O que significa dizer que uma intervenção funciona?

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 21 de fevereiro de 2018. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

O Nexo ouviu um acadêmico que diz que a intervenção federal no Rio de Janeiro vai funcionar. É sintomático que seu nome seja “Dircêo”. O dinossauro político vai além de dizer que a intervenção tem saldo positivo; ele só vê flores nela (deve ser o tipo de branco muito igualitário que “não vê cor” e por isso não enxerga como negativa a disrupção ou interrupção de vidas, em sua maioria negras, que tal intervenção vai acelerar no Rio de Janeiro).

Mas quanto mais você lê a entrevista mais fica claro que sua aprovação tem por fundamento o mundo de fantasia jurídica que o entrevistado habita (presumindo, ainda, no limite da paciência, a boa fé). “Não chega a ser um Estado de Emergência, nem um Estado de Defesa ou um Estado de Sítio”, diz ele, e a diferença é que “não há supressão de direitos”. Ufa! Ainda bem! O tal Estado de Defesa, “que suspende direitos individuais”, não foi declarado. Que sorte! Nem sequer os direitos humanos são suspendidos, veja – tudo “como está na Constituição”.

Este cara de pau está tentando dizer pra população das favelas do Rio de Janeiro, cujos direitos são pisoteados há mais décadas do que existem, que vai ficar tudo bem – ao mesmo tempo em que comenta que, bem, não tem diferença nenhuma entre PM e exército mesmo. “Haverá um controle do judiciário“, diz ele. Qual, o mesmo que condena e mantém preso Rafael Braga?

O pior é que não, não será nem mesmo esse mesmo judiciário. Crimes dos militares serão julgados pela justiça militar porque, “afinal, um militar sabe muito mais do que uma pessoa comum [para julgar]” (antes dessa lei de 2017, crimes de militares contra civis iam a juri popular, se não me engano). Que conhecimento de astrofísica quântica poderia ser esse, se não a mera ciência do fato de que o exército está lá para matar mesmo, e que nenhum outro direito ou garantia pode se sobrepor a esse mandato? Quando dá merda e o cidadão comum pensar “espera, isso não é justo. Isso não deveria ter acontecido e o militar deve ser responsabilizado”, ele estará sendo burro, ignorante; um atraso de vida, um verdadeiro impedimento à livre manifestação das razões de Estado. Assim não dá, Zé.

A direita adora falar de “realismo”, selecionando bem o tipo de realidade que lhe parece absolutamente fundamental (a capacidade de destruir, mandar bala, matar, incendiar, prender, mutilar). Sejamos, pois, realistas: se o tráfico está com armas exclusivas do exército, é porque elas vêm do exército. Sejamos realistas: o exército atua na segurança pública do Rio de Janeiro, naquelas relações que termina uma semana e já volta na seguinte, desde os anos 90, e nunca, nunca jamais foi feito uma investigação séria, com base em dados, dos resultados efetivos dessas intervenções. Em muitos casos parecem ser nulos. Sejamos realistas: não existe tráfico sem sua suposta “repressão”.

Mas quando o realismo cairia bem, o acadêmico recorre ao espetáculo da televisão, por onde ele vê que “quando o Exército vai às ruas no Rio, os bandidos fogem pelos morros”. Me poupe: o jogo do tráfico de drogas independe dos personagens individuais, desses corpos que fogem pelos morros. Dircêo quer uma ação continuada para evitar que voltem. Mas quando cairia bem o realismo de saber que se as pessoas bebem café e cerveja, vejam, elas também usam drogas que hoje são ilícitas, e algumas enormemente menos nocivas que álcool e tabaco, preferem crer que eliminar o varejo da venda de drogas vai fazer muita coisa. Com a raiz do problema sem ser resolvida, ele vai surgir de novo. E de novo. E de novo.

O professor da USP não é ignorante o bastante para não saber que “quanto maior o nível de educação, menor a criminalidade. Quanto mais desenvolvimento e emprego, menos criminalidade”. Ok. Mas por detrás de toda excitação com a violência e a demonstração de força está a insegurança e a ingenuidade de uma criança. “Alguma coisa deveria ser feita”, tateia ele, no escuro das profundezas do abismo de seu “realismo” imediatista; “alguma resposta deveria ser dada”.

Sim, de fato deveria. E é aqui que o “realismo” atrapalha. Realismo pode ser se apegar ao real, mas pode ser também não conseguir imaginar mais nada, não conseguir se desprender do que existe. Mas o que já existe é isso aí, é essa podridão toda com a qual agora alguns parecem surpresos. Você quer mudar ou ficar no que já existe? Tem que escolher um; os dois, não dá.

Uma solução – em curto, médio e longo prazo – vai à raiz do problema e dá trabalho. Custa dinheiro. Deixa os poderosos infelizes. E não é fácil: de fato, eliminar a violência em questão de dias, tornando seu descréscimo duradouro, é utópico – e os tais realistas não cansam de dizer que as utopias são perigosas? Mas imaginar um mundo melhor não é o problema, o problema é – como se faz agora no Rio – apresentar essas “imaginações” como certezas inabaláveis e inquestionáveis que justificam, por sua vez, a violência de sua implementação.

Alterar estruturas arraigadas há séculos de desigualdade, exclusão e descaso é difícil e não seria um processo rápido, sem contradições, sem problemas. A solução de curto prazo é, infelizmente, não mais glamurosa que admitir o fracasso de esperar por ajuda e começar a jornada cujo portal estão bloqueando com cacetetes e tanques. É muito mais fácil (pra quem está no topo, ou longe o bastante do fundo do poço pra não ser atingido pelas gotas de sangue) dizer que esse caminho está fechado, interditado, que na verdade ele nem existe, é uma lenda, um mito, El Dorado – e esperar que quem fica cada vez mais sem saída não procure uma e a encontre no tráfico, que funciona segundo a mesmíssima lógica de um Estado. É fácil, mas não resolve porcaria nenhuma.