Faleceu ontem o antropólogo David Graeber

David Graeber lecionando na LSE.

Este ano, estive no Reino Unido em doutorado sanduíche. Minha pesquisa é sobre o conceito de liberdade entre anarquistas. Na minha longa lista de leituras tinha cinco livros dele. Fui até a London School of Economics ver se conseguia conversar com ele. Acabei chegando meio tarde, mas fui mesmo assim, só pra ‘reconhecer o terreno’. Pra minha surpresa, ele saiu do elevador que eu estava esperando pra pegar.

Ele parecia estar de saída, então pra não incomodar muito só perguntei se as aulas dele podiam ser assistidas também por quem não era aluno ali. “Ah, podem sim”, ele disse. “A universidade não quer que ninguém saiba disso, mas podem sim”.

Falei com a secretária do departamento, Renata Todd, pra pegar o calendário do semestre da disciplina dele. No dia que escolhi, cheguei bem cedo, pra não dar erro. Sentei no fundo. A foto é desse dia.

Graeber foi um acadêmico brilhante. Discípulo de Marshall Sahlins, outro gigante da antropologia, ele fez contribuições em tantas áreas da teoria social, que dá até uma tontura: da arqueologia do conceito de dívida até a condenação dos “trabalhos nada a ver” (minha forma preferida de traduzir Bullshit jobs), passando por carros voadores, panpsiquismo, burocracia, magia, ação direta, imaginação, teoria do valor, super-heróis, polícia, violência, poder constituinte, propriedade, diálogo, pós-modernismo, neoliberalismo, desigualdades, bullying, soberania, entre muitas outras coisas, ele sempre tinha algo instigante a dizer. Podia não estar 100% certo – e ele mesmo sempre recuava das simplificações que fazia, apontando-as como tais – mas como diz o Clayton Peron, “conseguia realizar a conciliação quase impossível entre erudição e simplicidade”. Você acha que sabe o que uma coisa é, mas basta ler uma daquelas frases dele com a estrutura “na verdade, isso ali nada mais é que isso aqui” e pronto: sua mente explode com possibilidades.

Mas – e é preciso dizer, porque nem sempre a relação é automática – ele também era um excelente professor. Começou a aula dizendo que não ia usar slides porque eles nos emburrecem, e que teria apenas aquela aula (de uma hora) para explicar teoria social francesa por causa dos (bons) esforços para descolonizar o currículo. A aula foi principalmente sobre Mauss – mas, para chegar aí, ele foi desde o fracasso da Revolução Francesa até outros ‘desdobramentos’ de Durkheim, como Dumont. Foi uma aula extremamente didática, mas também divertida, cheia de referências inusitadas. Ao apresentar Comte como o secretário mentalmente perturbado de Saint-Simon, disse que o positivismo chegou a ter bastante influência em algumas partes do mundo, e perguntou se alguém sabia o que estava escrito na bandeira do Brasil (só vi aquele mar de cabeças à minha frente se virando quando respondi, após uns segundos de silêncio: “order and progress”).

Depois da aula, expliquei pra ele melhor quem eu era e o que eu queria. Graeber disse que adoraria conversar, até porque – pasmem – ele estava escrevendo um novo livro especificamente sobre o conceito de liberdade! Se eu poderia fazer uma entrevista com ele? Claro – só que ele estava cansado de dizer sempre as mesmas coisas; se eu lesse o livro antes, poderia fazer perguntas novas. Fui pra casa muito feliz naquele dia.

Alguns dias depois (e certa insistência, pois ele admitiu que era péssimo em responder emails), ele me mandou uma cópia do livro, que devido à pandemia nem foi publicado ainda (sai em novembro agora, parece). No email, disse: “Não compartilhe com ninguém! Ou vão ficar bravos comigo…”. Marquei um novo encontro com ele – e não posso agradecer Renata Todd o suficiente; já falei que ele era muito ruim com emails? – e… Ele esqueceu. Precisei encontrar com ele num restaurante vietnamita ali por perto, onde ele estava almoçando, às 3 da tarde.

Lá, ele me perguntou o que eu achei do livro. Até me mostrou um capítulo que estava escrevendo para outro, algo sobre o Estado não ter uma “origem” de fato – leu um trecho pra mim e perguntou se eu achava pretensioso demais (achei que não). Disse-me o quanto detestava ser chamado de “o antropólogo anarquista”, especialmente porque quem fazia isso geralmente nem se dava ao trabalho de se engajar direito com suas ideias (lembrei direto da coluna do João Pereira Coutinho na Folha).

Voltamos pro escritório, e gravei a entrevista com ele (vai sair ainda esse mês, na Revista Em Tese). Olhando pra trás, até mesmo algumas horas depois de já ter ido embora, fiquei pensando que deveria ter insistido mais em alguns pontos; feito algumas perguntas de outro modo. Aquela coisa básica de só pensar na coisa certa a se dizer horas depois. Mesmo assim, foi legal demais. No final, perguntou como andava o MST.

Eu saí daquela interação sabendo um pouco melhor o que me separava dele. Várias coisas que ele dizia, o lugar para onde a teoria dele caminhava, me deixavam um pouco agoniado, mas nunca soube explicar por quê. Vários foram os áudios trocados com o Cazé pra colocar as ideias no lugar… E mesmo assim, muitas mais coisas nos unem. Certas, erradas, ou em algum lugar no meio do caminho, as coisas que ele escreveu vão continuar reverberando por muito tempo dentro e fora da academia. Alguns exemplos:

A realidade é o que não se pode conhecer completamente. Se um objeto é real, qualquer descrição que fazemos dele será necessariamente parcial e incompleta. É assim, aliás, que podemos saber que ele é real. As únicas coisas sobre as quais podemos esperar saber tudo são as coisas que existem só nas nossas imaginações.

