Sobre vítimas perfeitas e cultura sexual

Pode-se dizer que a condenação de Daniel Alves oferece um padrão procedimental ao qual outras cortes podem aspirar, melhorando a capacidade de alguns agentes estatais de lidar com estupros em benefício das vítimas. Por outro lado, incomoda tudo aquilo que pode caracterizá-la como exceção: seja a repercussão global do caso ou, assunto que discuto neste texto, a “perfeição” da vítima.

Muito foi dito sobre o fato de que, enquanto Alves mudou de versão 5 vezes, a vítima manteve-se absolutamente consistente em todos os seus relatos, fornecidos em diferentes contextos para diferentes agentes. Elogia-se as normativas que determinaram o que deveria ser feito já naquela noite e naquele local em que o estupro ocorreu. Inclusive veículos da mídia corporativa brasileira souberam falar sobre a reação imediata da vítima assim que ela saiu do banheiro (ela não mostrou-se abalada de pronto, somente alguns minutos depois, e isso não quer dizer nada). Mais que isso, sequer se conheceu (digamos, “publicamente”) a identidade da vítima, o que aparentemente evitou a “contaminação” do julgamento de um fato específico por julgamentos de outros aspectos de sua vida. A disponibilidade da vítima para exames físicos imediatos foi também crucial, uma vez que demonstrou evidências físicas de agressões, inclusive de natureza sexual.

No entanto, se mulheres há muito são desacreditadas em suas acusações a despeito da presença de muitas dessas características, o fato de que essa presença agora pode lhes favorecer ainda deixa no ar questões quanto ao que acontecerá – o que continuará acontecendo – quando estas faltam. Em outras palavras, quando a vítima é inconsistente em sua narrativa; quando demora a reagir e a denunciar; quando, por conta disso, resta menos ou nenhuma evidência física; quando não há gravações audiovisuais do local ou testemunhas. Ou, simplesmente, quando a vítima é conhecida e, como esta é humana, vêm à tona uma série de coisas que podem pesar contra si: idiossincrasias sociais ou sexuais, ou talvez momentos em que tenha mentido para alguém ou se comportado de forma reprovável.

Como anarquista, desejo que processos intercomunitários de mediação ocorram a partir de uma tal acusação. Mas, como abolicionista penal, também questiono a positividade de enjaular agressores. Esta é, inclusive, uma primeira “ironia” da forma como o Estado contemporâneo, o tal democrático de direito, lida com acusações de estupro. Como a pena é restritiva de liberdade, dura, longa, pesada – e tudo isso na teoria, sem nem considerar a realidade de qualquer prisão específica – insiste-se em não considerar ninguém criminalmente culpado até que a culpa esteja comprovada para além da dúvida razoável. Some-se a isso uma história patriarcal e a condenação de homens requer comprovação para além da menor das sombras de dúvida. Em contraste, se agressões levarem a consequências (restaurativas, transformativas) mas não à obliteração físico-social do agressor, pode ser muito mais fácil conseguir admissões, ou principalmente fazer com que comunidades sejam firmes no apoio a acusadores, pelo simples fato de que essa solidariedade trará mais consequências positivas – inclusive admissões das (já raras) acusações falsas – que negativas. Como disse Kropotkin, instituições anárquicas removem incentivos estruturais que intensificam nossa indisposição a sermos culpados por algo.

Não digo nada inédito ao comentar também o quanto o próprio processo de “vitimização” por si só demanda uma certa “perfeição” da vítima. Muito mais que um termo técnico do direito, sabemos que a vítima é um papel no teatro social. É difícil separar subjetivamente o “julgamento” enquanto análise de fatos (o que exatamente aconteceu) do “julgamento” enquanto análise de narrativas: “estão me dizendo que este é um agressor, e esta é uma vítima; isto é verossímil? Seus comportamentos, tanto quanto posso percebê-los neste contexto, suportam essa história, de acordo com as minhas construções simbólicas do que é um agressor, e do que é uma vítima?”. Por mais que reclamemos da forma como a direita enquadra toda reivindicação progressista enquanto “vitimização”, não é difícil compreender o que leva alguém a não querer que sua vida seja (re)definida a partir desse papel. Isso tem consequências tanto comportamentais – e se a pessoa não quiser passar os dias se lamuriando, em uma espécie de luto adiantado por seu próprio suicídio, até que a condenação oficial saia? – quanto psicológicas e sociais: não só ter sido uma vítima em um momento específico, mas ser uma vítima, é estar amarrado a uma subjetividade passiva; é ser moralmente definido enquanto objeto de outrem, ser potencialmente cada vez mais tratado como alguém sem voz, incapaz de tomar à frente de qualquer coisa; um coitado, traumatizado, danificado, que inspira mais caridade que respeito.

Mais que isso, a institucionalidade em torno da justiça fornecida pelo Estado enquanto serviço demanda a vítima perfeita no sentido de submissão a seus procedimentos. A vítima não é aquela que lidera sua comunidade em busca não só de restauração mas de transformação; é aquela que reclama a ação de outros – dos agentes estatais que lhe perscrutarão os interiores e tomarão decisões que devem ser reconhecidas por todos. Pode ser que o Estado tenha procedimentos “avançados” para lidar com vítimas “imperfeitas” no que tange ao seu histórico de vida, as circunstâncias do estupro, a demora na acusação, etc. Ele nunca poderá, porém, por sua própria posição arrogada em relação à adjudicação da questão, deixar de fazer com que a vítima precise incorporar o papel social de vítima nesse sentido mais estrutural. E por essa passividade, quando saber a “verdade” de uma situação e fazer “justiça” fica nas mãos de uma estrutura burocrática estrutural e historicamente associada a desequilíbrios de poder mil, teremos mais decepção que responsividade – ou, no mínimo dos mínimos, um processo em que essa relação entre autoridade e subordinado, entre soberano e humilde suplicante, é reafirmada. E aí podemos nos perguntar em que medida isso se relaciona com a continuidade de uma posição precária da parte das vítimas usuais – ex. mulheres (especialmente de minorias étnico-raciais), dissidentes sexuais, etc. – que não ajuda, a médio e longo prazo, a prevenir estupros.

Isto é, afinal, o grande objetivo, não? A prevenção de estupros. Já é difícil fazer com que seja assegurado a “vítimas imperfeitas” solidariedade suficiente para superar os danos e assumir agência em processos de justiça transformadora (causar mudanças positivas na vida de outras pessoas – evitando, por exemplo, novos estupros da parte do mesmo estuprador). Mas como fazer com que haja menos vítimas em primeiro lugar, e em particular menos dessas vítimas “imperfeitas”?

Eu já vou chegar em respostas melhores e mais, digamos, “clássicas”, mas queria passar primeiro por uma questão que não vejo ser tão discutida. É um assunto um tanto estranho, mas que levam a reflexões interessantes.

Algumas dessas “imperfeições” de “vítimas imperfeitas” têm a ver com as situações em que estupros ocorrem. As vítimas podem estar embriagadas, por exemplo, ou podem estar sozinhas com o estuprador, caso em que todo processo legal necessariamente derrete sob o imperativo ético de que não é possível escolher, para efeitos de punição criminal, entre a palavra de uma pessoa e a palavra de outra.

Fico pensando que é curioso como nossas conversas sobre como lidar com estupros nunca abordam diretamente esse tipo de circunstância. Isso é simplesmente naturalizado – no mínimo, é o “dado da realidade” que temos que presumir ao pensar nas soluções para o problema. A gigantesca maioria dos estupros ocorrem entre pessoas que se conhecem, que convivem; e, tirando os estupros coletivos, que imagino serem estatisticamente muito poucos a despeito da atenção que (com justiça) se lhes dá, em circunstâncias de seclusão. Estou falando de premissas básicas da nossa “cultura sexual”, digamos assim; dos ritos e das expectativas associadas à sexualidade. Básicas porque não me refiro aqui a “novidades contemporâneas” como o Tinder. Estou falando de coisas muito mais estruturantes, historicamente profundas – e por isso mesmo simples. A mais importante, talvez, a presunção de que a relação sexual “normal” é aquela que ocorre entre duas pessoas, digamos, “isoladas” de outras.

Entendo que existem no mínimo três razões interconectadas para não questionar esse aspecto fundamental da nossa cultura sexual. Em primeiro lugar, não é uma resposta adequada a curto prazo. Esses questionamentos podem levar a um movimento, digamos, contracultural – bem, não seria o primeiro – mas este demoraria para fazer efeito; enquanto isso, os problemas continuarão para indivíduos que, é preciso dizer, não podem ser culpados por querer exercer sua sexualidade dentro da cultura às quais foram integrados desde que nasceram. “Culpados”, aliás, leva imediatamente à segunda razão: o quanto isso se parece com (mas não é) culpabilizar vítimas (é possível imaginar um cruel “quem mandou ir pra cama com ele sozinha?”). E, em terceiro, a sugestão obviamente soa como o uso de um problema sério e legítimo para fins de “safadeza”.

Mas quais as razões para pensarmos criticamente acerca disso? Ora, apliquemos à sexualidade uma análise social de aspecto mais genérico. Malatesta certa vez disse que “o que de fato rouba a liberdade e torna a agência impossível é o isolamento que deixa uma pessoa impotente”. Isso se aplica, para um simples exemplo, a como empresas odeiam sindicatos, já que reclamações individuais podem ser processadas (ou simplesmente ignoradas, claro) de forma muito mais fácil e benéfica para patrões e acionistas do que aquelas coletivamente (ou até publicamente) compartilhadas, pensadas, e adotadas como mote para disputas abertas. Se você está “sozinho”, tende a ter menos recursos para reagir à opressão: recursos materiais, sociais, até mesmo psicológicos. Afinal, é corriqueiro questionarmos nossa própria razoabilidade quando não sabemos que nossas insatisfações são compartilhadas por outros – “Será que estou errado? Será que estou exagerando? Será que estou maluco? Sou o único que pensa assim?”.

É curioso lembrar, por exemplo, de um tropo clássico de histórias, digamos, de “iniciação na vida romântica”: a pessoa insegura que fica frustrada por nunca encontrar oportunidade para conversar com o objeto de suas afeições, pois este nunca está sozinho. Este tropo, não fujamos dos fatos, é classicamente heteronormativo – na maioria das vezes estamos falando de meninos reclamando que meninas “andam sempre em bando, até para ir ao banheiro”. Como é curioso que, tivesse o menino típico seus desejos atendidos, a situação ficaria mais conveniente para ele, mas não necessariamente para ela. A questão é: por que cada menina entende que deve deixar “o bando”, digamos, para trás, embrenhando-se sozinha em algum lugar recluso com outro indivíduo, quando se trata do ato sexual? Numa circunstância mais anárquica, com mais igualdade de gênero, por que cada parceiro, independente de gênero – especialmente em atos sem comprometimento de maior prazo (como com o Tinder), ou em contextos marcados por insegurança e maior probabilidade de prejudicar outrem por ignorância ou inexperiência – por que cada parceiro não entenderia ser mais apropriado ter alguém de confiança junto, na situação, para cuidar do que acontece “entre quatro paredes”?

Novamente, é fácil descartar essa ideia sob a justificativa de que ela é mero fruto de alguma lascívia descarada da parte de quem a propõe. Mas há objeções melhores a essa ideia. Pode-se dizer que isso colocaria as pessoas envolvidas diretamente no ato sexual em maior “risco social”, pois seriam julgados por suas “performances”, principalmente à boca pequena. Em resposta, poder-se-ia dizer que isso já acontece o tempo todo, exceto que com menos testemunhas para corroborar – ou contradizer, inclusive – tais fofocas; assim, em vez de mais risco, ter-se-ia na verdade maiores chances de minimizá-lo.

Pode-se dizer que a proposta, ao basicamente normalizar o voyeurismo, poderia provocar mais inibição e insegurança, reprimindo a experimentação segura da autenticidade individual. Por um lado, isso ignora que tal cultura jamais poderia ser erigida com base na relação que a maioria das pessoas atualmente têm com seus corpos e suas sexualidades, ao menos no Brasil; as futuras gerações precisariam se acostumar a tratar o sexo com uma naturalidade ainda inimaginável. Mas por outro lado, seria justo argumentar que o ato sexual perderia uma característica importante: justamente a experiência de entregar-se a uma profunda vulnerabilidade diante de outro indivíduo, (ao menos idealmente) igualmente vulnerável. De fato, sentir a necessidade de ter outras pessoas por perto nesse momento seria uma recusa a essa entrega, e portanto um bloqueio à construção de uma confiança genuína, profunda, íntima, que sabemos que pode existir em relações afetivas saudáveis.

A melhor réplica a isso pode ser que, então, o “acompanhamento seguro” de atos sexuais poderia se limitar a momentos em que os indivíduos envolvidos não têm ainda (ou não pretendem ter) uma relação sólida entre si, ou são (sentem-se) ainda inexperientes demais para se entregar em completa vulnerabilidade. Na verdade, colocando as coisas dessa forma, é estranho como entendemos que não é bom deixar alguém fazer sozinho pela primeira vez a grande maioria das coisas “perigosas” da vida. Ninguém faz bungee jumping, escala montanhas, ou voa de asa delta pela primeira vez sozinho. Ninguém aprende a dirigir sozinho, e no Brasil há uma exigência legal de que se aprenda em instituições específicas, com carros adaptados com freios para os instrutores. Mas quando se trata de sexo, achamos normal que duas pessoas igualmente inexperientes aprendam sozinhas, ou aprendam com os piores manuais possíveis (manuais em geral já são pouco eficazes, mas a pornografia é especialmente ruim). Ou, então, que uma pessoa inexperiente se torne vulnerável ao transar pela primeira vez com alguém mais experiente, colocando-se portanto em vias de ser muito mais facilmente “manipulada”, no sentido abusivo do termo. Há atividades, inclusive, que nunca se faz sozinho mesmo que a pessoa já seja experiente – pilotos de aviação comercial, por exemplo, sempre têm copilotos; certamente há cirurgias que poderiam ser feitas por uma única médica mas que se beneficiam da presença de vários profissionais. Se pensarmos que o sexo sempre terá um grau considerável de perigo, e que este é inerente à relação entre duas pessoas, por que não torná-lo sempre uma coisa que exige um cuidado mais amplo, isto é, envolvendo mais que as duas pessoas cuja interação gera o perigo?

Uma tréplica é que essa proposta implica um retorno à tutela de sexualidades, como nos “anos de antigamente” em que as pessoas “faziam a corte” acompanhadas de seus pais e basicamente não deveriam fazer nada de particularmente picante antes do casamento (e, claro, muitas vezes nem depois, com o homem procurando “emoção” fora de casa, etc.). Uma possível resposta é que é claro que uma proposta progressista não desejaria reavivar esse cenário, mas que o progressismo não se confunde com individualismo. Propor que as pessoas normalizem fazer coisas juntas, de fato fazer todo tipo de coisa juntas – em, bem, “grupos de afinidade” – não seria uma nova máscara do patriarcado. Isso, claro, se as pessoas estiverem juntas justamente para fornecer apoio para experimentações, para ousadias, e não para policiar a segurança do status quo. Tal policiamento tornaria a amizade em questão “chata”, e aí cada indivíduo escolheria outra pessoa, outro grupo, para ajudá-lo a se aventurar. E, claro, subjacente à possibilidade de rescindir uma tal relação de cuidado está a possibilidade de não escolher ninguém e simplesmente encarar as situações sozinho. A questão é que uma mudança cultural significaria encarar tal escolha pela solidão como algo “esquisito”, acima de tudo “não-recomendável”, ainda que não necessariamente ilegal ou motivo para ostracismos.

