Uma proposta para a abolição de notas em avaliações, por Paul Goodman

Trecho do livro Compulsory Miseducation (“Deseducação Obrigatória”).

Que meia dúzia de universidades de prestígio – Chicago, Stanford, a “Ivy League” toda – abandonem as notas e usem os testes apenas e inteiramente para fins pedagógicos, conforme a conveniência dos professores.

Qualquer pessoa que conheça o temperamento frenético das escolas atuais entenderá a transvaloração de valores que seria afetada por essa modesta inovação. Para a maioria dos alunos, a nota competitiva passou a ser a essência do processo. O ingênuo professor aponta para a beleza do conteúdo e para a engenhosidade da pesquisa que o produziu; o aluno esperto pergunta se isso cai na prova.

Deixem-me falar logo de uma objeção cuja unanimidade é fascinante. Acho que a grande maioria dos professores concorda que a avaliação atrapalha o ensino e promove um espírito ruim, que leva a trapacear e plagiar. Tenho diante de mim a coletânea de ensaios Examining in Harvard College, e esse é o consenso. No entanto, afirma-se uniformemente que a avaliação é inevitável, pois de que outra forma as escolas de pós-graduação, as fundações e as empresas saberão quem aceitar, premiar e contratar? Como os caçadores de talentos saberão a quem recorrer?

Testando os candidatos, é claro, de acordo com os requisitos das tarefas específicas da instituição que os quer, da mesma forma como são testados os candidatos ao serviço público ou a licenças para a prática de medicina, direito e arquitetura. Por que os professores de Harvard deveriam estar fazendo esses testes para as empresas e fundações?

Essa objeção é ridícula. Dean Whitla, do Escritório de Testes de Harvard, ressalta que os testes de aptidão escolar e de desempenho usados para admissão em Harvard são um índice excelente para o desempenho geral em Harvard, melhor do que as notas do ensino médio ou as notas de cursos específicos de Harvard. Presumivelmente, esses testes de admissão à faculdade são feitos sob medida para o que Harvard e instituições semelhantes desejam. Pela mesma lógica, não seria melhor se um empregador aplicasse seu próprio teste de aptidão profissional em vez de confiar nos caprichos dos especialistas de Harvard? Na verdade, duvido que muitos empregadores se preocupem em analisar essas notas; é mais provável que estejam interessados apenas num diploma de Harvard, seja lá o que isso signifique para eles. As notas têm mais peso nas escolas de pós-graduação – aqui, como em qualquer outro lugar; o sistema funciona principalmente para seu próprio benefício.

É realmente necessário lembrar aos nossos acadêmicos a antiga história das provas. Na universidade medieval, o objetivo principal da prova exaustiva era aceitar o candidato como colega ou não. Sua defesa de mestrado era uma obra que lhe permitia entrar na guilda. Não se tratava de fazer avaliações comparativas. Não era para eliminar e selecionar para um licenciador ou empregador extramuros. Certamente não era para colocar um jovem contra outro em uma feia competição. Minha impressão filosófica é que os medievais achavam que sabiam o que era um trabalho bom e que somos competitivos porque não sabemos. Mas quanto mais o status é alcançado por meio de uma avaliação competitiva amplamente irrelevante, menos saberemos.

(É claro que nossos exames americanos nunca tiveram essa orientação puramente de guilda, assim como nossas faculdades raramente tiveram autonomia absoluta; o exame era para satisfazer superintendentes, anciãos, regentes distantes – e eles, como superiores paternais, sempre gostaram mais de dar notas do que de aceitar colegas. Mas eu afirmo que essa configuração por si só torna impossível para o aluno se tornar um mestre, crescer e começar a trabalhar por conta própria. Ele sempre estará tirando 10 ou 9 para algum supervisor. E no cenário atual, ele sempre estará subindo no pescoço de seu amigo.)

Talvez os principais opositores à abolição das notas sejam os alunos e seus pais. Os pais devem ser simplesmente ignorados; sua ansiedade já causa problemas suficientes. Para os alunos, parece-me que um dos principais deveres da universidade é privá-los de seus penduricalhos, de sua dependência em avaliações e motivações extrínsecas, e forçá-los a enfrentar a difícil empreitada do conhecimento em si, e finalmente perder-se nela.

Um efeito lamentável das notas é anular os vários usos dos testes. A prova, tanto para o aluno quanto para o professor, é um meio de estruturar e também de descobrir o que está faltando ou o que está errado e o que foi assimilado e pode ser pressuposto dali em diante. A revisão – inclusive a revisão sob alta pressão – é um meio de reunir os fragmentos, de modo que haja rasgos de percepção sinóptica.

Há vários bons motivos para fazer testes e para vários tipos de testes. Mas, se o objetivo é descobrir os pontos fracos, qual é o sentido de dar nota baixa e puni-los, se isso convida o aluno a ocultar seus pontos fracos, fingindo saber algo, quando não trapaceando? A conclusão natural da síntese é o cair da ficha em si, não uma nota por ela ter caído. Para a importante questão do nivelamento, se for possível estabelecer no aluno a crença de que ele está sendo testado não para obter notas e fazer comparações injustas, mas para seu próprio benefício, o aluno normalmente deve buscar seu próprio nível, onde ele se sente desafiado porém ainda assim capaz de enfrentar o desafio, em vez de empurrar com a barriga um nível mais avançado. Se o aluno ousar aceitar a si mesmo como é, a nota do professor será um instrumento rudimentar comparado à autoconsciência do aluno. Mas é raro em nossas universidades que os alunos sejam incentivados a perceber objetivamente sua grande confusão. Ao contrário de Sócrates, nossos professores se baseiam em vontade de poder em vez de vergonha e idealismo ingênuo.

Muitos alunos são preguiçosos, por isso os professores tentam incitá-los ou ameaçá-los por meio de notas. A longo prazo, isso faz mais mal do que bem. A preguiça é um mecanismo de defesa do caráter. Pode ser uma forma de evitar o aprendizado, a fim de proteger a presunção de que já se é perfeito (mais além, o desespero de que nunca se conseguirá sê-lo). Pode ser uma forma de evitar precisamente o risco de falhar e ser rebaixado. Às vezes, é uma forma de dizer educadamente: “Não quero”. Mas como foram as exigências autoritárias dos adultos que criaram essas atitudes em primeiro lugar, por que repetir o trauma? Chega um momento em que devemos tratar as pessoas como adultos, com preguiça e tudo. Uma coisa é ter a coragem de tirar um malandro de sua aula; outra coisa bem diferente é dar-lhe um zero, como faz um chefe.

O mais importante de tudo é que, muitas vezes, é óbvio que hesitar em fazer um trabalho, especialmente entre os jovens brilhantes que ingressam em grandes universidades, significa exatamente o que parece. O trabalho não é adequado para mim, nem para essa matéria, nem para esse momento, nem para essa escola, nem para a escola como um todo. O aluno pode não ser estudioso no sentido clássico de viver com a cabeça nos livros; ele pode estar cansado da escola; talvez seu desenvolvimento deva tomar outra direção agora. Mas, infelizmente, se esse aluno for inteligente mas inseguro de si, ele pode ser intimidado a tirar nota para passar, e isso confunde tudo. Meu palpite é que estou descrevendo uma situação comum. Que desperdício terrível de uma vida jovem e do esforço de um professor! Esse aluno não reterá nada do que botou na prova para passar […].

E, ironicamente, o inverso também é provavelmente verdadeiro. Um aluno reprovado e eliminado mecanicamente está realmente pronto e ansioso para aprender em um ambiente escolar, mas ainda não pegou o jeito. Um bom professor pode reconhecer a situação, mas o computador faz o que quer.

Que se foda o poder, por Benjamin Zephaniah (1958-2023)

“Que se foda o poder – e vamos só cuidar uns dos outros. A maioria das pessoas sabe que a política está fracassando. O problema é que não conseguem imaginar uma alternativa. Lhes falta confiança. Eu simplesmente parei de prestar atenção em propaganda. Desliguei a televisão que só conta mentiras e comecei a pensar por mim mesmo. Aí eu realmente comecei a me encontrar com pessoas – e acredite em mim, não há nada mais maravilhoso que encontrar e conhecer as pessoas que só estão tentando viver suas vidas. Plantando, ensinando, e até gerenciando economias em que ninguém tem poder. É por isso que sou um anarquista.” – Benjamin Zephaniah

Como a arquitetura pode nos ajudar com a adaptação à pandemia: o vírus não é só uma crise de saúde, mas de design

Texto por Kim Tingley, originalmente publicado no New York Times em junho de 2020, traduzido semi-automaticamente com o auxílio do DeepL.

A última aula que Joel Sanders deu pessoalmente na Escola de Arquitectura de Yale, no dia 17 de Fevereiro, aconteceu na ala moderna da Galeria de Arte da Universidade de Yale, uma estrutura de tijolo, betão, vidro e aço que foi concebida por Louis Kahn. É amplamente aclamada como uma obra-prima. Uma parede longa, virada para a Rua Chapel, não tem janelas; virando a esquina, há uma parede curta que é só janelas. A contradição entre opacidade e transparência ilustra uma face da tensão fundamental dos museus, que por acaso foi o tema da palestra de Sanders nesse dia: Como pode um edifício guardar objetos preciosos e também exibi-los? Como mover massas de pessoas através de espaços finitos de modo a que nada – e ninguém – seja prejudicado?

Durante todo o semestre, Sanders, que é professor em Yale e também dirige o Joel Sanders Architect, um estúdio localizado em Manhattan, tinha pedido aos seus alunos que pensassem num desafio do século XXI para os museus: tornar as instalações que foram frequentemente construídas há décadas, se não séculos, mais inclusivas. Tinham realizado workshops com os funcionários da galeria para aprender como o emblemático edifício poderia satisfazer melhor as necessidades do que Sanders chama “corpos não conformes”. Com isto ele se refere a pessoas cuja idade, sexo, raça, religião ou capacidades físicas ou cognitivas as colocam frequentemente em desacordo com o ambiente construído, que é tipicamente concebido para pessoas que encarnam normas culturais dominantes. Na arquitetura ocidental, Sanders salienta que “normal” foi explicitamente definido – pelo antigo arquitecto romano Vitruvius, por exemplo, cujos conceitos inspiraram o “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci, e, no tempo de Kahn, pelo “Homem Modulador” de Le Corbusier – como um homem branco jovem e alto.

