no dia do apocalipse de seu próprio mundo, que é outro momento em que “o tempo para”. Podemos supor uma relação muito próxima: ou Bartosz decide ir falar com Martha, ou não. O complicado é que isso precisa ser consequência daquilo que isso causa (Martha salvando ou não a Jonas): um ponto de sobreposição de momentos deve levar a outro, que leva de volta ao primeiro.
No apocalipse do mundo de Eva, Bartosz pode ou não ir falar com Martha. Isso nós não vemos acontecer, mas podemos supor que cada decisão sua corresponde ao que acontece no apocalipse do mundo de Adão. Neste momento, sendo Martha e Jonas os únicos afetados diretamente, vemos a geração de Martha 1 e Martha 2, bem como de Jonas 1 e Jonas 2 (Bartosz não se duplica aqui porque isso já aconteceu no apocalipse do mundo de Eva). Chamarei Martha 1 a que salva Jonas (e portanto Jonas 1 o Jonas que é levado por ela para o mundo de Eva) e Martha 2 a que volta com Bartosz e se torna Eva no futuro (e portanto Jonas 2 aquele que se torna Adão no futuro).
Vemos que Jonas 1 engravida a Martha ‘Zero’ (usarei essa nomenclatura para falar de toda personagem que ainda não foi “duplicada”) e depois é morto pela Martha 2, que Eva acabou de começar a preparar para se tornar ela própria no futuro. A Martha 1 cumpre as missões de Adão e acaba morta por ele. Vemos então que, depois disso, Claudia fala sobre o mundo original para Adão – e há uma coisa que não vemos, mas que Eva nos conta: Adão acaba por matá-la, algo que a versão adulta de Martha presencia (e é por isso que esta Eva se lembra). Podemos supor então que em algum momento Eva e Adão foram duplicados também (Eva 1 e 2; Adão 1 e 2). Por fim, Claudia diz ter usado um apocalipse para se duplicar também.
Isso é realmente confuso: cadê a outra Claudia, então? Foi a que morreu? Sabemos que não: o site oficial de Dark confirma o que já vimos acima, isto é, que o que ela fez na segunda temporada (introduzir a sua versão mais jovem à ideia de viagens no tempo, pedir perdão ao pai, etc.) foi depois de ter falado com Adão. Será que tem a ver com a versão de seu encontro com a Claudia adulta em que Gretchen não aparece? Como é que o “círculo” se fecha desse jeito?
O que acontece no apocalipse do mundo de Eva
“O que sabemos é uma gota; o que ignoramos é um oceano” – Isaac Newton
Logo antes do apocalipse do mundo de Eva, esta manda o Bartosz adulto buscar o Bartosz jovem. Eva precisa convencê-lo a recuperar Martha (que se tornará Martha 2, e no futuro, Eva). É bem quando o apocalipse está acontecendo, suponho, que Bartosz deve decidir se vai fazer isso ou não. Presentes na sala neste momento estão o jovem Bartosz, a Eva, e a Claudia – esta última num momento específico de seu aprendizado.
Por que Claudia? Sabemos que ela descobriu sobre o que Eva faz com o apocalipse do mundo de Adão; vamos supor, nesse cenário, que não tenha sido muito depois de seu primeiro encontro com Eva (o que vimos na série). Sabemos também que ela descobre a verdade sobre o mundo original, embora no começo talvez ainda faltem detalhes (por exemplo, que o culpado é Tannhaus). Talvez sem saber ainda como ou se é sequer possível acessar tal terceiro mundo, e certamente em busca de respostas, experimentando com seu acesso liberado a todos os anos e mundos (pois ela está com o orbe-relógio), ela pode ter resolvido passar por um apocalipse para tentar criar duas versões de si.
DETALHE 7: Para mais informações sobre a sequência dos atos de Claudia, recomendo este vídeo (em inglês), mesmo discordando das partes “teóricas”. Assim, de qual “momento específico” do aprendizado de Claudia estou falando? Seguindo o vídeo, aprendemos que em 2040 Claudia mata a versão de si do mundo de Eva, aprende mais sobre os mundos, viaja até 2053 (encontrando-se com uma versão mais velha de si) e depois volta para 2040, voltando a envelhecer em meio ao Jonas adulto e ao Noah, ainda que de vez em quando desaparecendo para fazer mais pesquisas. Penso que Claudia deve ter se “duplicado” entre o assassinato da Claudia do mundo de Eva e sua viagem até 2053 para conversar com a versão de si mesma que acabara de enviar Adão a seu destino final. Isso é consistente com a idade em que ela aparece no último episódio da série “descobrindo” os fatos sobre o terceiro universo.
Ela já esteve no apocalipse do mundo de Adão, mais jovem e com Regina – e embora isso não seja motivo para que ela não escolha passar por este novamente, ela pode ter preferido usar o do mundo de Eva por considerar que o do mundo de Adão já atrai “atenção” demais – afinal de contas, ele parece ser o único momento que Eva considera relevante para sua história. Como a versão mais jovem de si do mundo de Eva acabara de ser enviada (ao mesmo tempo que o Bartosz adulto, como vemos na série) em uma missão para fazer o primeiro contato com a versão adulta de si do mundo de Adão, as duas Claudias (esta que precisa escolher um apocalipse para presenciar e a mais jovem do mundo de Eva) não se encontrariam. Isso é um pequeno ponto positivo, por se encaixar com a ideia de que a Claudia do mundo de Eva nunca viu uma versão mais velha de si (T03E07).
O que acontece nesse apocalipse são várias duplicações: Bartosz jovem 1 e 2, Eva 1 e 2, Claudia 1 e 2, e Adão 1 e 2. Por que Adão? Porque a esta sobreposição de momentos está relacionada uma outra: sua conversa final com Claudia. Argumento que este é o caso pois esta conversa também é um momento em que ele vai em direções diferentes (uma versão mata Eva; a outra vai lá mandar o Jonas destruir o nó). Há ao menos um precedente[20], e um fundamental, para um evento que se duplica mesmo estando bem distante do apocalipse, isto é, do momento em que literalmente “o tempo para”: quando Adão (2) gera o Jonas (3) depois da conversa com Claudia no último episódio, isto resulta na duplicação de todo o momento anterior ao apocalipse do mundo de Eva (quando Franziska e Magnus recrutam Martha), um momento bem distante do apocalipse do mundo de Adão, e ao qual voltaremos em breve, pois é essencial para entendermos como o “círculo” se fecha.
Voltemos ao apocalipse do mundo de Eva. O Bartosz jovem 2 aceita fazer parte do Erit Lux e torna-se o Bartosz adulto (aquele que, a mando de Eva 2, o traz para o grupo antes do apocalipse de seu mundo); o Bartosz jovem 1, contudo, acaba morto por Eva 1 quando se recusa a participar do grupo. Tenho algumas razões para pensar que isso ocorreu. Em primeiro lugar, não vemos a outra versão de Bartosz, mesmo tendo fortes motivos para supor que ela deva existir. Em segundo lugar, se há um padrão no que aconteceu com o Jonas 1, Eva dispensa as pessoas rapidinho depois que elas não servem mais. Porém – e este é menos um “terceiro lugar” que um substitutivo do segundo – Eva 1 pode acabar matando Bartosz Jovem 1 por desespero ou raiva mesmo.
DETALHE 8: Cada vez mais usarei personagens “numerados” para se referir às versões das personagens de acordo com as “duplicações” que decorrem da passagem por pontos emaranhados (apocalipses). Fique esperto!
Eva Zero (e portanto Eva 1) é a Martha 2, e portanto é a Martha que se lembra de ter sido resgatada por Bartosz Jovem 1. Se o que Eva Zero conta à Martha 2 é tudo que ela realmente pensa (que o apocalipse do mundo de Adão é o único ponto em que duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo), ela não vai receber bem a notícia de que Bartosz não quer “cumprir seu papel”. Jamais tendo vivido a realidade de Martha 1, em que Bartosz simplesmente não aparece, ela deve imaginar que ele apareceu para Martha 1, e que esta simplesmente decidiu não voltar com ele (decidindo salvar Jonas, confirmando sua aliança com Adão). Ao cortar o rosto de Martha 2, criando aquela cicatriz, Eva 2 diz (T03E07, ênfase adicionada):
Você não deve entender ainda, mas, ao nos escolher, terá a vida. Ao escolher o Adão, terá a morte.
Mas colocar essa situação em termos de escolha não faz sentido, não é? Veja: é verdade que Martha 1 é fruto de uma escolha. Jonas havia morrido, e ela queria salvá-lo, algo que Magnus (1) e Franziska (1) lhe ofereceram. Porém, Martha 2 também fez essa escolha – a escolha inicial de ir conversar com Adão e entender o que precisava ser feito – pois antes daquele momento não havia Martha 1 ou 2 ainda. Eva fala da escolha “pela vida” que Martha 2 faz, mas esta é uma escolha posterior, uma escolha por voltar com Bartosz (2). Assim, colocar a situação em termos de escolha é evidência de que Eva 1 não faz ideia de que, na realidade de Martha 1, Bartosz (1) não aparece. Assim, a recusa de Bartosz deve ser incompreensível; deve provocar uma crise profunda, tão grande quanto aquela de Adão quando sua tentativa de destruir o nó não dá certo. Neste momento, Eva 1 deve estar desnorteada!
Os possíveis papeis de Claudia 1
Falar de uma cena que não testemunhamos diretamente na série é complicado; tudo é muito conjectural. Claudia 1 pode ter acalmado Eva 1, talvez reafirmando que, se ela existe, então “Bartosz trazendo Martha de volta” tem que ter acontecido. Poderia assim ganhar a confiança de Eva ao ajudá-la num momento de fragilidade, embora ela já pareça ter essa confiança (pois Eva acha que essa Claudia é a que esteve com ela desde sempre). Adão sempre fracassa em acabar com o nó ao matar Martha 1; isto é feito por uma espécie de “Adão Zero” (no caso, Jonas 2); de qualquer modo, mais para frente, Claudia 1 pode conversar com Adão (1) não para explicar como tudo está ligado, mas para incentivá-lo a matar Eva 1, tendo garantido que a Martha adulta presencie o assassinato. Essa Martha adulta se tornará Eva Zero, e portanto mesmo a Eva 2 (a que vemos no último episódio) terá a memória de ver a sua versão mais velha de si ser morta por Adão.