Em muitas menos palavras, pode-se colocar a questão da seguinte forma: assim como o isolamento social em geral de mulheres é uma prática emblemática do patriarcado, o isolamento de um casal durante o ato sexual pode ser entendido como uma prática cultural que, embora obviamente não se resuma a isso, é conveniente para abusadores, e portanto perigosa em contextos tão marcados por inúmeras desigualdades sociais que podem incidir sobre violências sexuais, seja questões de gênero, raça, classe, deficiências, neurotipicidade, etc.

Um argumento semelhante pode ser feito à própria questão do álcool, pois em uma sociedade cujas pessoas têm em geral um conhecimento tão precário sobre práticas sexuais respeitosas e sadias, muitos, por exemplo, podem escolher se embriagar para transar, algo que legitimamente desejam, para que consigam suportar o fato de que a transa não será muito boa. Assim, não é que qualquer pessoa seja culpada por um estupro que aconteça enquanto estiver bêbada, mas podemos pensar que nossas práticas culturais relativas ao sexo meio que incentivam o uso de álcool para que o sexo ocorra, o que é conveniente para abusadores no momento em que reduz a capacidade de se defender e gera “vítimas imperfeitas” (com memórias incompletas ou incoerentes sobre o que ocorreu, por exemplo). Isso, claro, ocorre em conjunção com a outra prática cultural – a transa isolada entre duas pessoas – de modo que uma forma de subverter isso culturalmente seria consumir álcool somente acompanhado de outra pessoa, um acompanhamento que não pode terminar até o retorno da sobriedade, mesmo que uma das pessoas desmaie, mesmo que uma das pessoas queira ficar sozinha, mesmo se uma das pessoas quiser transar com outrem.

Pensando bem, isso não seria muito diferente (em espécie, ainda que seja radicalmente diferente em grau) do pacto para eleger um “motorista da rodada”, membro do grupo de beberrões que não bebe para poder dirigir.  Seria simplesmente uma repactuação do ato social de se embriagar, a ideia de que deve haver uma parceria de cuidado para este momento, que no momento fica aquém de questões sexuais mas poderia abrangê-las.

E ao fazê-lo, inclusive, levantaria questões interessantes. Dizemos, por exemplo – entre progressistas, claro – que uma pessoa bêbada não pode fornecer consentimento, mesmo que esteja consciente. Mas por quê? Este é o caso porque consideramos que a pessoa não está pensando direito? Que as coisas que decide fazer não seriam uma expressão verdadeira do seu eu? Isso presume que a bebida alcoólica altera substancialmente a identidade de alguém – algo que já ouvi dizer, de pessoas que bebem, não ser bem o caso: “as pessoas acham que a gente vira outra pessoa quando bebe”, uma amiga uma vez me disse, “mas a gente só fica mais intensamente o que já é”. Segundo essa lógica, se alguém não transaria num certo momento se estivesse sóbrio, não quer dizer que sua decisão de transar (tomada enquanto bêbado) não represente um desejo real, nem que satisfazer esse desejo seja um desrespeito à sua autonomia pessoal. Seria então mais razoável dizer que o problema do consentimento alcoolizado está no fato de que a pessoa pode não se lembrar de ter consentido. Isso significa que, para o resto dos seus dias, no futuro projetado para além daquele momento de estupor, ela não terá o registro subjetivo, a certeza fundamentada na memória, de que ela agiu como queria, de que a outra pessoa não a enganou, não “tirou vantagem” dela, não desrespeitou sua vontade, não ignorou sinais contraditórios – ela não terá certeza de que a outra pessoa não a agrediu, efetivamente; que não traiu sua confiança e pisou em sua humanidade, o que perturba mesmo na forma de mera dúvida. Porém, se houver outra pessoa de confiança no quarto no momento em que o consentimento alcoolizado é conferido, não seria esse consentimento menos eticamente comprometido? Afinal, a outra pessoa estaria ali para garantir que ao menos seu eu alcoolizado sabia o que queria e teve sua autonomia respeitada. O “eu sóbrio” pode até se arrepender, mas arrependimento não implica violência; é apenas um desconforto – a discrepância entre seus desejos em diferentes estados de consciência – que a pessoa terá que processar sem poder exigir que a pessoa com quem transou assuma um papel de agressora em sua vida.

No entanto, o melhor argumento contra essa ideia (de que mudanças em certas práticas culturais sexuais básicas ajudaria a prevenir estupros) é o de que isso não parece realmente atuar sobre a intenção de cometer estupros. Pelo contrário: mesmo que isso seja sobre expectativas compartilhadas, e não comportamentos individuais – e portanto não se preste à culpabilização – isso ainda coloca sobre os ombros de vítimas potenciais a responsabilidade por evitar a vitimização.

É claro que isso poderia ser lido de outra forma: seria muito esquisito entender a ação direta dos de baixo contra os de cima (em termos de luta anticapitalista, antiautoritária, etc) como “colocar a responsabilidade por evitar a opressão nos ombros dos oprimidos”. Pensando melhor, esse argumento de fato existe: já ouvi pessoas dizerem que ações diretas de solidariedade com o objetivo de, p. ex. financiar autonomamente projetos dentro de escolas públicas, são ruins porque naturalizam o fato de que esse dinheiro deveria estar vindo do Estado. A briga, segundo essas pessoas, é para que esse dinheiro venha “de onde deveria vir” (especialmente porque já pagamos impostos demais). Ora, são os oprimidos que querem mudar as coisas; para anarquistas, esperar até que os opressores façam algo – mesmo que a espera seja “ativa”, com reclamação, cobrança, protesto – é contraproducente, inclusive porque reforça a hierarquia e a exclusividade de iniciativas que não nos educa, na prática do dia a dia, a sermos uma força ativa em nossas vidas. Se formos continuar acreditando que a única forma de combater o estupro é esperar que estupradores em potencial não realizem seu potencial, estamos mantendo as vítimas em potencial numa posição de passividade; estamos, de fato, adiantando sua “vitimicidade” antes mesmo de elas “realizarem” seu potencial de vítima. Em outras palavras, se há algo que elas podem fazer, por que não fazê-lo?

Mas há uma forma mais contundente de frasear essa objeção. A questão não é quem deve ser o agente da mudança progressista: a questão é que transformar nossas práticas por medo seria, em certo sentido, ceder à ameaça. Ou seja, se devemos extirpar nossos desejos por certas coisas – como ter uma experiência íntima de fato íntima, com um único outro indivíduo – porque existe quem nos ameace quando realizamos esse desejo, quão diferente isso é de mulheres que deixam de andar sozinhas à noite em lugares ermos porque sabem que são “vítimas em potencial” por fazê-lo? Ainda que os argumentos em favor de uma cultura sexual mais “coletivista” (por falta de termo melhor; alternativas incluem “não-solitária” ou “socialmente profilática”) fossem persuasivos, talvez seja mais utópico (no sentido de desejável) lutar por transformações sociais em que não houvesse motivos para desconfiar tanto assim que a intimidade possa ser convertida em abuso.

Mas isto é sequer possível? Será que não há algo de fundamental na intimidade que a transforme numa dessas contradições inescapáveis da vida? Ou seja, ela ser algo que desesperadamente queremos, que nos faz muito bem quando é boa, mas justamente por isso pode se converter no pior dos abusos, um potencial de dano que não pode ser prevenido sem impossibilitar, ao mesmo tempo, alcançar suas mais nobres alturas.

Uma crítica a essa forma de ver as coisas é uma resposta clássica à questão do abuso: a intimidade corre mais risco de se converter em abuso quando há outras desigualdades sociais, outras opressões estruturais, que invadem e corrompem esse núcleo da experiência humana. Em outras palavras, ninguém veria a intimidade como oportunidade para opressão se não houvessem motivos nem apoios externos para tanto.

Explico melhor: segundo esse argumento, seria muito menos corriqueiro que a intimidade se transformasse em abuso se fazê-lo não resultasse no reforço de certas vantagens materiais ou sociais externas à intimidade – se homens não quisessem ser brutos para “pagar de machões” para outros homens (desigualdade relativas a papeis de gênero e heteronormatividade), se não quisessem tratar mulheres como seres inferiores para reforçar um patriarcado que lhes reserva vantagens no sistema capitalista, se a desumanização de certas minorias étnico-raciais, de pessoas trans, ou pessoas com deficiência, por exemplo, não transformasse certos corpos em corpos com os quais, por exemplo, homens brancos cis sentem que podem “experimentar” fantasias de violência impunemente, etc. Em outras palavras, sem opressões estruturais que “premiam” certos comportamentos em que se busca submeter outras pessoas (o estupro como arma de submissão), e que tornam as palavras e a integridade física dessas certas pessoas menos respeitadas – que de fato as deixam com menos armas para combater esses abusos – teríamos menos abusos.

Mas essa resposta parece levar muito pouco a sério o impacto, sobre essas próprias desigualdades, de questões culturais relativas à organização da intimidade. Será mesmo que uma ampla e interseccional igualdade de salários e de propriedades (a curto prazo) ou a comunização dos meios de produção (a longo prazo) daria um golpe fatal nos esquemas cognitivos e narrativos que produzem “vítimas imperfeitas”? Por exemplo: será que ninguém mais, tendo sido agredido durante um ato sexual, se sentiria envergonhado por ter, digamos, “confiado na pessoa errada”? Apoios comunitários seriam assim tão fortes, e a participação integral da pessoa em diversas comunidades tão equânime e consequente, que ela realmente conseguiria mover outras pessoas e comunidades (as envolvidas com o agressor) a empreenderem esforços por compensações e transformações, mesmo sem conseguir provar decisivamente o que aconteceu, tendo revelado o ocorrido muito tempo depois?

Podemos talvez pensar que num futuro mais anárquico – e especialmente “pós-escassez” – a questão passe menos pelo crivo da “prova” e mais pelo crivo da manutenção de boas relações, algo, aliás, que podemos encontrar em inúmeros procedimentos de mediação não-ocidentais. Em outras palavras, simplesmente não é de bom tom ofender as pessoas – que se imiscuem conosco em inúmeras outras relações e empreitadas – chamando-as de mentirosas sem evidências claras da mentira (mesmo que tampouco haja evidências inequívocas da ocorrência). Se uma pessoa diz que foi agredida, mesmo que ela esteja mentindo, ela está precisando de alguma coisa – tudo bem, é uma grande sacanagem mentir sobre isso, mas pra chegar ao ponto de fazer isso a pessoa está, digamos, doente; ela precisa de alguma ajuda. Como fazer para organizar essa ajuda sem legitimar uma acusação falsa, reintegrando as pessoas em vez de expulsando-as e condenando-as (e as próprias comunidades) a uma escalada dos problemas em vez de sua resolução, lidando ainda com os (justíssimos) ressentimentos e raivas que um processo desse causaria… Isso tudo é um desafio que não só não pode ser resolvido a priori, com fórmulas independentes de contexto, como também não pode ser visto como algo menor no desafio de manter anarquias enquanto formas políticas duradouras de relação.

Dito de outra forma, a intimidade – ou talvez nossa cultura sexual, a nossa organização pragmática da intimidade – tende a criar situações de “impossibilidade de saber o que realmente aconteceu” que nos deixam extremamente desconfortáveis. E aqui chegamos a uma questão fundamental. Tendo em vista que essas situações vão ainda acontecer quanto a outras coisas – que não têm nada a ver com sexo – como deve ser nossa reação a isso? “Nossa” reação porque reação social: podemos, em outras palavras, julgar nossas instituições pela forma como abordam essa questão e conseguem produzir felicidade ao processá-las adequadamente. Como, então, devemos nos organizar em relação a essas situações? Como nossas instituições devem processá-las? Em geral, há duas abordagens possíveis: ou nos organizamos para sistematicamente tentar diminuir a quantidade de situações em que não sabemos bem o que aconteceu – não sabemos os “fatos duros” da questão; ou, simplesmente aceitamos que a vida é assim e não fazemos nada para diminuir a quantidade dessas circunstâncias (ainda que ainda precisemos de alguma maneira de lidar com elas quando surgem).

Se pensarmos, talvez de forma iluminista, “prometeica”, que nós conseguiremos diminuir a quantidade de acusações de agressão em que não sabemos dos fatos, quão desejável isto é? Afinal de contas, pode-se dizer que é isso que Estados dizem que tentam fazer quando assumem a responsabilidade por investigar acusações de estupros. Enquanto indivíduos, não podemos ser imparciais; não olhamos para o mundo pelos olhos de um deus onipresente. Mas gigantescas burocracias de investigação com poderes soberanos são criadas e mantidas para criar tais olhos divinos, embora apenas a posteriori: é preciso poder coletar provas de todo tipo e investigar até poder descobrir o que aconteceu. Mas, claro, legitimar esse poder soberano tem um custo – para anarquistas, uma gigantesca perda de liberdade inerente ao desequilíbrio de poder que a soberania estatal representa. Conseguiríamos nós, autonomamente, de forma libertária, diminuir significativamente o número de situações em que não se sabe o que aconteceu entre quatro paredes, mas sem recurso à soberania estatal? Daí a discussão acima: um modo de fazer isso seria mantendo uma cultura sexual em que sempre “há testemunhas” de atos sexuais, ou pelo menos para aqueles que ocorrem entre pessoas sem uma intimidade sólida já estabelecida. Ainda que isso seja possível, ainda que algum antropólogo diga inclusive que isso já existe ou existiu em algum lugar, inclusive… Isso lá valeria a pena?

De qualquer forma, qualquer separação rígida entre materialidade e cultura está fadada a problemas tanto analíticos quanto políticos. O progresso material em direção ao igualitarismo de recursos, de meios de produção, etc. que anarquistas desejam certamente virá acompanhada (sem nenhum julgamento de causalidade aqui) de transformações culturais, e muito provavelmente de transformações na nossa cultura sexual (afinal, falei bastante de patriarcado mas pode-se dizer que este texto é um comentário sobre a sexualidade burguesa). Pode ser que uma cultura sexual em que sempre se exige a participação de múltiplos corpos e olhares (múltiplos no sentido de mais que dois) não seja o melhor caminho. Eu sequer discuti neste texto questões como poliamor/não-monogamia ou anarquia relacional, que talvez respondam melhor a algumas dessas inquietações. Ainda assim, resta a reflexão de que pode ser frutífero pensar as culturas de sexualidade que possam corresponder a uma materialidade mais anárquica.

Marx, o político

Eu tive um professor na UFSC, Jean Castro, que frequentemente comentava como Marx era um pensador bem menos moralista do que a maioria das pessoas o presumia. Por esse prisma, ele não teria sido tão intelectualmente movido por compaixão em relação à situação da classe trabalhadora, por um senso de que a situação dela era imoral, mas por uma análise mais fria de que o capitalismo ruiria sob o peso do proletariado.

Eu acho essa análise particularmente interessante porque colabora com a retirada de Marx do pedestal dos profetas no qual ele é frequentemente colocado. Isso na verdade o aproxima de pessoas como os estrategistas políticos dos partidos contemporâneos, que, no contexto da tarefa de “chegar ao poder” – de acumular poder – estudam, hoje, questões como “como conquistar o público evangélico”, ou “como captar o eleitorado feminino”. No próprio 18 de Brumário, em que ele aprofunda sua análise de classes (que de outro modo é apenas um rascunho), ele basicamente mostra como o Bonaparte alavancou uma determinada classe para chegar ao poder; suas próprias análises basicamente implicariam que, conforme os tempos mudam, será cada vez mais importante apelar para outra “classe” – ora, podemos até imaginar que ele teria usado o termo como hoje se falaria de “grupos”, “segmentos”, etc., ainda que o critério de classificação dele seja particularmente bom. O objetivo da acumulação de poder pode ser diferente para cada ator que contrata cada estrategista (com Marx no caso sendo ambos contratante e contratado nesse cenário), e isso certamente afeta a análise, mas o propósito da análise é semelhante. Pode-se pensar, por exemplo, que a tese do estrategista Marx sobre o proletariado industrial como público-alvo chave ou falhou ou simplesmente não é mais verdadeira; que é imprescindível, hoje, enfocar o precariado ou explorar clivagens raciais.