Quando a crise do coronavírus levou Yale a fazer aulas online, o primeiro pensamento de Sanders foi: “Como você faz o conteúdo de sua classe parecer relevante durante uma pandemia global? Por que deveríamos estar falando de museus quando temos assuntos mais urgentes para falar”? Fora do campus, os ambientes construídos e a forma como as pessoas se moviam neles começaram a mudar imediata, indireta e desesperadamente. As mercearias ergueram escudos de plexiglass em frente aos registros e colocaram adesivos ou linhas adesivas no chão para criar um espaçamento de seis pés entre os clientes; como resultado, menos compradores cabem com segurança no interior e linhas serpentearam para fora da porta. As pessoas se tornaram hiper-conscientes em relação aos outros e às superfícies que poderiam ter que tocar. De repente, Sanders percebeu que todos tinham se tornado um “corpo não conforme”. E os lugares considerados essenciais tinham que decidir quão perto deixá-los chegar uns dos outros. O vírus não era simplesmente uma crise de saúde; era também um problema de design.

As tensões criadas por determinadas pessoas interagindo com determinados espaços tem sido há muito tempo um interesse de Sanders. “Eu amo coisas bonitas, mas não estou interessado na forma por si”, diz ele. “O que conta é a experiência humana e a interação humana, e como a forma facilita isso”.

O início de sua carreira coincidiu com a crise da AIDS em Nova York. Aquela época, quando, como homossexual, ele se sentia indesejado ou ameaçado em espaços públicos, informou seu ethos de design. Seu portfólio inclui residências com plantas abertas e flexíveis que permitem que as pessoas assumam diferentes papéis – uma área sentada poderia ser usada para trabalho ou lazer, digamos – e adotem arranjos familiares não tradicionais. Cerca de cinco anos atrás, quando a discussão sobre se as pessoas transgêneros deveriam ter o direito de usar banheiros públicos correspondentes à sua identidade de gênero se tornou notícia nacional, Sanders ficou impressionado com o fato de que “ninguém falava sobre isso do ponto de vista do design”, diz ele. “Todos presumiram e aceitaram banheiros segregados por sexo”. Como, ele se perguntava, teríamos acabado com os banheiros masculinos e femininos em primeiro lugar?

Enquanto trabalhava em um artigo com Susan Stryker, professora de estudos de gênero e mulheres na Universidade do Arizona, ele soube que o banho público tinha sido uma atividade coletiva em vários pontos da história; assim era a defecação, que, quando não acontecia na rua ou envolvia um vaso, às vezes acontecia em uma instalação comunitária separada. Somente com o advento da canalização interna e dos sistemas de saneamento municipal no século XIX é que os banhos e a eliminação começaram a se unir. Segundo o estudioso jurídico Terry Kogan, os primeiros banheiros internos que eram específicos para cada sexo e abertos ao público apareceram nos EUA em meados do século XIX, onde eram extensões de espaços de salão separados para homens e mulheres.

Segregar os banheiros por sexo claramente não era um imperativo biológico. Isso expressava os papéis sociais de homens e mulheres na época vitoriana. E se, perguntaram Sanders e Stryker, você em vez disso organizasse esse espaço em torno da atividade que estava sendo realizada e quanta privacidade ela exigia? O “banheiro” inteiro poderia ser uma área sem paredes ou portas, exceto em bancas privadas próximas às costas. Atividades que requerem menos privacidade, como lavagem das mãos, poderiam ser localizadas em uma zona central, abertamente visível. “Você poderia fazer do banheiro um espaço que não fosse uma sensação de perigo elevado, porque há uma porta fechada e alguém que não deveria estar lá está lá”, diz Stryker, que é transgênero.

Uma maior visibilidade, eles esperavam, tornaria os banheiros mais seguros para as mulheres transexuais, que correm maior risco de violência ali. Sanders também começou a encontrar outros para quem estes espaços significavam ansiedade constante por uma série de razões: usuários de cadeiras de rodas, aqueles que auxiliam pais idosos ou crianças pequenas, muçulmanos fazendo abluções, mulheres amamentando. Ele percebeu como sua própria perspectiva era limitada, assim como a dos clientes que ele normalmente consultava sobre seus projetos. “Você precisa ter a experiência viva do usuário final”, disse-me ele. “Isso é o que arquitetos como eu nunca foram treinados para fazer e nós não somos bons nisso”.

Em 2018, Sanders, Stryker e Kogan publicaram suas pesquisas e protótipos para banheiros multiusuário e multigêneros em um site como parte de uma iniciativa que eles chamaram de “Paralisados!” Na mesma época, Sanders formou um novo ramo de sua firma chamado MIXdesign para funcionar como um grupo de reflexão e consultoria. O objetivo era identificar aqueles cujas necessidades raramente foram consideradas na arquitetura – que poderiam até estar evitando espaços públicos – e colaborar com eles em recomendações que os projetistas poderiam usar para tornar os edifícios mais acolhedores para o maior número de pessoas possível.

O caos que o Covid-19 trouxe a lugares outrora familiares emprestou uma urgência a esta missão: A MIX poderia usar a abordagem que estava desenvolvendo para imaginar espaços não apenas para uma maior variedade de indivíduos, mas para uma realidade inteiramente nova?

A arquitetura tem que mediar entre as necessidades percebidas do momento versus as necessidades desconhecidas do futuro; entre as necessidades imediatas de nossos corpos e o desejo de criar algo que superará as gerações passadas. Na medida em que locais públicos começam a reabrir, as autoridades estão se esforçando para dar conselhos sobre como adaptá-los para uma pandemia. Em 6 de maio, o Instituto Americano de Arquitetos divulgou pela primeira vez orientações com o objetivo de “fornecer uma série de medidas gerais de mitigação a serem consideradas”, tais como mover atividades para fora e reconfigurar móveis para manter as pessoas mais distantes dentro de casa. É muito cedo para dizer como os arquitetos repensarão aspectos mais permanentes dos projetos em andamento. “Acho que há muitos prognósticos acontecendo”, diz Vishaan Chakrabarti, o fundador do escritório de arquitetura PAU e o novo reitor da Universidade da Califórnia, Berkeley, College of Environmental Design. Chakrabarti foi o diretor de planejamento para Manhattan na era Bloomberg depois do 11 de setembro. “Muitos dos prognósticos de então não envelheceram bem”, disse-me ele. “As pessoas disseram que nunca mais haveria arranha-céus e que as cidades estavam mortas”. Em vez disso, o que mudou foi o aumento da vigilância e da segurança.

Sanders e MIX têm uma série de comissões ativas que estão apenas começando a revisar para torná-las compatíveis com a Covid: Uma renovação do Clube SoCal, uma iniciativa de alcance da Fundação de Saúde Masculina em L.A. que busca envolver jovens gays e transexuais de cor no atendimento médico, está em andamento, empreendida com uma empresa local; uma possível remodelação da porta de entrada do Museu Queens está em fase preliminar.

Ao invés de responder com barreiras ou sinais temporários, Sanders está tentando usar o processo de pesquisa da MIX para chegar a projetos que minimizem a propagação do coronavírus e atraiam diversos usuários. Isto, ele espera, resultará em edifícios que perduram, quer uma vacina esteja ou não disponível. “O MIX está realmente liderando o caminho neste conjunto particular de questões”, disse-me Rosalie Genevro, diretora executiva da Architectural League of New York. “Há muitas pessoas rapidamente tentando pensar sobre o espaço na era Covid. O MIX tem o compromisso mais explícito que vi até agora para garantir que o pensamento seja o mais inclusivo possível”.

Logo após a fundação do MIX, Sanders abordou Eron Friedlaender, médica pediátrica de emergência médica no Hospital Infantil da Filadélfia. Do Museu Queens, Sanders soube que pessoas com autismo achavam o átrio principal – um espaço aberto e reverberante – especialmente perturbador. Friedlaender tem um filho adolescente com autismo, e ela estava procurando maneiras de tornar as instalações de saúde mais acessíveis a outras pessoas do espectro, que muitas vezes as acham avassaladoras. Como resultado, eles procuram serviços médicos com menos freqüência do que seus pares e ficam mais doentes quando aparecem. Quando o grupo MIX começou a falar sobre a pandemia, em uma chamada de vídeo, a sobreposição entre a ansiedade que todos sentiam nos espaços públicos e a ansiedade que as pessoas com autismo já sentiam nesses mesmos ambientes era marcante. E as conseqüências também foram semelhantes. Friedlaender observou que hospitais em todo o país, incluindo suas Urgências, tinham visto uma queda acentuada em seu número total de pacientes, que, eles acreditam, ainda estão passando pelos mesmos problemas de saúde, mas estão com muito medo de entrar.

O isolamento que as pessoas sofriam enquanto se abrigavam em casa também era familiar a ela, disse ela em uma reunião da MIX. As pessoas com autismo freqüentemente experimentam a solidão, em parte porque a proximidade com os outros tende a deixá-los desconfortáveis, o que muitas vezes as afasta de lugares com muita gente. De sua perspectiva, “você pode estar fisicamente distante” – mantendo o espaço entre os corpos, disse-me ela – “e mais engajado socialmente”.