Mas é possível também que Claudia tenha ficado escondida, só observando com curiosidade o desfecho da cena. Ela foi para este momento sabendo que ela poderia “se dividir” ali. Mas como é que alguém “se divide”? A resposta é, como já vimos, muito simples: não se dividindo. Isso é besteira: Claudia ter a vontade de usar o apocalipse para se dividir não quer dizer nada. Ela se dividiu involuntariamente como resultado do fato de que diferentes causas incidem sobre os dois momentos sobrepostos. Em uma realidade, Bartosz não decide ajudar, e uma Claudia reage a isso. Em outra, Bartosz decide ajudar, e a outra Claudia reage de outro modo. Nenhuma Claudia, naquele momento, sente o que a outra sente, sabe do que a outra sabe, muito embora cada uma tenha conhecimento suficiente para intuir que a outra foi “gerada”. Isso não tem nada a ver com sua vontade ou seu livre arbítrio.
As duplicações do terceiro apocalipse
Se Claudia 1 conspira para que Adão 1 mate Eva 1 (e a Martha adulta presencie), Claudia 2 conversa com Adão 2, que volta ao apocalipse de 2020, novamente causando duplicações. “Jonas 3” é o Jonas que é salvo por Adão 2; Jonas 4, sem ser salvo por Martha 1, nem Adão 2, nem por si mesmo, provavelmente morre no apocalipse. É curioso que, em T03E05, Claudia afirma com bastante convicção que Jonas está morto. Será que ela estava apenas presumindo aquilo – ou teria visto o corpo dele? De qualquer modo, Jonas 3 vai até o mundo de Eva buscar a Martha antes que ela fosse aliciada por Magnus e Franziska, gerando a Martha 3, que vai com ele para o universo original, e Martha 4, que vai conversar com Adão Zero para se tornar, algum tempo depois, as Marthas 1 e 2.
O Bartosz que simplesmente vê a Martha 4 ir embora com Magnus 1 e Franziska 1 fica sem entender nada, e Eva Zero pode então dar a sua versão dos fatos para ele logo a seguir; no apocalipse do mundo de Eva, esse Bartosz se tornará então Bartosz 2, que aceitará fazer parte do Erit Lux. Mas se Jonas 3 vem do nada e leva Martha consigo, Magnus 2 e Franziska 2 simplesmente não sabem o que fazer. Adão lhes disse que aquilo daria certo – e agora? Sem querer abusar do tropo de “ataque de pânico”, mas… Talvez Bartosz ouça mais do que deveria quando os dois perdem a cabeça ali na sua frente. Talvez ouça o suficiente para não querer saber do Erit Lux dali a pouco, quando seu eu mais velho vem buscá-lo. Em certo sentido, poderíamos considerar que Bartosz já se duplica ali mesmo, nesta “terceira” passagem pelo apocalipse; ele pode ter se recusado a vir com seu “eu” mais velho e nem aparecido na sede do Erit Lux, o que ainda geraria a crise de Eva 1. Porém, considero essencial que Bartosz tenha ido não só porque poucas pessoas recusariam um chamado de seu “eu” mais velho, mas principalmente porque ele relata a Eva (e Claudia) o que aconteceu: que, enquanto Martha conversa com Magnus e Franziska, Jonas aparece do nada e a leva não se sabe aonde.
A Claudia 1 conheceu a Claudia 2?
Se as trajetórias supostas acima estiverem corretas, Claudia 1 é a Claudia que ouve o relato de Bartosz e entende que o que ele viu é provavelmente um Jonas que conseguirá desfazer o nó. Tem que ser isso – ela passou aquele tempo todo com o Jonas jovem, e ele nunca lhe disse nada sobre ter feito isso! O Jonas jovem sequer sabia sobre o mundo de Eva! Claudia 2, por sua vez, é a que vê tudo acontecendo como sempre aconteceu – Bartosz indo buscar a Martha, etc. – ao mesmo tempo intuindo que em outra realidade, tudo pode ter dado errado.
O efeito de ter passado por isso, contudo, é o oposto para cada versão. Claudia 1 sabe com alguma certeza que o fim do nó vai acontecer, e portando trabalhará para que nada mude[21], já que se tudo ficar igual, levará a esse desfecho positivo. Já a Claudia 2, ao menos por um tempo, desconfia que algo deu errado com a interação entre Eva e Bartosz, mas não sabe ao certo o quê. De qualquer modo, ficará encarregada de descobrir o que é e causar os eventos que levam à disrupção que Claudia 1 presenciou. Esta é assim a Claudia romântica, a Claudia da esperança, que trabalha pelo objetivo sem saber se vai alcançá-lo.
Tudo se encaixa melhor se supormos que Claudia deu um jeito de encontrar a outra versão de si[22]. Se isto aconteceu uma vez, podemos imaginar que aconteceu várias – porém, a única vez em que isso pode ter acontecido diante de nossos olhos é o encontro das Claudias em 2053, no último episódio da série. A Claudia 1, que trabalha para manter o nó, fala com Claudia 2 (a mais velha, que acabou de garantir que tudo ficará bem). Esta pode ser a única vez que vemos Claudia 1: em sua memória, tudo já “deu certo”; ela provavelmente até literalmente disse a Claudia 2 o que fazer. Isso explicaria inclusive por que o plano de Claudia é tão minucioso, e como ela chegou a formulá-lo em primeiro lugar. Ou seja: por que tem que ser especificamente Jonas e Martha, especificamente juntos, especificamente duplicados naqueles pontos no tempo em cada universo, a destruir o nó? A única outra explicação envolve almas e misticismo, que entendo ir contra o espírito (haha) de ficção científica da série. De qualquer modo, da perspectiva de Claudia 2, que não tem essa memória de tudo dar certo, resta continuar falando em hipóteses (até mesmo depois de falar com Adão, ela continua dizendo “se tudo der certo…”). Talvez seja por isso, inclusive, que Claudia 1 pede à 2 que peça desculpas a seu pai: ela sabe que tem outro trabalho a fazer (com vistas a manter o nó), então sua “outra eu” deve fazer isso por ela.
A última mentira de Claudia Tiedemann?
Embora a teoria acima já consiga explicar a existência contínua de duas realidades que causam uma à outra, há ainda outra possibilidade: Claudia mentiu para Adão ao dizer que “se enviou em outra direção” em um apocalipse. Estrategicamente, aliás, faz tanto sentido quanto ter dito a Adão que algo “novo” estava para acontecer. Adão tem certeza que a matou. Dizer que ela conseguiu “estar ali” porque se duplicou é uma forma de contornar a verdade: muito do que ela fez (inclusive morrer!), ela ainda tinha que ir fazer. Saber disso poderia fazer com que Adão desconfiasse dela; com que achasse que aquela conversa não estava “acontecendo pela primeira vez” coisíssima nenhuma… Claudia podia até pensar que estava, mas Jonas poderia não ser tão generoso[23] – especialmente naquele estado de decepção.
A linha do tempo dos atos de Claudia funciona bem (como no vídeo que indiquei acima) sem presumir duas Claudias. Eva 1 pode ter matado Bartosz 1 e ter sido morta por Adão 1 na presença de Martha adulta sem qualquer intervenção de Claudia – ou com a intervenção de uma única Claudia. Por fim, a conversa entre as duas Claudias em 2053 pode oferecer um último exemplo de paradoxo ontológico: Claudia sabia o que fazer para desfazer tudo porque seu próprio eu mais velho lhe disse.
Há uma falsa simplicidade nessa narrativa. Se, como vimos, de uma cadeia de causas e consequências não podem vir duas, mesmo se houvesse uma única Claudia, as duas realidades teriam que ter “incidido” sobre ela ou sobre Adão para levar à sua decisão de matar Eva (como podemos observar na tabela de correlatos abaixo – detalhe 9 – isso ficaria necessariamente a cargo de Magnus e Franziska; talvez o retorno deles sem Martha cause essa reação de Adão, de modo que o Adão 1 seria um Adão “alguns dias mais jovem” que o Adão 2 que conversa com Claudia). Há, naturalmente, uma “zona cinza” muito grande naquilo que não nos é revelado, no sentido de que as lacunas podem ser preenchidas de várias formas. Em qualquer dos casos, contudo, conseguimos explicar a cena da terceira temporada que deveria ser apenas uma repetição de uma da segunda, mas que gerou várias dúvidas entre fãs. Na segunda temporada, a Claudia adulta chega com Gretchen em seu escritório e encontra a Claudia mais velha. Na terceira, não há Gretchen e a Claudia mais velha diz “Olá, Claudia” (o que não disse na segunda temporada). Assim como no caso do suicídio de Michael, é muito complicado supor que tenham filmado algo de novo sem necessidade e, acima de tudo, sem significado; por que só não repetiram a cena original? Seria mais econômico em todos os sentidos. Há duas explicações possíveis a partir de tudo que discutimos até aqui no texto:
- Se pressupormos duas Claudias, podemos pensar que esta pequena reprise na terceira temporada se trata de um segundo encontro da Claudia mais velha com a Claudia adulta – dessa vez, a Claudia 1 mais velha.
- Podemos também supor que se trata de mais um caso de variação quântica, como no caso do suicídio de Michael, e ai só precisaríamos de uma Claudia. O evento é essencialmente o mesmo em termos da grande escala da narrativa; neste caso, não sabemos que Gretchen não está ali; ela pode só ter demorado um pouco mais para entrar na sala ou coisa do tipo.
O retorno da triquetra
Há apenas duas realidades paralelas, e uma causa a outra. No entanto, essa relação ocorre em um círculo que possui três pontos internos de sobreposição de momentos (o apocalipse do mundo de Eva e duas vezes o de Adão). Se considerarmos a parte interseccionada interna como uma “área de sobreposição” em que o lado de fora vira o lado de dentro e vice-versa, vemos (na figura 11 abaixo) que esse tempo todo a figura mais apropriada para representar os eventos de Dark não era um círculo nem um símbolo de infinito, mas uma triquetra.
