A normalidade é o limite da mudança: sobre a audiência do novo transporte público integrado em São José (SC)

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 6 de setembro de 2017. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

Foi um milagre ter sequer sabido que essa audiência ia acontecer. Afinal, poucos ainda sabem que aquilo que ela apresenta – um novo sistema de transporte público que integra toda a parte continental da grande Florianópolis – está sendo discutido há bastante tempo e agora está nas fases finais de planejamento. É o sistema top-bottom de sempre, em que o input populacional, de quem realmente usa o sistema, vem por último.

Cada município da região já teve uma audiência como essa; São José é o último. E a propaganda foi uma beleza: não um evento no facebook, com ampla divulgação também pela mídia tradicional, mobilização com panfletagem nas ruas, etc. Não, não: uma foto no facebook, com o texto todo embutido na imagem. Fotos não são pesquisáveis: eu lembro que vi a postagem e gostei, mas até achar de novo o que era, quando ia acontecer e onde, foi um pequeno parto. Não é à toa que pouquíssimas pessoas foram.

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Tinha bem menos gente que isso… Photo by UNE Photos

Chegando lá, comida: salgadinhos, sanduíches, bolinho de cenoura – até suco tinha. Falei para quem esperava para entrar no teatro (não só o local onde ocorreria a audiência, mas simbólico da audiência como um todo): “eles estão tentando já seduzir a gente com comida. Não podemos deixar isso desviar a atenção do que realmente importa, hein…”. Tendo todos entrado lá pacificados pela barriga, começou a apresentação.

A proposta

O arquiteto responsável por planejar o novo sistema informou que a mudança compreende duas partes: a primeira é a infraestrutura, que já está no estágio final, prestes a implementar (em suma, a duplicação das faixas da via expressa e dois super terminais de ônibus, um em Biguaçu e um em Palhoça). A segunda é o funcionamento do sistema em si, como as suas linhas, os horários, etc. A audiência foi basicamente para tratar dessa segunda parte, que é a proposta para integrar as linhas do continente entre as diferentes cidades da Grande Florianópolis.

O arquiteto fez uma breve exposição teórica sobre o que um sistema de transporte público deve fazer; que tipo de expectativas, por parte dos usuários, ele deve atender. Houve coisas interessantes na exposição, como o fato, por exemplo, de que as calçadas são uma parte essencial do transporte público, pois incidem na experiência do usuário.

Foi nessa parte que ele botou no slide uma ótima frase, que citei de volta em uma das perguntas que lhe fiz:

Qual a disponibilidade que possuímos como sociedade para arcar com os custos de um sistema que atenda às demandas da população?

Ele fez então uma comparação entre os sistemas direto, conectado e tronco-alimentador, defendendo este último para a região da Grande Florianópolis. Aí ele mostrou a situação dos sistemas continentais. Atualmente quatro municípios possuem seus próprios sistemas (São José, Palhoça, Biguaçu e mais outro que não lembro) e 1 intermunicipal, gerenciado pelo governo do estado. A nova proposta é unificar esses cinco sistemas sob uma única licitação, integrando seu gerenciamento.

Ele mostrou a confusão, e a ineficiência, que o sistema vigente (que aliás está em situação irregular, juridicamente) traz. Um novo sistema traria inclusive benesses como o pagamento de diferença tarifária para viagens entre zonas de transporte (em oposição ao pagamento de duas tarifas cheias). As novas linhas – e também as antigas, por vezes reformuladas – foram mostradas no mapa, indicando de que maneira elas serviriam melhor ao público, facilitando por exemplo viagens dentro de São José (que por agora dificilmente são feitas sem passar pelo centro de Florianópolis) e entre outras partes do continente.

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Hmmmmm… Em se tratando de ônibus em Florianópolis, qualquer coisa minimamente boa já parece boa demais para ser verdade. Photo by Knothingz

Sinceramente, várias dessas mudanças me pareceram boas – no entanto, tenho que admitir que minha opinião, especialmente em termos de primeira impressão, foi fortemente influenciada pelo meu viés particular. Meus trajetos são relativamente simples e geralmente entre minha casa, o centro de Florianópolis e a UFSC – muito embora já deixei de fazer várias coisas por não haver uma maneira mais simples e eficiente de se chegar até um determinado lugar do continente (por exemplo, durante o final de semana).

E esse é precisamente o problema, não é? A perspectiva individual.