Esse aparente paradoxo ressoou com Hansel Bauman, outro membro da MIX, por uma razão diferente, ele disse ao grupo. Como o antigo arquiteto do campus da Universidade Gallaudet, uma instituição para estudantes surdos com deficiências auditivas, ele precisava dobrar qualquer quantidade de espaço normalmente destinado a ouvir pessoas – para dar mais espaço entre os estudantes para que eles usassem a língua de sinais. Na Gallaudet, Bauman trabalhou com estudantes e professores para criar o DeafSpace, um conjunto de princípios de design que levava em conta suas necessidades; eles fizeram isso filmando corredores e refeitórios, por exemplo, e observando centenas de horas de interações lá. “Os cantos do mundo da audição”, disse ele, não são projetados “para antecipar visualmente o movimento dos outros”. O som comunica às pessoas ouvintes quando alguém está vindo – e no passado não importava tanto se elas não percebessem e esbarrassem umas nas outras. “No mundo Covid, você esbarra em alguém que vem virando a esquina sem máscara”, prosseguiu Bauman, “e de repente há uma infecção potencial”. As recomendações do DeafSpace muito provavelmente ajudariam: “Linhas estratégicas de visão; o uso da cor e da luz como meio de encontrar o caminho”. Promover um movimento mais eficiente e menos reativo era, disse ele, o tipo de coisa “com que temos lutado no DeafSpace nos últimos 15 anos”.

Parecia que o design que promove o distanciamento social pode realmente tornar os espaços mais hospitaleiros universalmente. Mas era mais difícil adivinhar qual poderia ser o efeito geral de outras acomodações Covid. “Uma coisa que tem sido interessante, pois cada vez mais artigos estão sendo escritos sobre a Covid – eles não querem mais secadores de mão”, observou Seb Choe, diretor associado da MIX, durante uma reunião de design no final de maio. “Porque os secadores sopram germes ao redor da sala”. O grupo havia acrescentado grandes janelas a um de seus protótipos para desinfetar superfícies com luz solar, mas Bauman apontou que o encandeamento dificultaria a visão recíproca das pessoas, tornando especialmente difícil a comunicação dos usuários surdos e fazendo com que todos se aproximassem potencialmente. Ele sugeriu acrescentar, entre outras coisas, uma saliência lá fora para a sombra.

Choe apontou uma notícia naquele dia que enfatizou novamente a orientação de que o vírus não é transmitido tão facilmente através do contato superficial quanto através do ar. Talvez o sol não fosse mais tão prioritário? De fato, na semana seguinte, em uma operação do Washington Post, Joseph Allen, o diretor do programa Edifícios Saudáveis da Escola de Saúde Pública T.H. Chan de Harvard, pediu janelas abertas e melhor ventilação e sugeriu que 3 metros entre as pessoas seria melhor do que 6 metros.

“Este é o enigma”, disse Sanders. “Como você atira num alvo em movimento desse? Você não quer se prender numa decisão ruim”. E suponha que a forma como o coronavírus é transmitido poderia ser perfeitamente entendida e evitada – isso mudaria a hesitação que as pessoas sentem em andar de elevador juntas ou usar telas sensíveis ao toque? Os projetistas poderiam ter que conciliar a ciência estabelecida com o mal-estar persistente das pessoas.

Ajudar os clientes a articular como um projeto os faz sentir, e por quê, é notoriamente desafiador. “A maneira como os arquitetos conseguem que as pessoas nos digam o que pensam sobre um espaço é passeá-las pelo espaço e dizer: ‘O que você acha? Ou mostramos-lhes fotos”, disse-me Sanders. Ele queria envolver as pessoas com autismo em seu processo de projeto, em parte para aprender outras maneiras de colocar essas perguntas.

Em janeiro, juntamente com Bauman e Friedlaender, Sanders reuniu um grupo de especialistas, incluindo Magda Mostafa, uma arquiteta baseada no Cairo e a autora de “ASPECTOSS DO Autismo” [Autism ASPECTSS], um conjunto de diretrizes de design, para discutir formas de entender como as pessoas com autismo se sentem em relação ao seu ambiente. Em maio, eles se encontraram novamente, junto com pesquisadores do Centro de Autismo e Neurodiversidade do Hospital Universitário Jefferson na Filadélfia, para continuar essa discussão, enquanto consideravam como o coronavírus poderia impactar seu trabalho. “Minha preocupação”, disse Friedlaender, “é que as pessoas com autismo não sabem necessariamente como articular o que estão pensando”. Acho que não podemos depender apenas de suas palavras”.

O grupo começou a pensar em várias formas de engajar pessoas com autismo no processo de projeto. Talvez os participantes pudessem experimentar espaços usando a realidade virtual enquanto os pesquisadores monitoravam suas reações físicas. Sanders se perguntou em voz alta se esta também poderia ser uma maneira útil de trabalhar com outros grupos focais em designs que abordassem preocupações da pandemia. O Museu Queens estava planejando organizar uma dança para as pessoas de um centro de idosos para ver como regiam ao espaço; agora grandes reuniões são perigosas, e o museu está sendo transformado em um centro de distribuição de alimentos.

“Quando penso em um espaço que é bom em relação à covid, penso em um que pode ser fechado rapidamente”, disse ao grupo Joseph McCleery, um pesquisador de autismo da Universidade St. Joseph. “Você tem coisas que estão disponíveis que talvez estejam no porão, mas que podem ser retiradas rapidamente”.

“Flexibilidade e agilidade do espaço, mas também compartimentação do espaço”, disse Mostafa. Seus projetos incluem cápsulas de fuga de áreas de alto tráfego que podem servir como uma fuga para aqueles que se sentem superestimulados. “Mas”, observou ela, “eles também criam espaços com circulação de ar diferente, ocupados por menos pessoas”.

Ouvindo-os descrever várias abordagens para estarmos juntos enquanto permanecemos separados, foi fácil ver como pessoas com autismo, e outros grupos que enfrentaram dificuldades no ambiente construído, estão em uma posição especial para identificar soluções criativas para os desafios espaciais que o vírus representa – e para sugerir melhorias para as falhas de design generalizado que ninguém mais identificou ainda. Talvez o Covid possa inspirar colaborações mais amplas.

Mas o medo também tem o potencial de desencadear respostas reacionárias. Sanders enfatizou esta preocupação cada vez que falávamos. Ele teme que o financiamento destinado à expansão da inclusão seja desviado para tornar as instalações existentes mais seguras para aqueles a quem já privilegiam. Ao longo da história, ele observou que o ambiente construído tem refletido e reforçado a desigualdade ao separar fisicamente um grupo de outro, muitas vezes no suposto interesse da saúde ou segurança. Os banheiros somente para mulheres, assim designados pelos homens, supostamente preservaram sua inocência e castidade; os banheiros somente para brancos separaram seus usuários de pessoas negras supostamente menos “limpas”. Não é coincidência que o Covid-19 tenha adoecido e matado desproporcionalmente membros de grupos demográficos – pessoas negras, indígenas e latinas; que são desabrigadas; que são imigrantes – que têm sido alvos de segregação sistêmica, o que aumentou sua vulnerabilidade. Também não é difícil imaginar a pandemia, e o risco relativo de infecção de uma pessoa, sendo usada para justificar novas versões destas práticas discriminatórias. “Quem será demonizado?” disse Sanders. “Não devemos” – ele bateu no que parecia uma mesa de vidro para enfatizar – “repetir os erros do passado”.

Mabel O. Wilson, professora de arquitetura e Estudos Afro-Americanos e da Diáspora Africana na Universidade de Columbia, acha que a covid “poderia ser alavancada para lembrar às pessoas que muitas pessoas não se sentem confortáveis em público”. Mas isso não significa que ela será. “Meu senso é que o que vai acontecer é que, ter salas limpas, ter maior circulação de ar, vai ser a competência dos ricos que podem pagar por isso em suas casas”, diz ela. “Será determinado pelo mercado e não necessariamente será um bem público”.

Um futuro no qual nos misturamos novamente é difícil de prever agora. No nível mais básico, o que deve acontecer para que a sociedade retome é isto: você se aproxima da porta de um edifício, abre e passa por ela e navega até um destino dentro dela. Os arquitetos chamam esta série de etapas críticas de “seqüência de entrada”, uma viagem através da qual uma pessoa está decidindo se deve sair ou ficar. No final de maio, Marco Li, um associado sênior da MIX, criou planos e renderizações em 3-D de uma seqüência de entrada em um hipotético prédio do campus que incorporou algumas das idéias do grupo para adaptações pandêmicas. Ele as mostrou para Sanders, Bauman e Choe por teleconferência. Eles tinham convidado um colaborador frequente, Quemuel Arroyo, que é um ex-chefe especialista em acessibilidade do Departamento de Transportes da cidade de Nova York e um usuário de cadeira de rodas, para criticá-los durante uma chamada de vídeo. Os protótipos tinham o objetivo de provocar uma discussão sobre como eles poderiam repensar as seqüências de entrada nas universidades, bem como nos museus e estabelecimentos de saúde. “O que os arquitetos fazem bem”, disse-me Choe, “é fornecer imaginação em termos de projetar algo que não existe. Uma vez que as pessoas o vejam, podem falar sobre isso”.

Depois da porta principal, em um vestíbulo, as rotas de entrada e saída unidirecionais foram mediadas por um plantador. Cada lado tinha uma estação de higienização manual ao longo da parede. Uma segunda porta interior separava esta zona de transição do resto do edifício. Uma vez dentro, o visitante encontra um amplo vestíbulo. Do outro lado, diretamente à frente, um balcão de informações foi posicionado de trás para a frente com um banco de armários. Atrás dessa divisória, havia cubículos-banheiro multigênero; salas, com chuveiros, que podiam ser usadas por cuidadores, mães que amamentam e até mesmo por pessoas que se deslocam de bicicleta; e salas de oração e estações de lavagem de pés para práticas religiosas. Os lavatórios ativados por movimento encostam ao passadiço. O espaço agora é mais um “centro de bem-estar” do que um “banheiro”, disse Sanders – então eles decidiram colocá-lo bem na frente em vez de escondê-lo.