Realidade 1 | Realidade 2 |
---|---|
Bartosz 1 (provável) | Bartosz 2 (provável) |
Eva 1 (implícito) | Eva 2 (implícito) |
Martha 1 (cânone) | Martha 2 (cânone) |
Jonas 1 (cânone) | Jonas 2 (cânone) |
Claudia 1 (provável) | Claudia 2 (provável) |
Adão 1 (implícito) | Adão 2 (implícito) |
Jonas 3 (cânone) | Jonas 4 (provável) |
Martha 3 (cânone) | Martha 4 (cânone) |
Magnus 1 e Franziska 1 (cânone) | Magnus 2 e Franziska 2 (cânone) |
DETALHE 9: Tabela comparando as duas realidades paralelas da série, lembrando que elas não estão separadas – pelo contrário, existem justamente porque interagem entre si. Assim, nomear as personagens com números é completamente arbitrário.
Vemos cada uma das personagens marcadas como “cânone” (Martha 1, 2, 3 e 4; Jonas 1, 2 e 3; Magnus 1 e 2; Franziska 1 e 2) em cena, na série. As marcadas como “implícito” (Eva 1 e 2; Adão 1 e 2) fazem sentido de acordo com as coisas que a série menciona sem mostrar (basicamente, o fato de que, na memória de Eva, Adão a mata). As marcadas como “provável” (Bartosz 1 e 2; Claudia 1 e 2; Jonas 4) são aquelas que podemos inferir nas reflexões acima, mas que não são evidentes, e são inclusive discutíveis. Passe o mouse por cima dos nomes para lembrar o que define cada personagem.
A triquetra representa, e deve até ajudar a entender, os eventos descritos acima. O nó ao mesmo tempo se mantém (para que possa existir) e se destrói; uma realidade ajuda a causar a outra. Há “repetições” de alguns pontos no tempo mas, em geral, as duas realidades são incompatíveis e eventualmente os universos-partícula se determinam (deixam de estar sobrepostos), com a realidade do nó destruído prevalecendo. Isso leva, como vimos acima, à criação de um novo universo ou à re-escrita da história do original – em ambos os casos, representando o que vemos na tela: a família de Tannhaus não sofre um acidente, a máquina não é inventada, e a realidade resultante é bastante diferente, em termos de relações humanas, da que vimos nos universos de Adão e de Eva.
A filosofia política de Dark
Quanto mais pessoas passaram a assistir Dark, especialmente com o lançamento da última temporada na pandemia de Covid-19 (não posso dizer que a figura 12 abaixo não me representa um pouco), mais a série foi recebendo reações “mistas”, deixando pra trás a “aclamação universal” que havia construído. Os dramas humanos da trama me atraíram tanto quanto o desafio cognitivo que ela oferece, mas é compreensível que o primeiro não agrade, especialmente a quem não liga muito para este último.
Há muitos padrões que fazem a série gravitar em um certo campo de mediocridade da indústria cultural, ao menos na maior parte dos episódios. As mulheres em geral se detestam, têm um papel relativamente reduzido[24], brigam por ‘omi’, são manipuladoras, etc. O protagonista é um adolescente branco meio-órfão de classe média que embarcará numa aventura destrutiva enquanto o par romântico feminino é movido por amor maternal… Devo deixar claro que Dark não se reduz a isso. Há outras coisas excelentes na série que não têm a ver com o quebra-cabeças sci-fi (a começar por questões como a integração da surdez, a agência e a complexidade de personagens com mais idade). Além disso, há explicações para as coisas apontadas acima. Winden é (seria) uma pequena cidade alemã; como discutido neste post do Reddit, muita diversidade étnica seria pouco realista, especialmente nos séculos XIX e XX (embora Yasin tenha sido apontado como uma boa presença). Bernadette pode ter uma história batida, e mais variedade na representação trans seria muito melhor – mas sua trajetória, tanto nos universos de Adão quanto no de Eva, é parte do argumento mais amplo da série, que é inclusive a maior explicação para qualquer coisa potencialmente “problemática” que a série venha a apresentar.
O argumento começa exatamente com a ideia de que tudo que vemos ocorrer na série é nocivo, inadequado – tóxico, de fato. Como diz Jonas, está tudo “errado”. A vida como estas personagens a conhecem é um “câncer”, como diz Claudia: ao se mover pelo “labirinto”, seja para mantê-lo, seja para destruí-lo, Jonas e Martha só causaram sofrimento. Katharina, ao falar com a rádio no episódio T01E06, também compara Winden à doença, incluindo a todas ali como parte da patologia. O “erro na Matrix” é uma referência constante; o brinde a um mundo sem Winden, também. Assim, o tempo todo a série parece deixar claro que, de tudo aquilo que estamos vendo, nada presta.
“O lance todo é errado.”
Claro que esse julgamento vai muito além da “convencionalidade” da trama em termos culturais, como a questão dos papeis de gênero. Quando Jonas diz a Martha que a relação entre os dois é errada, é porque ele descobre que ela é sua tia – e porque ele é indiretamente[25] responsável pelo desaparecimento do irmão dela, de quem ele é (será) filho. O desaparecimento de Mikkel é também em parte o que dá início ao desabamento psicológico de Ulrich e de Katharina – muito embora não tenha nada a ver com o comportamento adúltero dele. Este, aliás, ele provavelmente aprendeu com o exemplo do pai, Tronte – por sua vez vítima de abusos infantis, múltiplos abandonos parentais… Tronte, Ulrich, Jonas e Martha sequer existiriam, aliás, se não fosse pelo filho de Jonas e Martha e por todo o conhecimento sobre a viagem no tempo e entre universos, que ocasiona (e é causado por) o “acidente” nuclear de 1986 e, indiretamente, os apocalipses nos dois mundos. Precisaríamos de muitos mais parágrafos para descrever todos os absurdos que presenciamos – todos os incestos, os parricídios, matricídios e filicídios, as violências e as mentiras – e como isso se origina e dá origem ao nó temporal. Seria um resumo da série.
A questão é que Dark é contraditória por se apoiar em clichês e opróbrios para dizer “olha como as coisas são ruins”. Quando o nó é finalmente desfeito, o que sobra é um microcosmo de uma sociedade saudável: Hanna e Katharina são amigas. Claudia não tem que esconder seu relacionamento com Bernd. Regina não tem câncer (ou está em franca remissão). Bernadette não é uma prostituta num trailer nem um menino em crise, e não teria problema nenhum se Peter ficasse com ela. Wöller até se recupera de seu ferimento no olho. A questão é que uma série dedicada a elogiar esse tipo de mundo poderia simplesmente se passar nesse mundo – mas não; temos que aguentar três temporadas de pessoas tristes em lugares lúgubres sofrendo horrores.
Mas afinal, se o argumento passa por dizer que os eventos na tela são ruins, o que é que a série está tentando condenar? É bem justo não se empolgar com duas dezenas de horas de comportamentos terríveis que culminam em “viu como viajar no tempo não é uma boa ideia?”. Descortinar a filosofia política de Dark passa, assim, por entender o que fatores como as “viagens no tempo” e “a máquina de Tannhaus”, responsáveis por tudo de ruim, representam. Essa “tese” está escondida a ponto de muita gente[26] fazer dessa série seu modelo de ficção “que não discute política”, mas a tese está lá – e é ela que vamos analisar daqui em diante.
Samantha Fox e a era da latência
Esse também foi o objetivo da antropóloga Samantha Fox na única análise política que pude encontrar sobre a série: “Dark: Energy Politics in an Age of Latency”. Infelizmente, o texto abrange apenas a primeira temporada; mesmo assim, traz elementos interessantes a caminho de argumentar que a fonte de tudo que está errado na série é a energia nuclear.
Assim como a usina de Winden é desativada na série, a Alemanha possui um plano para deixar de usar energia nuclear até 2022. É curioso que, na foto de Mads Nielsen que vemos repetidamente ao longo da série, vemos uma camisa do movimento alemão anti-energia-nuclear (figura 13 acima). Para Fox, a primeira temporada mostra grandes diferenças entre o entusiasmo com energia nuclear em 53, os primeiros sinais de problemas em 86 e, finalmente, a desativação da usina em 2019 (e ainda assim não dá certo – a temporada termina com o futuro pós-apocalíptico de 2052). Ela conecta isso à noção alemã de história, que seria ao mesmo tempo cíclica e oclusiva: o povo alemão
sabe que há um passado traumático – evidenciado pelo silêncio de uma geração mais velha, a destruição física de cidades, ou monumentos aos mortos[…] – mas seus detalhes e contexto mais amplo são omitidos das coisas – silêncios, destroços, estátuas – que o indexam.
Ainda segundo Fox, o filósofo Hans Gumbrecht chama isso de “temporalidade da latência“. É difícil descrever essa questão melhor que a própria Fox (ênfase adicionada):
Os pais, avós, professores/as e amigos/as da família de Gumbrecht devem ter tido experiências com a guerra simplesmente por tê-la vivido. Mas o assunto era tabu, e os detalhes dessas experiências nunca vinham à tona – mesmo quando[…] Gumbrecht cresceu e começou a fazer perguntas. Como muitos/as alemães da geração de 68, Gumbrecht buscou construir uma nova Alemanha baseada em abertura e tolerância, mas ao mesmo tempo ele teve que viver à sombra de um passado recente, mas inacessível. As tensões entre gerações resultantes da Segunda Guerra Mundial desequilibraram a progressão temporal estável de passado, presente e futuro. Na era da latência, o presente é o que você vive na esperança de um futuro em que o passado finalmente se revelaria por completo.
Para Fox, Dark não precisa do nazismo para falar de política porque ele não foi o único legado vergonhoso do século XX. A série explora como o lixo radioativo “cria dor e confusão para todos/as os/as residentes de Winden em todos os três períodos no tempo”, de modo que a única esperança é “alguma coisa – até aqui secreta – vir à tona para explicar as ocorrências misteriosas”, para que estas possam ser “combatidas e controladas”.
Assim, essa latência é consequência de uma supressão do passado, que ao mesmo tempo o minimiza (pois o obscurece, impede que seja melhor conhecido) e o maximiza (é impossível escapar do passado, de suas consequências). Além disso, não é o passado por completo que caracteriza o presente, mas um momento histórico particular:
Ao contrário de outros filmes e séries como De Volta ao Futuro, quem mora em Winden não consegue configurar as cavernas para ir a qualquer período no tempo que gostariam de visitar – um personagem chega a dizer, sobre as opções limitadas da caverna, que ela ‘não é nenhum DeLorean’. É esse passado, essa série de dois momentos consequentes – o momento da crianção da usina em 1953, e o momento em que os perigos da energia nuclear não puderam mais ser contidos em 1986 – que engendraram o presente: sua culpa e suspeição, seu pânico e sua incerteza.