Pra ser sincero, eu ainda penso naquele magistrado romano anônimo. É engraçado: quando falamos das origens clássicas da nossa civilização (e estou me referindo a esse ponto na civilização mundial, da qual todo mundo participa hoje em dia em algum grau), as figuras que naturalmente vêm à cabeça são homens como Péricles ou Eurípides ou Platão, mas nunca esse cara – ele nem tem um nome – embora seja possível argumentar que ele moldou nossas vidas de maneiras muito mais profundas. O homem que imagino é um oficial do senado na república romana tardia ou começo do império, que patrocina jogos, faz julgamentos prudentes quanto a questões como leis de propriedade, e daí vai pra casa ter suas necessidades mais íntimas atendidas por escravos que são em termos legais pessoas conquistadas, sem quaisquer direitos, e com quem ele pode fazer o que quiser, estuprar, torturar, matar, com total impunidade. Ele é um monstro. E no entanto sua perspectiva sobre o mundo, seus julgamentos, estão na base de todas as nossas ideias liberais sobre liberdade, e suspeito que muito mais além disso.

Não há nenhuma área da vida humana, em qualquer lugar, em que não se pode encontrar cálculo auto-interessado. Mas tampouco há qualquer lugar em que não se possa encontrar gentileza ou aderência a princípios idealistas: a questão é por que um, e não a outra, é colocado como a realidade ‘objetiva’

Economias de mercado […] negam ‘o verdadeiro fundamento de suas próprias vidas’, uma vez que elas constantemente obscurecem o fato de que toda atividade ‘econômica’ é em última instância um meio para a criação de certos tipos de pessoas.

Uma divisão aguda entre liberdade e obrigação é, como aquela entre interesse e generosidade, em grande medida uma ilusão causada pelo mercado, cuja anonimidade torna possível ignorar o fato de que dependemos de outras pessoas para praticamente tudo. Em sua ausência, é preciso necessariamente estar ciente de que, a não ser que se deseje viver em solidão, a liberdade basicamente significa a liberdade de escolher que tipo de obrigações alguém quer contrair, e com quem.

Uma razão pela qual passo tanto tempo re-escrevendo o passado é porque estou convencido que ele está atualmente sendo escrito da forma como está para tornar quase impossível que imaginemos um futuro viável.

Por toda a internet hoje li muito que ele cunhou a frase “nós somos os 99%”. Não é verdade, ele me disse (assim como já disse em várias entrevistas): ele fazia parte do grupo que pensou essa frase. Ele era assim: amigo de Rojava, colocava esse aspecto coletivo em primeiro lugar sempre, seja na teoria, seja na prática militante. Foi um grande acadêmico, um grande ativista, uma grande pessoa. Deixará saudades. Fará falta.

“O outro lado da filosofia ocidental”, por David Graeber

Trecho de GRAEBER, D. Toward an Anthropological Theory of Value. Nova Iorque: Palgrave, 2001. p. 50-53.

A filosofia ocidental […] começa de fato com a briga entre Heráclito e Parmênides; uma briga que Parmênides venceu. Como resultado, desde quase o início, a tradição ocidental foi marcada pela imaginação de objetos que existem como que fora do tempo, alheios à ideia de transformação. Tanto que a óbvia realidade que as mudanças são sempre foi meio que um problema.

Pode ser útil revisar essa briga, ainda que rapidamente.

Heráclito basicamente via a fixidez que os objetos comumente pareciam ter como uma ilusão; sua realidade última era uma de constante fluxo e transformação. O que presumimos que sejam objetos são na verdade padrões de mudança. Um rio (seu exemplo mais famoso) não é simplesmente um corpo de água; na verdade, se alguém passa por um rio duas vezes, a água fluindo por ele provavelmente será completamente diferente. O que permanece no tempo é simplesmente o padrão de seu fluxo. Parmênides, por outro lado, pensava exatamente o oposto: para ele, a mudança é que era uma ilusão. Para que objetos sejam compreensíveis, eles precisam existir em alguma medida fora do tempo e da transformação. Há um nível de realidade, talvez um que humanos nunca consigam perceber completamente, em que as formas são fixas e perfeitas. De Parmênides, é claro, você pode traçar uma linha direta até ambos Pitágoras (e assim à matemática e à ciência ocidentais) e Platão (com suas formas ideais), e portanto até praticamente qualquer escola subsequente de filosofia ocidental.

A posição de Parmênides era obviamente absurda; e de fato, a ciência desde então demonstrou que Heráclito estava mais correto do que ele jamais poderia imaginar. Os elementos que constituem objetos sólidos estão, na verdade, em constante movimento. Mas pode-se defender que se a filosofia ocidental não tivesse rejeitado essa posição em favor da ideia errada de Parmênides, nunca teria sido possível descobrir isso. O problema com essa abordagem dinâmica, de Heráclito, é que embora ela seja obviamente verdadeira é impossível desenhar limites precisos entre as coisas e assim medi-las. Se objetos são apenas processos, não sabemos suas reais dimensões – isto é, se eles ainda existem – porque não sabemos quanto irão durar. Se objetos estão em constante fluxo, até mesmo medidas espaciais precisas são impossíveis. É possível medir um objeto em um momento particular e então tomar isso como representativo, mas mesmo isso é uma construção imaginária, porque tais “momentos” (no sentido de pontos no tempo, sem duração, infinitamente pequenos) não existem de fato – eles, também, são construções imaginárias. Foi precisamente tais construções imaginárias (“modelos”) que permitiram a ciência moderna. Como Paul Ricoeur já observou:

É incrível que Platão tenha contribuído com a construção da geometria euclidiana através da denominação de conceitos como linha, superfície, igualdade, semelhança entre figuras, etc., que estritamente proibia todo recurso e toda alusão a manipulações, à transformação física de figuras. Esse ascetismo da linguagem matemática, ao que devemos, em última análise, todas as nossas máquinas desde a origem da era mecânica, teria sido impossível sem o heroísmo lógico de Parmênides negando todo o mundo do devir e da praxis em nome de uma auto-identidade de significações. É a essa negação do movimento e do trabalho que devemos as conquistas de Euclides, Galileu, o mecanicismo moderno, e todos os nossos equipamentos e aparelhos […]

Há obviamente uma grande ironia nisso tudo. O que Ricoeur está sugerindo é que nós conseguimos criar um mundo de tecnologias capazes de nos dar um poder inimaginável de transformar o mundo, em grande medida porque primeiro fomos capazes de imaginar um mundo sem poderes ou transformações. É bem possível que isso seja verdade. A questão crucial, no entanto, é que ao fazê-lo, também perdemos algo. Porque uma vez que alguém se acostuma a um esquema básico de observação do mundo partindo de um mundo externo imaginário e estático, conectar os dois se torna um enorme problema. Poder-se-ia até dizer que os últimos dois mil anos de filosofia e pensamento social ocidentais foram tentativas infindáveis e cada vez mais complicadas de lidar com as consequências disso. Sempre você tem a mesma presunção de formas fixas e o mesmo fracasso de saber onde de fato encontrá-las. Como resultado, o conhecimento em si se torna o grande problema. Roy Bhaskar tem argumento por alguns anos já que desde Parmênides, a filosofia ocidental tem sofrido do que ele chama de uma “falácia epistêmica”: uma tendência a confundir a questão sobre como podemos saber de coisas com a questão sobre se essas coisas existem.

Em sua forma extrema, esta tendência se abre para o positismo: a presunção de que dado tempo suficiente e instrumentos precisos o bastante, deveria ser possível fazer os modelos e a realidade se corresponderem completamente. De acordo com seus avatares mais extremos, não só deveríamos poder produzir uma descrição completa de qualquer objeto no mundo físico, mas – dada a natureza previsível das “leis” físicas – prever precisamente o que aconteceria com ele sob condições conhecidas de forma igualmente precisa. Uma vez que ninguém jamais foi capaz de fazer qualquer coisa do tipo, essa postura tem a tendência de gerar seu oposto: um tipo de niilismo agressivo (hoje em dia mais frequentemente identificado com vários tipos de pós-estruturalismo) que em sua forma mais extrema argumenta que uma vez que não se pode nunca gerar tais descrições perfeitas, é completamente impossível falar sobre “realidade”.

Isso tudo é um belo exemplo de por que a maior parte de nós meros mortais acham debates filosóficos tão sem sentido. Essa lógica está em direta contradição com a experiência da vida comum. A maioria de nós está acostumada a descrever certas coisas como “realidades” precisamente porque não podemos entendê-las completamente, não podemos controlá-las completamente, não sabemos exatamente como elas vão nos afetar, mas mesmo assim não podemos tirar elas do caminho com a força do pensamento. É o que não sabemos sobre elas que nos dá a certeza de que são reais.

Como eu digo, uma veia alternativa, heracliteana de pensamento sempre existiu – uma que vê objetos como processos, definidos por seus potenciais, e a sociedade como construída primariamente por ações. Sua manifestação mais conhecida é sem dúvida a tradição dialética de Hegel e Marx. Mas seja lá qual formato ela tome, sempre foi quase impossível integrá-las com a filosofia mais convencional. Há uma tendência a vê-la como algo que existe meio que de lado, uma coisa esquisita ou meio mística. Certamente, ela parece assim em comparação com o que parece ser um realismo cabeça-dura da parte das abordagens mais positivistas – o que é um pouco irônico, considerando que se você consegue superar a linguagem frequentemente complicada, você geralmente percebe que se tratam de perspectivas bem alinhadas com percepções de senso comum sobre a realidade.

Roy Bhaskar e aqueles que desde então tomaram para si alguma versão de sua abordagem “crítica realista” […] têm tentado por anos agora desenvolver uma ontologia mais razoável. Os argumentos resultantes são notoriamente difíceis, mas pode ser útil descrever algumas de suas conclusões[…]:

  1. Realismo. Bhaskar defende um “realismo transcendental”: isto é, em vez de limitar a realidade ao que pode ser observado pelos sentidos, devemos nos perguntar “o que tem que ser verdade” para que nossas experiências tenham uma explicação. Em particular, ele busca explicar “por que experimentos científicos são possíveis?”, e também, ao mesmo tempo, “por que experimentos científicos são necessários?”.
  2. Potencialidade. Sua conclusão: embora nossas experiências sejam de eventos no mundo real, a realidade não se limita ao que podemos experimentar (“o empírico”), ou sequer à soma total de eventos que se possa dizer que ocorreram […]. Em vez disso, Bhaskar propõe um terceiro nível (“o real”). Para entendê-lo, é preciso entender “poderes” – isto é, definir as coisas parcialmente em termos de seus potenciais ou suas capacidades. A ciência em grande medida procede por meio de hipóteses acerca de quais “mecanismos” precisam existir para explicar tais poderes, e então ela procura por eles. A busca provavelmente não tem fim, porque há sempre níveis mais profundos e fundamentais (por exemplo, de átomos a prótons, de prótons a quarks, e por aí vai), mas o fato de que não há um fim à busca não significa que a realidade não exista; em vez disso, ela simplesmente significa que ninguém conseguirá entendê-la completamente.
  3. Liberdade. A realidade pode ser dividida em estratos emergentes: assim como a química pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à física, a biologia pressupõe mas não pode ser completamente reduzida à biologia. Diferentes tipos de mecanismos estão operando em cada nível. Além disso, cada um adquire certa autonomia daqueles abaixo; seria impossível sequer falar sobre liberdade humana se esse não fosse o caso, uma vez que nossas ações seriam simplesmente determinadas por processos químicos ou biológicos.
  4. Sistemas abertos. Outro elementos da indeterminação vêm do fato de que eventos do mundo real ocorrem em “sistemas abertos”; isto é, há sempre diferentes tipos de mecanismos, derivados de diferentes estratos emergentes de realidade, atuando em qualquer um deles. Como resultado, nunca se pode prever exatamente como qualquer evento do mundo real vai acontecer. Essa é a razão pela qual experimentos científicos são necessários: experimentos são maneiras de criar “sistemas fechados” temporários em que os efeitos de todos os outros mecanismos são, tanto quanto possível, anulados, para que seja possível examinar de fato um único mecanismo em ação.
  5. Tendências. Como resultado, é melhor não falar de “leis” científicas inquebráveis mas de “tendências”, que interagem de maneiras imprevisíveis. É claro, quanto mais alto os estratos emergentes com os quais se está lidando, menos previsíveis as coisas se tornam, com o envolvimento de seres humanos se tornando o fator mais imprevisível de todos.

[…] A posição heracliteana, que observa as coisas em termos de seus potenciais dinâmicos, não significa abandonar a ciência mas, em vez disso, a única esperança de dar à ciência uma base ontológica sólida. Mas isso também significa que para fazê-lo, quem deseja fazer afirmações científicas terá que abandonar alguns de seus sonhos mais ambiciosos – totalitários, até – sobre conhecimento absoluto ou total, e aceitar um certo grau de humildade em relação ao que é possível saber. A realidade é o que não se pode conhecer completamente. Se um objeto é real, qualquer descrição que fazemos dele será necessariamente parcial e incompleta. É assim, aliás, que podemos saber que ele é real. As únicas coisas sobre as quais podemos esperar saber tudo são as coisas que existem só nas nossas imaginações.

O que é verdadeiro acerca da ciência natural é ainda mais verdadeiro acerca da ciência social. Embora Bhaskar tenha adquirido uma reputação como filósofo da ciência, seu interesse em última instância é social; ele está tentando embasar filosoficamente uma teoria de emancipação humana, uma forma de aliar o conhecimento científico com a ideia de liberdade humana. Aqui, também, a mensagem é humildade: realistas críticos alegam ser possível preservar a noção de uma realidade social e, portanto, de uma ciência capaz de fazer afirmações verdadeiras sobre ela – mas apenas se ela abandona o tipo de obsessão estatística positivista que faz as vezes de ciência em meio à maioria dos sociólogos ou economistas atuais, e se ela desiste da ideia de que a ciência social será um dia capaz de estabelecer leis preditivas.

Uma resenha anarquista de “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, de Steven Pinker

O livro “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, de Steven Pinker, é praticamente um clássico instantâneo dos últimos anos. Seu tamanho impressiona – necessário, segundo o autor, para embasar bem suas afirmações, o que ele faz não só com teoria mas também com dados. A ideia fundamental é que a violência tem diminuído ao longo do tempo em todas as dimensões da vida humana; ela não cessou, obviamente, mas não só estamos em uma situação bem melhor do que no passado como a tendência é decrescente (embora não inevitável). Através do livro ele argumenta pela factualidade da afirmação de que a violência diminuiu, e elicita os elementos que levam os humanos à violência e que os afastam dela (os “anjos bons”), descrevendo por fim algumas explicações para o declínio da violência, isto é, que tipo de coisas organizaram os humanos nos últimos tempos de modo a favorecer nossos bons instintos e contrabalançar a influência dos maus.

Como anarquista, minha primeira reação a esse “resumo” foi uma mistura de sentimentos. Frequentemente temos que combater insinuações a respeito de como os seres humanos são ruins por natureza, razão pela qual o anarquismo jamais seria “possível” ou “sustentável”. Qualquer estudo que mostre como os seres humanos não são inerente e inevitavelmente monstruosos parece algo a se verificar rigorosamente mas, a princípio, de braços abertos. Pinker tem a visão que considero mais razoável (e, francamente, mais óbvia) acerca da psicologia humana: não somos nada em si; podemos ser, potencialmente, qualquer coisa. Não digo individualmente – é uma questão de entender a natureza humana em geral como capacidade. É preciso estudar as estruturas de incentivo e os padrões de comportamento e relacionamento mútuo – as instituições sociais, culturais, políticas e econômicas que delimitam nossa percepção, automatizam certas ações, priorizam e valorizam certas ideias – para entender quem somos, e sempre em determinados contextos.