Ao longo de todo o saguão foram delimitadas “zonas calmas”, marcadas por um piso de cor e textura diferentes, com opções flexíveis de assentos. “Torna-se particularmente importante com o covid diferenciar os corpos em repouso dos corpos em movimento”, disse Sanders, para que as pessoas não se chocassem umas com as outras. “A definição dessas áreas por intensidade de cor permite que as pessoas localizem onde elas precisam estar no espaço”. Alguém que está evitando um obstáculo, ou que está confuso ou perdido, causa uma ondulação de movimentos imprevisíveis em outros. “O distanciamento social não são pessoas paradas no espaço em uma linha pontilhada na mercearia”, Bauman havia observado anteriormente. “É uma situação dinâmica”.

Arroyo perguntou sobre a demarcação textural entre as áreas onde as pessoas andam e onde elas se sentam. Sanders explicou que os usuários cegos podiam senti-los com uma bengala. “Estas bordas detectáveis são chanfradas?” perguntou Arroyo. “A maioria das pessoas em cadeiras de rodas odeia isso. Certifique-se de que essas áreas são detectáveis, mas que não ofereçam perigo de tropeçar”. Ele também observou que nenhum dos lavatórios de banheiro era suficientemente baixo para uma pessoa sentada. “Em um mundo de Covid e germes sendo compartilhados, o que mais me irrita são superfícies planas, porque a água se acumula”, disse ele. Quando ele chegou à torneira, a água parada pingou no seu colo e molhou suas mangas.

Por um momento, me identifiquei: levar meu filho de 5 anos de idade a um banheiro público quase sempre faz com que sua camisa fique ensopada. Eu tinha imaginado que pais melhores que eu conseguiam evitar isso de alguma forma. O alívio que senti ao saber que isto era um problema para outra pessoa – que a culpa poderia ser da pia, não minha – foi instrutivo ao pensar no trabalho de Sanders, que no papel nem sempre parece tão diferente dos lugares que habitamos agora.

“A missão de Joel para a MIXdesign é tornar ambientes inclusivos tão inevitáveis que ficam invisíveis”, diz Deborah Berke, reitora da Escola de Arquitetura de Yale e fundadora de uma empresa de design epônimo em Manhattan. “Visível é colocar uma rampa do lado de fora de um edifício e dizer: ‘Pronto, está acessível’. O invisível é ter um prédio que ninguém vê como adaptado. Ele simplesmente funciona para todos”.

Quando não percebemos o ambiente, este está silenciosamente afirmando nosso direito de estar lá, o nosso valor para a sociedade. Quando o fazemos, muitas vezes é porque ele está nos dizendo que lá não é o nosso lugar. Essas mensagens podem ser tão sutis que não as reconhecemos pelo que elas são. “Caminhamos sonâmbulos pelo mundo”, disse-me Sanders. “A não ser que o interior de um edifício seja marcadamente diferente ou luxuoso ou incomum, nós não estamos cientes disso”. A covid, ele acrescentou, “está forçando todos nós a estarmos conscientes de como o design dita como experienciamos o mundo e uns aos outros”.

Jovens não odeiam seus corpos porque são fracos, mas porque isso é uma exigência do capitalismo

Da gordura bucal à celulite, qualquer coisa naturalmente humana que possa ser transformada num problema cria um mercado por soluções.

por Zoe Williams

Originalmente publicado em inglês no The Guardian em 8 de janeiro de 2023.

Quando saiu semana passada uma pesquisa sobre os problemas que jovens têm com seus corpos, as redes sociais foram o foco: o que leva 75% de crianças de 12 anos a “detestarem seus corpos” e se sentirem “envergonhadas com suas aparências”? Por que isso aumenta para insanos 80% entre jovens de 18 anos? É o Instagram ou o TikTok que está acabando com a saúde mental deles?

Há quem diga que outras coisas estão nos empurrando para o abismo, e as redes sociais são só a “gravidade”. O aumento em crises psicológicas agudas – muito maior em meninas que em meninos – se observa num estudo que compara 2021 com 2007: pensamentos suicidas em uma a cada 10 meninas de 16 anos; um quarto delas se automutila. Lockdowns e covid longa foram levantados como possíveis fatores. Entre jovens não-bináries, as taxas são ainda piores: 61% se automutilam e 35% já tentaram suicídio. A causa mais imediata disso pode ser a incessante campanha da direita e de parte da mídia contra elus.

Certamente poderíamos dizer que redes sociais e todos esses problemas em geral estão agindo como aceleradores, e também que passar da infância à idade adulta nunca foi fácil. Mas não chegaremos à raiz do nojo específico que meninas sentem por si mesmas até encararmos as condições nas quais elas vivem. Essas não foram inventadas pelo Mark Zuckerberg, e culpar um patriarcado atemporal é muito genérico.

A mensagem mais forte passada para meninas jovens – por propagandas, tias, professores, pais, o rosto culturalmente representado de seus pares – é um bando de clichês sobre sentir-se bem com seu corpo: cada um é de um jeito, ame o seu corpo, ame a si mesma, não fique neurótica mas não coma demais também. Encontramos uma versão destilada disso na campanha Retratos da Real Beleza, veiculada pela Dove no Brasil no começo dos anos 2010, que visava “incentivar meninas e jovens mulheres a ganharem confiança” – um objetivo nobre que até gente de direita por aí abraçava. Esse é o tom da conversa há tanto tempo que não consigo me lembrar de outra coisa, embora ele tenha mudado de forma através dos tempos em termos de “comidas heroicas” (fibras nos anos 80, proteínas nos 90, sementes e cascas nos anos 2000, etc.) e palavras da moda para figuras corporais (cheinha, com muitas curvas, fortona): veja seu corpo como um veículo para o seu próprio bem-estar! Não há nada de intrinsecamente errado com nada disso, exceto que isso é tudo mentira.

É impossível exagerar a quantidade de aprovação social que você recebe ao ser magra. As pessoas sentem uma vontade enorme de fazer comentários sobre isso, o tempo inteiro, e todos esses comentários são positivos, mesmo aqueles que parecem ser negativos (me lembra aquela piada de que o maior elogio é “você está magra demais!”). Aliás, nem preciso dizer – as pessoas te convidam para as coisas do nada, te levam mais a sério, seus problemas têm mais dignidade. E existe uma desaprovação, tão intensa quanto, sobre ser gorda. A única diferença é que as pessoas não dizem isso em voz alta. Mas vai até parecer que dizem, porque você vai sentir os efeitos disso: as pessoas não te chamam pra fazer coisas aleatórias, você não é contratada, seus problemas não são levados a sério. De fato, numa lógica circular, a mensagem costuma ser a de que se você não fosse tão gorda, não teria esses problemas pra começo de conversa, como se a obesidade significasse que não há mais nenhum problema legítimo na sua vida a não ser o seu peso.

A obesidade é tratada como se fosse algo muito simples, uma falta de controle perto de comida. Na verdade, ela tem componentes psicológicos e emocionais que são complexos e esmagadores e que, aliás, têm fascinado priscoanalistas e feministas por anos. Esse trabalho simplesmente nunca é financiado ou divulgado porque não se encaixa na narrativa de que excesso de peso é o lado visível de uma série de traços de personalidade, a maioria negativa (preguiça, ignorância) ou indicativa de frivolidade.

Então você tem esse tripé: a mensagem explícita é “não tente ser magra, tente ser saudável”; a mensagem implícita é “ser magra é até melhor que ser bonita; magreza é beleza, feminilidade e disciplina juntas”; e o gritinho do nosso cérebro primitivo coletivo é: “ser gorda é nojento e indigno”. Dizer para as meninas que elas não devem se preocupar com seus corpos é como dizer para elas para não se preocupar se vão gostar delas.

Eu pensei sobre isso por muitos anos por conta de mim mesma e agora por causa das minhas adolescentes, e eu não acho que atacar o nosso “ódio próprio” é uma questão de resiliência individual ou crença. É uma questão de capitalismo. Num sentido bem direto, basta criar pânico sobre celulite pra vender meia-calça. Você está se sentindo ansiosa sobre as suas bochechas gordinhas? Dê-lhe bichectomia. Qualquer coisa naturalmente humana que possa ser transformada num problema cria um mercado por soluções. Mais fundamentalmente, mercados de massa dependem de homogeneidade, da fórmula fordista, qualquer-tipo-de-corpo-desde-que-magro. Não tem como monetizar desejo a não ser que o desejo de todo mundo seja o mesmo, então você precisa de um ideal físico bem específico. A moda, com sua busca pelo novo, experimenta um pouco de vez em quando – daqui a pouco estaremos falando de implantes glúteos – mas ela sempre devolve o padrão para “magro”. E o problema de fundo continua o mesmo: é humanamente impossível termos corpos iguais.

A razão para meninas sofrerem mais que meninos (embora esses nem de longe estejam imunes) você provavelmente vai encontrar na análise feminista dos anos 80: o mundo gosta mais das mulheres quando elas ocupam menos espaço. É um erro constante caracterizar garotas e jovens mulheres como “vulneráveis”. Elas não enfrentam questões com seus corpos e de saúde mental porque são frágeis ou fracas. Elas dão uma resposta absolutamente racional para um mundo que as bombardeia histérica e incansavelmente com demandas contraditórias. Eu não tenho resposta melhor pra tudo isso que “anarcafeminismo”.

Veja a resposta / o complemento a este texto que escrevi junto com Ruth Kinna (original em inglês)

Piotr Kropotkin: bem-estar para todos e todas, por Ruth Kinna

Este artigo, cujo título original em inglês é “Peter Kropotkin: well-being for all”, foi publicado pela primeira vez em português, pois Ruth Kinna o escreveu para esta edição especial da revista sobre Kropotkin, e eu fiquei responsável por traduzi-lo.

Ruth Kinna é professora de teoria política na Loughborough University, editora do jornal Anarchist Studies [Estudos Anarquistas] desde 2007, e autora de vários livros sobre anarquismo e anarquistas, incluindo: Anarchism: A Beginner’s Guide [Anarquismo: Guia para Iniciantes] (2009), Kropotkin: Reviewing the Classical Anarchist Tradition [Kropotkin: Revisando o Anarquismo Clássico] (2017), e The Government of No One [O Governo de Ninguém] (2019).