Esta análise é congruente com a série vista por completo:
- Um “momento histórico particular” de fato caracteriza o presente, ainda que um momento fora dos universos afetados;
- ele é um problema suprimido que é difícil de ser conhecido e ao mesmo tempo determina todos os acontecimentos;
- a “latência temporal” descreve o estado de espírito de muitas personagens, constantemente à espera de informações que expliquem esse momento para poder ter qualquer agência significativa, e que
- por agirem dentro desse estado de espírito, agem com desconfiança, de forma manipuladora ou de outro modo destrutivamente, como se as relações gerassem traumas e por meio destes mesmos traumas elas se reforçassem.
Porém, a perspectiva também é limitada, pois rastreia o problema somente às usinas nucleares. É compreensível que, numa ficção científica especialmente, a coisa descambe pra essa temática: na era atômica, é o destino de toda coisa ficcional “perigosa” ser radioativa, assim como muitos “vilõezões” acabam ecoando Hitler. Sabemos que a questão não é realmente essa – o acidente nuclear é reflexo de algo maior. Mas do quê?
O problema foi não ouvir ninguém
Como vimos, o que causa o nó é uma combinação de dois fatores: o desejo de Tannhaus de trazer sua família de volta dos mortos, e o desenvolvimento da técnica necessária para fazê-lo. A mera incapacidade de fazer as pazes com o destino poderia ter levado o relojoeiro a todo tipo de caminho autodestrutivo, mas o caminho autodestrutivo escatológico[27] que ele de fato percorreu depende de uma personalidade específica (que simboliza toda uma visão de mundo) e de uma capacidade técnica desenvolvida para este fim.
Se a série em certo sentido interage com o tropo do cientista maluco, ela por outro lado não conclui com uma condenação genérica da vontade por saber ou da própria ideia de “técnica”. Como vimos acima, o estado de latência é produzido em parte por uma falta de conhecimento; além disso, a ciência de Claudia e a técnica do orbe-relógio resolvem os problemas no fim das contas.
Assim, a personalidade do Tannhaus do mundo original é essencial para compreendermos o enfoque da série. Ele não liga para os interesses de seu filho Marek, impondo-lhe um destino indesejado; aliás, mesmo se a loja não estiver sendo imposta, mas meramente ofertada, não se trata disso: temos a impressão de que Marek já lhe disse mil vezes que não a quer, e seu pai simplesmente é incapaz de ouvi-lo. Anos mais tarde, Tannhaus determina, sozinho, que o universo deve ser destruído para que de algum modo as coisas possam ser como ele gostaria. Nesse sentido, o que Tannhaus representa é a confusão de sua perspectiva pessoal com lógica impessoal. Ele não finge que fez o que fez “pela ciência”. Independente de seus motivos, contudo, suas atitudes são na prática um autoritarismo advindo da mais pura arrogância. A ciência não é em si doentia, mas certamente pode ser usada para justificar atitudes doentias. Tannhaus representa não a ciência em geral, mas uma relação circular entre um impulso por determinar a sociedade, preservando um certo status quo, e o desenvolvimento tecnocientífico especificamente voltado para este fim: a consolidação técnica do princípio autoritário nas relações sociais.
A vitória do princípio autoritário
O universo está em constante movimento – e, portanto, nós também (o texto referenciado no detalhe 4 acima é bastante relevante para esta conversa, aliás). Saber dessa “impermanência” nos angustia. Há coisas das quais gostamos, e esforços que podemos fazer para tentar mantê-las, para que elas não parem de existir. É difícil aceitar que às vezes não devemos empreender estes esforços; que devemos deixar algumas coisas – relações, possibilidades; pessoas, até – morrerem. Às vezes o universo nos força a aceitar isso (como na impossibilidade de reverter os estragos que alguma doença ou acidente causaram). Noutras vezes, é a interconexão com outras pessoas que nos convence. Ter essa conexão – fazer parte de um grupo, de uma sociedade – impacta os critérios que usamos para julgar se devemos manter algo ou não. Isso não implica o “aniquilamento” da individualidade, até porque o esforço para manter ou não cada uma de nossas conexões com outras pessoas também é objeto de nossas decisões diárias. E isso faz toda a diferença, porque é justamente a avaliação negativa que se pode fazer (ou receber) sobre uma relação que nos provoca a modificá-la em algum sentido. O fato de algo não estar funcionando bem para alguém é o “limite social” que impõe às demais pessoas em uma certa conexão que a situação não deve ser mantida, por mais que algumas delas gostem das coisas como estão. Porém, ao contrário de limites naturais, como algumas das leis mais fundamentais da física[28], limites sociais são tecnicamente contornáveis.
Se estamos em uma situação boa, queremos que ela dure. E se ela causa sofrimento a alguém, isso pode levar à revolta daqueles que ela prejudica… Portanto, manter essa situação, contornar esse “limite” que a revolta alheia constitui, exige o emprego de certas técnicas, inclusive que manipulam esses limites. O autoritarismo tem a ver com a determinação de relações sociais de um jeito que tudo que você goste seja mantido, ignorando o custo disso para outras pessoas – isto é, mediante o emprego de técnicas que façam com que esse custo seja minimizado, negado, reprimido, naturalizado, etc.
A sociedade em que vivemos há muito tempo se sustenta devido a esse tipo de técnica. A riqueza de poucos pode ser mantida devido à enorme miséria de muitos; estilos de vida fúteis podem ser mantidos graças a uma inimaginável degradação ambiental, que provoca o empobrecimento do estilo de vida de muitos; os deuses do altar contemporâneo do sucesso exigem hercúleos sacrifícios psíquicos. Muitos de nossos discursos, de nossas tecnologias, de nossas formas de relação social, estão profundamente relacionados às técnicas voltadas para garantir a reprodução de certas coisas que são bem mais vantajosas para certas minorias; técnicas que basicamente dependem em algum grau do uso da violência, que permite ignorar o diálogo, fechar-se para as perspectivas dos outros. Se os universos de Adão e de Eva, por serem “errados” como são, representam os nossos problemas sociais atuais[29], a origem daqueles (Tannhaus) deve representar a origem destes: a manutenção ou recuperação de uma boa situação (sua família), mesmo que isso cause tragédias (a destruição do universo e a criação de um ciclo de eterno sofrimento), necessitando para isso de técnicas (sua máquina) que permitam impor essa relação até a quem dela discordaria.
Observe que essas técnicas só podem ser desenvolvidas a partir de um modo de pensar que lhe dá impulso: a prepotência de Tannhaus, que o deixou primeiro cego para a subjetividade do filho, e depois indiferente às opiniões de todas as pessoas que, se perguntadas, certamente diriam, “hm, não, muito obrigado, não quero que este universo seja destruído para que você possa ter sua família de volta”. Perceba que essa mesma perspectiva, disseminada por nossa sociedade, dificulta inúmeras conversas necessárias sobre o progresso de muitos grupos oprimidos: as ideologias do status quo nunca se colocam como técnicas de manutenção de certas relações sociais, e certamente nunca como perspectivas próprias daqueles que delas se beneficiam. Elas se vendem como lógicas “sem viés”, conhecimentos “neutros”, ciências “objetivas”[30].
A questão não é se esforçar para manter uma coisa boa para si, nem ignorar quem diz que mantê-la trará sofrimento a outros – uma sociedade igualitária desenvolve técnicas para lidar com isso, para redirecionar vontades, abordar sentimentos, restabelecendo limites sociais que, assim como os naturais, simplesmente impediriam essas situações de evoluírem para atitudes autoritárias (em breve voltaremos a isso). Dark não faz portanto um argumento a la Black Mirror, porque não se trata de uma condenação da ciência em geral. Na origem dos universos de Adão e de Eva, testemunhamos uma sociedade que não desenvolve técnicas que impediriam Tannhaus de ascender a uma posição essencialmente ditatorial, qual seja, a de determinar que situações manter e quais destruir. O sucesso técnico de Tannhaus em recriar as leis do universo (em dois novos) representa o sucesso do princípio autoritário, desigual, hierárquico de relações humanas; a efetivação de uma dinâmica em que algumas pessoas determinam mais que outras quais situações a sociedade se esforçará para “manter”.
A inevitável guerra entre luz e sombra
Há duas razões pelas quais o momento “Tannhaus destrói seu universo e cria dois semideterminados com viagens no tempo” fazem efetivar o princípio autoritário nos mundos de Adão e de Eva. Em primeiro lugar, como colocado acima, é difícil “vivenciar” as CFFTs que esses universos são, como tais. As viagens no tempo ainda são pensadas como promessas de que o passado pode ser modificado (o paraíso do grupo Sic Mundus original). Isso inevitavelmente configura outras pessoas como adversárias, pois transforma a vida num jogo de soma zero. Podemos pensar nessa questão como a coloca, se não me engano, o cientista político estadunidense Robert Putnam: se todo mundo pensa que existe muita corrupção, há uma grande propensão a serem corruptos também; afinal, se ninguém rouba ninguém, tudo bem, mas se muita gente rouba, chega uma hora em que se você não roubar, você é que é o “otário”, você que está “fora da norma”. E ninguém quer ser o otário, não é mesmo? Pense na Hannah percebendo que as viagens no tempo existem: ela ali, naquela sofrência toda, e as pessoas indo pra lá e pra cá no tempo? Ah, faça-me o favor – vou também! Katharina, aliás, logo depois: ora, a Hannah indo pro passado, até o filho dela… Eu vou é salvar minha família[31] que se dane[32] todo o resto!
“Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” – George Santayana
Emblemática é a confusão que sentimos ali pela segunda temporada, quando já ouvimos falar bastante de uma “guerra entre luz e sombra pelo controle do tempo”, mas ainda não sabemos quem está de qual lado e o que qual lado representa. Até Jonas/Adão se engana quanto ao lado de Claudia, ou à própria configuração da guerra em dois lados. A questão é justamente essa: pouco importa! Se viagens no tempo existem, elas serão usadas de forma adversarial; vai haver alguma guerra, algum conflito, seja pelo que for. E assim, a origem dos mundos determinou seu conteúdo. Se viajar no tempo alterasse as linhas-mundo de todas as pessoas de um jeito ou de outro – se essa é a esperança de quem o faz – então viajar no tempo é uma atitude inerentemente autoritária, assim como criar universos novos às custas do atual. Todo mundo teria que concordar que a viagem fosse feita, e com seu propósito. Sem isso, influenciar os eventos do passado significa impor uma agenda própria a todo mundo, sem qualquer chance de que estas possam contestar seus novos tempos presentes.
É preciso lembrar da noção de estado de latência que vimos acima no texto de Fox. As pessoas se sentem “otárias” de não estar viajando no tempo porque as viagens já existem, e já determinaram muitas coisas. Sente-se uma enorme falta de agência efetiva; coisas estranhas continuam acontecendo, gente sumindo, morrendo, mentindo, agredindo, sem que as pessoas se sintam capazes de influenciar qualquer coisa. Elas não conseguem sequer explicar como o passado explica esse presente! A promessa de voltar ao passado, finalmente impondo sua vontade sobre o tempo em vez de ser seu súdito, é a esperança que sobra – mas é falsa. Viagens no tempo (mais atitudes autoritárias) nunca trouxeram paz[33], concórdia, clareza; pelo contrário, despertaram cobiça, medo e desinformação. Mais que isso, sem o conhecimento sobre o evento que determinou os acontecimentos, as pessoas estão fadados a reprisá-lo. Por meio de mais atitudes autoritárias, as pessoas reforçam o autoritarismo na estrutura de seus universos.
Esse estado de latência é criado justamente porque a ação de Tannhaus, desconhecida para os universos criados, determina toda a temporalidade dos mesmos ao estruturar sua geometria espaço-temporal na forma de CFTTs. Assim, esta é a outra forma como o princípio autoritário se manifesta nos mundos criados, compondo um círculo vicioso com a primeira. Um passado oculto que determina as ações das pessoas as motiva a agir segundo a mesma lógica desse passado. CFTTs são o sonho molhado de autoritários, porque representam o fim de qualquer resistência, qualquer reação – tudo está determinado, nada pode mudar.
Aliás, é importante observar que a possibilidade de o futuro ser determinado no formato de um círculo não surgiu com Einstein e Gödel; em muitas culturas e religiões antigas essa noção já existia em certo sentido, e ela nunca deixou de estar associada a um certo “conservadorismo”, ainda que distante daquilo que entendemos por esse termo hoje. Hoje, em nosso mundo, temos poucas esperanças de transformações sociais “revolucionárias” a curto prazo. O sucesso do neoliberalismo, da versão Fukuyama do fim da história, representa justamente esse sucesso ideológico em nos fazer desacreditar em nosso próprio potencial. O futuro se torna uma forma de passado, como numa CFTT, pois a repetição do passado que as levou ao poder é tudo que as elites se dedicam a garantir. Mudam as roupas, os corpos; em alguns casos faz chuva em vez de sol. Mas Ulrich sempre perderá o irmão, sempre será adúltero, sempre tentará matar Helge no passado, sempre acabará seus dias desaparecido.
Outro indício de que a série retrata os problemas sociais atuais: a dominação desse autoritarismo representa a dominação burocrática, que Hanna Arendt define como “o governo de ninguém”, que “não é o não-governo” e sim uma situação “em que todos estão igualmente privados de poder”, e portanto “temos uma tirania sem um tirano”. A série discute os efeitos do autoritarismo enquanto princípio mesmo[34], enquanto valor difuso que envenena as relações sociais. Como podemos ter uma tirania sem tirano? Compreendendo, por exemplo, que a máquina apenas coloca sentimentos e tendências que já existem em um “campo” deformado pelo autoritarismo. O “evento” do mundo original de fato determina os universos, mas não “forçando” as pessoas a fazer coisas a cada momento. Contornar com maestria os limites sociais para impor uma vontade exige lidar com um elemento básico daquilo que somos, a saber, que nossas qualidades também são a base de nossos defeitos. Perfeccionismo pode virar paralisia decisória. Autoconfiança pode virar teimosia. Cuidado pode virar paternalismo. Os desejos humanos básicos que compartilhamos – de estarmos seguros/as, de sermos amados/as e respeitados/as, de contribuirmos com algo maior que nós próprios/as – não existem “puros”; eles sempre se manifestam nas formas sociais disponíveis. E assim como a gravidade deforma o espaço-tempo, e muita gravidade pode deformá-lo muito, técnicas sociais autoritárias podem canalizar esses desejos de formas bastante destrutivas ao impor formas sociais nefastas para esses desejos.
Quem poderia dizer onde exatamente está a origem dos erros que nos assolam? Em Bolsonaro, Dilma, Pedro Álvares Cabral, talvez no império romano? A série parece advogar que o princípio autoritário, uma vez bem-sucedido, tende a se reproduzir ao “hackear” nossos desejos, e aí temos permanentes “consequências sem causa”, paradoxos ontológicos para os quais buscamos culpados originais assim como Jonas busca origens internas para sua vida desgraçada. Por acaso o problema da relação entre Helene Albers e sua filha Katharina, por exemplo, é que ela não a ama? Não. O problema (nessa relação e também em muitas das nossas) é que esse amor é canalizado para certos papeis sociais (possivelmente: o significado de “ser uma boa mãe”) que causam todo aquele sofrimento por se basear numa lógica autoritária que se difunde na sociedade – uma lógica “maximizada” precisamente por não ser conhecida, por não ser discutida. Na série, a origem é “atemporal” (está fora da triquetra de eventos que causam a si mesmos); assim, a origem de nossos problemas não está “lá” ou “ali”, assim como podemos ter uma tirania sem tiranos. A questão é como combater essa tirania.
DETALHE 10: Podemos ver na própria ideia de “abuso de autoridade” uma forma como o autoritarismo se enraíza em nossa cultura, pois implica uma “zona aceitável” de hierarquia, cobrindo uma ampla gama de atividades corriqueiras (da polícia e dos tribunais à noção de hierarquia na família e no local de trabalho). Há um silêncio sobre a origem dos problemas, e assim isso nos deixa, até certo ponto, em um estado de latência. As narrativas que buscam de fato explicar o passado mantendo o princípio intacto (“… e é por isso que devemos obedecer!”) são mais exemplos de técnicas para contornar os limites sociais ao autoritarismo, cancelando os efeitos da latência até certo ponto – isto é, permitindo agência, mas nos moldes de comportamentos dóceis, previsíveis, ao contrário dos erráticos e destrutivos que vemos na série. Não obstante, isso não é suficiente – porque, guiados por um princípio de autoridade, a destrutividade acaba se afirmando na própria normalidade; o monstro Adão é justamente o Jonas que, tendo aprendido que aquele espaço-tempo distorcido era normal, internalizou que todas aquelas monstruosidades eram também normais.
O lado ruim do amor
Se são nossos próprios sentimentos, em interação com uma realidade deformada pelo autoritarismo, que acabam lhe dando uma forma específica, é de se esperar que isso inclua também o amor. E assim é preciso fazer um comentário específico sobre o que a série diz sobre esse sentimento. Tendemos a identificar o amor como algo absolutamente positivo, mas o que fazemos com ele muitas vezes é uma falácia do verdadeiro escocês: o amor é tudo de bom… Se não for, não é amor de verdade.
Ocorre que a maior parte dos/as antagonistas de Dark são movidos/as por amor em algum sentido. De Hannah a Noah, até Jonas/Adão e Eva, eles/as têm isso em comum. Assim como na vida real é preciso um vocabulário mais complexo para entender as relações sociais – entender, por exemplo, que o amor não nos salvará – o amor não é uma via de salvação pura e simples em Dark porque dá origem a vários comportamentos que não ajudam em nada. Claudia pode ter tido a mesma relação distante com Regina que Tannhaus teve com Marek no mundo original, e seu amor arrependido a levou a buscar uma solução – porém, como veremos, uma solução que a permitisse que Regina tivesse uma vida melhor, não a mesma que Claudia já conhecia. Jonas queria “consertar” o fato de que Martha morreu – mas por que, exatamente? Ao fim das contas, ela continuaria vivendo num universo terrível (e em parte por isso, inclusive, seu plano passa a ser outro). Eva teve sucesso em conservar a vida do filho, que amava – mas quão absolutamente insana é a vida d’O Desconhecido?
A questão, assim, é que o amor, assim como uma série de outros sentimentos que julgamos “bons”, pode ser parte de uma estrutura de relações sociais que nos destrói. A questão sobre o autoritarismo ou o igualitarismo, ou seja, a maneira como nos relacionamos na hora de construir ou manter nossas situações e relações, parece ser muito mais determinante para a qualidade que elas terão (e por conseguinte, que nossa vida terá). O grande vilão da série, o Tannhaus do mundo original, não age por ódio, mas por amor. O que o torna um vilão foi justamente canalizar esse amor por uma via autoritária.
As três atitudes básicas frente à perversidade
Já vimos que as personagens agem de forma autoritária porque se movem em um universo profundamente determinado pela vitória tecnocientífica do princípio autoritário. Mas isso não significa que não sejam capazes de ver que o mundo está todo “errado” – pelo contrário; conseguem ver isso muito bem na maior parte do tempo. Mesmo agindo de maneira estruturalmente igual (autoritária), há três atitudes básicas que as personagens podem assumir tendo percebido isso: seguir em frente, buscar destruí-lo ou buscar mantê-lo.