Que Marx tenha sido um revolucionário não invalidaria essa perspectiva. A despeito de se ou quando ou com que intensidade tenha se convertido em social-democrata, em algum momento apoiou a revolução da classe trabalhadora como um todo num sentido socialista do termo. Mas a completa legitimação de governos representativos burgueses não ocorreria até o pós-segunda guerra; pode-se dizer que o terreno político em que o estrategista se movia era outro, com golpes de estado e guerras civis no menu do dia o tempo inteiro. O próprio movimento do marxismo em direção à social-democracia é justamente a atualização da análise conforme a topologia foi mudando: o proletariado industrial até pode ser a chave, mas a porta agora tem duas fechaduras, e só abre junto com eleições.

Analisar Marx como uma amálgama de político profissional e do estrategista que hoje em dia é um profissional contratado pelo primeiro é uma forma de reenquadrar a contribuição do marxismo para o socialismo. Ele não é um “irmão”, com quem brigamos mas temos afinidades fundamentais, mas sim uma espécie de chefe paternalista. Além, claro, de tornar muito mais natural e óbvia a acusação de eurocentrismo que pesa sobre seu arcabouço teórico. Como teórico aclamado das leis das Sociedades Humanas, isso causa polêmica – mas se ele é simplesmente um político & publicitário, é muito normal. Afinal, ninguém espera que Lula vença uma eleição na Índia, ou que João Santana rode uma campanha na Islândia. Marx queria ganhar poder no lugar que conhecia, onde nasceu e foi criado, e é claro que suas análises políticas serviam (quando muito) à sua região. Isso não significa que sua análise do capitalismo esteja errada, nem que seu eurocentrismo a torne inútil – afinal, de fato uma dominação global deste sistema econômico, de modo que, por conta disso, mesmo que ela seja eurocêntrica ela ainda é fértil. Não obstante, em relação ao que se deveria fazer uma vez que se compreenda a situação, ele se torna muito pouco distinguível de um político profissional.

Não estou dizendo que ele seria um fisiocrata, um membro do Centrão; ele certamente era idealista. A liberdade marxista consiste na superação da imposição da natureza (entendida aqui como arbitrariedade, aleatoriedade; o oposto do controle racional humano); isso em nada contradiz toda a ideologia eurocentrada de progresso que bem conhecemos. O futuro, dizia, se parece mesmo com uma grande fábrica; quem falou em desaparecimento do Estado no futuro comunista foram outros – Marx mesmo via no máximo o fazia desaparecer retoricamente, no sentido de que uma vez que o Estado fosse usado legitimamente pela classe trabalhadora (esta desaparecendo também enquanto classe), ele seria completamente absorvido no âmbito da sociedade e deixaria de ser uma força opressiva sobre ela. Mas isto não quer dizer a desaparição da burocracia, das relações hierárquicas que conformam o Estado como instituições de governo – ele deixar de ser opressivo é basicamente uma interpretação de como as pessoas se relacionariam com ele, não uma observação sobre diferentes formas de sociabilidade e organização da tomada de decisões.

Sim, ele falou sobre o futuro dever ser obra dos próprios trabalhadores. Mas o que isso exatamente significa? Lembremos que o primeiro congresso da AIT deliberou sobre a presença de “intelectuais” na organização; pra muitos delegados só deveria estar ali quem estava de fato trampando em alguma fábrica ou com algum ofício. Se esta resolução tivesse sido aprovada Marx acabaria tendo que sair. Há várias formas de dizer que um movimento coletivo foi “obra dos trabalhadores”: várias desculpas pra fazer com que alguns indivíduos os representem. Pode-se até pensar na crítica que Bakunin fez sobre, sim, um trabalhador pode ascender ao poder, mas aí deixará de ser trabalhador, sim? Um antídoto antecipado ao veneno gramsciano do intelectual orgânico.

Estou dizendo que Marx poderia muito bem ser compreendido como um político profissional, um estrategista, um publicitário, ainda que idealista, cheio das melhores intenções – alguém que buscou a ciência de quem governa, como colocou Malatesta; a busca por aliados entre o povo contra as classes, e entre as classes contra as massas. Estou dizendo isso aqui, e não num periódico acadêmico, porque não estou com saco pra fundamentar com citações paginadas tudo que digo, nem de pesquisar quem já fez esse argumento antes, já que não é possível que eu tenha sido o primeiro – mas certamente é preciso observar que não o faço para desqualificar a esquerda em geral. Muito pelo contrário: estou dizendo isso porque, como anarquistas, temos sempre os dois pés atrás em termos de reforçar projetos e iniciativas que acabem servindo de trampolim para políticos profissionais. Nos guardamos contra isso o tempo todo; alertamos as pessoas quanto a isso. Acho que valeria a pena nos guardarmos também contra a possibilidade de sustentarmos o culto à personalidade de Marx, ainda que os efeitos não sejam os mesmos, estando ele morto há muito tempo. Ocorre que está muito vivo em muitas iniciativas com as quais podemos colaborar, mas a colaboração pode ser esperta em termos de não reforçar uma imagem que ele não merece, assim como não quisemos reforçar a imagem do Getúlio pai dos pobres, ou do Lula, etc. A ideia do grande teórico das ciências sociais que dá a linha de parte substancial de toda análise socialista – do vocabulário mais fundamental que usamos, muitas vezes – pode ser desconstruída à esquerda.

References for “Mechanical failures and anarchist freedom”

In this essay, I talk about metaphors for freedom among anarchists. I particularly discuss a metaphor concerning failure in complex systems, pointing out that anarchists relate freedom to the deep transformation of social patterns. Here are the references I cited in this essay:

  • BENALLY, Klee. Introduction: Indigenous Anarchism is a collect call. In: BLACK SEED (Ed.). Not on Any Map: Indigenous Anarchy in an Anti-political World. Writings from Black Seed, a journal of green and indigenous anarchy, and beyond. Berkeley: Pistols Drawn, 2021. P. i–xiii.
  • BOOKCHIN, Murray. The Ecology of Freedom: the emergence and dissolution of hierarchy. Palo Alto: Cheshire Books, 1982.
  • DAY-WOODS, Shaun. Dancing & Digging: Proverbs on Freedom & Nature. Night Forest Press, 2021.
    • I have reviewed this book here.
  • DIAS, Álvaro Machado. Por que algoritmos decisórios falham. Folha de São Paulo, 2023. Available from: https://tinyurl.com/22cyarw7. Visited on: 4 Nov. 2023.
  • FERGUSON, Kathy E. The Feminist Case Against Bureaucracy. Philadelphia: Temple University Press, 1984.
  • GELDERLOOS, Peter. Worshipping power: an anarchist view of early state formation. Chico: AK Press, 2016.
  • [on Guy Debord:] GRAEBER, David. Direct Action: An Ethnography. Edinburgh: AK Press, 2009.
  • GRAEBER, David. The utopia of rules: on technology, stupidity, and the secret joys of bureaucracy. London: Melville House, 2015.
  • [on Diego de Santillán:] GRUPO DE ESTUDIOS JOSÉ DOMINGO GÓMEZ ROJAS. 101 definiciones del anarquismo. 2nd ed. Santiago: Editorial Eleuterio, 2017.
  • HECKERT, J. Anarchy without Opposition. In: DARING, C. B. et al. (Eds.). Queering anarchism: addressing and undressing power and desire. Edinburgh: AK Press, 2012. p. 50–59.
  • KINNA, Ruth. Kropotkin: Reviewing the Classical Anarchist Tradition. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2016.
  • LAURSEN, Eric. The Operating System: An Anarchist Theory of the Modern State. Chico: AK Press, 2021.
  • MORGAN, Richard. The Making of Kropotkin’s Anarchist Thought: Disease, Degeneration, Health and The Bio-Political Dimension. Milton: Routledge, 2021.
  • [on Hobbes:] NEOCLEOUS, Mark. The Monster and the Police: Dexter to Hobbes. In: CORREIA, David; WALL, Tyler (Eds.). Violent Order: Essays on the Nature of Police. Chicago: Haymarket Books, 2021. P. 141–158.
  • PELTON, Josh. Engineering Wisdom: Tolerance & Failing Gracefully. 2018. Available from: https://tinyurl.com/2s3pcvjv. Visited on: 31 Oct. 2023.
  • PELTON, Josh. How Complex Systems Fail. 2021a. Available from: https://tinyurl.com/4vttpc55. Visited on: 13 May 2022.
  • PELTON, Josh. Social Rationality. 2021b. Available from: https://tinyurl.com/ym8nszsr. Visited on: 18 July 2022.
  • RECLUS, Élisée. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. Translation by Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Imaginário, 2002[1898].
    • There’s an English version here, but it’s just excerpts, the one I’m referencing is much longer.
  • ROBINSON, Cedric J. The Terms of Order: Political Science and the Myth of Leadership. Albany: SUNY Press, 1980.
  • [on Zapatistas:] SHENKER, Sarah Dee. Towards a world in which many worlds fit?: Zapatista autonomous education as an alternative means of development. International Journal of Educational Development, v. 32, n. 3, p. 432–443, 2012.
  • TRESCH, John. The Romantic Machine. Chicago: The University of Chicago Press, 2012.
  • VARELA, Francisco. Reflections On The Chilean Civil War. In: BROWN JR., God. Edmund G. et al. (Eds.). Lindisfarne Letter 8: The Cultural Contradictions of Power. Crestone: the Lindisfarne Association, 1979. P. 13–19.
  • WOODS, David D. et al. Behind Human Error: Cognitive Systems, Computers, and Hindsight. Columbus: The Ohio State University, 1994.
  • ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power. London: Profile Books, 2019.

Transcript:

Anarchists often employ metaphorical imagery when discussing liberty, but it is often hard to tell when metaphor ends and literal allusion begins. For example, David Graeber conceived of freedom as a tension between a “play” principle in human activity and the rule-bound games we generate when we play. Is this a metaphor, or are we literally to conceive of all human institutions, like the family, capitalism, or the state, as akin to football or poker? What about Murray Bookchin’s “ecology of freedom”, seeing as we are, indeed, animals?

Some turn to zeitgeist-capturing technology to make a point: for Guy Debord, writing during the rise of the television in 1968-ish France, people were becoming an audience to their own lives; for Eric Laursen, the State is like a computer’s operating system. Others prefer physical terms, in different levels of abstraction. Heckert wrote that to hold tightly — to shame, resentment, or any emotion or any story of how the world really is — is to be held tightly, and this is not freedom; to hold gently is to be held gently, which is freedom. Kropotkin, as Richard Morgan writes, employed images and tropes from bio-political science but took them literally and made them real in a radical political framework.

Élisée Reclus once warned us that proverbial formulas (often metaphorical) are dangerous, as one happily acquires the habit of repeating them like a machine, as if to avoid reflection. This message also contains a metaphor about machines. I think this is actually a very useful figure of speech to discuss what liberty means within anarchism. This is for lots of reasons. It symbolises — as noted by Reclus — unconsciousness even amidst action. Also, anarchism took shape as the industrial revolution took flight, the latter demanding, as Cedric Robinson wrote, a kind of submission which invaded every recess of the worker’s existence. It therefore references the anarchist criticism of humans literally made to perform inhuman rhythms.

In this essay I want to discuss anarchist freedom by digging a little deeper into a particular metaphor using the figure of the machine: the notion of “failure in complex systems”, an idea from the field of engineering, at least as I read it through the work of David Woods and colleagues. I am also going to be quoting Josh Pelton a lot: he’s an engineer with a penchant for philosophy and sociology and a marvellous Youtube channel called Thunk, which I highly recommend.

When operating large-scale machinery, such as aeroplanes or nuclear reactors, people tend to notice and fix what looks broken, but if everything is shut down every time a light bulb needs changing, nothing is ever going to get done. Such systems are thus usually designed with enough margins for errors that allow them to keep running in spite of issues; repairs happen when they’re necessary or when there’s a convenient opportunity. Complex systems, then, run in a constant state of slight disrepair.

Sometimes, however, a combination of things left unfixed leads to catastrophic failure, hurting people. When this happens, it is common to search for a single cause that explains the disaster, especially if it allows for attribution of guilt. Quote-unquote “Human error” is quickly found, for even if the cause was mechanical, someone may, for example, have missed evidence that something was wrong, or not have planned adequately for it from the beginning. To avoid future issues, the culprits might be exiled, punished, or simply retrained.

However, Woods and colleagues explain that there is no such thing as human error. Different knowledge of events and context, or different goals, lead to different judgments of people’s performances. As Pelton summarises, human error is above all an artefact of hindsight bias, which recontextualises something as if it obviously contributed to the disaster in a way that anyone should have seen coming. In other words, there will always be ways to explain failure through negligence or incompetence, just because in a complex system there’s always something going wrong. Erroneous actions should only be the starting point for an investigation, but one that inquires the system itself. Human error, Woods and colleagues write, is not some deficiency or flaw or weakness that resides inside people, being rather a result of their interaction with the system.

On the other hand, there is a counterproductive way to focus on the system. One may, Woods and colleagues write, restrict the range of human activity, perhaps by policing practitioners so they more closely follow the rules, or by introducing more automation to quote-unquote “eliminate people” from the process altogether. But, as Pelton notes, adding more moving parts to take humans out of the loop mixes in new variables that might fail, and therefore tends to produce even more errors — and crucially, more judgments of human error. Emphasis on increasing efficiency generates more pressure on operators, write Woods and colleagues, and additional technology creates new burdens and complexities for already beleaguered practitioners, leading to new modes of failure.

How can we reliably avert disaster, then? Well, failures must be seen as opportunities to learn and change. Instead of using investigations to find out how others failed (presumably to punish them), information flow must be rewarded so that better decisions can be made and issues are less likely to be overlooked. Pelton summarises the best way to prevent critical failures in complex machines as simply… Empowering people to spot and fix problems as they crop up, making the system more adaptive and robust. He also notes that repair is messy, idiosyncratic, unpredictable, and unlike assembly lines, not conducive to automation or rote procedure; it is artisanal work, requiring artistry, problem-solving, expertise, as well as the time needed to experiment. Hence empowering autonomous, decentralised repair includes training and experience, but also providing ample resources, as well as understanding what pressures we’re applying to individuals that will influence how they make everyday decisions about safety.

If the metaphor isn’t obvious yet, I’m going to spell it out. Anarchists can be seen as making a similar case, with the “complex machines” in question standing for “societies” or “social patterns”, machines made of their own operators, who “run” themselves to perform the “task” of… living their own lives! Interaction in a sufficiently large group always involves conflict (that is, “we” too collectively live in constant “slight disrepair”). Yet, people do not usually suspend every commitment they have as the result of a quarrel until their relationships are perfectly harmonious. Everything goes on until “rituals”, from phone calls and meetings to interventions and assemblies, provide “convenient opportunities” for “fixes”, that is, for restoring people’s willingness to cooperate with one another. Still, a lot can be missed because of all the complexity involved. Problems might compound and combine until they cause harm on a greater scale.