Piotr Kropotkin é mais conhecido por seu conceito de apoio mútuo e sua defesa do anarcocomunismo. No primeiro caso, ele é geralmente apresentado como cientista, naturalista e/ou filósofo da ética; o anarquista que “provou”, no fim do século XIX, que a natureza se ordena por hábitos de cooperação instintivos e ambientalmente condicionados, em vez de se resumir a “dentes e garras sangrentas”, como diziam darwinistas sociais. No segundo, Kropotkin aparece como um teórico da política, um estrategista; líder do trio completado por Carlo Cafiero e Elisée Reclus, que convenceu o Congresso de 1880 da Federação de Jura a fazer do comunismo seu objetivo revolucionário.

É raro que alguém ligue os dois pontos da obra de Kropotkin e, no entanto, eles são igualmente essenciais para o que ele chamava de “bem-estar para todos e todas”. Esse conceito, mero rascunho em seus textos, destaca tanto sua abordagem econômica holística quanto sua crença no poder transformador das ideias.

Apoio mútuo e comunismo

Hoje, tanto o apoio mútuo quanto o comunismo são comuns no pensamento de anarquistas, mas eles foram absorvidos em seus discursos políticos com diferentes graus de entusiasmo. Sem provocar muita controvérsia, “apoio mútuo” tornou-se palavra-chave para comunistas libertários logo depois que Kropotkin começou a falar dele na década de 1880, se não antes. “Comunismo” ganhou força nos movimentos anarquistas mais devagar e provocou bastante debate. Nenhum conceito tinha um significado claro ou preciso. Kropotkin descrevia o “apoio mútuo”, por exemplo, como um fator negligenciado da evolução, e o usou de duas formas: para descrever a capacidade cooperativa de indivíduos e para classificar tipos ou níveis de sistemas sociais; ele o usou tanto para analisar as forças sociais que promoviam ou atuavam contra sociedades de apoio mútuo quanto para explorar uma ética antiautoritária “sem obrigações”, que viesse da auto-organização cooperativa. Mas a confusão sobre o termo “comunismo” causou mais dificuldade para anarquistas que a flexibilidade da ideia de apoio mútuo.

Anarquistas se afastavam do comunismo por duas razões. Uma era que a palavra cheirava a autoritarismo. Essa impressão começou já na década de 1840, quando Pierre-Joseph Proudhon rejeitou o comunismo como um tipo monástico e autoritário de socialismo, uma doutrina de igualdade realizada através de ditaduras. No rescaldo da Revolução Francesa, “comunismo” lembrava conspirações, jacobinismo e o terror. Em segundo lugar, “comunismo” se ligava ao princípio de “distribuição conforme a necessidade” e, portanto, à realização de um programa socioeconômico que, para alguns, parecia diluir o impulso libertário do anarquismo. Era assim que alguns anarquistas espanhóis entendiam a posição anarcocomunista. Da perspectiva deles, era menos uma questão de princípios que uma limitação doutrinária. Eles defendiam o “anarquismo sem adjetivos” e o abandono de todos os sufixos, para mostrar que não queriam determinar demais os objetivos revolucionários. Mais tarde, a pró-feminista Voltairine de Cleyre seguiu essa linha, dessa vez considerando as consequências políticas das posições rivais “individualista” e “comunista”. Ela argumentou que ambos os tipos de “economia” podiam ameaçar a liberdade igualitária.

O impulso anticomunista de Proudhon era forte na Federação de Jura. Em 1871, no ápice dos duros debates entre Mikhail Bakunin e Karl Marx, na Primeira Internacional, os seguidores “antiautoritários” de Bakunin se chamavam “coletivistas”, não “comunistas”. Para bakuninistas, estas não eram só correntes rivais dentro do socialismo; elas eram incompatíveis. Uma apontava para uma federação descentralizada e ações localmente determinadas, e a outra, para a organização centralista, um programa revolucionário detalhado e uma organização partidária. Kropotkin e seus aliados argumentaram que não era bem assim: embora as diferenças entre “antiautoritários” e “autoritários” eram reais e insuperáveis, os rótulos passavam uma falsa impressão.

Kropotkin começava dizendo que socialistas se comprometiam com um mesmo princípio anticapitalista: a posse coletiva. Mas sua preocupação era que socialistas marxistas na verdade prejudicavam esse projeto ao usar sistemas governamentais de Estado para fazer a coletivização. Esses socialistas discutiam estratégia – se deviam ser reformistas ou insurrecionários – mas imaginavam que a coletivização seria a transferência de poder institucional e a introdução do planejamento socialista: “eletrificação + poder dos sovietes”, como dizia Lenin n’O Estado e a Revolução. “Socialistas científicos” – aqueles que defendiam a teoria da história de Marx – também esperavam por uma fase de “transição”; um período em que planejadores ficariam definindo os detalhes de seus esquemas igualitários, especificamente como fazer uma economia baseada no trabalho virar uma economia que atende necessidades. De qualquer forma, a ação revolucionária de massa era apenas um catalisador da transformação social. O governo revolucionário é que era a forma correta de trocar o capitalismo pelo socialismo.

No anarquismo, argumentava Kropotkin, a coletivização seria feita independentemente da máquina política existente, pela expropriação direta de terra e de recursos e pela criação de novas instituições comunais. O objetivo era evitar o governo revolucionário e a reafirmação do controle estatal. De acordo com preceitos anarquistas, o objetivo revolucionário era facilitar a transformação de instituições políticas que possibilitavam a exploração econômica, não utilizar essa infraestrutura para prover igualdade por dentro do Estado. Não fazia sentido revolucionar relações econômicas deixando estruturas políticas intactas. Em 1919, Kropotkin disse isso para Lenin, chamando de autocrático e destrutivo seu projeto de inundar as organizações revolucionárias com trabalhadores partidários em nome do iluminismo político.

O argumento de Kropotkin para a Federação de Jura era estratégico: enquanto “antiautoritários” continuassem se chamando de “coletivistas” em vez de “comunistas”, as pessoas não iriam entender como sua concepção de revolução era diferente. Em outras palavras, era muito fácil confundir o coletivismo com modelos marxistas ou social-democratas de coletivização. Embora Marx tinha reivindicado o “comunismo” quando escreveu o Manifesto em 1848, Kropotkin acreditava que o “comunismo” entendido corretamente tinha a ver com a ação direta descentralizada vista na Comuna de Paris em 1871. No ano em que Apoio Mútuo foi publicado pela primeira vez em forma de livro, Kropotkin voltou ao seu debate com James Guillaume, companheiro próximo de Bakunin, na Federação de Jura. Em 1902, ele disse a Guillaume que em 1880 ele acreditava que associar o socialismo em geral ao princípio de posse coletiva era perigoso, pois apagava as diferenças entre os coletivismos autoritário e antiautoritário, e que só “comunismo” podia deixar clara a determinação anarquista de coletivizar ao “tornar comum”. Ele reconheceu que a mudança de nomes criou tensões no movimento anarquista, mas não achava que isso mudava sua posição política. Sendo comunista, Kropotkin também defendia o princípio de distribuição de acordo com as necessidades, uma posição que o colocava contra anarquistas individualistas e propositores do “anarquismo sem adjetivos”. Mas sua rejeição quanto a recompensas individuais era um argumento acerca da melhor defesa institucional do coletivismo contra o ressurgimento do monopólio, não sobre o princípio de posse comum. Em princípio, dizia ele, a adoção anarquista de “comunismo” tinha tudo a ver com a crítica anticomunista de Proudhon e a posição “coletivista” de Bakunin.

Kropotkin argumentou que mudanças no socialismo europeu, especificamente o surgimento da social democracia marxista no final do século XIX, confirmou que ele estava certo. Em 1902, Kropotkin confessou a Guillaume estar mais incerto que nunca sobre o futuro do socialismo anarquista e da revolução libertária. Trabalhadores erravam ao apostar suas fichas em charlatões partidistas e ao apoiar amplas nacionalizações econômicas. Isso não era comunismo, mesmo que seus defensores fizessem discursos a favor da distribuição de acordo com as necessidades. O programa coletivista social democrata alterou a base da propriedade, mas reforçou o princípio de propriedade, e ainda por cima aumentou o poder monopolizador do Estado. O coletivismo acabava sendo a distribuição de acordo com a burocracia. Kropotkin chamava isso de “socialismo de estado” e, reavivando a terminologia de Bakunin, “autoritário”. Continuando a defender a expropriação direta da terra e dos recursos e a criação de novas associações comunais, Kropotkin fez um novo apelo ao comunismo anarquista, descrevendo-o de forma ampla ao elaborar o conceito de “bem-estar para todos e todas”.

Bem-estar para todos e todas

‘Bem-estar para todos e todas’ foi o emblema de Kropotkin para uma nova economia. Significava o abandono das restrições produtivas artificiais a partir da determinação de preços; deixar de financiar a polícia, o judiciário, as prisões e a indústria das armas; redirecionar os recursos utilizados para fabricar produtos de luxo, que serviam para satisfazer “os gostos depravados da multidão da moda”; e repossuir a propriedade. Em essência, a ideia de Kropotkin não tinha a ver com pessoas diferentes gerenciando o sistema econômico que já existia, nem com igualar benefícios de acordo com as regras dominantes do capitalismo, mas com reformular a economia conforme princípios libertários. Kropotkin resumiu sua visão de “redesenvolvimento” econômico como o “estudo das necessidades da humanidade, e das formas econômicas para satisfazê-las”. Isso substituía a economia política, “a ciência do desperdício de energia sob o sistema de trabalho assalariado”. O redesenvolvimento do campo intelectual envolvia duas mudanças conceituais. Primeiro, as medidas de bem-estar e as avaliações sobre o crescimento humano seriam formuladas localmente por grupos e associações das comunidades: Kropotkin teria completamente rejeitado a imposição de barômetros universais como o Produto Interno Bruto (PIB). Segundo, as relações sociais seriam estruturadas por “livre acordo”.