Por que alguém iria querer mantê-lo? Ora, porque esta vida é a única que a pessoa viveu! Dark é quase completamente feita de momentos ruins das vidas de suas personagens e, embora em alguns períodos provavelmente não haveria quase nada de bom para mostrar (como a vida do Jonas de 2020 a 2053) certamente há muitos momentos bons que ficaram de fora da narrativa. Antes de sair por aí com seus “eu”s mais velhos “mantendo o nó”, O Desconhecido estava ouvindo canções de ninar da mamãe Martha. Quando não estamos nos enraivecendo com o último escândalo político ou nos entristecendo com a última tragédia pseudonatural, estamos festejando, aprendendo, divertindo, obtendo prazer de uma forma ou outra. Muitas vezes estamos na posição de suportar, às vezes ativamente reforçar, certas coisas que detestamos para conservar as que queremos. A atitude de Eva (movida por amor, como vimos acima), do grupo Erit Lux como um todo, representa a conversão do apego às coisas boas da vida em um apoio direto às atrocidades (contextualmente) necessárias para mantê-las. David Graeber toca nessa questão da seguinte forma:
Mesmo se não gostamos da situação atual do mundo, ocorre que o objetivo consciente da maioria das nossas ações, produtivas ou não, é fazer o bem para as pessoas; com frequência, pessoas bem específicas. Nossas ações estão entremeadas em relações de cuidado. Mas a maioria das relações de cuidado exige que deixemos o mundo mais ou menos do jeito como o encontramos. Da mesma forma que idealistas adolescentes regularmente abandonam seus sonhos de criar um mundo melhor […] precisamente no momento em que se casam e têm filhos, cuidar dos outros, em especial a longo prazo, exige manter um mundo que seja relativamente previsível […]. Uma pessoa não consegue poupar dinheiro para […] seus filhos a não ser que ela saiba que em vinte anos ainda […] existirá dinheiro. […] amar – pessoas, animais, lugares – regularmente exige a manutenção de estruturas institucionais que de outro modo a pessoa desprezaria.
Digo que as atrocidades são “contextualmente” necessárias porque nem toda situação boa nas nossas vidas depende de uma atrocidade para ocorrer ou se manter – ao menos não diretamente. A coisa fica mais complicada, claro, se considerarmos o contexto social mais amplo de tudo que fazemos – e, no caso de Dark, como há uma facção (Sic Mundus) determinada a (autoritariamente) destruir o mundo, atitudes autoritárias (usar as viagens no tempo para atrocidades) são consideradas necessárias para manter o mundo existindo. Da mesma forma, a facção determinada a destruir o mundo precisa fazer isso porque ela está do lado de quem sofre para que uns poucos possam se agarrar a suas felicidades. Esse é o impulso de Jonas, o “adolescente idealista”[35] da citação acima que, sem saber que tinha um filho[36] viveu a maior parte de sua vida adulta sofrendo, vendo pessoas queridas sofrerem, e assim buscando uma forma de “consertar” aquilo. E, claro, uma vez que isso se provou impossível, só lhe restou desejar que aquilo nunca precise se repetir – o que, no caso de CFTTs, só ocorre se o universo for destruído.
Os passos de Jonas é que são guiados por Eva, e não vice-versa. A série está nos dizendo assim que, embora compreensível, a tentativa de destruir o mundo reproduzindo o mesmo impulso que lhe desgraçou fracassa – e fracassa no sentido de que isso só ajuda a manter o status quo. A história de Adão e de Eva, na realidade em que o nó se mantém, é uma história de cooptação, de um falso engajamento – de fato, nunca há uma interação direta entre os dois antes que tudo esteja determinado, seja na realidade em que o nó se mantém, seja naquela em que o nó se desfaz. Para manter estruturas sociais desiguais, por exemplo, há enorme valor em provocar esse tipo de enfrentamento controlado, com um resultado predefinido ou irrelevante – como entre traficantes e policiais, ou entre candidatos nas eleições.
No meio de tudo isso, a terceira atitude (“seguir em frente”) está nas pessoas que, mesmo descobrindo as viagens no tempo, não dão bola para as implicações mais amplas disso. Ulrich, Katharina e Hannah vêm à mente: representando talvez as pessoas que não se envolvem em discussões e disputas sobre as estruturas sociais, elas podem até ser autoritárias quando sentem que convém, mas não conseguem dar uma direção às suas vidas por meio disso. Mais alheias ainda à origem de suas vidas “erradas” que as personagens com outras atitudes, elas acabam tropeçando em seus próprios individualismos e acabam ainda mais confusas e perdidas. “Quem não se organiza, acaba sendo organizado pelos outros”, diz o adágio anarquista; Sic Mundus e Erit Lux se organizam como grupos secretos – inclusive com um certo fervor religioso[37] – assim como pessoas com opiniões fortes sobre o que fazer com o mundo (destruí-lo ou mantê-lo) se juntam em partidos que disputam o Estado. Organizadas, elas têm mais força que os indivíduos que só querem ser deixados em paz – o que não significa, contudo, que fazer parte de uma das organizações resolveria o problema.
Quebrando o ciclo
Eventualmente, os universos são destruídos. Assim, isso deve ser lido como uma esperança de resolver todos esses problemas – de escapar a um bem estabelecido ciclo social de horrores. A forma como isso é feito na série deve representar, assim, como isso seria feito também na vida real.
- Assim como é essencial descobrir a verdadeira origem do nó, conhecer o princípio do autoritarismo e seu alcance em nossa sociedade é imprescindível. Claudia precisou não só de conhecimento sobre o mundo original e sobre (possivelmente) os parâmetros que permitiriam ao orbe-relógio criar um novo universo; uma coisa importante que ela faz foi romper o silêncio intergeracional ao ser franca com a versão mais jovem de si mesma, ou até mesmo com a versão “duplicada” de si mesma. A tensão entre gerações é um dos fatores que vimos na teoria da latência, mobilizada acima por Samantha Fox, e faz todo o sentido: até certo ponto Eva, mas acima de tudo Adão, manipulam suas versões mais jovens para seus próprios objetivos, gerando uma oclusão adicional de conhecimento. Não só Claudia “conversa consigo mesma” de forma produtiva[38] mas sua vitória também passa por fazer com que Adão seja sincero com o Jonas jovem.
- Não são as pessoas “indiferentes” que vão ajudar a resolver as coisas, mas aquelas que se importam. A quebra do ciclo exige a presença de Jonas e de Martha, ou seja, a combinação dos dois impulsos politizados – a favor do status quo e contra ele – ainda que voltados para uma nova vontade criativa mais abrangente. O mundo não é completamente destruído nem mantido como está; suas partes ruins são “removidas” em favor de uma realidade melhor.
- A juventude também é um fator essencial. O conhecimento é obtido com a experiência, e assim são pessoas mais velhas que colocam as engrenagens para girar – porém, Jonas e Martha cooperam, ainda jovens, para colocar um fim ao problema. Isso provavelmente indica a necessidade da ação de pessoas que ainda não estão completamente “investidas” no tecido institucional existente a ponto de não conseguirem vislumbrar – ou apostar em – um futuro diferente.
- A salvação não vai vir de fora. O Jonas e a Martha são fatores interiores ao nó, e portanto descartamos aqui qualquer noção salvacionista (imperialista, colonialista) de que um ciclo de autoritarismo possa ser parado “de fora”.
- Mesmo sabendo que o sistema é podre, é preciso viver. Claudia acaba colaborando com ele até certo ponto, manipulando-o sempre que possível, para enfim poder substitui-lo. Podemos falar aqui da necessidade de auto-cuidado para todas as pessoas que desejam um mundo menos autoritário – pois se a pessoa adoece gravemente, não poderá continuar na luta. Não dá para descobrir o que está errado no mundo e se desesperar querendo consertar tudo da noite para o dia (e aí desistir, porque a tarefa é obviamente impossível). O conhecimento sobre a real causa, é claro, ajuda, pois impede também uma atribuição errônea de culpa, que muitas vezes recai sobre a própria pessoa, deixando-a obcecada em pessoalmente consertar problemas sistêmicos, que só podem ser corrigidos com uma mudança profunda das relações sociais.
- Sacrifícios são necessários. Os problemas não são resolvidos apenas com a melhoria das vidas das pessoas; algumas pessoas simplesmente deixam de existir, incluindo Jonas e Martha. É preciso algum grau de abnegação, se não literal, das próprias histórias (pois seus pais e avós, fazendo parte do nó, também desapareceram): embora o conhecimento é essencial, não há porque insistir na ênfase em certos eventos ou narrativas que não cabem mais. Não é verdade que parte de mudar as relações entre indígenas e não-indígenas dentro do território brasileiro, por exemplo (extremamente desiguais em termos de poder), exige completamente erradicar a noção imbecil de que Pedro Álvares Cabral “descobriu” o Brasil? Não que isso seja, perceba, uma causa de mudança; ela seria apenas um efeito colateral, assim como a causa do nó desfeito não foi a morte de Ulrich, Tronte e Agnes – estes simplesmente desapareceram quando o nó foi de fato desfeito.
Se lermos os eventos da série de acordo com a interpretação Copenhague da FQ, é basicamente isso que temos: uma reflexão sobre os elementos necessários para romper um ciclo de violências e mentiras em uma sociabilidade estruturada pelo autoritarismo. Um novo mundo é criado em que o problema foi excluído pela raiz, e as relações humanas são melhores. De certa forma, há até uma mensagem otimista de que, embora as dores de um ciclo de eventos determinados pelo autoritarismo vão ocorrer, eventualmente elas também estão destinadas a acabar. Porém, se considerarmos a interpretação AA da FQ, podemos refletir também sobre as técnicas que sociedades igualitárias usam para prevenir que o autoritarismo seja bem-sucedido.
Ação Avançada e contrapoder
Se acreditamos que a evolução natural dos universos-partícula criados pela máquina de Tannhaus leva à re-escrita da história do universo original, podemos comparar o que ocorre na série com a ideia das sociedades contra o Estado, do antropólogo francês Pierre Clastres. Para resumir muito rapidamente, europeus que chegaram nas Américas entendiam que as populações nativas eram “sociedades sem Estado”; que seriam de algum modo atrasadas em relação a isso, ou seja, sociedades que ainda não haviam desenvolvido o Estado. Mas Clastres apontou que a organização social de muitas populações daqui não eram meramente “desprovidas” de Estado, e sim especificamente voltada para que o Estado não surgisse (daí contra, não sem, o Estado). Isso dependia diretamente da imaginação[39]: da capacidade indígena de imaginar como seria se as relações entre si fossem autoritárias, e então organizar-se (criar técnicas) para impedir que aquilo acontecesse.