Anarchists were not the first to point out that such harm is not a matter of human error. A lot of post-republican Roman thinkers, for example, basically said as much when they concluded that the Republic ruined not because people lacked virtue, but because of constitutional shortcomings. However, for anarchists the solution cannot be bureaucratic, like “taking humans out of the loop”. With machines, after things go wrong we often notice overlooked signals that could have indicated vulnerabilities. With social relations it’s similar, and improving social consciousness, that is, seeing and appreciating the significance of such signals, should be the bread and butter of how we relate. This would empower us to recognise potential problems and act directly on them (you know, “to spot them and fix them as they crop up”) in a collective, yet decentralised manner, even if this means deep social transformation (that is, in the metaphor, the system is made “more adaptive”). Doing so requires education (in the metaphor, “training”), sharing and rotating responsibilities (in the metaphor, “experience”), and common access against the artificial scarcity of private property (in the metaphor, “ample resources”) to combat relevant inequalities (in the metaphor, the “pressures applied on individuals that influence their decisions”) so that people retain their capacity to keep on “fixing” and therefore improving their relations.

Moreover, this metaphor also fits anarchism well in the sense that ongoing negotiation and adjustment is emphasised over social blueprints — and by this I don’t mean to contrast repair with creation but to think of repairing as creative activity. Of course it involves forecast and planning for robustness (also known in engineering as designing for tolerance); it encompasses, speaking of societies rather than machines, accounting for path dependence and keeping in mind the coherence between means and ends. Still, obsessing over the initial moment of creation misses the point that, by fixing something, someone might in the future, as Pelton discusses the fixing of broken objects, think of how fun it was to see the insides of the thing, how they’ve learned the right way to do something, and how a friend helped them out. These are all things that can’t be designed into a system: people have to decide how to restore its functionality, and that decision may change or subvert the values of the designer.

Metaphorically, then, this is all about institutions that are constantly reassessed by confident, socially conscious individuals. Of course sovereignty-supporting political traditions, I’m talking here about Marxists, liberals, social democrats, etc., of course they also want to “avoid disasters”. But if you think about it, for them a disaster is when predetermined ideal outcomes are threatened — not necessarily causation of harm. After all, they are in favour of there being national armies and police and prisons and whatnot, which are meant to cause harm and threaten those who would threaten their ideal constitutions.

Indeed, the point of all conformist social engineering is to induce people to not mind being harmed; as Kathy E. Ferguson writes, bureaucracies seek to “tie up our loose ends” and reduce us to a reflection of an organization. In this sense, society under patriarchy, white supremacy, statism, capitalism, and other forms of intersecting domination really begins to resemble an aeroplane or a nuclear reactor: a machine tied to a specific purpose regardless of what kind of machine people might require in their lives now or in the future – in yet other words, the designer’s values cannot be subverted.

Even further, each individual becomes like an expendable, replaceable part, evaluated according to their “performance”: they are increasingly rendered… machine-like. To respect state representatives, ponders Peter Gelderloos, is to mistake them for reasonable human beings rather than the organic masks that an insatiable machine wears in order to extend its power.

Of course, every social system is self-reinforcing, and that is actually good; anarchists also want anarchy to be sustainable. But the kinds of social systems anarchists envision are qualitatively different. They include in their own enacting a way to undo themselves, as Francisco Varela puts it; anarchism, Klee Benally analyses, is a dynamic politic that invites its very destruction while maintaining composure of core principles; it tries to create a healthy culture as Shaun Day-Woods defines it: one that doesn’t keep anything that can’t be destroyed.

Instead of humans becoming more like machines, the institutions that anarchists are intent on promoting are supposed to be more organic: balanced, open-ended, diverse. Creation is always anarchist, wrote Diego de Santillán, and so are creators if they do not create in view of automating themselves. As Ruth Kinna discusses regarding Kropotkin’s vision, his defence of organisational proposals being always open to revision and dissent ultimately meant that society should be a living, evolving organism. Even more, in the end, there is no “one”, single society; no single “social machine”; like the Zapatistas, who walk toward a world in which many worlds fit, anarchists also conclude that the challenge really is to integrate multiple utopias; to render diverse social machines interoperable without disasters.

In the end, the problem is not exactly machines themselves. Analysing romantic tropes, which were somewhat influential among anarchists, John Tresch notes that machines drew forth virtual powers and brought about conversions among hidden forces; they could be used to create new wholes and organic orders, remaking humans’ relationship to nature and renewing nature itself. Anarchists seem to draw a line between creating and using machines on one hand and, metaphorically or not, being one, being absorbed into one, on the other. If Hobbes himself described the Leviathan as a huge machine, anarchists often attacked this “mechanical” political reasoning, exploring what “more organic” relations would look like.

Of course, to heed Reclus’s warning, this metaphor is far from straightforward. If social machines are made of ourselves and our relational patterns, there may be a difference in how organic or mechanic they are, but the boundaries between creating, using, and being them are definitely blurred, to say the least. Even if the metaphor is not perfect, however, I still think it deserves attention given recent technological developments.

For Shoshana Zuboff, present-day global technology conglomerates commodify our behaviour, shaping it at scale through automated machine processes that nudge, coax, tune, and herd us toward profitable outcomes. It is no longer enough to automate information flows about us; increasingly the goal is to automate us. The enormous amount of data produced about us enables automated decision-making, private and public, leading to what Álvaro Dias calls dystopian iteration: when the future, conceived as a straight line, without surprises or chances of being transformed, is reified by algorithmic decisions, crystallising imbalances and externalities.

In other words, if anarchists criticise the building of agency-crushing sovereign “machines” out of our own actions and dispositions, this is becoming less metaphorical as time passes. The automated, racist control of predictive policing, credit scores, and algorithmic bosses; advances in the emulation of human likeness and knowledge; the grim suffocation of war by drone surveillance and AI-targeted strikes; the invasiveness of pregnancy-guessing gadgets: all of this seems to strengthen the anarchist case for a rethinking of what “freedom” means. At least, that is, if this notion is at all to remain a guiding aspiration for the future.

Uma proposta para a abolição de notas em avaliações, por Paul Goodman

Trecho do livro Compulsory Miseducation (“Deseducação Obrigatória”).

Que meia dúzia de universidades de prestígio – Chicago, Stanford, a “Ivy League” toda – abandonem as notas e usem os testes apenas e inteiramente para fins pedagógicos, conforme a conveniência dos professores.

Qualquer pessoa que conheça o temperamento frenético das escolas atuais entenderá a transvaloração de valores que seria afetada por essa modesta inovação. Para a maioria dos alunos, a nota competitiva passou a ser a essência do processo. O ingênuo professor aponta para a beleza do conteúdo e para a engenhosidade da pesquisa que o produziu; o aluno esperto pergunta se isso cai na prova.

Deixem-me falar logo de uma objeção cuja unanimidade é fascinante. Acho que a grande maioria dos professores concorda que a avaliação atrapalha o ensino e promove um espírito ruim, que leva a trapacear e plagiar. Tenho diante de mim a coletânea de ensaios Examining in Harvard College, e esse é o consenso. No entanto, afirma-se uniformemente que a avaliação é inevitável, pois de que outra forma as escolas de pós-graduação, as fundações e as empresas saberão quem aceitar, premiar e contratar? Como os caçadores de talentos saberão a quem recorrer?

Testando os candidatos, é claro, de acordo com os requisitos das tarefas específicas da instituição que os quer, da mesma forma como são testados os candidatos ao serviço público ou a licenças para a prática de medicina, direito e arquitetura. Por que os professores de Harvard deveriam estar fazendo esses testes para as empresas e fundações?

Essa objeção é ridícula. Dean Whitla, do Escritório de Testes de Harvard, ressalta que os testes de aptidão escolar e de desempenho usados para admissão em Harvard são um índice excelente para o desempenho geral em Harvard, melhor do que as notas do ensino médio ou as notas de cursos específicos de Harvard. Presumivelmente, esses testes de admissão à faculdade são feitos sob medida para o que Harvard e instituições semelhantes desejam. Pela mesma lógica, não seria melhor se um empregador aplicasse seu próprio teste de aptidão profissional em vez de confiar nos caprichos dos especialistas de Harvard? Na verdade, duvido que muitos empregadores se preocupem em analisar essas notas; é mais provável que estejam interessados apenas num diploma de Harvard, seja lá o que isso signifique para eles. As notas têm mais peso nas escolas de pós-graduação – aqui, como em qualquer outro lugar; o sistema funciona principalmente para seu próprio benefício.

É realmente necessário lembrar aos nossos acadêmicos a antiga história das provas. Na universidade medieval, o objetivo principal da prova exaustiva era aceitar o candidato como colega ou não. Sua defesa de mestrado era uma obra que lhe permitia entrar na guilda. Não se tratava de fazer avaliações comparativas. Não era para eliminar e selecionar para um licenciador ou empregador extramuros. Certamente não era para colocar um jovem contra outro em uma feia competição. Minha impressão filosófica é que os medievais achavam que sabiam o que era um trabalho bom e que somos competitivos porque não sabemos. Mas quanto mais o status é alcançado por meio de uma avaliação competitiva amplamente irrelevante, menos saberemos.

(É claro que nossos exames americanos nunca tiveram essa orientação puramente de guilda, assim como nossas faculdades raramente tiveram autonomia absoluta; o exame era para satisfazer superintendentes, anciãos, regentes distantes – e eles, como superiores paternais, sempre gostaram mais de dar notas do que de aceitar colegas. Mas eu afirmo que essa configuração por si só torna impossível para o aluno se tornar um mestre, crescer e começar a trabalhar por conta própria. Ele sempre estará tirando 10 ou 9 para algum supervisor. E no cenário atual, ele sempre estará subindo no pescoço de seu amigo.)

Talvez os principais opositores à abolição das notas sejam os alunos e seus pais. Os pais devem ser simplesmente ignorados; sua ansiedade já causa problemas suficientes. Para os alunos, parece-me que um dos principais deveres da universidade é privá-los de seus penduricalhos, de sua dependência em avaliações e motivações extrínsecas, e forçá-los a enfrentar a difícil empreitada do conhecimento em si, e finalmente perder-se nela.

Um efeito lamentável das notas é anular os vários usos dos testes. A prova, tanto para o aluno quanto para o professor, é um meio de estruturar e também de descobrir o que está faltando ou o que está errado e o que foi assimilado e pode ser pressuposto dali em diante. A revisão – inclusive a revisão sob alta pressão – é um meio de reunir os fragmentos, de modo que haja rasgos de percepção sinóptica.

Há vários bons motivos para fazer testes e para vários tipos de testes. Mas, se o objetivo é descobrir os pontos fracos, qual é o sentido de dar nota baixa e puni-los, se isso convida o aluno a ocultar seus pontos fracos, fingindo saber algo, quando não trapaceando? A conclusão natural da síntese é o cair da ficha em si, não uma nota por ela ter caído. Para a importante questão do nivelamento, se for possível estabelecer no aluno a crença de que ele está sendo testado não para obter notas e fazer comparações injustas, mas para seu próprio benefício, o aluno normalmente deve buscar seu próprio nível, onde ele se sente desafiado porém ainda assim capaz de enfrentar o desafio, em vez de empurrar com a barriga um nível mais avançado. Se o aluno ousar aceitar a si mesmo como é, a nota do professor será um instrumento rudimentar comparado à autoconsciência do aluno. Mas é raro em nossas universidades que os alunos sejam incentivados a perceber objetivamente sua grande confusão. Ao contrário de Sócrates, nossos professores se baseiam em vontade de poder em vez de vergonha e idealismo ingênuo.

Muitos alunos são preguiçosos, por isso os professores tentam incitá-los ou ameaçá-los por meio de notas. A longo prazo, isso faz mais mal do que bem. A preguiça é um mecanismo de defesa do caráter. Pode ser uma forma de evitar o aprendizado, a fim de proteger a presunção de que já se é perfeito (mais além, o desespero de que nunca se conseguirá sê-lo). Pode ser uma forma de evitar precisamente o risco de falhar e ser rebaixado. Às vezes, é uma forma de dizer educadamente: “Não quero”. Mas como foram as exigências autoritárias dos adultos que criaram essas atitudes em primeiro lugar, por que repetir o trauma? Chega um momento em que devemos tratar as pessoas como adultos, com preguiça e tudo. Uma coisa é ter a coragem de tirar um malandro de sua aula; outra coisa bem diferente é dar-lhe um zero, como faz um chefe.

O mais importante de tudo é que, muitas vezes, é óbvio que hesitar em fazer um trabalho, especialmente entre os jovens brilhantes que ingressam em grandes universidades, significa exatamente o que parece. O trabalho não é adequado para mim, nem para essa matéria, nem para esse momento, nem para essa escola, nem para a escola como um todo. O aluno pode não ser estudioso no sentido clássico de viver com a cabeça nos livros; ele pode estar cansado da escola; talvez seu desenvolvimento deva tomar outra direção agora. Mas, infelizmente, se esse aluno for inteligente mas inseguro de si, ele pode ser intimidado a tirar nota para passar, e isso confunde tudo. Meu palpite é que estou descrevendo uma situação comum. Que desperdício terrível de uma vida jovem e do esforço de um professor! Esse aluno não reterá nada do que botou na prova para passar […].

E, ironicamente, o inverso também é provavelmente verdadeiro. Um aluno reprovado e eliminado mecanicamente está realmente pronto e ansioso para aprender em um ambiente escolar, mas ainda não pegou o jeito. Um bom professor pode reconhecer a situação, mas o computador faz o que quer.

Que se foda o poder, por Benjamin Zephaniah (1958-2023)

“Que se foda o poder – e vamos só cuidar uns dos outros. A maioria das pessoas sabe que a política está fracassando. O problema é que não conseguem imaginar uma alternativa. Lhes falta confiança. Eu simplesmente parei de prestar atenção em propaganda. Desliguei a televisão que só conta mentiras e comecei a pensar por mim mesmo. Aí eu realmente comecei a me encontrar com pessoas – e acredite em mim, não há nada mais maravilhoso que encontrar e conhecer as pessoas que só estão tentando viver suas vidas. Plantando, ensinando, e até gerenciando economias em que ninguém tem poder. É por isso que sou um anarquista.” – Benjamin Zephaniah

Zoe Williams está certa: anarcafeminismo é a resposta para os problemas na relação com os nossos corpos

por Ruth Kinna e Peterson Silva

Originalmente publicado em inglês no Anarchist Studies Blog em 13 de fevereiro de 2023.

Em uma coluna publicada mês passado no The Guardian [leia a tradução aqui], Zoe Williams diz que o anarcafeminismo é a melhor resposta para as infinitas (e frequentemente disfarçadas) demandas por conformidade que assediam meninas e jovens mulheres. Isso é verdade, mas ela termina o texto deixando no ar a pergunta: “por quê?” O que o anarcafeminismo tem de tão especial contra todo esse discurso misógino de mercado?

Pra começar, o anarcafeminismo ataca as preocupações gêmeas de Williams: o capitalismo e o patriarcado. Para anarquistas, apagadas da história feminista já nos primórdios do movimento por questionar o direito ao voto como seu objetivo maior, essas instituições se reforçavam mutuamente. A mulher era dominada em parte por causa da discriminação no mercado de trabalho, mas as leis trabalhistas refletiam preconceitos que vinham da importância do mercado de casamentos. Moldadas para serem esposas, amantes ou prostitutas, elas eram sempre vistas como auxiliares e dependentes. Religiosos ensinavam que isso era “natural”, uma justa punição pelo pecado original. Governos institucionalizavam esse status subordinado que, por exemplo, restringia o acesso de garotas à educação e legalizava a violência domestica e o estupro conjugal. O papel das mulheres era se conformar a esse sistema que, com a desculpa de “protegê-las”, na verdade as deixava sujeitas a uma rotina de abusos.