A economia libertária naturalmente envolvia refletir sobre o que produzir e como produzir, mas ela conscientemente injetava na economia um propósito moral. Enquanto a economia política era moralizada pelo lucro e pela expansão, pela acumulação de dinheiro e pela exploração, a economia libertária era moldada pelo compartilhamento, pela generosidade e pela expressão criativa. Ela dispensava a análise abstrata de trabalho, valor, oferta e demanda, produção e consumo, e colocava no lugar os conceitos de desejo e possibilidades estimadas. Vendo no bem-estar um direito, Kropotkin o descreveu como o direito de “possuir a riqueza da comunidade”, o “fruto do labor das gerações passadas e presentes”:

E ao afirmar seu direito de viver com conforto, eles afirmam, o que é ainda mais importante, o direito de decidir por si mesmos o que esse conforto será, o que deve ser produzido para vivê-lo, e o que deve ser descartado por não ter mais valor.
O “direito ao bem-estar” significa a possibilidade de viver como seres humanos, e de educar as crianças para serem membros de uma sociedade melhor que a nossa…

A segunda proposta de Kropotkin, sobre o “livre acordo”, era o princípio social que fundamentava a economia libertária. Ele entrava no lugar do contrato, base das relações no capitalismo. O contrato retrata as partes de um acordo de forma abstrata, como indivíduos iguais, e trata seus arranjos como justos porque conclui que foram feitos livremente. Assim, contratos de emprego supõem que trabalhadores aceitaram as regras dos patrões, e leis trabalhistas foram elaboradas para determinar as disputas entre eles. As origens dessa maneira de entender os acordos estão na ideia de propriedade e no princípio de troca, que para Kropotkin se tornaram o modelo para todas as relações sociais no capitalismo, até mesmo as mais íntimas. No casamento, como no emprego, as regras eram garantidas por lei e raramente se preocupavam com a igualdade de fato: mulheres faziam votos de casamento como subalternas, dominadas por seus maridos, sujeitas à disciplina deles e dependentes de sua boa vontade. Em contraste, o livre acordo era não-individualista porque se materializava no reconhecimento de uma herança comum e de um propósito compartilhado, e era antiautoritário porque dependia da confiança. Não havia autoridade externa que garantisse um livre acordo. Tampouco havia um governo central das organizações e instituições que o livre acordo estimulava, que Kropotkin imaginava que seriam “infinitamente variadas”, resultando do “contínuo crescimento das necessidades do homem civilizado”, substituindo assim a “interferência governamental”. A referência ao “homem civilizado” talvez deixe claros os limites da tentativa de Kropotkin de reimaginar a economia; ele continuava preso a ideias de desenvolvimento por meio da exploração de recursos naturais e da limpeza da terra, ideias que não combinam muito bem com as perspectivas ecológicas de hoje em dia. Mas seus dois princípios – o livre acordo e a comunidade local julgando o bem-estar – oferecem um esquema para um conceito ajustável e flexível de comunismo libertário anarquista que ainda é relevante hoje.

Ideologia

Kropotkin dizia que o bem-estar para todos e todas não era um sonho, mas uma genuína possibilidade. Isso revela que ele sabia da qualidade utópica desse ideal. O que o tornava real? A resposta de Kropotkin era o apoio mútuo. Os três componentes essenciais do bem-estar eram compreender a capacidade humana para cooperar, ver como comunidades históricas e atuais tinham criado ambientes que permitiam a cooperação e minimizavam a luta individual pela vantagem competitiva, e, por fim, entender a sociabilidade como a mola propulsora de uma ética do cuidado e da compaixão. A teoria do apoio mútuo explicava todos os três. Kropotkin separou a adequação biológica da competição individual, analisou o desenvolvimento da sociabilidade em sociedades tribais, comunidades, cidades-Estado medievais e associações voluntárias cotidianas, correlacionando essa sociologia com uma ética da dedicação não-recíproca.

Para Kropotkin, o apoio mútuo estava embasado na ciência, mas não era a mesma coisa que o “socialismo científico” de Marx. Em vez de demonstrar como o capitalismo seria transformado, ele frisava o que era preciso para tornar a transformação do capitalismo possível. Para Kropotkin, revoluções se construíam com confiança e convicção. Os ideais e as aspirações que animavam a ação direta eram cruciais para seu sucesso. O triunfo da burguesia francesa contra os sans culottes em 1793 e o golpe bolchevique de 1917 indicavam a veracidade dessa proposta. No prefácio de 1914 a Apoio Mútuo, ele observou que apenas a primeira parte de sua tese, “a ideia de que o apoio mútuo representava um importante elemento de progresso na evolução”, tinha ganhado aceitação na comunidade científica nos doze anos desde a publicação do livro. A segunda parte, o elemento sociológico de sua tese, ainda não era geralmente aceita. Os “líderes do pensamento contemporâneo”, ele observou, insistiam que “as massas tinham pouca preocupação com a evolução das instituições sociáveis do homem, e que todo o progresso feito nessa direção se devia aos líderes intelectuais, políticos, e militares da massa inerte”. O comunismo anarquista está sempre maduro, pronto para ser mobilizado, mas é preciso escapar às noções convencionais de liderança e planejar um salto de fé para estimular a destruição do capitalismo e o bem-estar para todos e todas.

Sobre “o problema é o whatsapp”

Não, eu penso que o problema esteja com alguns desses […] colegas, loucos para fazer anúncios. E a razão pela qual isso é um problema agora é a grande disponibilidade do e-mail. E-mail é uma ferramenta maravilhosa – com frequência melhor que o telefone – para obter respostas rápidas a questões urgentes. Mas muitos devotos do e-mail o utilizam não apenas para mandar uma mensagem para alguém mas para copiar essa mesma mensagem simultaneamente para muitas outras pessoas.

Fonte: um cientista explicando, em 1998, como que a mídia deu a entender que um asteroide atingiria o planeta dali a algum tempo (em inglês).

A prefiguração interseccional divide a esquerda?

Tradução de um trecho (p. 145-150) de RAEKSTAD, P.; GRADIN, S. S. Prefigurative Politics: Building Tomorrow Today. Cambridge: Polity, 2020.

Há uma […] crítica à política prefigurativa que vale a pena discutir, já que aparece bastante por aí: a de que ela foca mais nas diferenças (de raça, gênero, sexualidade, deficiência, etc.) entre as pessoas dentro da esquerda que na unidade da classe trabalhadora, e de que isso dividiria a esquerda. Essa crítica, como a vemos, surge de uma confusão entre certas formas de política prefigurativa, especialmente as que buscam a interseccionalidade, com a proeminente tendência neoliberal conhecida como `política identitária’.

A política identitária liberal é uma abordagem moderada (isto é, não-radical) de transformação social, baseada em compromissos ideológicos liberais em sentido amplo. Ela parte da premissa de que mudanças sociais profundas e sistêmicas não são necessárias para termos uma sociedade livre, igual e democrática, porque a sociedade já está mais ou menos perto desse ideal. Movimentos sociais deveriam portanto se concentrar em fazer pequenos ajustes a leis, políticas públicas e normas sociais em vez de trabalhar por mudanças mais sistemáticas ou radicais. Admitindo que mulheres e minorias encaram obstáculos específicos no caminho pro sucesso capitalista, como discriminação, diferenças salariais e preconceito, a política identitária liberal quer dar a pessoas desses grupos as mesmas oportunidades que homens brancos da classe dominante têm de se dar bem na sociedade tal como ela é. Por exemplo, quando mulheres liberais atuam contra o teto de vidro[1] em empresas, isso é política identitária. Outro exemplo é quando antirracistas liberais dizem que o racismo acabará se houver mais políticos/as e chefes/as negros/as. A ideia é que mulheres e minorias devem ser melhor assimiladas a todas as partes da sociedade tal como a sociedade é agora, e que a discriminação deve acabar para que elas possam competir em igualdade.

Muitas críticas à esquerda argumentam que a política identitária, com seu foco na identidade pessoal e sua negação da unidade de classe, é um cavalo de Troia na esquerda. Um exemplo clássico dessa crítica pode ser encontrado na declaração do congresso internacional da Tendência Marxista Internacional de 2018[2], que descreve abordagens socialistas interseccionais como políticas identitárias que estariam fracionando e enfraquecendo a esquerda. Ao invés de unir-se enquanto trabalhadores, diz esse tipo de argumento, ativistas interseccionais insistem em ressaltar as diferentes maneiras em que as pessoas são afetadas por racismo, patriarcado e capacitismo. Isso seria fazer o jogo da burguesia, já que a esquerda não conseguiria se unir. Alguns comentaristas adicionam a esse tipo de argumento que o racismo, o machismo e o capacitismo vão simplesmente desaparecer depois da revolução, uma vez que o capitalismo que os sustenta (e os exige) seja substituído. É assim tanto desnecessário quanto contraprodutivo, por enquanto, tentar abordar qualquer outra coisa que não seja o capitalismo, de acordo com essa visão.

Essa crítica, em outras palavras, considera a política interseccional, incluindo formas interseccionais de prefiguração, divisiva, e a coloca no mesmo saco que a política identitária liberal. Há muitas coisas erradas com essa crítica: ela presume um ponto de vista branco, masculino e capacitista enquanto silencia grupos marginalizados; e ela se baseia em um grave desentendimento sobre o argumento interseccional […]. Não é a interseccionalidade que é divisiva, e sim o status quo (criticado pela interseccionalidade) que impede o desenvolvimento da solidariedade de classe. Insistir que a opressão de classe vem antes de todas as outras, e que outras formas de opressão podem ser em grande medida ignoradas até depois da revolução, deixa essas outras formas de opressão intactas dentro de movimentos e organizações. Isso, é claro, torna esses locais hostis para pessoas desses grupos marginalizados, dificultando sua participação efetiva neles e fortemente desencorajando que se aproximem deles em primeiro lugar.

