Houve um período no final de 2016 (não durou mais que uns 3 segundos) em que vários conhecidos de Facebook se dividiram entre aqueles que apoiaram, ainda que sem muito entusiasmo ou particular devoção, o vídeo de Clarice Falcão – aquele com genitais decorados (decoradas?) – e aqueles que o condenaram como “mais uma coisa de pós-modernista” que “confunde transgressão com revolução”.
É fácil entender os dois lados da disputa. Talvez tudo se resuma (como quase sempre) a prioridades: para quem acha que a sociedade brasileira ainda é muito pudica, é interessante que um vídeo como esse faça relativo sucesso. Para quem entenda que há coisas mais importantes a tratar, e que o próprio fato de esse vídeo ser considerado “revolucionário” demonstrar o quão pouco essa palavra significa hoje em dia, o sucesso do vídeo é mais um sinal de coisas como “a esquerda precisa mudar e se reorganizar urgentemente”.
Mas sabe, eu não consigo enxergar a coisa dessa última forma. Para explicar melhor minha posição, uma pequena história:
No ano de 2007 saiu um filme chamado Beowulf. A essa época eu já conhecia o anarquismo, e até mesmo o discordianismo, então não sei por que afinal ele me deixou essa impressão – mas me lembro vividamente dela como uma espécie de momento “eureka”. Numa determinada cena (mais para o final), um dos guerreiros ligados a Beowulf (… eu acho) chega para ele e diz algo como “ouvi dizer de um novo deus ao sul, chamado Jesus. Devemos rezar para ele também?”.
Veja, esse é um filme muito merreca. Não sei se cabe na categoria de “ruim” – não lembro muita coisa dele – mas certamente é um festival de CGI cheio de clichês e que não abocanhou grande parte da consciência cultural até hoje. Nem cult virou. E no entanto, naquele fim de primavera de 2007, eu assisti essa pequena cena e achei isso foda pra caralho.
Foi uma besteira, claro, mas foi algo que deu uma relativizada muito bacana. Acho que a imagem que ficou na minha cabeça, uma espécie de insight em forma de nova obviedade, foi: “de fato essa é só mais uma religião entre muitas outras. E calhou de eu nascer numa época em e num lugar em que ela é prevalente. Mas nem sempre foi assim”.
É claro que embora eu acredite que toda arte minimamente transgressora pode ter esse efeito (e por isso não sou tão rápido em, ou desejoso de, julgar coisas como esse clipe da Clarice), há que se ater a contextos. Uma pequena transgressão em uma novela da globo ainda está numa novela da globo. Mas em geral não vejo qual é o problema que muita gente tem com pequenas transgressões: se causou tanto furor assim, é porque há muita gente que ainda tem potencial para ser significativamente afetado por elas. E não cabe a mim, da minha perspectiva radicalmente situada (eu realmente não consigo imaginar como essa experiência artística afetaria alguém que pensasse e sentisse muito diferente de mim; “imaginar” em termos de sensação mesmo) estipular que uma coisa ou outra não vale a pena em termos de exposição. Esforços que vão numa mesma direção general devem se juntar.
Mas talvez o grande problema de toda essa disputa esteja num certo pensamento oculto por detrás de todo fenômeno artístico que acaba criticado por não “ir longe o bastante”: espera-se demais, demais da arte. Talvez por conta do momento de “desespero” em que vivemos, espera-se da arte que faça o que nossa vontade política, micro e macro, não está fazendo: que arrebate corações e nos leve em linha reta, sem paradas ou meios termos, em direção à utopia. Sem concessões, e sem lembrar que a arte precisa operar dentro de uma série de tensões (e que é feita por pessoas de carne e osso, que precisam viver), exigimos demais. E falo isso como alguém que exige demais de mim mesmo enquanto escritor.
Esse, por exemplo, foi um dos meus incômodos quanto ao livro “Anarchism and the crisis of representation: Hermeneutics, Aesthetics, Politics”, do Jesse Cohn. O livro é fantástico, mas uma de minhas poucas objeções foi à forma como, na parte da produção artística, o autor busca definir o que seria a melhor forma de fazer uma “arte anarquista”, e chega a tantas restrições, poréns e sermões quanto ao que já existe por aí, que ele acaba dando um único exemplo de boa arte anarquista: “os despossuídos”, da Ursula Le Guin.
Eu tive oportunidade de conversar com ele, pela internet, e ele me disse que está trabalhando em um novo livro que reavaliará, de forma mais positiva, o entretenimento “kitsch” que ele dispensou de forma bastante rápida em suas considerações estéticas neste livro. E acho que ele de fato deveria, porque não dá para esperar tudo da arte; porque através dela (talvez inevitavelmente) expressamos não só o que queremos ser, mas tudo que já somos. E assim como não existe uma solução mágica para os problemas e os debates da política – uma holística, final, total – também não vai haver obra de arte que dê conta de tudo e o faça de maneira perfeita. Além disso, a variedade de perspectivas no mundo garante que uma grande quantidade de obras vai continuar sendo, para muitas pessoas, “transgressora”, o que é bom pois é esse confronto de perspectivas que nos faz crescer, amadurecer, expandir os horizontes. Acho que isso é louvável, e não precisa ser criticado apenas porque não é capaz de, numa só patada, sublevar os espíritos humanos em direção à coletivização dos meios de produção, ou seja lá o que for. Isso é tarefa para esforços coletivos, políticos e culturais muito mais amplos, e que, na minha humilde opinião, não vão ser tão prejudicados assim por uma produção audiovisual bem medíocre.