Quanto mais se pergunta, mais se percebe que as coisas não mudarão tanto

Foi por ela que comecei fazendo as perguntas, pois tínhamos pouco tempo para fazê-las e escolhi dividir o que eu queria dizer em dois blocos. Minhas primeiras questões foram simples. Por que não havia ônibus diretos do continente para a UFSC – ou, dito de outra forma, todos os ônibus intermunicipais tinham que parar no TICEN, obrigatoriamente? Se temos agora uma licitação de 20 anos em descompasso com uma outra licitação de 20 anos em Florianópolis, a licitação do continente não poderia ser feita em um período menor, para que as duas acabem juntas e a integração possa um dia ocorrer? Já que algumas cobranças tarifárias são baseadas também no ponto em que a pessoa salta, haverá duas catracas no ônibus?

Ele respondeu que, em relação a linhas para a UFSC, tudo era uma questão de “negociar” com Florianópolis, e que isso era uma questão pedida com frequência. Sobre a (des)coincidência temporal entre licitações, ele parece não ter entendido a minha pergunta, porque respondeu outra coisa (nem me lembro o quê). Não o culpo, talvez eu tenha expressado ela melhor aqui no post do que na hora. Já quanto à última, ele observou que colocar catracas tanto na entrada quanto na saída atrasaria muito o ônibus e, portanto, o sistema perderia eficiência.

Sabe o que seria melhor? A ausência total de catracas, é claro.

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Photo by Dudu Viana

Outras pessoas falaram. Uma delas, um morador da Avenida das Torres, reclamou do trajeto picotado que o ônibus da localidade faz (o que torna a viagem muito mais longa do que precisaria ser) e questionou quanto à presença do ar condicionado nos ônibus, uma vez que, por experiência própria, ele vê pessoas desmaiarem nos ônibus às vezes quando o calor bate forte. Ah, e, claro, como poderia esquecer: ele perguntou sobre a disponibilidade de horários após as 22 horas.

Isso é uma das coisas mais bizarras da plataforma E do TICEN. Tem sido assim desde que comecei na UFSC, ao menos, que eu tenha percebido. Os ônibus, especialmente do tipo mais comum (que passa pela Leoberto Leal) saem regularmente de vinte em vinte minutos – até às 22 horas, momento em que começam a sair de trinta em trinta minutos. O que é bizarro, considerando que o fluxo grande, das 5 às 7 da tarde mais tardar, diminui consideravelmente às 8 e aumenta depois das 10, quando mais estudantes e mais trabalhadores voltam a sair de seus trabalhos. E o fluxo diminui.

O arquiteto respondeu então que não vai ser um fluxo muito maior, mas será de fato maior (se não, o custo não compensaria). Quanto ao ar condicionado dos ônibus, é “questão de investimento” que, de novo, pode não compensar, e que de início apenas as linhas troncais operariam com ar condicionado. E quanto ao trajeto dos ônibus, ele defendeu que o novo sistema significativamente melhora isso, simplificando trajetos e ofertando mais opções para os mesmos destinos.

Depois foi a vez de um membro do Sintraturb falar. Para ele, nada vai mudar: a licitação é apenas mais uma forma de regularizar o monopólio da máfia de transportes – a Fênix 2. Ele olhou pra mim e disse: “sabe quando que vais poder pegar um ônibus daqui até a UFSC, sem pagar duas passagens passando pelo TICEN?”

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Photo by x-ray delta one

“Nunca”

E aí peguei o microfone de novo.

Saudei o companheiro por suas observações bastante lúcidas (das quais o arquiteto discordou, basicamente apontando que há ganhos substantivos com o redesenho das linhas), e então disse ao arquiteto que há problemas mais profundos nessa questão toda.

É preciso repensar quem é o sujeito do transporte público e quem se beneficia dele. Transporte público não é uma viagem pra Nova York, uma barra de chocolate, um “cineminha”, quer dizer… Não é  uma questão de preferência individual, embora também esteja claramente conectada a isso. É claro que ninguém é obrigado a pegar ônibus por força de lei, e assim há diversas maneiras disponíveis para quem quer evitá-lo – de desistir de ir aos lugares (ou de tentar trabalhar em certos lugares) a se acorrentar a dezenas de prestações de um carro, passando por comprar uma motinho desgraça que seja. Tudo isso, claro, incorre em problemas que todos acabam compartilhando – acidentes e engarrafamento vêm à mente com mais facilidade. Portanto há um benefício social bastante óbvio e amplo no incentivo ao uso do transporte público.