Um dos argumentos de Williams é que a real mensagem por trás de conselhos como “ame o seu corpo” e “seja saudável” é na verdade “seja magra”. Investigando as consequências sociais, culturais e econômicas da “escravidão sexual”, militantes como Emma Goldman e Voltairine de Cleyre seguiram os passos de Mary Wollstonecraft, para quem a magreza era o lado visível de uma sublime incapacidade. Magreza era paciência, docilidade e ternura, e isso servia para controlar as mulheres física e mentalmente; pra piorar, o ideal romântico da pálida beldade indefesa esparramada no sofá produzia um estereótipo extremamente racializado.

Mulheres anarquistas em geral aprovavam a liberalização dos mercados de trabalho, mas alertavam que só ter um emprego não levaria à independência ou à interdependência social, o objetivo anarcocomunista. Elas estavam certas: a inclusão de mulheres em sistemas brutais não feminiza esses sistemas; simplesmente reforça as hierarquias de classe que já existem, ao mesmo tempo em que deixa certos preconceitos intactos. A exploração continua, com o capitalismo gerando lucro ao jogar as mulheres umas contra as outras e cada uma contra si própria. Como trabalhadoras, elas competem por empregos, abaixando salários. Como consumidoras, fornecem a demanda por bens ou serviços, de nicho ou de massa, que prometem sucesso individual em contextos sociais e profissionais.

Mulheres e meninas precisam tentar conciliar duas mensagens “progressistas” contraditórias: “aceite a si mesma como você é” e “você pode ser o que você quiser”. A tensão lembra a frase de Oscar Wilde: “seja você mesmo”. Hierarquia e desigualdade sistêmica, para Wilde, fazem disso uma tarefa impossível tanto para ricos quanto para pobres – ou, alias, tanto para homens quanto para mulheres. Aceitar a si mesma como se é também significa aceitar seus próprios desejos; sua própria vontade de se desenvolver, de experimentar, de se rebelar e se transformar naquilo que se quer ser. Em termos de corporalidade, significa avaliar a si mesma a partir de seus próprios critérios e valores em termos de como se apresentar para outras pessoas. Mas esse processo é afetado por estruturas e instituições sociopolíticas mais amplas.

No capitalismo liberal, ser “o que você quiser” é uma mensagem facilmente manipulável por conceitos como “oportunidades iguais”, mobilidade social e empreendedorismo. Indivíduos são aparentemente livres para viver ao máximo quando não desafiam as normas e desigualdades de poder como elas são. Na verdade, viver ao máximo é ser uma empresária, uma política, a primeira mulher a ocupar algum cargo no exército ou na polícia, talvez uma top model ou influencer – uma mulher tão determinada a subir na pirâmide do poder quanto o estereotípico “macho alfa”. Por outro lado, valores dissidentes acabam ridicularizados e demonizados, quando não criminalizados. Essa é a experiencia histórica dos grupos marginalizados, incluindo as comunidades trans.

Anarcafeministas falam sobre livre expressão e crescimento pessoal, mas também sobre os obstáculos à ajuda mútua, precisamente o fator que permite que os indivíduos abracem o que há de único neles enquanto seres sociais. J. S. Mill argumentava que desafiar normas, fazer diferente a despeito da pressão dos demais e encontrar novas formas de viver é essencial para criar uma sociedade dinâmica. Mulheres anarquistas compartilhavam dessa visão. Centenas se recusaram a casar (e mesmo assim ter filhos), cortaram seus cabelos e compartilharam informações sobre contracepção e aborto, arriscando o ostracismo e até mesmo serem presas. Mas, para anarquistas, os princípios de Mill (não-interferência, minimização de danos) são imperfeitos para estimular a criatividade porque presumem a existência do Estado e a competição de mercado. Anarcafeministas argumentam que o bem-estar individual não pode ser encarado como algo desconectado de mudanças sociais coletivas.

Essa é a solução que anarcafeministas encontram para a ansiedade e a depressão que vêm de ter que se conformar a normas repressivas e homogeneizadoras. A multinacional de cosméticos L’Oreal usa a frase “porque você vale muito” para vender seus produtos. A visão de Voltairine de Cleyre sobre a libertação das mulheres oferece um contraponto perfeito: “a liberdade não vale nada para as mulheres até que elas a conquistem”.

A review of Shaun Day-Woods and Rick Herdman’s “Dancing & Digging”

I am currently finishing a thesis on the anarchist concept of freedom, so when I came across a book called Dancing & Digging: Proverbs on Freedom & Nature, knowing it was written by someone in the anarchist community broadly conceived, I just had to take a look.

Dancing is a landscape oriented pocket book full of short phrases that encapsulate wisdom regarding, as the author explains, “freedom, nature, surprise, belonging, habitat, anarchy, rebellion, community”, and more. Written by Shaun Day-Woods and also featuring really beautiful woodcuts by Rick Herdman, it was published by Night Forest Press in 2021.

Shape and method

There is very little prose in it; the vast majority of pages are dedicated to housing one or two proverbs each. But the little explanation readers are given is quite insightful. We get a nice definition of proverbs as “the wit of one and the wisdom of many”, and then see them described as phrases that “allow for nuance, layered meanings, humour and irony”, which makes them “ideal to muse over or meditate on”. It is explained that these sentences are “based on [the author’s] lifetime of observations and study as well as on conversations had with friends and neighbours”.

The amount of preface vs. the pages dedicated to proverbs.

However, it’s unclear whether the book’s “chapters” – such as “These I learned along the way” and “These are the words of my ancestors” – refer literally to the origin of the sayings, since one is more vague (“These came from the wind”) and none of the parts seem to have a particular “personality”. It feels like any proverb could fit anywhere in the book. In any case, most proverbs (in general) have “an untraceable progeny”, and the author writes that although he “might be associated with these for now, the hope is that over time a few will become part of an anonymous radical-folk philosophy”.

Readers are given a recommendation on how to use the book. Basically, there’s no particular order to it (the pages aren’t even numbered) and people shouldn’t binge it. This leads me to a disclaimer about how used it. I’d love to have taken the leisurely and random approach suggested, but I faced two issues. First, I wanted to be able to cite some proverbs in the thesis. Secondly, I would soon lose access to the book (I bought it with an allowance from my scholarship that requires it to be turned over to the university after I’m done with the write-up). The solution I found was to read two pages (2 to 5 proverbs) every one or two days, sequentially, writing the page number as I counted it on a piece of paper that doubled as a bookmark. Even though I’ll admit this felt a little mechanical, quite unlike the magical promise the book represents, I’m glad I made sure I could read all of it before I had to give it up and that I could cite it properly when needed.

The book is well typeset, with its design perfectly in tune with its content. The format is unusual, and so it immediately sparks curiosity. I wished there were more woodcuts, cause they were just marvelous. There are blank pages at the end, as readers are encouraged to write their own proverbs and share them with the authors, which I thought was a lovely touch. The preface also suggests games to play with the sentences.

On cities

What about the proverbs themselves? I thought at least about a third of them were really good, and for me (as a person even more than as a researcher) they made the book quite worth it. But there were a few things about the rest that irked me in varying degrees.

What first jumps out is a deep hatred for urban landscapes. “Living in a city is living in a dead habitat”; “The city owns the individual”; “Cities arose from negative and harmful forces”; “Hyper-alienation was born in the city”; “Cities are cemeteries” (… because “the wild” is not?), etc. It’s just so relentless that all nuance is lost. I mean, maybe this last one has “layers” – cemeteries are not necessarily bad, right? Well, after reading two dozen variations of “cities are bad”, I doubt it’s not an attack.

Woodcuts accompany chapter divisions.

Granted, capitalism does shape cities into hellscapes, and so this denunciation is valid. But aren’t proverbs supposed to go beyond current facts to reach for deeper truths? I think there is something charming and genuinely alluring about cities as large gatherings of networked people. What I mean is that it’s legitimate for people to want to “conurbate”, even though I wish we did it in more egalitarian and diverse ways. Cities can surely become better environments overall, also; Kropotkin’s and Reclus’s always struck me as powerful visions for cities.

But criticism here is absolute. “Cities require obedience to authority” – no, no they don’t. They don’t! There’s something about being close to a lot of people that energises us with the prospect of chance encounters, transformations, alternatives, complex collaborations… Something warm and exciting that people should not have to choose over and against “forests”, but neither give up for the sake of those. So even though I can totally see what these proverbs are getting at, the blank condemnation of “the city” as an archetype falls flat on me, and I’m sure it also will on many others.

Shouldn’t I have expected this from a book about nature? Definitely not. I thought it would challenge any rigid boundaries between humans and nature, as anarchists have almost universally done. In fact, a good proverb from the book goes like this: “The fewer the boundaries, the closer to truth”. It could push beyond other dichotomies too, such as life and death. A sentence like “Cities are cemeteries”, by itself, could certainly be a reflection of this last sort – which the book actually does well with other sayings, such as one of my favourites: “You aren’t alive if you aren’t being eaten”. There’s also “After death we decay and become soil nutrients, a final reciprocity with the earth”. And it’s not like the human-nature divide is not challenged either; one of the opening proverbs is “All of nature is inside you”. That, I like. But nuance goes out the window the second cities are mentioned.

I just think we as humans are part of nature and hence everything we do, including cities, is as natural as everything else around us. It might not be good for us, what we’re currently doing with them, but then again nature is about reality itself, encompassing everything, good and bad alike. Maybe I’m thinking about nature, the concept, while the authors just meant it as “trees and rivers and stuff”. It would be a little disappointing, but understandable. Come to think of it, there’s not a lot here about farms… Perhaps they are talking about “wilderness” more specifically.

What does a proverb sound like?

In any case, as the idea of “timelessness” was behind my negative reaction to this city-shaming, I started to ponder on what made a good proverb; perhaps other expectations I had about them could explain what made me dislike other sayings in the book.

For me, proverbs require a “turn-of-phraseness” that includes a certain… pattern? Rhythm? They shouldn’t be too short; “Kill to live” is more like a motto or a slogan. And they definitely should not be very long. The one about “soil nutrients” above could lose the bit after the comma, or collapse it into the first part somehow. Then there’s this: “All around us are invisible veins of existence, streams of life. We need only cup our hands and dip into them to retrieve music, ideas, insights, power”. I’m sorry: this is either a poem, a mini-lecture, or a tweet, but not a proverb.

It also struck me as odd that some sentences were in the imperative mood. What is up with that? Take “Kill to live”, mentioned above. Why not “Everything that lives must kill”, or “To live one must kill”? I don’t know, maybe it’s a Western prejudice that “wisdom” has to do with declarations about reality. But formulas like “X is Y”, “X is not Y, but Z”, “When A, then B”, or “Not every W is C” just seem to fit much more comfortably in that proverb outfit. The imperative mood is even acceptable if it’s a little more complicated; something like a negative conditional (“Don’t X if Y”). Day-Woods is quite clear in the preface that he seeks a more “practical” wisdom, so maybe these instruction-like sayings are coherent in that sense. Regardless; when I read “Become a child” or “Deify your prey”… They just don’t feel like proverbs to me.

What should a proverb do?

Aside from phrasing patterns, there is also the content, and here I had two separate issues: “directness” and the use of “big words”.

I think proverbs stick when they’re not easy. They put you off a little, puzzle you; they are not obvious, even when they’re simple. This involves, for example, playing with angles (“A society with prisons is a prison”), presenting apparent paradoxes (“The more you give the more you have”), or using metaphors (“Don’t turn down the deer unless you have a salmon” – a negative conditional imperative, by the way!).

Some proverbs in the book lacked this; glaringly at times. Take, for example, the classic “An empty mind is the devil’s workshop” (not in the book). The authors seem to disagree, for they’ve given us “An empty mind heals”. Notice the difference? The first one doesn’t go “An empty mind is bad for you”, or “An empty mind harms”. It gives you a mental image to process – a demon cutting plywood. Why not “An empty mind is”… “a hospital”? Maybe these are bad because they are part of the city or something. Fine – “a bandage”? Too simple? “Aloe vera” – medicinal plant, can be found everywhere… Weird sounding? How about this one: “An empty mind is a sage” – a word for both a wise person and a medicinal plant! Another one: “For a broken bone, an empty mind”. It gives pause; surely you want to do something more with the bone to heal it. But while it incorporates the suggestion that empty minds heal, it also says something about cooling down after an aggression or an accident, instead of seeking revenge or feeling guilty.

What proverbs look like on paper.

This is unfortunately a very common problem in this book. “Cities arose from negative and harmful forces”. This is a mini-lecture too, despite its size. “A society with prisons has no greatness” – I much prefer the one above, about it being a prison itself; this one doesn’t leave anything to imagination. It just states what it means! “Music connects hearts”. Yes it does. “Lack of courage dulls life”. Can’t argue with that. “Play is superior to work”. Of course it is!

I mean, they’re not wrong. Maybe I’m not the one who needs to hear them; I’m not a calvinist. It’s just that it doesn’t give the reader the joy and wonder of discovering the meaning through toying around with the words. Or chewing it over time because it’s not clear what it means until you stumble upon an experience that opens it up for you and you finally get it. Critical reflection doesn’t go very far because there’s nowhere to go. “Ah, but you see, one must work to be able to live to able to play, how about that? Gotcha“. But if play is the reward we’re after, it’s still superior. Straightforwardness leads to pedestrian discussions.

I think the directly political proverbs suffer slightly more from this than others. “Often it is most efficient to make your resistance indirect”. “Understand the difference between attack and defence, or lose”. “Do not let anyone get political power”. “The statist is never on the people’s side”. Are these proverbs or guidelines in a manual for guerrilla warriors? I mean, proverbs can induce us to become a “liberation army” (as one saying goes), and this is a radical book so they really should. But I think they are more effective in this regard if they do so as proverbs; with subtlety, without broadcasting what they are so that they can be planted like seeds on minds behind conservative gates. Funnily enough, I like “Secession is smarter than civil war”, because the macropolitical implications are less interesting than the general principle, which can be applied in many other circumstances. On the other hand, “The cat is patient, but to live must eventually pounce” (right above the “attack and defence” one, by the way) is a good example of wrapping these messages in little disguises. “The currency of banks is the sorrow of exploited humans and the cry of plundered nature”. Why not “Coins are made of tears”? The one in the previous page is more like this: “Our wallets are filled with suffering”.

Let me return to “Play is superior to work”. Why not this: “It’s better to play with a computer than to make one”. Not so fast – there are people who enjoy building computers. This is playful for them! But maybe this refers to the terrible conditions in which the chips and parts themselves are made, or to child slaves in mines and stuff – so considering this, is it good to play with computers at all? We’d still be comparing “play” to “work”, but their complex intertwinement can be teased from the imagery employed. How about this: “I’d rather seesaw than saw”. There is the seesaw (to play with) versus saw, the verb related to using the tool (which can be used to build a seesaw), but there’s also the verb seesaw (as in oscillate, have mood swings) compared to using the tool not for work but for violence. There’s even the revolutionary point, that I don’t think any of these transmit, that we shouldn’t hate “useful activity” itself but make it playful and artistic; we should eliminate drudgery in the “work” needed for everyone’s nourishment and satisfaction.