A confusão entre prefiguração interseccional e política identitária não é, contudo, completamente acidental. O primeiro uso do termo ‘política identitária’ vem do socialismo negro feminista, não do liberalismo, e estava fortemente conectado a ideias que depois seriam chamadas de interseccionais. Só depois que o conceito de ‘política identitária’ surgiu na esquerda radical que liberais desenvolveram seu próprio significado para ele. Quem primeiro popularizou o termo ‘política identitária’ – ou talvez o tenha cunhado mesmo – foi o coletivo feminista negro estadunidense Combahee River. Este coletivo era abertamente revolucionário e socialista. Suas atividades incluíam trabalho educativo, grupos de conscientização, piquetes contra locais de trabalho racistas, apoio a pessoas negras perseguidas pela polícia, entre muitas outras[3]. Seu maior legado é uma declaração de 1977, que ficou famosa em parte por incluir o primeiro uso amplamente reconhecido do termo ‘política identitária’:

Sempre houve mulheres negras ativistas … compartilhando a consciência de que suas identidades sexuais combinavam-se a suas identidades raciais para tornar únicos os fatos de suas vidas e os focos de suas lutas políticas … Esse foco sobre nossa própria opressão está incorporado no conceito de política identitária. Acreditamos que a política mais profunda e potencialmente mais radical vem diretamente da nossa própria identidade, ao contrário de trabalhar para acabar com a opressão de outra pessoa. … Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo de quem trabalha e cria os produtos, e não para o lucro de patrões. … Não estamos convencidas, no entanto, de que uma revolução socialista que também não seja feminista e antirracista vai garantir nossa libertação. (ênfase adicionada) [4]

O termo ‘política identitária’ aqui se referia a pelo menos duas ideias […]: de que o pessoal é político […], e de que as diferentes estruturas hierárquicas são interligadas e co-constitutivas (em outras palavras, elas ‘interseccionam’, como Kimberlé Crenshaw viria a dizer mais tarde). A declaração também critica a ideia de que um grupo pode liberar outro em seu nome, o que pode ser lido como uma crítica tanto a vanguardas elitistas em movimentos sociais quanto a autoproclamados poderes coloniais civilizatórios do ocidente orquestrando o ‘desenvolvimento’ internacional.

O uso do termo política identitária por parte do coletivo não tinha nada a ver com a ideologia liberal. Pelo contrário, a mensagem era de que a sociedade precisa ser transformada fundamentalmente para que as estruturas hierárquicas sejam desfeitas. Essa mudança precisaria ser feita por pessoas com variadas e diferentes experiências de opressões interseccionadas, com um reconhecimento de que nossas perspectivas e experiências pessoais são políticas.

Há assim uma forte ligação entre a política identitária e as formas interseccionais de prefiguração, mas não da maneira como a maioria das críticas presume. A política identitária no sentido defendido pelo coletivo Combahee River é uma luta por mudança radical e sistêmica – ao contrário da política identitária liberal, que só quer assimilar grupos marginalizados às relações sociais existentes.

Muitas abordagens interseccionais radicais vão ainda além disso de outra maneira importante. Enquanto a política identitária liberal presume a desejabilidade e a permanência tanto das relações sociais existentes quanto das identidades das pessoas que navegam por elas, muitas abordagens prefigurativas interseccionais estão trabalhando para mudar não só relações sociais mas também identidades. Isso é porque nossas identidades são vistas não como inatas ou fixas, mas como produtos e mecanismos de estruturas sociais. Em outras palavras, enquanto liberais querem ver mais pessoas negras ou mulheres como presidentas e chefiando empresas, radicais querem mudar fundamentalmente não só sistemas políticos ou econômicos, mas também os próprios significados de “negras” e “mulheres”.

Socialistas há muito enxergam a categoria ‘classe trabalhadora’ como uma categoria que pertence ao capitalismo, e cujo fim queremos testemunhar. O sentido do socialismo não é reduzir a opressão capitalista ou melhorar as coisas um pouquinho para a classe trabalhadora, mas abolir todas as classes e o poder de classe como um todo. Raça, gênero, e outras categorias identitárias são vistas por muitas teóricas e ativistas pela mesma lente analítica. Por exemplo, Huey Newton, co-fundador do Partido dos Panteras Negras, argumentava: “Se não temos identidade universal, então teremos chauvinismo cultural, racial e religioso…”[5]. […] Isso não significa dizer que as categorias e identidades atuais podem ser simplesmente ignoradas, mas fornece uma direção para um futuro além dessas identidades: “lutamos por um futuro em que vamos perceber que somos todos Homo sapiens e temos mais em comum que diferenças”[5].

Acadêmicas influentes em raça e gênero, como Stuart Hall[6] e Judith Butler[7], argumentam que categorias raciais, de gênero e outras são melhor compreendidas como efeitos, incorporações, e ferramentas de opressão, em vez de como identidades eternas que têm qualquer sentido por si só. É a supremacia branca que cria as identidades ‘branca’ e ‘negra’ atuais, e o patriarcado que cria as identidades ‘mulher’ e ‘homem’ atuais, em vez dessas identidades serem inerentes às pessoas com certos tons de pele, expressões gestuais, ou partes do corpo. (Ou, melhor dizendo, é o patriarcado branco-supremacista capacitista capitalista que cria todas as identidades, mas é o elemento branco-supremacista que enfatiza a raça, o elemento patriarcal que enfatiza o gênero, e daí por diante).

Como evidência disso, pense nas enormes variações históricas e geográficas em termos do que se considera uma raça ou um gênero. As categorias raciais que usamos agora datam apenas do começo da colonização europeia e do tráfico transatlântico de escravos. Nos séculos XIX e XX, eugenistas tentaram justificá-las com a dita ‘biologia racial’, que desde então foi completamente refutada pela ciência contemporânea[8]. Pesquisas contemporâneas também desacreditaram as categorias de gênero modernas como simples e “naturais”[9][10]. Categorias de gênero têm variado enormemente no tempo e do espaço. Por exemplo, muitas sociedades tinham mais que duas categorias de gênero, ou não viam o gênero como necessariamente ligado à biologia, antes de colonizadores europeus imporem categorias binárias e alegadamente científicas[11][12][13]. Mesmo na Europa, o principal entendimento atual sobre gênero surgiu apenas no começo do período moderno, e está profundamente ligado a hierarquias sociais e exploração[14]. Muitos tipos de prefiguração interseccional, assim, propõem a abolição dessas categorias opressivas e exploratórias junto com suas estruturas subjacentes. Esse é um projeto político completamente distinto de buscar assimilar melhor pessoas dessas categorias na economia capitalista, que deixa intactas tanto as categorias atuais quanto as desigualdades econômicas. Um compromisso prefigurativo com a interseccionalidade é portanto muito diferente de uma política identitária liberal.

Notas

  1. N. do T.: Glass ceiling, metáfora usada para representar uma barreira invisível que dificulta o acesso de um certos grupos demográficos aos níveis hierárquicos mais altos de uma organização.
  2. IMT (INTERNATIONAL MARXIST TENDENCY). Marxism vs Identity Politics. In: ___. In Defence of Marxism. Disponível em: https://www.marxist.com/marxist-theory-and-the-struggle-against-alien-class-ideas.htm.
  3. HARRIS, D. From the Kennedy Commission to the Cobahee Collective: Black Feminist Organizing, 1960-80. In: B. Collier-Thomas e V. P. Franklin (Eds.). Sisters in the Struggle: African American Women in the Civil Rights-Black Power Movement. Nova Iorque: NYU Press, 2001. p. 280-305.
  4. COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. The Combahee River Collective Statement. 1977. Disponível em: http://circuitous.org/scraps/combahee.html.
  5. NEWTON, H. Intercommunalism. 1974. Disponível em: https://www.viewpointmag.com/2018/06/11/intercommunalism-1974.
  6. HALL, S. Old and New Identities, Old and New Ethnicities. In: A. King (Ed.). Culture, Globalisation and the World System: Contemporary Conditions for the Representation of Identity. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 1991.
  7. BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Londres: Routledge, 1990.
  8. RATTANSI, A. Racism: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2007.
  9. FINE, C. Delusions of Gender: How our Minds, Society and Neurosexism Create Difference. Londres: Icon Books, 2011.
  10. FAUSTO-STERLING, A. Sex/Gender: Biology in a Social World. Londres: Routledge, 2012.
  11. AMADIUME, I. Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society. Londres: Zed Books, 1987.
  12. OYEWUMI, O. Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender Discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
  13. HINCHY, J. Governing Gender and Sexuality in Colonial India: The Hijra, c.1850-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 2019.
  14. FEDERICI, S. Caliban and the Witch. Nova Iorque: Autonomedia, 2004.

“O outro lado da filosofia ocidental”, por David Graeber

Trecho de GRAEBER, D. Toward an Anthropological Theory of Value. Nova Iorque: Palgrave, 2001. p. 50-53.

A filosofia ocidental […] começa de fato com a briga entre Heráclito e Parmênides; uma briga que Parmênides venceu. Como resultado, desde quase o início, a tradição ocidental foi marcada pela imaginação de objetos que existem como que fora do tempo, alheios à ideia de transformação. Tanto que a óbvia realidade que as mudanças são sempre foi meio que um problema.

Pode ser útil revisar essa briga, ainda que rapidamente.

Heráclito basicamente via a fixidez que os objetos comumente pareciam ter como uma ilusão; sua realidade última era uma de constante fluxo e transformação. O que presumimos que sejam objetos são na verdade padrões de mudança. Um rio (seu exemplo mais famoso) não é simplesmente um corpo de água; na verdade, se alguém passa por um rio duas vezes, a água fluindo por ele provavelmente será completamente diferente. O que permanece no tempo é simplesmente o padrão de seu fluxo. Parmênides, por outro lado, pensava exatamente o oposto: para ele, a mudança é que era uma ilusão. Para que objetos sejam compreensíveis, eles precisam existir em alguma medida fora do tempo e da transformação. Há um nível de realidade, talvez um que humanos nunca consigam perceber completamente, em que as formas são fixas e perfeitas. De Parmênides, é claro, você pode traçar uma linha direta até ambos Pitágoras (e assim à matemática e à ciência ocidentais) e Platão (com suas formas ideais), e portanto até praticamente qualquer escola subsequente de filosofia ocidental.