Por outro lado, anarquistas opõem-se ao estado de coisas atual porque grande parte do que vivemos é influenciada pelo capitalismo ou pelo Estado (ambos amplamente concebidos) de uma forma que anarquistas consideram prejudicial. Em outras palavras, estamos sempre apontando pras coisas que estão ruim e mostrando que parcela de culpa pode ser atribuída a essas questões mais gerais, em contraposição à tendência corrente de reduzir tudo a uma questão individual (“ele a matou por ciúmes mas não tem nada a ver com machismo não, ele que tinha doença mental”) ou a voluntarismos (“mas o capitalismo é só o que as pessoas fazem dele”; “acabar com a corrupção é só uma questão de eleger os políticos certos”). Com isso, parece que nos focamos demais em dizer que está tudo uma bela de uma bosta; se alguém chega dizendo que na verdade a vida melhorou, um alerta máximo de senso crítico parece ser ativado. No caso de Pinker, o aparente aliado revela-se um adversário: um dos motivos que o autor cita como explicativos para o declínio da violência, por exemplo, é justamente a criação e a proliferação dos Estados nacionais; e assim, aquele que vem somar à defesa da ideia de que uma coexistência pacífica é possível o faz precisamente com base naquilo que os anarquistas dizem que está nos impedindo de alcançá-la. Dizer que o Estado e a expansão do mercado causaram uma queda de violência constitui basicamente um hobbesianismo light: se não fosse o Leviatã, estaríamos nos matando mais.

Mas não é verdade que, quando algo bom acontece, nossos oponentes adquirem uma nova arma (“Aqui o capitalismo funcionou. Aqui a democracia representativa funcionou”). O fato de que alguma coisa melhorou no mundo, por si só, não diz nada a priori sobre o papel que os Estados nacionais ou a dinâmica do mercado desempenharam na melhoria. Faltando uma análise cuidadosa, pode ser que de fato os mercados e os Estados contribuíram, mas pode ser também que as coisas melhoraram a despeito deles, ou que poderiam ter melhorado mais se não fosse por eles, ou antes se não fosse por eles. Pode ser que o problema sequer teria começado se não fosse por eles.

O autor baseia muitos de seus argumentos em cenários da teoria dos jogos. Para dar um exemplo, temos o famoso dilema da cooperação. Dois agentes racionais e maximizadores de recursos podem forjar uma aliança cooperativa, mas, estando ainda em competição por recursos, não podem depender demais um do outro, pois embora alguma cooperação traga mais benefícios que nenhuma cooperação, assim que um dos aliados deixa de reciprocar o último ato de cooperação, obtém vantagem sobre o outro. Em tese, o maior beneficiado será aquele que antecipar a “traição” de seu aliado imediatamente antes dessa traição — tendo colhido não só tanto benefício quanto possível da aliança como também uma vantagem em seu término. No entanto, se cada aliado antecipar que a estratégia do outro será a mesma, a recursividade do raciocínio leva à impossibilidade de estabelecer a aliança em primeiro lugar: se meu aliado me trairá assim que eu colaborar com o acordo antes dele, não devo fazê-lo de todo. Nesse cenário hobbesiano, como coloca Carole Pateman, “o medo do que a outra pessoa fará (ou não fará) significa que pactos provavelmente não serão cumpridos”. A solução proposta neste caso é um contrato estabelecendo uma autoridade superior, cujo uso da violência contra traidores é legitimado pelas partes e, assim, os aliados podem aproveitar os benefícios da cooperação.

Isso tudo, é claro, é uma construção abstrata extremamente distante da realidade. O “individualismo abstrato é […] uma abstração da realidade social”, diz a Pateman; em outras palavras, abstração da “economia de mercado, capitalista, e [d]o Estado democrático liberal”. É interessante como essa própria dinâmica se perpetua: uma vez instalada (e principalmente se for lida como imutável), os jogadores percebem que a melhor maneira de maximizar seus recursos é ocupar a posição de poder; isso aumenta as probabilidades de alcançar seus objetivos, especialmente se o jogo for de soma-zero; assim, a partir da subjetividade que se constrói através da experiência prática dessa dinâmica relacional, transformar o cenário é menos interessante que trabalhar dentro dele. A concentração de poder não só cria uma dinâmica em que certos mecanismos facilitam para alguns indivíduos (através da força) o direcionamento da capacidade coletiva, como também, por essa própria possibilidade que cria, incentiva-os a não engajar-se em outro tipo de organização. Assim, as próprias regras do jogo que as pessoas estão supostamente sempre jogando (que a teoria dos jogos presume) fazem diferença. Ademais, a racionalidade perfeita só pode ser a premissa de um modelo de ação cujo objetivo é prever o comportamento, pois somente o comportamento racional é previsível. A despeito do fato de que talvez nenhuma outra ciência tenda a participar tanto do mundo que ela descreve, como coloca Graeber, Milton Friedman teria dito que as premissas de uma teoria não são importantes, desde que façam previsões acuradas; quanto a isso, no entanto, teorias econômicas que preveem comportamentos racionais por parte dos seres humanos falham catastroficamente.

De qualquer modo, problemáticas e inerentemente ideológicas como podem ser as análises de teoria de jogos, mesmo o papel do Estado é lido de maneira ingênua nesses cenários. Pinker negligencia como os Estados podem institucionalizar a predação ao invés de impedir que ela aconteça, ao definir e garantir quais grupos terão sua dominação legitimada (vide Foucault; vide Graeber). Pinker faz uma divisão entre empatia e compaixão, o primeiro denotando apenas a capacidade de adivinhar o que um outro agente estaria pensando ou sentindo; mas o que uma lógica de mercado (que, para o autor, “recompensa a empatia”) postula são indivíduos que só podem encontrar uma única utilidade na empatia: dominar adversários. Pinker mobiliza Elias para mostrar como o processo civilizatório diminui níveis de agressão e proclividades para a violência ao aumentar a capacidade de autocontrole, mas deixa de mencionar que parte das conclusões do autor é que a civilização refinou e burocratizou a violência. Progressos nominais são celebrados, e talvez devam ser, mas embora a escravidão seja ilegal em todos os países do mundo, isso não impede que mais de 40 milhões de escravos existam no mundo todo, segundo estimativas (Sobre alguns problemas em relação à formulação das estimativas, ver este texto); mais (em números absolutos) que em qualquer período da história humana.