Mas transporte público, de novo, não é só pra passear. Antes mesmo de falar de direito à cidade – tanto como acesso a serviços quanto como reinvenção e ocupação do espaço público – é preciso entender quem se beneficia do transporte público e do transporte em geral, isto é, da estabilidade e eficiência de circulação de pessoas e produtos na cidade. Transporte público é pra resolver principalmente os deslocamentos que compreendem aquilo que só podemos escolher com sorte, da classe média pra cima e olhe lá: os trajetos entre casa, trabalho(s) e, quando há, instituição de ensino.

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Photo by Uma câmera de celular na mão

O tempo todo o transporte público foi tratado como uma ida ao restaurante: temos que fazer o prato mais gostoso possível, com a melhor apresentação, no melhor preço, para que o cliente escolha pagar por ele. Mas meus queridos, nós não somos humanos indo a um restaurante entre muitos: somos porcos comendo ração. Certamente temos interesses individuais na nossa alimentação, mas a ração não nos é disponibilizada porque nós estamos pagando por ela, mas porque nossa “engorda” (o deslocamento da massa trabalhadora pela cidade) beneficia quem vende o nosso bacon. Por que diabos temos nós que pagar, e não quem mais se beneficia com isso?

Uma das falas da plateia foi da parte de um vereador que elogiou o sistema, dizendo que ele vai desenvolver e integrar o continente, o que é de interesse das empresas (e das prefeituras) uma vez que o crescimento da Grande Florianópolis está se voltando a todo vapor para o continente. Mais claro que isso não fica. Sim, é óbvio que as pessoas têm o desejo de se locomover, mas não só a utilização dos ônibus com esses propósitos regulares determina toda a distribuição de linhas e horários (não é eficiente o sistema de transporte que não se volta para isso acima de tudo) como estamos literalmente pagando pra ir dar lucro pro patrão, caramba! Sem falar do lucro das máfias, que fazem com que a planilha de custos seja opaca e maquiada para poder nos extorquir ainda mais a partir de seu monopólio e conluio político com a casta local.

Em suma, todo o projeto foi planejado, com os preços dos patamares que nos foram apresentados  – segundo requisição das prefeituras e do governo do estado – já contando que não haveria subsídio nenhum. Foi exatamente isso que o arquiteto disse: está aberta a porta para que ele exista mais tarde, mas a princípio os preços (que são bastante semelhantes aos já caríssimos cobrados hoje) não teriam qualquer subsídio. Foi aí que me voltei para a frase do início de sua apresentação:

Qual a disponibilidade que possuímos como sociedade para arcar com os custos de um sistema que atenda às demandas da população?

Sim, como sociedade: como podemos exigir que aqueles que lucram com um transporte público de qualidade contribuam para que ele seja mais acessível, mais eficiente, mais limpo, mais tecnológico, mais confortável? Enquanto essa questão não for resolvida, as questões que realmente importa não serão resolvidas: o transporte público vai continuar sendo visto como um produto pela qual as pessoas já devem pagar. Fodidos como estamos todos, em maior ou menor grau, claramente não tem como sair do nosso bolso o preço de um sistema realmente bom e cidadão. E enquanto essa situação perdurar, quem não tem opção vai continuar gastando muito com um serviço ruim; quem tem, vai preferir ser mais um dentro de um carro que polui o ar e ocupa espaço demais por tempo demais junto a outros carros demais. Ou arrisca a morte de moto, no menos pior dos casos eventualmente onerando a nós todos ao entulhar os hospitais traumatológicos.

Quando decidi que já era tarde demais e eu deveria ir embora, encontrei o pessoal do Sintraturb na saída, pegando uns últimos salgadinhos e bolinhos. Eles comentaram que o pessoal de municípios mais distantes, que antes pegavam um ônibus até o TICEN, em alguns casos teriam que pegar agora 3. O plano das empresas é socar gente nos dois grandes terminais – e portanto nos ônibus alimentadores, sem ar condicionado, que vão até eles. Vai ser uma tristeza.

O arquiteto que não me leve a mal: ele aparentemente fez um trabalho bem feito dadas as limitações não só da região como também das forças políticas. Mas todos os seus ganhos de eficiência não vão resolver a questão mais profunda que corrói a política de transporte em todo o país, mas mais intensamente aqui, na região das passagens mais caras do Brasil. E, de qualquer modo, ganhos técnicos em eficiência podem ser implementados a qualquer hora; ajustes sempre precisam ser feitos. O buraco é bem mais embaixo: e quando o ônibus passa por cima, é um horror.