There are many exceptions here. Indeed there ought to be, since “X + relational verb + Y” is a good shape for proverbs – wouldn’t all of these fall under this criticism? Not really. Take one of my favourites from the book: “Beauty is found, not created”. This is wonderful, because you really resist it at first. Doesn’t it seem odd? Of course it’s created, artists do it all the time! But what are they doing, really? And then you get to thinking… Then you apply it to aesthetic judgments of nature (including people)… Then you return to artists’ processes… Then you think about music – the notes and chords are all there, nothing new is being created; you’re just finding out which go well together. Then you go back to people: are there really ugly people? Or are you just not looking at them with the perspective needed to find the beauty that’s in everyone?

To be fair, “An empty mind heals” can also be resisted (maybe because of the hold the “devil’s workshop” paradigm has on people). I understand that what each proverb in the book has to give depends entirely on the receiving end. Maybe this is absolutely mind-blowing for non-anarchists. But unlike the one about beauty, there’s not a lot to explore about the empty mind’s healing powers. You either accept that as a truth or you deny it. The same goes for “The statist is never on the people’s side”. What about literal populists? Wouldn’t many knee-jerk reject this without a second thought? There’s nothing in the sentence itself that gives you something to work with to help reflect on the issue. There’s no journey. Proverbs should pack a punch and reveal more stuff inside when unpacked. They can be simple, even straighforward, but shouldn’t be a piece of cake nor fall on our ears like a tautology.

Who is a proverb for?

A second problem is the use of big words. Compare, for example, “You aren’t alive if you aren’t being eaten” with “After death we decay and become soil nutrients, a final reciprocity with the earth”. The second one is not only unwieldy, it’s also a bit… Technical? “Decay” has a haunting beauty to it, at least, but “nutrients” and “reciprocity” don’t match its poetic stance. The first, in contrast, uses a basic activity (eating) to explore the hefty concept (being alive), and it makes for a delightful sentence.

The worst offenders here are technical words from the social sciences. “Putting others into a category box is oppression”; “Political power opposes self-creation”. Come on – this could be plucked straight from a text by Foucault, if only he hadn’t been born in France. “Society” is a frequent notion in the book, but what is “a society”? I just don’t believe it’s a useful word for proverbs. I don’t even understand whether the authors think it’s good or bad, since we’re also given phrases like “Societies emerge only when people have lost their connection to nature” and “A group of friends is an intimate, organic circle, not a society”.

I return to timelessness as a criterium. Although there are some modern phenomena discussed that are worth including in sayings, as we can more readily understand them (did I not suggest “computers” above?), there’s something fascinating about reading a proverb about “a village”, because you can extrapolate it to mean something about any “large group” (including cities). On the other hand, modern stuff (prisons, schools) work wonderfully here as symbols for notions that would have otherwise felt like big words – domination, indoctrination, etc.

In the end, I do have to admit timelessness is a little dumb when we’re talking about human affairs, and I came to realise I’m being cranky at this point. There aren’t many more examples of this use of big words, anyway. I guess I initially thought that proverbs should be easily digestible, in terms of the vocabulary used, because if you have to go to the dictionary to understand it, you probably won’t pass it around – you’d be afraid of sounding awfully pedantic. Plus they perform a sort of teaching function, so kids, for instance, should be able to understand them. But then again, it’s important for us to be confused in more than a poetic way, and proverbs could teach people new words, too. There’s nothing wrong with that.

Amidst the recognition that nothing that I’ve written here is a fair appraisal of the book, for every reader will react differently to it, I wish to mount one last defence of my thought process. I guess it all boils down to something like the ability to picture someone saying out loud: “Well, you know what they say! <insert proverb here>”. I swear to you: I cannot imagine someone non-ironically saying “As my grandparents used to say, let ghosts and dogs touch your heart”. I just can’t. It’s not gonna happen. But the criteria above are not absolute. “There is a saying in my family that goes like this: be the first on the dance floor at least once in your life”… Yep. This works.

Let this book touch your heart

In the end, I don’t want to give the impression that these issues are overbearing. In fact – and this is the reason for the disclaimer above – I wonder if I would have even thought about all of this had I not combed down the book’s content at a regular pace. I think engaging so systematically with it made me critical because I liked it; I recognised greatness in the overall idea but thought the execution could be more fine tuned.

There’s a lot to like here; sayings I’ll cherish forever and that I hope I can incorporate into my life. In addition to the ones I already mentioned, here are a few others I really liked: “Don’t die more than once”. “Don’t hide in a maple tree. Autumn always comes”. “Music is the easiest friend one could ever have”. “Enemies can still be our teachers”. “Secure fighters choose their tactic, the weak have it imposed on them”. “The one who calls their opinions theories has colleagues but no friends”. “Facts settle arguments, but they do not solve problems”. “Lack of free time is the greatest poverty”. “Everyone should know what it is to follow, to lead and to walk alone”. “Prisons don’t prevent crime, hospitals don’t prevent illness, schools don’t prevent ignorance”. “Don’t confuse success in adapting to confinement with wisdom”.

Regardless of the end result, this is a very nice initiative that, come to think of it, couldn’t have been better, simply because even if proverbs are born as “the wit of one”, their edges are roughed out and their references are consolidated only by the “wisdom of many”. I didn’t do a better job myself. In the “Proverbs by you” blank pages at the end of the of book, I wrote three proverbs: “Conflict requires immediate attention, but only time can bring true resolution”. “To know oneself is also to make oneself”. “The antidote to negativity is not positivity, but warmth” (I stole this one from Facebook). Not quite masterful, eh? I like them because they speak to me, and they took shape as I battled writing the thesis and seeing a shrink (for the first time in my life). But they could have been better, too.

My attempt at proverbing.

In the preface, Day-Woods admits that some of the proverbs in the collection “might already exist, are derivative […], won’t pass the test of time or are idiosyncratic[…]”. He goes further: “some will be misunderstood, some will be challenged or be scoffed at for various weaknesses”. I have done all of these things in this review, I guess. I do think some of them could be cut out (the number of proverbs was based “on the number of intersections of the Go board” – that might explain why some feel like filler), and a lot could be improved. But this was never up to Day-Woods, was it?

Just today I was reading a book of texts published in the early 20th-century Brazilian anarchist press by Isabel Cerrutti (1886-1970). She mentions going to a lecture and hearing Maria Lacerda de Moura repeat something that goes (translated) a little like this: “Peace among us, war against those who exploit men!”. Funny – I recognise that from protest chants, but it’s a little different; “Peace among us, war against the lords”. So the version that reached my generation is a little simpler, and thus a little more elegant. And it’s probable that de Moura didn’t create it in the first place either (edit: yep – apparently she did not).

It was never up to Day-Woods because it’s not really an individual process. It’s a collective, never-ending attempt to condense radical sensibilities into practical truth. With this book, I think Day-Woods and Herdman have contributed a lot to this beautiful endeavour.

Piotr Kropotkin: bem-estar para todos e todas, por Ruth Kinna

Este artigo, cujo título original em inglês é “Peter Kropotkin: well-being for all”, foi publicado pela primeira vez em português, pois Ruth Kinna o escreveu para esta edição especial da revista sobre Kropotkin, e eu fiquei responsável por traduzi-lo.

Ruth Kinna é professora de teoria política na Loughborough University, editora do jornal Anarchist Studies [Estudos Anarquistas] desde 2007, e autora de vários livros sobre anarquismo e anarquistas, incluindo: Anarchism: A Beginner’s Guide [Anarquismo: Guia para Iniciantes] (2009), Kropotkin: Reviewing the Classical Anarchist Tradition [Kropotkin: Revisando o Anarquismo Clássico] (2017), e The Government of No One [O Governo de Ninguém] (2019).

Piotr Kropotkin é mais conhecido por seu conceito de apoio mútuo e sua defesa do anarcocomunismo. No primeiro caso, ele é geralmente apresentado como cientista, naturalista e/ou filósofo da ética; o anarquista que “provou”, no fim do século XIX, que a natureza se ordena por hábitos de cooperação instintivos e ambientalmente condicionados, em vez de se resumir a “dentes e garras sangrentas”, como diziam darwinistas sociais. No segundo, Kropotkin aparece como um teórico da política, um estrategista; líder do trio completado por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, que convenceu o Congresso de 1880 da Federação de Jura a fazer do comunismo seu objetivo revolucionário.

É raro que alguém ligue os dois pontos da obra de Kropotkin e, no entanto, eles são igualmente essenciais para o que ele chamava de “bem-estar para todos e todas”. Esse conceito, mero rascunho em seus textos, destaca tanto sua abordagem econômica holística quanto sua crença no poder transformador das ideias.

Apoio mútuo e comunismo

Hoje, tanto o apoio mútuo quanto o comunismo são comuns no pensamento de anarquistas, mas eles foram absorvidos em seus discursos políticos com diferentes graus de entusiasmo. Sem provocar muita controvérsia, “apoio mútuo” tornou-se palavra-chave para comunistas libertários logo depois que Kropotkin começou a falar dele na década de 1880, se não antes. “Comunismo” ganhou força nos movimentos anarquistas mais devagar e provocou bastante debate. Nenhum conceito tinha um significado claro ou preciso. Kropotkin descrevia o “apoio mútuo”, por exemplo, como um fator negligenciado da evolução, e o usou de duas formas: para descrever a capacidade cooperativa de indivíduos e para classificar tipos ou níveis de sistemas sociais; ele o usou tanto para analisar as forças sociais que promoviam ou atuavam contra sociedades de apoio mútuo quanto para explorar uma ética antiautoritária “sem obrigações”, que viesse da auto-organização cooperativa. Mas a confusão sobre o termo “comunismo” causou mais dificuldade para anarquistas que a flexibilidade da ideia de apoio mútuo.

Anarquistas se afastavam do comunismo por duas razões. Uma era que a palavra cheirava a autoritarismo. Essa impressão começou já na década de 1840, quando Pierre-Joseph Proudhon rejeitou o comunismo como um tipo monástico e autoritário de socialismo, uma doutrina de igualdade realizada através de ditaduras. No rescaldo da Revolução Francesa, “comunismo” lembrava conspirações, jacobinismo e o terror. Em segundo lugar, “comunismo” se ligava ao princípio de “distribuição conforme a necessidade” e, portanto, à realização de um programa socioeconômico que, para alguns, parecia diluir o impulso libertário do anarquismo. Era assim que alguns anarquistas espanhóis entendiam a posição anarcocomunista. Da perspectiva deles, era menos uma questão de princípios que uma limitação doutrinária. Eles defendiam o “anarquismo sem adjetivos” e o abandono de todos os sufixos, para mostrar que não queriam determinar demais os objetivos revolucionários. Mais tarde, a pró-feminista Voltairine de Cleyre seguiu essa linha, dessa vez considerando as consequências políticas das posições rivais “individualista” e “comunista”. Ela argumentou que ambos os tipos de “economia” podiam ameaçar a liberdade igualitária.

O impulso anticomunista de Proudhon era forte na Federação de Jura. Em 1871, no ápice dos duros debates entre Mikhail Bakunin e Karl Marx, na Primeira Internacional, os seguidores “antiautoritários” de Bakunin se chamavam “coletivistas”, não “comunistas”. Para bakuninistas, estas não eram só correntes rivais dentro do socialismo; elas eram incompatíveis. Uma apontava para uma federação descentralizada e ações localmente determinadas, e a outra, para a organização centralista, um programa revolucionário detalhado e uma organização partidária. Kropotkin e seus aliados argumentaram que não era bem assim: embora as diferenças entre “antiautoritários” e “autoritários” eram reais e insuperáveis, os rótulos passavam uma falsa impressão.

Kropotkin começava dizendo que socialistas se comprometiam com um mesmo princípio anticapitalista: a posse coletiva. Mas sua preocupação era que socialistas marxistas na verdade prejudicavam esse projeto ao usar sistemas governamentais de Estado para fazer a coletivização. Esses socialistas discutiam estratégia – se deviam ser reformistas ou insurrecionários – mas imaginavam que a coletivização seria a transferência de poder institucional e a introdução do planejamento socialista: “eletrificação + poder dos sovietes”, como dizia Lenin n’O Estado e a Revolução. “Socialistas científicos” – aqueles que defendiam a teoria da história de Marx – também esperavam por uma fase de “transição”; um período em que planejadores ficariam definindo os detalhes de seus esquemas igualitários, especificamente como fazer uma economia baseada no trabalho virar uma economia que atende necessidades. De qualquer forma, a ação revolucionária de massa era apenas um catalisador da transformação social. O governo revolucionário é que era a forma correta de trocar o capitalismo pelo socialismo.

No anarquismo, argumentava Kropotkin, a coletivização seria feita independentemente da máquina política existente, pela expropriação direta de terra e de recursos e pela criação de novas instituições comunais. O objetivo era evitar o governo revolucionário e a reafirmação do controle estatal. De acordo com preceitos anarquistas, o objetivo revolucionário era facilitar a transformação de instituições políticas que possibilitavam a exploração econômica, não utilizar essa infraestrutura para prover igualdade por dentro do Estado. Não fazia sentido revolucionar relações econômicas deixando estruturas políticas intactas. Em 1919, Kropotkin disse isso para Lenin, chamando de autocrático e destrutivo seu projeto de inundar as organizações revolucionárias com trabalhadores partidários em nome do iluminismo político.

O argumento de Kropotkin para a Federação de Jura era estratégico: enquanto “antiautoritários” continuassem se chamando de “coletivistas” em vez de “comunistas”, as pessoas não iriam entender como sua concepção de revolução era diferente. Em outras palavras, era muito fácil confundir o coletivismo com modelos marxistas ou social-democratas de coletivização. Embora Marx tinha reivindicado o “comunismo” quando escreveu o Manifesto em 1848, Kropotkin acreditava que o “comunismo” entendido corretamente tinha a ver com a ação direta descentralizada vista na Comuna de Paris em 1871. No ano em que Apoio Mútuo foi publicado pela primeira vez em forma de livro, Kropotkin voltou ao seu debate com James Guillaume, companheiro próximo de Bakunin, na Federação de Jura. Em 1902, ele disse a Guillaume que em 1880 ele acreditava que associar o socialismo em geral ao princípio de posse coletiva era perigoso, pois apagava as diferenças entre os coletivismos autoritário e antiautoritário, e que só “comunismo” podia deixar clara a determinação anarquista de coletivizar ao “tornar comum”. Ele reconheceu que a mudança de nomes criou tensões no movimento anarquista, mas não achava que isso mudava sua posição política. Sendo comunista, Kropotkin também defendia o princípio de distribuição de acordo com as necessidades, uma posição que o colocava contra anarquistas individualistas e propositores do “anarquismo sem adjetivos”. Mas sua rejeição quanto a recompensas individuais era um argumento acerca da melhor defesa institucional do coletivismo contra o ressurgimento do monopólio, não sobre o princípio de posse comum. Em princípio, dizia ele, a adoção anarquista de “comunismo” tinha tudo a ver com a crítica anticomunista de Proudhon e a posição “coletivista” de Bakunin.