Outra curiosidade é que as prisões não contam como “violência” para o autor (que faz um esforço para ser o mais inclusivo possível quanto à constituição dessa categoria); são, ao contrário, elogiadas como superiores às punições corporais e efetivas na diminuição da criminalidade. Dispensando o que Foucault diz sobre prisões e delinquência urbana por conta de seu aspecto histórico (enquanto Pinker trata de cenários mais contemporâneos), é preciso muita acrobacia retórica para afirmar que enjaular seres humanos não é em si uma forma de violência. Além disso, prisões tendem a afetar desproporcionalmente os mais pobres e as minorias. Só para citar o exemplo dos Estados Unidos, embora muito possa ser dito sobre nossa própria realidade, não só assessores presidenciais parecem ter confirmado que a chamada Guerra às Drogas foi intencionalmente projetada para perseguir inimigos políticos, numa dinâmica que se perpetua ainda hoje, como havia em 2007 mais adultos negros no sistema penitenciário (em números absolutos) do que escravos em 1850; além disso, em quase todos os Estados há formas de restrição ao voto por parte de pessoas que de algum modo passaram pelo sistema prisional.

Uma visão bastante comum sobre o livro é o de que a discussão é fútil, uma vez que Pinker vai além da pífia cognição dos meros acadêmicos de humanas – ele tem a matemática ao seu lado, o que comprova tudo que ele diz; o resto é resto. Essa defesa vulgar e estúpida desconsidera a imperiosidade da interpretação em toda a empreitada científica – obviamente contar com dados, sempre que possível, é melhor que não fazê-lo; mas não existem fatos brutos, como rochas puras a serem descobertas, dentro das quais escondem-se minúsculos pergaminhos em que o próprio Deus nosso senhor escreveu a Verdade eterna. De considerações internas a externas quanto ao uso enviesado da ferramenta matemática para revindicar autoridade sobre os fatos, fica claro que há várias possibilidades de que Pinker esteja errado. Quem se acha muito “científico” contrapondo “números” a investigações qualitativas, teóricas, históricas, entre outras, está prestando um desserviço à própria ciência, cujo ideal é precisamente de que o conhecimento avança quando confrontamos as conclusões de outras pessoas – a autoridade, à medida que pretende silenciar o debate, prejudica a ciência (e não é preciso ser um anarquista para concordar que incentivar o desafio a verdades estabelecidas, na ciência, é imprescindível). Não estou reclamando aqui de quem se convenceu com os números; estou falando de quem rejeita sumariamente qualquer tipo de crítica que não os questione direta e unicamente.

Se as estatísticas contemporâneas empregadas no livro parecem ser relativamente sólidas, há questionamentos às presunções e generalizações feitas sobre o passado: por exemplo, o descuido metodológico fundamental que embasa, entre outros elementos, seu argumento de que o século XX não foi particularmente violento e sua repetição acrítica da ladainha sobre os instrumentos medievais de tortura, que provavelmente nunca existiram. Além disso, sua forma de comparar proporções de violência (à população) entre diferentes épocas não representa o maior sofrimento humano envolvido em maiores números absolutos: em termos estatísticos, sim, certamente uma pessoa específica tem menor chance de morrer violentamente hoje (se os números estiverem corretos), mas por outro lado isso implica que a morte de dez pessoas em um grupo de mil é o mesmo que a morte de dez milhões em um grupo de um bilhão — uma asserção no mínimo questionável. É conspícuo, aliás, que a “melhor” maneira de interpretar esses dados envolva uma referência ao ponto de vista do indivíduo singular. O autor costuma frequentemente empregar representações da realidade como algum tipo de testemunho histórico (a presença do conto do Rei Salomão e o “bebê com duas mães” na Bíblia, por exemplo, seria evidência de uma maior tolerância à violência no passado). A própria estimativa das mortes violentas como consequência de guerras envolve “questões complexas de causa e efeito, que nem sempre podem ser separadas de julgamentos morais”, escreve John Gray; não se sabe se são incluídos, entre as vítimas da guerra, “aqueles que morrem de fome ou doença durante a guerra ou em período posterior”, ou vítimas de tortura que “sucumbem anos mais tarde a partir do dano mental e físico que lhes foi infligido”, entre outros.

A paz alcançada pode durar se o mesmo curso for mantido, o autor argumenta — a existência do arsenal atômico em sua atual magnitude não seria um problema, dada a improbabilidade de que caia nas mãos de terroristas (quanto a isso, ele faz um bom argumento) ou sejam de fato usadas por superpotências, já que a distribuição de armas nucleares faz com que todos evitem usá-las. Mas não só há quem argumente que esperar que a violência diminua quando seu potencial cresce é absurdo, como hoje sabemos que uma guerra nuclear não foi evitada por negociações racionais durante a Crise dos mísseis de Cuba em 1962, mas sim pela desobediência de um oficial soviético.