A posição de Parmênides era obviamente absurda; e de fato, a ciência desde então demonstrou que Heráclito estava mais correto do que ele jamais poderia imaginar. Os elementos que constituem objetos sólidos estão, na verdade, em constante movimento. Mas pode-se defender que se a filosofia ocidental não tivesse rejeitado essa posição em favor da ideia errada de Parmênides, nunca teria sido possível descobrir isso. O problema com essa abordagem dinâmica, de Heráclito, é que embora ela seja obviamente verdadeira é impossível desenhar limites precisos entre as coisas e assim medi-las. Se objetos são apenas processos, não sabemos suas reais dimensões – isto é, se eles ainda existem – porque não sabemos quanto irão durar. Se objetos estão em constante fluxo, até mesmo medidas espaciais precisas são impossíveis. É possível medir um objeto em um momento particular e então tomar isso como representativo, mas mesmo isso é uma construção imaginária, porque tais “momentos” (no sentido de pontos no tempo, sem duração, infinitamente pequenos) não existem de fato – eles, também, são construções imaginárias. Foi precisamente tais construções imaginárias (“modelos”) que permitiram a ciência moderna. Como Paul Ricoeur já observou:

É incrível que Platão tenha contribuído com a construção da geometria euclidiana através da denominação de conceitos como linha, superfície, igualdade, semelhança entre figuras, etc., que estritamente proibia todo recurso e toda alusão a manipulações, à transformação física de figuras. Esse ascetismo da linguagem matemática, ao que devemos, em última análise, todas as nossas máquinas desde a origem da era mecânica, teria sido impossível sem o heroísmo lógico de Parmênides negando todo o mundo do devir e da praxis em nome de uma auto-identidade de significações. É a essa negação do movimento e do trabalho que devemos as conquistas de Euclides, Galileu, o mecanicismo moderno, e todos os nossos equipamentos e aparelhos […]

Há obviamente uma grande ironia nisso tudo. O que Ricoeur está sugerindo é que nós conseguimos criar um mundo de tecnologias capazes de nos dar um poder inimaginável de transformar o mundo, em grande medida porque primeiro fomos capazes de imaginar um mundo sem poderes ou transformações. É bem possível que isso seja verdade. A questão crucial, no entanto, é que ao fazê-lo, também perdemos algo. Porque uma vez que alguém se acostuma a um esquema básico de observação do mundo partindo de um mundo externo imaginário e estático, conectar os dois se torna um enorme problema. Poder-se-ia até dizer que os últimos dois mil anos de filosofia e pensamento social ocidentais foram tentativas infindáveis e cada vez mais complicadas de lidar com as consequências disso. Sempre você tem a mesma presunção de formas fixas e o mesmo fracasso de saber onde de fato encontrá-las. Como resultado, o conhecimento em si se torna o grande problema. Roy Bhaskar tem argumento por alguns anos já que desde Parmênides, a filosofia ocidental tem sofrido do que ele chama de uma “falácia epistêmica”: uma tendência a confundir a questão sobre como podemos saber de coisas com a questão sobre se essas coisas existem.

Em sua forma extrema, esta tendência se abre para o positismo: a presunção de que dado tempo suficiente e instrumentos precisos o bastante, deveria ser possível fazer os modelos e a realidade se corresponderem completamente. De acordo com seus avatares mais extremos, não só deveríamos poder produzir uma descrição completa de qualquer objeto no mundo físico, mas – dada a natureza previsível das “leis” físicas – prever precisamente o que aconteceria com ele sob condições conhecidas de forma igualmente precisa. Uma vez que ninguém jamais foi capaz de fazer qualquer coisa do tipo, essa postura tem a tendência de gerar seu oposto: um tipo de niilismo agressivo (hoje em dia mais frequentemente identificado com vários tipos de pós-estruturalismo) que em sua forma mais extrema argumenta que uma vez que não se pode nunca gerar tais descrições perfeitas, é completamente impossível falar sobre “realidade”.

Isso tudo é um belo exemplo de por que a maior parte de nós meros mortais acham debates filosóficos tão sem sentido. Essa lógica está em direta contradição com a experiência da vida comum. A maioria de nós está acostumada a descrever certas coisas como “realidades” precisamente porque não podemos entendê-las completamente, não podemos controlá-las completamente, não sabemos exatamente como elas vão nos afetar, mas mesmo assim não podemos tirar elas do caminho com a força do pensamento. É o que não sabemos sobre elas que nos dá a certeza de que são reais.

Como eu digo, uma veia alternativa, heracliteana de pensamento sempre existiu – uma que vê objetos como processos, definidos por seus potenciais, e a sociedade como construída primariamente por ações. Sua manifestação mais conhecida é sem dúvida a tradição dialética de Hegel e Marx. Mas seja lá qual formato ela tome, sempre foi quase impossível integrá-las com a filosofia mais convencional. Há uma tendência a vê-la como algo que existe meio que de lado, uma coisa esquisita ou meio mística. Certamente, ela parece assim em comparação com o que parece ser um realismo cabeça-dura da parte das abordagens mais positivistas – o que é um pouco irônico, considerando que se você consegue superar a linguagem frequentemente complicada, você geralmente percebe que se tratam de perspectivas bem alinhadas com percepções de senso comum sobre a realidade.

Roy Bhaskar e aqueles que desde então tomaram para si alguma versão de sua abordagem “crítica realista” […] têm tentado por anos agora desenvolver uma ontologia mais razoável. Os argumentos resultantes são notoriamente difíceis, mas pode ser útil descrever algumas de suas conclusões[…]:

  1. Realismo. Bhaskar defende um “realismo transcendental”: isto é, em vez de limitar a realidade ao que pode ser observado pelos sentidos, devemos nos perguntar “o que tem que ser verdade” para que nossas experiências tenham uma explicação. Em particular, ele busca explicar “por que experimentos científicos são possíveis?”, e também, ao mesmo tempo, “por que experimentos científicos são necessários?”.
  2. Potencialidade. Sua conclusão: embora nossas experiências sejam de eventos no mundo real, a realidade não se limita ao que podemos experimentar (“o empírico”), ou sequer à soma total de eventos que se possa dizer que ocorreram […]. Em vez disso, Bhaskar propõe um terceiro nível (“o real”). Para entendê-lo, é preciso entender “poderes” – isto é, definir as coisas parcialmente em termos de seus potenciais ou suas capacidades. A ciência em grande medida procede por meio de hipóteses acerca de quais “mecanismos” precisam existir para explicar tais poderes, e então ela procura por eles. A busca provavelmente não tem fim, porque há sempre níveis mais profundos e fundamentais (por exemplo, de átomos a prótons, de prótons a quarks, e por aí vai), mas o fato de que não há um fim à busca não significa que a realidade não exista; em vez disso, ela simplesmente significa que ninguém conseguirá entendê-la completamente.
  3. Liberdade. A realidade pode ser dividida em estratos emergentes: assim como a química pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à física, a biologia pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à biologia. Diferentes tipos de mecanismos estão operando em cada nível. Além disso, cada um adquire certa autonomia daqueles abaixo; seria impossível sequer falar sobre liberdade humana se esse não fosse o caso, uma vez que nossas ações seriam simplesmente determinadas por processos químicos ou biológicos.
  4. Sistemas abertos. Outro elementos da indeterminação vêm do fato de que eventos do mundo real ocorrem em “sistemas abertos”; isto é, há sempre diferentes tipos de mecanismos, derivados de diferentes estratos emergentes de realidade, atuando em qualquer um deles. Como resultado, nunca se pode prever exatamente como qualquer evento do mundo real vai acontecer. Essa é a razão pela qual experimentos científicos são necessários: experimentos são maneiras de criar “sistemas fechados” temporários em que os efeitos de todos os outros mecanismos são, tanto quanto possível, anulados, para que seja possível examinar de fato um único mecanismo em ação.
  5. Tendências. Como resultado, é melhor não falar de “leis” científicas inquebráveis mas de “tendências”, que interagem de maneiras imprevisíveis. É claro, quanto mais alto os estratos emergentes com os quais se está lidando, menos previsíveis as coisas se tornam, com o envolvimento de seres humanos se tornando o fator mais imprevisível de todos.

[…] A posição heracliteana, que observa as coisas em termos de seus potenciais dinâmicos, não significa abandonar a ciência mas, em vez disso, a única esperança de dar à ciência uma base ontológica sólida. Mas isso também significa que para fazê-lo, quem deseja fazer afirmações científicas terá que abandonar alguns de seus sonhos mais ambiciosos – totalitários, até – sobre conhecimento absoluto ou total, e aceitar um certo grau de humildade em relação ao que é possível saber. A realidade é o que não se pode conhecer completamente. Se um objeto é real, qualquer descrição que fazemos dele será necessariamente parcial e incompleta. É assim, aliás, que podemos saber que ele é real. As únicas coisas sobre as quais podemos esperar saber tudo são as coisas que existem só nas nossas imaginações.

O que é verdadeiro acerca da ciência natural é ainda mais verdadeiro acerca da ciência social. Embora Bhaskar tenha adquirido uma reputação como filósofo da ciência, seu interesse em última instância é social; ele está tentando embasar filosoficamente uma teoria de emancipação humana, uma forma de aliar o conhecimento científico com a ideia de liberdade humana. Aqui, também, a mensagem é humildade: realistas críticos alegam ser possível preservar a noção de uma realidade social e, portanto, de uma ciência capaz de fazer afirmações verdadeiras sobre ela – mas apenas se ela abandona o tipo de obsessão estatística positivista que faz as vezes de ciência em meio à maioria dos sociólogos ou economistas atuais, e se ela desiste da ideia de que a ciência social será um dia capaz de estabelecer leis preditivas.