O que importa, na política, para o humano: inteligência ou valores?

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 22 de abril de 2016. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

Seja no tema “políticos deveriam ter ensino superior” ou “será que só os mais inteligentes deveriam votar?“, essa é uma coisa que vem constantemente à tona no debate político. A inteligência, e como ela é importante na política.

Sim, a inteligência humana é uma coisa importante em tudo que os humanos fazem, mas é importante notar como esse argumento é o tecnicista que já destrinchei no primeiro link acima – a ideia de que as coisas devem ser feitas bem, com eficiência, mas poucos se perguntam que diabo de coisas deveriam ser feitas.

Mas a questão da prioridade da inteligência no processo político vai além. Vai até o cerne da política, e também do que nos faz humanos.

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Photo by dbking

Imaginemos que vivamos na democracia direta de uma comunidade pequena; uma vila de não mais que 150, 200 pessoas. As mesmas pessoas que pensam que políticos e eleitores devem contemplar um “QI mínimo” ou coisa parecida são aqueles que vão dizer que há pessoas burras nessa comunidade, e que elas não devem participar do processo político.

Há tanto que se pode dizer sobre isso. Há pessoas incapazes, certamente; tanto idosos com alguma patologia que degenera o cérebro e nos leva a questionar sua autonomia quanto crianças pequenas que ainda têm que se acostumar mais com o processo político para participar dele com proficiência. Por outro lado, mesmo que se concorde que idosos com problemas graves e crianças não votemtratá-los como incapazes em termos discursivos – especialmente com a exclusão deles – é uma forma de, por exemplo, não acostumar as crianças com o processo político, afastá-las da vida pública, do interesse comunitário, e prejudicar sua auto-estima e confiança. O mesmo acontece com outras pessoas que, devido a uma série de circunstâncias, são excluídas da vida pública na sociedade mais ampla que é a nossa.

Mas voltemos à questão original: pessoas burras. Pessoas que são reconhecidas pela sociedade como tendo menos inteligência que outras.  Não vou entrar no mérito quanto à possibilidade e pertinência disso; vamos presumir essa condição para chegar ao ponto. Por acaso decorre que essas pessoas, por conta de suas capacidades intelectuais, não possam participar do processo político?

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Photo by amish.patel

A resposta é não. Isso só seria razoável se o processo político fosse uma discussão técnica sobre como chegar aos fins que se quer chegar. Mas o embora o processo possa envolver isso, a principal discussão (que às vezes é obscurecida quando o discurso tecnocrático toma conta) é sobre os fins a que se quer chegar. E a dignidade humana essencial, a liberdade, informa-nos que mesmo uma pessoa que não é lá muito brilhante (novamente, estou supondo isso para atacar esse argumento por dentro) tem valores que quer ver realizados, e a liberdade dessa pessoa está absolutamente relacionada à sua capacidade de expor esses valores para seus pares e buscar contribuir para que as decisões de sua comunidade reflitam esses valores (o cerne da política). Como Sandel demonstrou em seu ataque a Rawls, a liberdade tem muito a ver com a nossa identidade; com quem somos, com aquilo que nos constitui, com aquilo que nos move. E isso tudo remete à negociação identitária da comunidade: debater sobre os valores de todos até chegar a uma decisão sobre o que é mais importante fazer.

Voltando às crianças às quais não se permite plena (igualitária, ao nível dos adultos) participação no processo político: não é por serem burras que elas não podem participar. Ou mesmo ignorantes, ou sem experiência. O processo político, suas regras, sua dinâmica; isso tudo pode ser ainda desconhecido em termos de detalhe e nuance para as crianças, mas em pouco tempo elas seriam capazes de se acostumar com quem-fala-o-quê-quando, o que significa votar, o que é um recurso, um bloqueio, etc. O processo em si é como um jogo, e se as crianças podem aprender com facilidade a jogar um jogo de tabuleiro, decorando suas regras, não são as regras da democracia que as impedem de participar. É que elas ainda não passaram tempo o suficiente convivendo no mundo para que se tenha certeza de que compartilham dos mesmos valores que aquela sociedade. Adultos têm medo de que crianças participando do processo político serão egoístas, esperneando no chão, chorando rios de lágrimas porque não conseguiram o que queriam. Isso não é uma questão de inteligência, é uma questão de crianças que não absorveram o valor social de que tomar decisões em grupo é mais do que agir em interesse próprio.