Kropotkin argumentou que mudanças no socialismo europeu, especificamente o surgimento da social democracia marxista no final do século XIX, confirmou que ele estava certo. Em 1902, Kropotkin confessou a Guillaume estar mais incerto que nunca sobre o futuro do socialismo anarquista e da revolução libertária. Trabalhadores erravam ao apostar suas fichas em charlatões partidistas e ao apoiar amplas nacionalizações econômicas. Isso não era comunismo, mesmo que seus defensores fizessem discursos a favor da distribuição de acordo com as necessidades. O programa coletivista social democrata alterou a base da propriedade, mas reforçou o princípio de propriedade, e ainda por cima aumentou o poder monopolizador do Estado. O coletivismo acabava sendo a distribuição de acordo com a burocracia. Kropotkin chamava isso de “socialismo de estado” e, reavivando a terminologia de Bakunin, “autoritário”. Continuando a defender a expropriação direta da terra e dos recursos e a criação de novas associações comunais, Kropotkin fez um novo apelo ao comunismo anarquista, descrevendo-o de forma ampla ao elaborar o conceito de “bem-estar para todos e todas”.

Bem-estar para todos e todas

‘Bem-estar para todos e todas’ foi o emblema de Kropotkin para uma nova economia. Significava o abandono das restrições produtivas artificiais a partir da determinação de preços; deixar de financiar a polícia, o judiciário, as prisões e a indústria das armas; redirecionar os recursos utilizados para fabricar produtos de luxo, que serviam para satisfazer “os gostos depravados da multidão da moda”; e repossuir a propriedade. Em essência, a ideia de Kropotkin não tinha a ver com pessoas diferentes gerenciando o sistema econômico que já existia, nem com igualar benefícios de acordo com as regras dominantes do capitalismo, mas com reformular a economia conforme princípios libertários. Kropotkin resumiu sua visão de “redesenvolvimento” econômico como o “estudo das necessidades da humanidade, e das formas econômicas para satisfazê-las”. Isso substituía a economia política, “a ciência do desperdício de energia sob o sistema de trabalho assalariado”. O redesenvolvimento do campo intelectual envolvia duas mudanças conceituais. Primeiro, as medidas de bem-estar e as avaliações sobre o crescimento humano seriam formuladas localmente por grupos e associações das comunidades: Kropotkin teria completamente rejeitado a imposição de barômetros universais como o Produto Interno Bruto (PIB). Segundo, as relações sociais seriam estruturadas por “livre acordo”.

A economia libertária naturalmente envolvia refletir sobre o que produzir e como produzir, mas ela conscientemente injetava na economia um propósito moral. Enquanto a economia política era moralizada pelo lucro e pela expansão, pela acumulação de dinheiro e pela exploração, a economia libertária era moldada pelo compartilhamento, pela generosidade e pela expressão criativa. Ela dispensava a análise abstrata de trabalho, valor, oferta e demanda, produção e consumo, e colocava no lugar os conceitos de desejo e possibilidades estimadas. Vendo no bem-estar um direito, Kropotkin o descreveu como o direito de “possuir a riqueza da comunidade”, o “fruto do labor das gerações passadas e presentes”:

E ao afirmar seu direito de viver com conforto, eles afirmam, o que é ainda mais importante, o direito de decidir por si mesmos o que esse conforto será, o que deve ser produzido para vivê-lo, e o que deve ser descartado por não ter mais valor.
O “direito ao bem-estar” significa a possibilidade de viver como seres humanos, e de educar as crianças para serem membros de uma sociedade melhor que a nossa…

A segunda proposta de Kropotkin, sobre o “livre acordo”, era o princípio social que fundamentava a economia libertária. Ele entrava no lugar do contrato, base das relações no capitalismo. O contrato retrata as partes de um acordo de forma abstrata, como indivíduos iguais, e trata seus arranjos como justos porque conclui que foram feitos livremente. Assim, contratos de emprego supõem que trabalhadores aceitaram as regras dos patrões, e leis trabalhistas foram elaboradas para determinar as disputas entre eles. As origens dessa maneira de entender os acordos estão na ideia de propriedade e no princípio de troca, que para Kropotkin se tornaram o modelo para todas as relações sociais no capitalismo, até mesmo as mais íntimas. No casamento, como no emprego, as regras eram garantidas por lei e raramente se preocupavam com a igualdade de fato: mulheres faziam votos de casamento como subalternas, dominadas por seus maridos, sujeitas à disciplina deles e dependentes de sua boa vontade. Em contraste, o livre acordo era não-individualista porque se materializava no reconhecimento de uma herança comum e de um propósito compartilhado, e era antiautoritário porque dependia da confiança. Não havia autoridade externa que garantisse um livre acordo. Tampouco havia um governo central das organizações e instituições que o livre acordo estimulava, que Kropotkin imaginava que seriam “infinitamente variadas”, resultando do “contínuo crescimento das necessidades do homem civilizado”, substituindo assim a “interferência governamental”. A referência ao “homem civilizado” talvez deixe claros os limites da tentativa de Kropotkin de reimaginar a economia; ele continuava preso a ideias de desenvolvimento por meio da exploração de recursos naturais e da limpeza da terra, ideias que não combinam muito bem com as perspectivas ecológicas de hoje em dia. Mas seus dois princípios – o livre acordo e a comunidade local julgando o bem-estar – oferecem um esquema para um conceito ajustável e flexível de comunismo libertário anarquista que ainda é relevante hoje.

Ideologia

Kropotkin dizia que o bem-estar para todos e todas não era um sonho, mas uma genuína possibilidade. Isso revela que ele sabia da qualidade utópica desse ideal. O que o tornava real? A resposta de Kropotkin era o apoio mútuo. Os três componentes essenciais do bem-estar eram compreender a capacidade humana para cooperar, ver como comunidades históricas e atuais tinham criado ambientes que permitiam a cooperação e minimizavam a luta individual pela vantagem competitiva, e, por fim, entender a sociabilidade como a mola propulsora de uma ética do cuidado e da compaixão. A teoria do apoio mútuo explicava todos os três. Kropotkin separou a adequação biológica da competição individual, analisou o desenvolvimento da sociabilidade em sociedades tribais, comunidades, cidades-Estado medievais e associações voluntárias cotidianas, correlacionando essa sociologia com uma ética da dedicação não-recíproca.

Para Kropotkin, o apoio mútuo estava embasado na ciência, mas não era a mesma coisa que o “socialismo científico” de Marx. Em vez de demonstrar como o capitalismo seria transformado, ele frisava o que era preciso para tornar a transformação do capitalismo possível. Para Kropotkin, revoluções se construíam com confiança e convicção. Os ideais e as aspirações que animavam a ação direta eram cruciais para seu sucesso. O triunfo da burguesia francesa contra os sans culottes em 1793 e o golpe bolchevique de 1917 indicavam a veracidade dessa proposta. No prefácio de 1914 a Apoio Mútuo, ele observou que apenas a primeira parte de sua tese, “a ideia de que o apoio mútuo representava um importante elemento de progresso na evolução”, tinha ganhado aceitação na comunidade científica nos doze anos desde a publicação do livro. A segunda parte, o elemento sociológico de sua tese, ainda não era geralmente aceita. Os “líderes do pensamento contemporâneo”, ele observou, insistiam que “as massas tinham pouca preocupação com a evolução das instituições sociáveis do homem, e que todo o progresso feito nessa direção se devia aos líderes intelectuais, políticos, e militares da massa inerte”. O comunismo anarquista está sempre maduro, pronto para ser mobilizado, mas é preciso escapar às noções convencionais de liderança e planejar um salto de fé para estimular a destruição do capitalismo e o bem-estar para todos e todas.

Apoio mútuo para a liberdade

Texto publicado na Revista do Centro de Cultura Social.

O apoio mútuo parece se chocar com a liberdade, ao menos quando ajudar uns aos outros pode conflitar com vontades individuais. É claro que é possível querer praticar o apoio mútuo, mas assim como caridade não se confunde com justiça, uma sociedade e uma economia baseadas nesse princípio não podem se fiar no acaso, no “faz quem quer”. A cooperação precisa constituir ativamente tudo que fazemos. Como é possível, então, combinar apoio mútuo e liberdade?

Libertas, lá no latim, era o status de quem tinha nome, terras… De quem não era escravo. Hoje, entre catracas e muros, vigias e polícias, inspetores e moralistas, também crescemos entendendo que fazer o que se quer é um privilégio. O dia a dia ensina que é o dinheiro que leva à satisfação – produtos, serviços, acesso aos espaços; no fundo, formas diferentes de se relacionar com as pessoas e com o ambiente. Você pode ir mais longe, entrar onde antes não entrava, ter uma “propriedade privada”, quer dizer, um lugar onde você é o mandachuva – enfim, ter tudo entregue na sua porta em vez de ser você a entregadora.

Só que o indivíduo tem limite. Maiores liberdades exigem formas de cooperação – até mesmo pensando a liberdade como dinheiro. Por exemplo: você pode ser uma pessoa que, com o primeiro emprego, passou a alugar seu próprio canto, comprar umas coisas que antes não conseguia… Mas pro que extrapola demais o orçamento – um carro, uma casa, um projeto – é preciso crédito. Se a pessoa não conhece alguém que tenha pra emprestar, vai ao banco, que amontoa riqueza e assim tem o poder de julgar quem merece confiança.

Em certo sentido, então, o apoio mútuo não é uma revolução, nem algo feito por esporte, ou que ocorra por acidente. Também não é um mandamento moral, uma coisa que alguém tenha que “se forçar” a fazer, como se o egoísmo é que viesse naturalmente. É uma forma de agir, uma tática, uma estratégia, que por ser tão simples quanto potente, desenvolveu-se nos seres vivos como instinto, uma tendência, e assim como algo que nunca pode ser extirpado da experiência humana.

Redes de solidariedade entre vizinhos, colegas, em espaços religiosos, etc., são essenciais pra tornar a vida melhor, ou minimamente suportável, em situações de vulnerabilidade. Certa vez uma taxista carioca me contou sobre os filhos que criava sozinha: os biológicos, porque o pai sumiu, e os da vizinha, porque ela (outra mãe solo) faleceu e não tinha familiares conhecidos. Ela contava bastante com o resto da comunidade. Mas o cenário não precisa ser tão dramático, nem periférico. Todo mundo já teve laços fortalecidos com pessoas que ofereceram socorro em tempos difíceis, ou deram um “voto de confiança financeiro” fundamental para alcançar “liberdades” maiores.

Mas vamos com calma: o apoio mútuo enquanto postura, modo de agir, é só uma sombra do que ele pode ser quando realmente permeia nossas relações, orienta os ritmos do dia a dia, dá forma às expectativas para o futuro. Não dá pra abordar a solidariedade para a sobrevivência romanticamente, ignorando a pornográfica concentração de renda a nível nacional e mundial. Uma coisa é um terremoto criar “tempos difíceis”, outra é uma vida inteira no olho do furacão, uma tragédia que, como várias outras, podia ser evitada se o princípio de apoio mútuo estruturasse nossas vidas. Sem falar que, para cada história de um “empréstimo emocionante”, tem aquele primo que pede dinheiro e nunca mais aparece… Nesses casos, a moral da dívida pode atropelar nuances, gerando ressentimentos e conflitos. O crédito financeiro é, na verdade, o pior exemplo de apoio mútuo possível – justamente porque não é mútuo! A questão é: o “livre mercado”, imposto como fundamento das nossas vidas, naturaliza e aprofunda desigualdades. Isso deturpa a cooperação. Afinal de contas, a questão é: quem está em posição de julgar se alguém merece confiança? Quem está em condições de ajudar os outros? Apoio mútuo de verdade exige tornar real uma igualdade que, no Estado, é um “juridiquês” vazio.

Então, não é bem que uma liberdade maior de se fazer o que se quer exige formas de cooperação – isso deixa de fora a questão da igualdade. Essa liberdade é um privilégio (a massa popular precisa de muito “crédito” para fazer o que quer) por causa da dominação histórica que o capitalismo colonial representa. A grande maioria do povo é obrigada a se virar, cada um no seu quadrado, e aí é fácil de entender como o individualismo viraliza. E se o dinheiro é o caminho para ter mais liberdade para si, “o que se quer fazer ou ser” tem que se encaixar no molde que o mercado impõe. Só assim você ganha dinheiro para, depois, gastar no próprio mercado, comprando o que se quer.

Ora, para que esse “intermediário”? Por que é que a gente não se “organiza direitinho”, conforme o que sabemos, podemos, e queremos, pra permitir a cada um desenvolver suas potências e realizar seus desejos em equilíbrio, compartilhando tanto os frutos quanto os fardos? Isso sim seria dar corpo e vida ao apoio mútuo: pegar a lógica que se vislumbra hoje entre brechas e ranhuras de um cotidiano massacrante e fortalecê-la, expandi-la. Que lógica? O princípio de “cada um faz o que pode, cada um pega o que precisa”. Isso nada mais é que o comunismo: trabalhar menos, trabalhar todos; produzir o necessário, distribuir tudo.

Não seria fácil, nem simples, mas essa não é a questão. Ou é? Porque o “marketing” do capital diz que o mercado é um jeito “indireto”, porém “eficaz”, de fazer justamente isso, toda essa coordenação “livre” de trabalho e valor. A coisa parece simples e fácil. Mas, como quase sempre no marketing, é um engodo, um truque. Por meio dos mecanismos de mercado, quem tem dinheiro e poder transforma a condição básica da realização humana (a liberdade de “poder fazer ou ser o que quer”) num prêmio. Mil desculpas esfarrapadas fantasiadas de ciência buscam nos convencer de que a gente tem que “merecer” dignidade. A corrida para caber no pódio impede que a gente se esforce para, juntas, garantir esse prêmio como um fato para todas as pessoas.

Nessa corrida, aliás, a própria liberdade deixa de significar o que se pretendia, já que, no capitalismo, quem quer liberdade tem que se submeter. Aliás, o “prêmio” é uma fraude, porque a promessa é que com o “sucesso”, a partir do seu próprio “mérito”, a submissão acaba. Mas participar da “corrida” é reproduzir um sistema violento, que destrói as condições de sobrevivência das pessoas no planeta (em vários sentidos), e ao chegar no topo da pirâmide, a pessoa percebe que as demais terão que ficar lá, na base. No fim, permanecer no topo depende de continuar se conformando – só que, dessa vez, a um papel de vilão.

É isso que nos leva a defender o comunismo libertário – uma forma de viver organizando o apoio mútuo diretamente, reconhecendo nossa interdependência em vez de uma ilusória independência, pra chegar na liberdade. Isso é diferente das soluções que outras ideologias oferecem. Relações de crédito são relações de endividamento, e assim de controle, de “entrar na linha”. E mesmo as propostas como renda universal, que são bacanas e estão ficando famosas hoje em dia por conta do auxílio emergencial da pandemia de Covid-19, não vão 100% ao xis da questão, que é o controle sobre o trabalho. No fim, elas acabam botando nossa liberdade na mão de uma instituição essencialmente violenta e opressora, que é o Estado – tudo que ele dá, ele pode tirar. É só por meio da posse comum dos meios de trabalho que garantimos, por nós, a nossa liberdade. Se pudéssemos igualmente fazer o que quiséssemos, nossos objetivos e nossos esforços seriam trabalhados em conjunto. Se o que eu quero fazer é machucar ou dominar outras pessoas, isso não posso, porque dependo delas. Mas outras tampouco podem me machucar ou me dominar porque também dependem de mim. É a ação de todas que ajuda a sustentar esse mundo em que cada uma está capacitada a buscar seus sonhos.