A “ideologia” pode ser um “anjo mau” da natureza humana, mas não a do próprio autor: recuperando o ideal kantiano de paz global através do comércio, não há nenhuma consideração da ameaça de violência necessária à proteção da propriedade privada dos meios de produção num mundo cada vez mais desigual e excludente, ou a forma como o orçamento militar consome recursos que poderiam de outro modo ser aplicados para aliviar o sofrimento humano e salvar vidas. Mais que isso, Pinker rastreia a maioria dos fatores de diminuição da violência no planeta (como percebida por ele) à racionalidade, especificamente à valorização iluminista da razão. Mas, como aponta John Gray em outro momento, os autores selecionados por ele para representar seu “humanismo iluminista” escreveram teorias bastante díspares entre si, alguns pouco liberais, a maioria não tão humanista quanto a povos não-europeus — e da seleção ficam de fora autores e movimentos que igualmente valorizavam a razão, como Marx e os jacobinos franceses, que acabam na sacola alternativa de “ideologia”, culpada pelas atrocidades reais. Atrocidades cometidas em nome da razão foram “interpretações erradas do verdadeiro evangelho, ou sua corrupção por influências externas”; o que está em jogo é em última instância um “artigo de fé”. Aqui encontramos a dupla natureza que a ideia de razão adquiriu ao longo da história do pensamento ocidental: por um lado, os “poderes da razão existem, acima de tudo, para restringir nossos instintos mais básicos” e animalescos; eles formariam a base da moralidade, comenta Graeber em The Utopia of Rules. Por outro lado, houve quem atribuísse à racionalidade um caráter “puramente técnico”, como o de “um instrumento, uma máquina, um meio para calcular como mais eficientemente alcançar objetivos que não poderiam eles próprios ser aferidos em termos racionais”. Nesse caso, a razão perderia qualquer capacidade de “nos dizer o que deveríamos querer”, podendo apenas “nos dizer como melhor alcançar” nossas vontades. Graeber divaga:

um argumento racional pode ser definido como um que é simultaneamente baseado na realidade empírica, e logicamente coerente em seu formato. […] Mas se este é o caso, chamar alguém, ou um argumento, de “racional” significa quase nada. […] Você só está dizendo que eles não são obviamente malucos. Mas […] reivindicar que as próprias posições políticas se baseiam em “racionalidade” é uma frase extremamente forte. De fato, é extraordinariamente arrogante, uma vez que significa que aqueles que discordam de tais posições não estão apenas errados, mas são loucos. De maneira similar, dizer que se deseja criar uma ordem social “racional” implica que os arranjos sociais atuais poderiam ter sido projetados pelos habitantes de um hospício. Certamente, todos nós nos sentimos assim uma vez ou outra. Mas essa é no mínimo uma posição extraordinariamente intolerante, uma vez que implica que seus oponentes não estão apenas errados, mas em um certo sentido, sequer saberiam o que significa estar errado, a não ser que, por algum milagre, eles viessem a aceitar a luz da razão e decidissem aceitar o seu enquadramento conceitual e ponto de vista.

O uso das expressões “milagre” e “luz da razão” não é coincidência, uma vez que a primeira escola de pensamento a ver a razão como um valor em si (e a se considerar racionalista) foi a pitagórica. Apesar da associação contemporânea (e justificada) do nome à matemática, os pitagóricos eram essencialmente místicos: suas descobertas de razões matemáticas presentes na geometria, na música e no movimento dos planetas fundamentou não só quase todas as escolas filosóficas posteriores como também a “religião cósmica” da antiguidade tardia, cujo credo principal era a identidade entre Deus, Razão e Cosmos (o que seria adaptado mais tarde à doutrina católica). Assim como Arendt descreve o contraste entre a ordem política imperial em voga e a solidificação do conceito individualista de liberdade, associado ao livre-arbítrio, Graeber compara dois períodos: no primeiro, ainda no contexto do Império Romano (em que “uma única — e aparentemente eterna — ordem legal e burocrática regulava os assuntos públicos”), os intelectuais da “religião cósmica” aspiravam “transcender sistemas terrenos completamente”; já no contexto de um medievo europeu politicamente fraturado, os intelectuais da época “debatiam a exata divisão de poderes dentro de um único e unificado sistema cósmico de administração grandioso e imaginário”; por exemplo, as exatas patentes hierárquicas e atribuições dos anjos. Sua investigação desse legado filosófico-conceitual o leva à conclusão de que a valorização de uma racionalidade “burocrática” (um mero meio, completamente desassociado de um fim) “nunca parece conseguir conter a si mesma a meras questões de raciocínio dedutivo, ou mesmo eficiência técnica”, levando invariavelmente a algum “esquema cosmológico grandioso”; ou seja, a dissociação entre meios e fins é uma artificialidade que não pode ser facilmente mantida. Como observa Lyotard, a forma como o discurso científico procurou legitimar a si mesmo na pós-modernidade deu origem à valorização da própria eficiência como critério de legitimação, conclusão não muito distante da supracitada percepção de Friedman.

As coisas são complexas, e obviamente não é necessário julgar o livro como completamente certo ou completamente errado. É possível que ele tenha de fato percebido uma queda nas taxas de violência, mas que elas não se deram pelos motivos que ele concluiu. É possível que alguns motivos sejam razoáveis, enquanto outros não. E é possível também que a violência como definida por ele, por mais razoável e suportada pelos dados que seja, não leve em conta outros aspectos da violência ou outras consequências negativas em geral do fenômeno que ele descreve, de modo que mesmo que ele esteja certo, uma resposta anarquista à sua conclusão não precise passar por uma “refutação” de seu argumento, mas sim por uma complementação, como uma espécie de adendo: sim, a violência diminuiu. Mas não significa que nossas vidas estejam melhores. De fato, não é porque a violência manifesta diminuiu que nossa vida não seja em grande medida estruturada por uma ameaça de violência constitutiva que não precisa ser efetivada para ser efetiva. Nossa liberdade pode ter diminuído – e, como coloca Gelderloos, a não-violência funciona como uma ideologia extremamente útil à manutenção do status quo. Colocar no mesmo saco de coisas a serem comemoradas a diminuição da violência doméstica e de revoluções armadas contra Estados nacionais é bastante discutível.