DETALHE 11: Isto não significa que todos os acontecimentos de Dark “estão na cabeça de Tannhaus”, ou “foram só um sonho”. Eles foram “reais”, tanto quanto isso signifique algo nesse contexto. Digo isso para deixar claro que essa ideia não tem nada a ver com aquela conhecida “interpretação”, que serve para qualquer narrativa, de que todos os eventos de uma história foram algum tipo de alucinação do/a protagonista (“Todos os eventos de Harry Potter foram um sonho dele, na verdade ele é só um órfão vivendo debaixo da escada”; “Todos os eventos de Senhor dos Anéis foram uma bad trip do Frodo”, etc.).
Por um lado, Jonas e Martha poderiam ter ido falar com Tannhaus para dissuadi-lo da ideia de criar sua máquina, sua família morrendo ou não; ter impedido o acidente de ocorrer parece uma forma “covarde” de resolver as coisas, pois deixa intocada a visão de mundo essencialmente autoritária do relojoeiro. No entanto, como mencionei lá no início do texto, minha proposta é justamente “traduzir” o que a série nos diz com termos científicos para a linguagem da política – e assim, os “limites naturais” que Tannhaus desafia podem ser lidos como uma alegoria dos contornáveis limites sociais que discutimos acima. É como se as leis da física fossem o princípio autoritário, e Tannhaus, o Prometeu ladrão de fogo, insurgindo-se contra a natureza a favor da humanidade.
Podem ser lidos assim – mas não sei se devem. Seria “forçar a barra” no sentido de que os limites sociais já estão lá, afinal, tanto quanto os naturais; não faz sentido estes representarem aqueles porque aqueles não precisam de nenhuma representação. A questão é que a sociedade do mundo original fracassa porque não envolve Tannhaus em novas coletividades a ponto de lhe dar a oportunidade de formar novos sentidos para a vida. 15 anos depois do acidente e ele ainda não vê melhor saída que destruir o universo inteiro por uma chance de recuperar sua família? Não é à toa que mesmo num mundo melhor as personagens ainda brindam a um mundo sem Winden. O princípio autoritário perde força se compararmos a nova situação com os universos de Adão e de Eva, mas ainda estamos falando do mesmo mundo que o nosso, que sabemos estar longe de ser um lugar em que o cuidado entre pessoas e comunidades é um princípio prevalente.
Assim, temos que essa interpretação ainda se salva se entendermos que, sendo realista, Dark não aponta para um caminho em que o princípio autoritário pode ser completamente erradicado de uma hora para outra. O que podemos fazer é forçá-lo a recuar, um pouco de cada vez. Se a interpretação AA se relaciona a uma técnica para evitar a ascensão do princípio autoritário – ou seja, uma que já é mais igualitária – tais “acordos” não seriam necessariamente capitulações reformistas a interesses de elites, mas uma política de consenso, de encontrar uma solução com a qual todos possam viver. Que ter evitado o acidente tenha evitado a criação da máquina sugere que uma das melhores estratégias para evitar o ciclo vicioso de autoritarismo e violência é deixar todo mundo contente desde o início. E no caso de Dark, isso não necessariamente exclui uma interpretação mais “revolucionária” – afinal de contas, muitas existências tiveram que ser ‘apagadas’ no caminho até a resolução desses dramas.
O fim é o começo
Segundo a interpretação que detalhei até aqui, a série acaba ficando um tanto “à esquerda” no espectro político. Se por um lado isso certamente tem a ver com minhas referências pessoais (a simbologia não está tão longe da própria série de fantasia que escrevo), por outro, a direita do espectro político está ligada à ideia de autoridade – seja ela mais centralizada (conservadores, tradicionalistas de um tipo ou outro) ou difusa (entusiastas do mercado). Dark discute como é ruim viver em mundos violentos, incompreensíveis e em grande medida determinados, e o “final feliz” envolve criar ou recuperar um universo menos determinado (ao mesmo tempo, mais compreensível) e menos violento. Parece-me evidente que podemos depreender, desses contornos gerais, uma denúncia simbólica ao autoritarismo, de modo que uma leitura “à direita” da série não faria tanto sentido.
DETALHE 12: É interessante notar que, se entendermos os eventos da série de acordo com a interpretação Copenhague da FQ, Dark se torna mais “marxista“, com certa dose de autoritarismo justificada pela necessidade de confrontar um autoritarismo, argumenta-se, pior. Por outro lado, se endossarmos a interpretação AA da FQ, Dark fica um pouco mais “libertária“, pois o autoritarismo é combatido “na raiz”, por assim dizer, a partir de uma rejeição a seus efeitos projetados, rejeição que em si vem de uma “resposta” dinâmica e sistêmica a esse autoritarismo.
No entanto, uma narrativa não é feita de contornos gerais, e o simbolismo tem muitos limites. Podemos imaginar as personagens de Dark, dos universos de Adão e de Eva, se reunindo para abrir seus corações, resolver suas diferenças, trabalhar em conjunto para melhorar suas vidas? Não – e não apenas porque se isso não aconteceu, não poderia acontecer, mas porque esse não é o material típico de uma série padrão da indústria cultural, que investe pesado na centralidade de conflitos, choques, traições, tretas… Como apontado acima, a série pode até argumentar contra “coisas ruins”, mas é precisamente nelas que se concentra.
A forma mais aguda como Dark se curva à convenção, no entanto, é também a mais básica: ela acompanha indivíduos. Se os papeis que estes desenvolvem no esquema geral da série faz com que representem certas coisas, isso não é suficiente para desenvolver reflexões no âmbito da dimensão coletiva e intersubjetiva da luta antiautoritária – por exemplo, a necessidade de diálogo entre as pessoas oprimidas. Não é coincidência que uma das reclamações mais recorrentes sobre o final seja “como é que Claudia descobriu o mundo original??”. Ela pode ter sido franca consigo mesma (com outra versão de si, ou seu “eu” mais jovem), mas não o foi com mais ninguém. Essa falta de diálogo não traduziu bem justamente o ponto fundamental de sua vitória: a aquisição do conhecimento sobre o ato de Tannhaus no universo original.
A consequência disso é que a série não retrata uma luta coletiva, apenas lutas individuais, separadas. “Pessoas-símbolo” atomizadas não podem substituir o tipo de interação interpessoal que podem até simbolizar. Além disso, pessoas de verdade são imprevisíveis – e se a aleatoriedade quântica de um universo que não é eternista (como o nosso, com sorte) permite explicar isso a nível físico, em termos sociais, a consequência é que sempre há esperança de mudar atitudes, relações, realidades. Claro que não aleatoriamente, e de qualquer jeito; o “conhecimento”, em amplo sentido, é necessário. Contudo, se for o conhecimento de uma pessoa só, como no caso de Claudia, não se trata de conhecimento mútuo, compartilhado, que em si ajuda a erodir a perspectiva autoritária, mas de uma técnica manipulativa, com a qual alguém pode mudar as coisas mais que outras pessoas – exatamente, aliás, como na máquina de Tannhaus.
Vivendo em mundos determinados, é isso que sobra mesmo. As pessoas, simbólicas, não são pessoas, mas “tipos” de pessoas. Quão bem elas podem representar a experiência da luta antiautoritária? Muito mal, de fato. Há uma espécie de contradição entre o real e o desejável, semelhante à que atormentava William Godwin: “se o poder evita a verdade, como poderia a verdade derrubar o poder?”, questiona-se o crítico literário alemão Christoph Bode. Os universos de Adão e de Eva são determinados como ruins – como colocado acima, um “Movimento pela Libertação das Personagens de Winden” não pode acontecer porque não aconteceu – e portanto, nada ali pode ser uma fagulha de algo bom que, incentivada, nutrida, organizada, vivida, pode crescer a ponto de subverter a ordem vigente. Como coloca David Weir, falando sobre Godwin, “o que acaba destruindo o poder […] é a influência do próprio poder”. Se tudo, inclusive a ação “salvadora” de Claudia, está determinado, foi o próprio ato de autoridade que “se cancelou”, por assim dizer; tropeçou sozinho em vez de ter sido derrubado. A atitude de Claudia quer dizer muitas coisas, simbolicamente – mas também não quer dizer nada, porque não foi realmente um ato de desafio à ordem das coisas.
Dark fica, então, nessa posição estranha. O simbolismo antiautoritário existe, mas se manifesta numa linguagem de indivíduos que não se libertam coletivamente, ocultando, na prática, sua própria dimensão política. Afinal, a política está precisamente nas relações entre pessoas, não em cada uma isoladamente. Obviamente Dark não é desprovida de relações, mas elas estão longe de pintar o mesmo quadro que montei acima a partir do que os atos de cada pessoa representam, fora de um contexto relacional. Claudia escolheu fazer tal coisa, sozinha; Tannhaus foi lá e fez tal coisa, sozinho; Martha vira Eva principalmente a partir das maquinações de si mesma, mais velha – os elementos “sociológicos” ou “políticos” que essas coisas simbolizam apareceriam de forma muito mais contundente se emergissem[40] de relações entre pessoas e grupos.
O fim é o começo porque volto à pergunta inicial: será que existe algo a dizer sobre Dark, politicamente? A questão é que a mesma divisão entre esquerda e direita em termos de percepção da realidade social também incide sobre a série, até certo ponto. Para a esquerda, a direita se recusa a ver os processos sociais por trás de cada indivíduo, porque só vê a literalidade do que ocorre e assim não reflete em profundidade. Não ver, por exemplo, que as disputas entre personagens simbolizam algo maior, seria ignorar o sentido político da série. Para a direita, a esquerda conecta o que deveria permanecer desconectado, porque projeta sua imaginação no mundo em vez de simplesmente percebê-lo. Assim, por exemplo, a vida dos universos de Adão e de Eva seria a vida como ela é – competição, agressividade, ações em grande medida determinadas pela realidade das coisas. Claudia pode ter sido bem sucedida em seus propósitos, tornando-o um pouco menos assim, ao menos para algumas pessoas com quem ela se importava: pergunte pra quem fazia parte da “família que gerava a si mesma” se eles gostaram de virar pó pra sempre…
A conclusão, aqui, não é que a série é o que cada um achar que é (embora, a rigor, cada pessoa sempre terá uma interpretação única de qualquer obra de arte), mas que a série existe na contradição entre conteúdo de esquerda e forma de direita, o que causa uma dissonância cognitiva. O que foi, exatamente, Dark: uma série política que se perdeu na necessidade de agradar um público amplo? Ou uma ‘piração’ sobre viagens no tempo que não pôde deixar de simbolizar processos políticos, já que na vida real, “tudo está conectado”?