Mas o conflito persiste: e se quero machucar ou dominar outros? Devemos lembrar que as nossas vontades não estão separadas da nossa situação. Somos o que fazemos, e quando o apoio mútuo embasa nossos atos e muda tudo à nossa volta, ele no fundo define também quem somos. Existe mesmo a vontade de dominar? Ou só vontades, físicas e psicológicas – alimentar-se bem, estar protegido, ser amado, respeitado – que, numa sociedade hierárquica, aprende-se desde cedo que é preciso dominar para conseguir? Nossos desejos podem ser aleatórios, profundamente pessoais, únicos… E mesmo assim o “formato” deles vai depender das nossas relações. Se o mundo deixa claro que a única chance de ter a liberdade de alcançar o que se quer vem de “subir na vida” por cima dos outros, não dá pra culpar as pessoas quando esses desejos surgem, como se elas fossem malvadas. O vírus não é a humanidade, mas sim o capitalismo. A cura? Lutar contra a fonte desses impulsos transformando diretamente a nossa realidade.

Não quer dizer que dá pra erradicar de vez qualquer desejo antissocial. Não seria nem bom – a rebeldia vem do choque com a injustiça; é como um alarme de incêndio, um aviso da defesa civil contra desastres “naturais”. Eles permitem que a gente veja que alguma coisa não está indo bem, e mesmo uma sociedade fundada no apoio mútuo pode falhar. Não tem problema – nada nunca vai ser perfeito mesmo. A diferença está em como lidar com isso. Na sociedade imperfeita que temos, a rebeldia é punida. No comunismo libertário, ela é um assunto sério, mas não necessariamente motivo para expulsar, bater, prender (pode ser até celebrada). Mas, garantindo primeiro certa segurança, o próximo passo é o que importa: reavaliar nossos esforços para melhor nos ajudar mutuamente, realmente pensando como é que fazemos para atender a diversidade das nossas demandas. Isso é, sem dúvida, um quebra-cabeças muito difícil. Ninguém me convence que a gente não dá conta.

Por toda sua obra, em vários contextos, Kropotkin pensa esse desafio. Mas ele não é (nem nunca disse que foi) um gênio que “inventou” essas noções. O apoio mútuo já é um princípio fundamental de outras tradições políticas e cosmológicas, especialmente dos povos não-ocidentais. Para essas tradições, combinar liberdade e apoio mútuo é um falso dilema, porque reconhecer a nossa interdependência sem ilusões muda o que a liberdade significa. Não precisamos, afinal, deixar o latim decidir pra sempre o sentido das coisas. Não tem por que continuar se apegando a uma ideia de liberdade enquanto “fazer o que se quer” quando não é isso que queremos dizer ao defendê-la.

Noções indígenas de liberdade legitimam a rebeldia contra tudo – a ganância, a violência, a separação – que ameaça o equilíbrio entre pessoas e por toda a natureza. Lembro aqui de Anthony Fiscella expondo o racismo das noções ocidentais de liberdade e buscando alternativas: uma delas é a partilha de responsabilidades. Dividir os pesos da vida com as pessoas à nossa volta é o que nos torna livres. Quanto maior a escala dessa divisão, mais a gente assegura nossas condições para crescer, experimentar, relaxar, e de sermos elementos ativos do mundo, ajudando as demais pessoas a serem livres também.

A liberdade de “fazer o que se quer” é um produto do mercado. A liberdade baseada no apoio mútuo é uma genuína relação social: algo que não se pode simular ou impor, que torna a vida digna e prazerosa, que nos transforma e nos empodera.

A prefiguração interseccional divide a esquerda?

Tradução de um trecho (p. 145-150) de RAEKSTAD, P.; GRADIN, S. S. Prefigurative Politics: Building Tomorrow Today. Cambridge: Polity, 2020.

Há uma […] crítica à política prefigurativa que vale a pena discutir, já que aparece bastante por aí: a de que ela foca mais nas diferenças (de raça, gênero, sexualidade, deficiência, etc.) entre as pessoas dentro da esquerda que na unidade da classe trabalhadora, e de que isso dividiria a esquerda. Essa crítica, como a vemos, surge de uma confusão entre certas formas de política prefigurativa, especialmente as que buscam a interseccionalidade, com a proeminente tendência neoliberal conhecida como `política identitária’.

A política identitária liberal é uma abordagem moderada (isto é, não-radical) de transformação social, baseada em compromissos ideológicos liberais em sentido amplo. Ela parte da premissa de que mudanças sociais profundas e sistêmicas não são necessárias para termos uma sociedade livre, igual e democrática, porque a sociedade já está mais ou menos perto desse ideal. Movimentos sociais deveriam portanto se concentrar em fazer pequenos ajustes a leis, políticas públicas e normas sociais em vez de trabalhar por mudanças mais sistemáticas ou radicais. Admitindo que mulheres e minorias encaram obstáculos específicos no caminho pro sucesso capitalista, como discriminação, diferenças salariais e preconceito, a política identitária liberal quer dar a pessoas desses grupos as mesmas oportunidades que homens brancos da classe dominante têm de se dar bem na sociedade tal como ela é. Por exemplo, quando mulheres liberais atuam contra o teto de vidro[1] em empresas, isso é política identitária. Outro exemplo é quando antirracistas liberais dizem que o racismo acabará se houver mais políticos/as e chefes/as negros/as. A ideia é que mulheres e minorias devem ser melhor assimiladas a todas as partes da sociedade tal como a sociedade é agora, e que a discriminação deve acabar para que elas possam competir em igualdade.

Muitas críticas à esquerda argumentam que a política identitária, com seu foco na identidade pessoal e sua negação da unidade de classe, é um cavalo de Troia na esquerda. Um exemplo clássico dessa crítica pode ser encontrado na declaração do congresso internacional da Tendência Marxista Internacional de 2018[2], que descreve abordagens socialistas interseccionais como políticas identitárias que estariam fracionando e enfraquecendo a esquerda. Ao invés de unir-se enquanto trabalhadores, diz esse tipo de argumento, ativistas interseccionais insistem em ressaltar as diferentes maneiras em que as pessoas são afetadas por racismo, patriarcado e capacitismo. Isso seria fazer o jogo da burguesia, já que a esquerda não conseguiria se unir. Alguns comentaristas adicionam a esse tipo de argumento que o racismo, o machismo e o capacitismo vão simplesmente desaparecer depois da revolução, uma vez que o capitalismo que os sustenta (e os exige) seja substituído. É assim tanto desnecessário quanto contraprodutivo, por enquanto, tentar abordar qualquer outra coisa que não seja o capitalismo, de acordo com essa visão.

Essa crítica, em outras palavras, considera a política interseccional, incluindo formas interseccionais de prefiguração, divisiva, e a coloca no mesmo saco que a política identitária liberal. Há muitas coisas erradas com essa crítica: ela presume um ponto de vista branco, masculino e capacitista enquanto silencia grupos marginalizados; e ela se baseia em um grave desentendimento sobre o argumento interseccional […]. Não é a interseccionalidade que é divisiva, e sim o status quo (criticado pela interseccionalidade) que impede o desenvolvimento da solidariedade de classe. Insistir que a opressão de classe vem antes de todas as outras, e que outras formas de opressão podem ser em grande medida ignoradas até depois da revolução, deixa essas outras formas de opressão intactas dentro de movimentos e organizações. Isso, é claro, torna esses locais hostis para pessoas desses grupos marginalizados, dificultando sua participação efetiva neles e fortemente desencorajando que se aproximem deles em primeiro lugar.

A confusão entre prefiguração interseccional e política identitária não é, contudo, completamente acidental. O primeiro uso do termo ‘política identitária’ vem do socialismo negro feminista, não do liberalismo, e estava fortemente conectado a ideias que depois seriam chamadas de interseccionais. Só depois que o conceito de ‘política identitária’ surgiu na esquerda radical que liberais desenvolveram seu próprio significado para ele. Quem primeiro popularizou o termo ‘política identitária’ – ou talvez o tenha cunhado mesmo – foi o coletivo feminista negro estadunidense Combahee River. Este coletivo era abertamente revolucionário e socialista. Suas atividades incluíam trabalho educativo, grupos de conscientização, piquetes contra locais de trabalho racistas, apoio a pessoas negras perseguidas pela polícia, entre muitas outras[3]. Seu maior legado é uma declaração de 1977, que ficou famosa em parte por incluir o primeiro uso amplamente reconhecido do termo ‘política identitária’:

Sempre houve mulheres negras ativistas … compartilhando a consciência de que suas identidades sexuais combinavam-se a suas identidades raciais para tornar únicos os fatos de suas vidas e os focos de suas lutas políticas … Esse foco sobre nossa própria opressão está incorporado no conceito de política identitária. Acreditamos que a política mais profunda e potencialmente mais radical vem diretamente da nossa própria identidade, ao contrário de trabalhar para acabar com a opressão de outra pessoa. … Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo de quem trabalha e cria os produtos, e não para o lucro de patrões. … Não estamos convencidas, no entanto, de que uma revolução socialista que também não seja feminista e antirracista vai garantir nossa libertação. (ênfase adicionada) [4]

O termo ‘política identitária’ aqui se referia a pelo menos duas ideias […]: de que o pessoal é político […], e de que as diferentes estruturas hierárquicas são interligadas e co-constitutivas (em outras palavras, elas ‘interseccionam’, como Kimberlé Crenshaw viria a dizer mais tarde). A declaração também critica a ideia de que um grupo pode liberar outro em seu nome, o que pode ser lido como uma crítica tanto a vanguardas elitistas em movimentos sociais quanto a autoproclamados poderes coloniais civilizatórios do ocidente orquestrando o ‘desenvolvimento’ internacional.

O uso do termo política identitária por parte do coletivo não tinha nada a ver com a ideologia liberal. Pelo contrário, a mensagem era de que a sociedade precisa ser transformada fundamentalmente para que as estruturas hierárquicas sejam desfeitas. Essa mudança precisaria ser feita por pessoas com variadas e diferentes experiências de opressões interseccionadas, com um reconhecimento de que nossas perspectivas e experiências pessoais são políticas.

Há assim uma forte ligação entre a política identitária e as formas interseccionais de prefiguração, mas não da maneira como a maioria das críticas presume. A política identitária no sentido defendido pelo coletivo Combahee River é uma luta por mudança radical e sistêmica – ao contrário da política identitária liberal, que só quer assimilar grupos marginalizados às relações sociais existentes.

Muitas abordagens interseccionais radicais vão ainda além disso de outra maneira importante. Enquanto a política identitária liberal presume a desejabilidade e a permanência tanto das relações sociais existentes quanto das identidades das pessoas que navegam por elas, muitas abordagens prefigurativas interseccionais estão trabalhando para mudar não só relações sociais mas também identidades. Isso é porque nossas identidades são vistas não como inatas ou fixas, mas como produtos e mecanismos de estruturas sociais. Em outras palavras, enquanto liberais querem ver mais pessoas negras ou mulheres como presidentas e chefiando empresas, radicais querem mudar fundamentalmente não só sistemas políticos ou econômicos, mas também os próprios significados de “negras” e “mulheres”.

Socialistas há muito enxergam a categoria ‘classe trabalhadora’ como uma categoria que pertence ao capitalismo, e cujo fim queremos testemunhar. O sentido do socialismo não é reduzir a opressão capitalista ou melhorar as coisas um pouquinho para a classe trabalhadora, mas abolir todas as classes e o poder de classe como um todo. Raça, gênero, e outras categorias identitárias são vistas por muitas teóricas e ativistas pela mesma lente analítica. Por exemplo, Huey Newton, co-fundador do Partido dos Panteras Negras, argumentava: “Se não temos identidade universal, então teremos chauvinismo cultural, racial e religioso…”[5]. […] Isso não significa dizer que as categorias e identidades atuais podem ser simplesmente ignoradas, mas fornece uma direção para um futuro além dessas identidades: “lutamos por um futuro em que vamos perceber que somos todos Homo sapiens e temos mais em comum que diferenças”[5].

Acadêmicas influentes em raça e gênero, como Stuart Hall[6] e Judith Butler[7], argumentam que categorias raciais, de gênero e outras são melhor compreendidas como efeitos, incorporações, e ferramentas de opressão, em vez de como identidades eternas que têm qualquer sentido por si só. É a supremacia branca que cria as identidades ‘branca’ e ‘negra’ atuais, e o patriarcado que cria as identidades ‘mulher’ e ‘homem’ atuais, em vez dessas identidades serem inerentes às pessoas com certos tons de pele, expressões gestuais, ou partes do corpo. (Ou, melhor dizendo, é o patriarcado branco-supremacista capacitista capitalista que cria todas as identidades, mas é o elemento branco-supremacista que enfatiza a raça, o elemento patriarcal que enfatiza o gênero, e daí por diante).

Como evidência disso, pense nas enormes variações históricas e geográficas em termos do que se considera uma raça ou um gênero. As categorias raciais que usamos agora datam apenas do começo da colonização europeia e do tráfico transatlântico de escravos. Nos séculos XIX e XX, eugenistas tentaram justificá-las com a dita ‘biologia racial’, que desde então foi completamente refutada pela ciência contemporânea[8]. Pesquisas contemporâneas também desacreditaram as categorias de gênero modernas como simples e “naturais”[9][10]. Categorias de gênero têm variado enormemente no tempo e do espaço. Por exemplo, muitas sociedades tinham mais que duas categorias de gênero, ou não viam o gênero como necessariamente ligado à biologia, antes de colonizadores europeus imporem categorias binárias e alegadamente científicas[11][12][13]. Mesmo na Europa, o principal entendimento atual sobre gênero surgiu apenas no começo do período moderno, e está profundamente ligado a hierarquias sociais e exploração[14]. Muitos tipos de prefiguração interseccional, assim, propõem a abolição dessas categorias opressivas e exploratórias junto com suas estruturas subjacentes. Esse é um projeto político completamente distinto de buscar assimilar melhor pessoas dessas categorias na economia capitalista, que deixa intactas tanto as categorias atuais quanto as desigualdades econômicas. Um compromisso prefigurativo com a interseccionalidade é portanto muito diferente de uma política identitária liberal.

Notas

  1. N. do T.: Glass ceiling, metáfora usada para representar uma barreira invisível que dificulta o acesso de um certos grupos demográficos aos níveis hierárquicos mais altos de uma organização.
  2. IMT (INTERNATIONAL MARXIST TENDENCY). Marxism vs Identity Politics. In: ___. In Defence of Marxism. Disponível em: https://www.marxist.com/marxist-theory-and-the-struggle-against-alien-class-ideas.htm.
  3. HARRIS, D. From the Kennedy Commission to the Cobahee Collective: Black Feminist Organizing, 1960-80. In: B. Collier-Thomas e V. P. Franklin (Eds.). Sisters in the Struggle: African American Women in the Civil Rights-Black Power Movement. Nova Iorque: NYU Press, 2001. p. 280-305.
  4. COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. 1977. Disponível em: http://circuitous.org/scraps/combahee.html.
  5. NEWTON, H. Intercommunalism. 1974. Disponível em: https://www.viewpointmag.com/2018/06/11/intercommunalism-1974.
  6. HALL, S. Old and New Identities, Old and New Ethnicities. In: A. King (Ed.). Culture, Globalisation and the World System: Contemporary Conditions for the Representation of Identity. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 1991.
  7. BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Londres: Routledge, 1990.
  8. RATTANSI, A. Racism: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2007.
  9. FINE, C. Delusions of Gender: How our Minds, Society and Neurosexism Create Difference. Londres: Icon Books, 2011.
  10. FAUSTO-STERLING, A. Sex/Gender: Biology in a Social World. Londres: Routledge, 2012.
  11. AMADIUME, I. Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society. Londres: Zed Books, 1987.
  12. OYEWUMI, O. Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
  13. HINCHY, J. Governing Gender and Sexuality in Colonial India: The Hijra, c.1850-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
  14. FEDERICI, S. Caliban and the Witch. Nova Iorque: Autonomedia, 2004.