Ciência, saberes e sociedade num conto machadiano

Produzido por um dos alunos do curso: Trabalhar com um conto de Machado de Assis intitulado “Conto Alexandrino”, publicado originalmente na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro no ano de 1883 e reunido pelo autor na obra “Histórias Sem Data”, de 1884.

Introdução

Trata-se de um texto curto: contém apenas 10 páginas – o que penso que facilitaria sua leitura e discussão integral com participação de todxs. Sumariamente, o conto fala sobre o Saber, o objeto por excelência da ciência e da filosofia antigas (ainda bastante integradas com a técnica, a arte e a cultura em geral), no contexto helênico clássico, e sua relação com a dinâmica social (valores e papéis sociais, etc.), também com o que podemos compreender por “vontade de saber” (como proposto por Foucault) enquanto postura de busca ativa pelo conhecimento: domesticando-o, esquadrinhando-o, domando-o….Este seria um atributo, um valor e igualmente matéria-prima produtora de uma “segunda natureza” das coisas…

O texto está subdividido em IV capítulos e retrata magistralmente, com a mordacidade característica de Machado, a empresa científica – questões de método, a retórica argumentativa, os alcances sociais de legitimação positiva, prestígio acadêmico (“homo academicus”, como alcunhou Pierre Bourdieu), e os efeitos práticos por excelência como, por exemplo, aquilo que Michel Foucault ressaltou como as lógicas e dinâmicas relacionais do saber-poder.

Público-alvo

O público-alvo seriam estudantes de sociologia do conhecimento/ da ciência dentro de um curso técnico especializado na área da saúde, tendo a duração prevista de 3 a 4 aulas para desenvolver todos os objetivos didático-pedagógicos.

Objetivos

Se, por um lado, a estória se passa na Antiguidade clássica, ela dá conta muito bem de refletir todo um contexto bem localizado de consolidação das Ciências na modernidade ocidental, que reivindica seu mito de origem filosoficamente fundado no mesmo mundo helênico antropocêntrico recriado pela ficção. Igualmente, tratando-se de um texto datado do final do século XIX, remete-se ao fervor cientificista do auge do positivismo filosófico no campo epistemológico e a algumas de suas decorrências não necessariamente diretas: movimento eugenista, racismo, quantitativismo, revoluções tecnológicas e hiperracionalismo – em termos adornianos, “o mundo administrado” e, pensando numa certa continuidade que herdamos deste ímpeto cujo espectro segue nos atormentando ainda hoje, são o peso e a densidade destas tradições intelectuais e destas mentalidades arraigadas no âmbito da cultura que nos têm levado cada vez mais a catástrofes ambientais e ecológicas, ameaçando a existência humana e de outras espécies pelo modelo predatório de relação com a natureza e a lógica de exploração generalizada entre os homens.

Discutir o lugar da razão, da experiência, do rigor metódico e da subjetividade cognoscente (posteriormente decantada pela cisão sujeito/objeto a partir de Descartes, aprofundada pelo empirismo e versionada a partir do idealismo iluminista, já na Modernidade) se imbricam nesta trama um tanto quanto narcísica e egocêntrica representada pelo conto.

Portanto, apreender conceitos como ethos, habitus e campo científicos (a partir das contribuições de Max Weber, Gregory Bateson e, principalmente, Pierre Bourdieu) nos ajudariam a clarificar o modus operandi da racionalidade instrumental emergente que coincidiu com o advento do capitalismo como modelo hegemônico de organização socioeconômica e espacial. Quanto a isto, poderíamos adentrar à discussão do saber-poder aportada por Michel Foucault, aprofundando-a e redimensionando-a para refletir sobre a colonialidade do saber e do poder, sobre os epistemicídios, a geopolítica do conhecimento e a ecologia de saberes (alguns destes desenvolvidos pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano e pelo português Boaventura de Sousa Santos, dentre outros da vertente decolonial e pós-colonial).

Desenvolvimento

Como primeiro momento, na primeira aula se abriria à discussão prévia; passaríamos a uma retrospectiva nos itinerários da construção da Ciência, seus desvios, seus obstáculos enfrentados e remoldados, seus estilhaçamentos, suas patologias, suas variedades e transmutações, até chegar àquela tal qual a conhecemos hoje – enquanto modo privilegiado de conhecimento do mundo “tal qual está dado”.