Para acabar num tom positivo (como a série), celebro ao menos um aspecto dessa ambiguidade: obras de arte com mensagens explícitas costumam ser tão banais, não é mesmo? Faça o bem, lute contra a injustiça… Se apenas no mundo real fosse tão fácil saber o certo a se fazer a todo instante. É bacana quando uma série fica com você; quando te força a processar suas complexidades, descobrir seus segredos, reconstruir seus significados. O que eu concluí revirando Dark de ponta-cabeça foi a ideia de que é preciso buscar as raízes autoritárias de nossos problemas coletivos, que perpassam nossa própria subjetividade até mesmo quando achamos que estamos “vencendo nossos inimigos”. Se não fizermos isso, nosso futuro será igual ao passado que queremos deixar para trás.
Notas
- Na minha interpretação, a série faz uma “extrapolação fantástica” de algumas noções científicas; por exemplo, perguntando como universos ou pessoas poderiam se comportar como partículas quânticas… No meio do caminho, certamente abandona bastante a acuidade científica; nesse sentido, os conceitos são usados mais precisamente que os termos em si. Voltar a este ponto no texto.
- Minha inspiração para este texto também é em parte o quanto a maioria das análises factuais da série apresentam explicações insatisfatórias sobre o que ocorreu. Voltar a este ponto no texto.
- Neste texto, usarei os termos ‘universo’ e ‘mundo’ intercambiavelmente, admitindo uma leve preferência pelo primeiro. Voltar a este ponto no texto.
- Dizer ‘é um paradoxo!’ é o mesmo que dizer que a série foi preguiçosa. Como veremos a seguir, os paradoxos internos aos mundos de Adão e de Eva são explicados a partir da existência do mundo original. Este paradoxo não seria. Voltar a este ponto no texto.
- Como veremos mais adiante, não foi a Claudia que morreu, pois aquela Claudia morreu justamente depois de falar com Adão, e portanto é a mesma. Voltar a este ponto no texto.
- A perspectiva do bloco crescente não necessariamente se livra do problema da velocidade da passagem do tempo, como veremos adiante. Mas, como veremos ainda mais adiante, pode haver outras formas de redimi-la nesse quesito. Voltar a este ponto no texto.
- Sim, eu sei sobre a entropia. Já vou chegar lá. Voltar a este ponto no texto.
- “Dilatações” seria um termo mais adequado. Voltar a este ponto no texto.
- O termo “mecânica quântica” pode ser usado intercambiavelmente. Voltar a este ponto no texto.
- É como dizer “eu tenho certeza que eu teria ganho na mega-sena semana passada se tivesse jogado, e nada do que você possa me dizer vai me convencer do contrário”. Tá bom! Voltar a este ponto no texto.
- É inimaginável a quantidade de cálculos que uma máquina teria que fazer para “acessar” um universo com leis diferentes, ou em que o acidente não tivesse ocorrido. Além disso, se isso pudesse acontecer, não haveria a menor necessidade de os universos de Adão e de Eva existirem. Ou seja, a própria história existir nos diz que não foi isso que aconteceu. Voltar a este ponto no texto.
- O que é extremamente importante para Tannhaus, que não quer um universo que possibilite viagens no tempo mas em que a vida inteligente não tenha surgido na Terra, por exemplo. Voltar a este ponto no texto.
- Talvez por isso, inclusive, colocar o buraco de minhoca numa caverna. Se a passagem pelo tempo fosse facilmente acessível, o mundo seria absurdamente diferente, para sempre, e provavelmente de formas incalculáveis. Voltar a este ponto no texto.
- Ainda podemos usá-las tranquilamente para, por exemplo, calcular a trajetória de objetos macroscópicos no espaço. Voltar a este ponto no texto.
- O que não seria tão mau, já que em nosso universo não podemos criar a máquina de Tannhaus. Mesmo assim, em nome da simplicidade, avancemos para soluções não-paradoxais que não exijam tal suposição. Voltar a este ponto no texto.
- Na verdade, é bem impressionante que qualquer um consiga usá-la – tanto essa máquina quanto a do mundo de Adão, aliás. Elas parecem fazer uma conexão psíquica com quem as usa. No caso do orbe: basta dar uma girada para ir a qualquer ano, em qualquer mundo… Como é que se definem os parâmetros dessa joça? Voltar a este ponto no texto.
- Talvez uma incompreensão de como os universos funcionem – assim, ela pensa que, já que os universos não ‘acabaram’ ainda, esta deve ser a primeira vez que ela está fazendo isso. Voltar a este ponto no texto.
- Numa versão anterior destas reflexões, cogitei que tudo que acontecia nos universos acontecia uma única vez, e que falar em “repetições” era um erro. As variações no suicídio de Michael (que dificilmente são erros de gravação) me fizeram pensar de outro modo. Ainda assim, uma vez que a destruição dos universos também sempre acontece, talvez somente os eventos que se repetiram tenham se repetido mesmo, apenas na quantidade em que o fizeram, ou seja, o mínimo de vezes para que o nó se mantenha (a ponto de existir), e também para que se rompa. Voltar a este ponto no texto.
- É preciso deixar claro que é apenas uma metáfora. As realidades paralelas têm mais a ver com a sobreposição quântica, como vimos acima. Por outro lado, por que fazer a distinção, não é mesmo? A própria questão da sobreposição é também uma metáfora, em última instância. Voltar a este ponto no texto.
- Devo admitir, no entanto, que a perspectiva ‘senso comum’ de que as coisas mudam fundamentalmente “dessa vez” explica bem este momento também. Voltar a este ponto no texto.
- Isso da perspectiva dela; ou seja, há algum auto-engano aqui de que as coisas dependem dela para se fechar. Ela não poderia decidir não fazer isso, até porque ela já fez… Voltar a este ponto no texto.
- Podemos supor que isso é possível porque, se Adão salva Jonas do apocalipse, vemos Jonas 2 interagir com (de fato, causar a existência do) Jonas 3. Voltar a este ponto no texto.
- Se ainda pensarmos em termos de duas Claudias, podemos pensar que a Claudia 1 conversou com Adão 1 em termos mais ‘honestos’ e acabou gerando uma onda de raiva que o levou a matar Eva (e talvez até a Claudia 1…). Voltar a este ponto no texto.
- No fim das contas, Eva controlava os passos de Adão, e Claudia, os de todo mundo, mas trata-se, de novo, de um poder manipulativo; franqueza e conflitos de interesse mais orgânicos definitivamente não são a regra. Voltar a este ponto no texto.
- Mais tarde, é claro, ele se tornará diretamente responsável. Voltar a este ponto no texto.
- Imagino quantos desistiram deste texto depois dos parágrafos acima. Voltar a este ponto no texto.
- Relativo a uma ‘salvação’ após a morte. Considerando que ele efetivamente morreu com a destruição de seu mundo, e que provavelmente sabia o que estava fazendo, parece uma caracterização válida. Voltar a este ponto no texto.
- Esta é mais uma evidência da metáfora política da série: ao mostrar uma técnica para alterar o inalterável, o inalterável (o mundo físico) se torna uma alegoria daquilo que é alterável (o mundo social). Assim, Tannhaus representa uma intervenção específica, um tipo de atuação sobre a realidade social. Voltar a este ponto no texto.
- Isso não há muito como provar; é uma premissa baseada, entre outras coisas, na questão de que muitos dos problemas que vemos, especialmente na questão dos “padrões narrativos convencionais”, têm a ver com nossos problemas sociais. Voltar a este ponto no texto.
- Lembrando que não é apenas um discurso “positivista”, ou que se apoia em ciência, é autoritário em nossa sociedade – este é apenas o tema, creio, por se tratar de uma ficção científica. Voltar a este ponto no texto.
- A mesma motivação do Tannhaus original. Voltar a este ponto no texto.
- Aliás, bem literalmente, pois a série dá a entender que o apocalipse é causado por ela abrindo a porta da passagem nas cavernas ao mesmo tempo em que os barris de lixo radioativo são abertos na usina. Voltar a este ponto no texto.
- A própria versão de Tannhaus dos universos de Adão e de Eva não conseguiu voltar no tempo. Uma série de circunstâncias o impediram de criar uma máquina como a do mundo original (ter a bebê Charlotte para cuidar) ou usar a máquina do mundo de Adão (ela nunca esteve completa enquanto esteve em sua posse). Tanto uma circunstância quanto outra resultaram, mais ou menos indiretamente, do fato de que havia vários interesses diferentes em conflito. Voltar a este ponto no texto.
- Embora, como discutiremos melhor adiante, isso seja até certo ponto personificado na figura do Tannhaus do mundo original. Voltar a este ponto no texto.
- Talvez “niilista” seja melhor, especialmente quando mais velho. Voltar a este ponto no texto.
- Bem… Tecnicamente ele não tinha mesmo, não é? Voltar a este ponto no texto.
- O pensamento fundamentalista religioso representa justamente a arrogância da qual surge o autoritarismo – e que, no caso de Tannhaus, assume contornos científicos. Voltar a este ponto no texto.
- Bem… Exceto quando mata a si mesma – mas quem ela mata é a versão de si que trabalha exclusivamente seguindo a filosofia de Eva, então não é dessa Claudia que estamos falando. Voltar a este ponto no texto.
- Mais ou menos, também, pois como aponta Graeber, os povos indígenas conheciam muito bem relações autoritárias – eles as encontravam, por exemplo, em muitas de suas relações de gênero. Assim, tratava-se mais de se perguntar “e se todo mundo fosse para um só homem ou um pequeno grupo deles o que muitas mulheres são para seus homens?”. Voltar a este ponto no texto.
- “Mas eles emergem!”, você diz. Sim, em muitos casos é verdade – mas quantas vezes vemos isso acontecer, na tela? Pense na relação entre Martha e seu filho. Um abraço d’O Desconhecido criança na Martha jovem, que acaba de descobrir sua existência, é o suficiente para consolidar em nós mesmos tudo que aquela relação é, tudo que aquela relação causou em ambas as personagens? No fim das contas, o grau de simbolismo é enorme. Em relação à história de muitas personagens, a série exige demais que nos importemos com coisas que não vemos, com informações mais que com as pessoas que se desenvolvem através de eventos. Voltar a este ponto no texto.