Escrito em 2012
Eu estava apressado, tanto quanto as nuvens negras que sopravam gotas irritantes no solo pedregoso do estacionamento da Estácio de Sá. O pátio grande, quadriculadamente desajeitado e relativamente vazio servia como o caminho que melhor pesava segurança e rapidez no caminho do morro até a avenida do bairro. Estou atrasado para um trabalho que gosto de fazer, mas no qual não acredito completamente, embora não duvide que esteja em situação muito melhor que outros da mesma área. Um trabalho que, não por sua natureza, encontra-se pautado em rígidas e inescapáveis quase tradições do capitalismo contemporâneo. Ainda assim, visto uma camiseta velha e provavelmente desalinhada de tão usada; presente oblíquo e alienado, parcamente informado mas muito certeiro, de uma velha amiga. Uma camiseta preta com um grande “A” vermelho-quase-bordô e vergonhosamente rebelde de anarquia e anarquismo. Por força do sol, um casaco deslocado pendia do meu braço resmungão. Descia as escadas para entrar no estacionamento com passadas de dinossauro quando vi o cara.
O cara vinha na direção contrária. Senti imediatamente pena, como sentia de todos, porque eles teriam que subir um morro íngreme. Mas fui notando outras características. Um andar contido, que eu poderia adjetivar de militar se conhecesse direito algum militar, e um olhar indistinguível para a minha miopia exigente. Continuei andando, eu, e continuou andando, ele, e vi que ele também vestia uma camiseta preta. Uma camiseta que, com um pouco mais de classe, estilo e talvez vitalidade, estampava um outro A de anarquia e anarquismo. Um A de anarquização. Um A que pedia para ser visto, vistoso, e lambia as lens flares de um sol mexicano num cenário cheio de grama velha.
Meus passos tornam-se mais lentos já que a descida acabou, e os dele mais determinados. Parei de olhar para a camiseta e olhei para ele. Ele sabia que eu olhava para ele, e ele nem tentou disfarçar. Olhou para mim.
Tanta coisa podia ser dita. Quem seria aquele cara? Um militante? Um acomodado? Um adormecido, um incomodado? Um guerreiro, um filósofo, biólogo ou jornalista? Teria ele a alma jovem que o elixir rubro-negro (que nada tem a ver com o Flamengo) fazia se manter de pé perante injustiças, hierarquias e caralhos? Teria ele a mesma vontade de fugir às vezes, a mesma necessidade de realismo, a mesma vontade de tirar com os dedos uma costela de quem usa o termo de forma inapropriada, de quem confunde baderna com anarquia, de quem não acredita mais e quem não respeita quem sempre de fato acreditou no verdadeiro potencial humano de viver de boa numa lagoa?
Quem era aquele cara?
Nós nos olhamos e, com um sorriso discreto, um silencioso, nobilíssimo e pós-aristocrático aceno com a cabeça e, por fim, um conhecimento restaurado de que ainda há outros de nós por aí, seguimos nosso caminho pelas ruas de Barreiros.