Então, o debate propriamente dito poderia ser iniciado:

    • Como alunes lidam com a ciência?
    • Em que medida estão conscientes de sua dependência para a reprodução de sua existência e sobrevivência?
    • Quais formas alternativas de saberes possuí(a)mos?
    • Quais as lógicas adjacentes ao fazer científico?
    • Como se relaciona com a esfera privada, com o mercado e com relações de parentesco e capital social? Poderíamos falar de uma “herança sociocultural” estratificada do saber? Como articular esta herança com o conceito de “capital cultural” e “poder simbólico”, propostos por Bourdieu, tendo em vista as iniquidades e injustiças com relação à distribuição desigual dos bens culturais e recursos materiais?

Em seguida, a apreciação da leitura individual do conto pretende ser começada nos últimos quinze minutos da aula, sem pretensão de encerrá-la aí. Espera-se como tarefa que os alunos terminem de ler em casa o que lhes faltar, destacando aspectos para serem trazidos na aula seguinte.

Na sequência, como segundo encontro, poderia discutir-se em pequenos grupos as leituras e interpretações de cada um sistematizadas previamente em seus cadernos (como tarefa do encontro anterior). Posteriormente, novamente no grande grupo, realizaríamos uma roda para apresentar o que cada grupo discutiu. Faríamos uma segunda leitura do conto, desta vez coletiva e simultânea, envolvendo a todxs, e nos últimos dez ou cinco minutos seria dada outra tarefa: produzir em casa um ensaio curto sobre as novas impressões criadas pelo texto, a partir da discussão em equipe e leitura coletiva comentada quando necessário fosse.

Como terceira aula, xs estudantes leriam seus ensaios e, à luz do conto, seriam feitos comentários a ambos. Os elementos trazidos pelos alunos ajudariam a guiar oportunamente alguns dos objetivos traçados da discussão, direcionando a aula para contemplar os conteúdos previstos acima. Com isto, haveria uma exposição um pouco da história e da sociologia da ciência, com enfoque para os estudos sociais e críticos da ciência, com vistas a entrar numa abordagem um pouco mais ampla em direção ao campo da sociologia do conhecimento. Para tanto, perscrutar o papel da ciência em distintos momentos e lugares, resgatando a historicidade e a espacialidade da ciência moderna ocidental, trazendo a atualidade da discussão no contexto latinoamericano e brasileiro seria primordial.

Para a quarta e última aula, espera-se recapitular os conteúdos abordados, encerrando o que ficar faltando e complementando com assuntos emergentes a partir da dialogicidade empreendida entre todxs, relacionando os tópicos surgidos a relações sócio-históricas e às geopolíticas do conhecimento. Será reservado um momento para a avaliação dos grupos previamente formados (não necessariamente iguais aos primeiros).

Avaliação

Como encerramento e possibilidade avaliativa, se pediria uma apresentação sobre formas múltiplas de se retratar os diferentes saberes que circulam nas sociedades, formas estas que veiculassem e comunicassem conteúdos de conhecimento heterogêneos: música, cinema, poesia, performances, artes visuais, dança, teatro, etc., bem como seu enraizamento na pluralidade cultural em questão. Poderia se transformar para uma espécie de Sarau ou numa Mostra coletiva, para um espaço mais amplo e aberto, no sentido de uma intervenção pública.

(Acabei mudando de proposta por não ter conseguido acesso a tempo novamente ao livro de Kafka, “O processo”, por mais que fosse bastante oportuno elaborar esta proposta futuramente, tendo em vista nosso contexto sociopolítico.)

Meu feedback

Nossa, parabéns, ficou muito bom. A organização do trabalho e a imbricação contínua da teoria com a leitura ficou bem legal, mesmo!

Eu realmente não tenho muito o que adicionar. Me pergunto se você usaria Latour também? Ou de repente a perspectiva dele não cola muito com a de Bourdieu? (Sempre fiquei em dúvida se os dois concordavam mais ou discordavam mais, mas enfim).