Eu tenho até aqui descrito minha relação com o livro em termos bastante ideológicos. Deixo minha posição de leitor anarquista clara desde o início e como me relaciono com a obra em termos de como ela potencialmente afeta as ideias anarquistas como as conheço. Parece, no entanto, que já decidi que o livro é meu inimigo e que estou procurando razões para odiá-lo. Isso seria, na verdade, cair numa das consequências particularmente negativas de teorias pós-modernas ou pós-estruturalistas segundo as quais tudo, principalmente o conhecimento, resume-se a um conflito. Eu entendo como pode parecer que é isso que estou fazendo: em vez de lendo um livro de ciência social enquanto um cientista social, procurando vencê-lo para que meus projetos políticos avancem. Tudo é poder, tudo é ideologia.

Embora eu goste de vários elementos do pós-modernismo, não acho que é preciso ir tão longe. Não entendo que o livro de Pinker seja ideologia nesse sentido simplório – o cara escreveu porque está alinhado ao imperialismo, porque tem motivações nefastas, e daí por diante. Para mim, a ideologia funciona mais a nível de seleção – a ideologia prevalente contribuiu para que o livro tenha sido mais circulado em certos espaços, mas aceito pelas pessoas que o leram; ora, para que o livro tenha sido publicado em primeiro lugar – e também na formação de discursos de modo que algumas coisas podem advir de um senso comum não-questionado, de algum viés de seleção difícil de detectar. Nesse caso, acho que o aspecto ideológico aqui é relativamente transparente: o Estado se apresenta como a possibilidade de uma conciliação e resolução das contradições da vida, o que estaria funcionando espetacularmente bem no caso da violência entre indivíduos e entre grupos. Na medida em que a racionalidade, contudo, é vista como um valor intrínseco e superior a todos os outros, ela pode facilmente ser associada à justificação da violência: vide a questão prisional acima, ou a também supracitada questão da ameaça de violência: o neoliberalismo tratou justamente de privilegiar a criação de um senso de imutabilidade do sistema, e de fortalecer as tecnologias de segurança e vigilância que embasam tal sentimento. A autoridade reforça a confiança na razão: “É apenas o hábito de comandar que permite a alguém imaginar que o mundo pode ser reduzido a algo equivalente a fórmulas matemáticas”, afirma Graeber, “fórmulas que podem ser aplicadas a qualquer situação, independentemente de suas reais complexidades humanas”.

Sendo assim, concluo que a obra reúne insights e observações dos mais diversos campos de conhecimento, e é um esforço admirável; contudo, ela fracassa em suas raízes ideológicas mais profundas – o que constitui a violência, qual é o seu valor e seu lugar na experiência humana, e como interpretá-la como fenômeno que vai além de sua manifestação evidente em nossa organização social.

A autogestão contra a burocracia eleitoral: um breve relato de caso

Atenção: tentarei “anonimizar” a história o máximo possível, embora creio que qualquer um, tendo determinadas informações contextuais, possa saber do que estou falando, talvez até de quem eu esteja falando. De qualquer forma, o importante é o conteúdo das ideias; meu objetivo foi refletir um pouco sobre a conexão entre algumas coisas que estou lendo ultimamente e esse pequeno contato com uma experiência prática.

Recentemente enviei um email para um coletivo ativista perguntando como colaborar com suas atividades. Eles me convidaram para um debate sobre as práticas de autogestão de um centro acadêmico (CA), que estavam sendo questionadas por um grupo de estudantes do curso. O debate, no caso, foi convocado por esses estudantes, não pelo CA.

Cheguei no local sem conhecer ninguém, e por isso resolvi ficar “só observando”, quieto no meu canto. Não é só uma questão de “lugar de fala” ou coisa parecida; uma conversa de início teórica (caso em que eu certamente teria subsídios para participar) foi lentamente adquirindo nuances mais concretos quando se começou a discutir os problemas e a realidade específica daquele CA, sobre o qual eu nada sabia.

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Espero não ter parecido muito esquisito, lá de boa, só na minha. Photo by Nick Kenrick..   

Alguém teria quinze minutos para falar em defesa da autogestão, outro alguém quinze minutos para uma fala contrária, e todos teriam oportunidade de falar por dois minutos, caso se inscrevessem. Havia com folga mais de quarenta pessoas na sala, então o pouco tempo individual justificou-se (e era possível falar mais de uma vez de qualquer forma). Apesar disso, não posso deixar de observar que essas regras me pareceram mais apresentadas que propostas.

Lados e temas

No começo, ninguém falou nada em defesa da autogestão; leu-se apenas uma nota seca do CA, o que não levou nem um minuto. Parecia ter sido feita por um assessor de imprensa; eu não discordava de seu conteúdo, em princípio, mas ele vinha num pacote extremamente formal e brando. De início fiquei preocupado: será que não havia ninguém para defender a autogestão? Um debate de um lado só foi arranjado por direitistas?? Não é contraditório estar disposto ao debate e não fazê-lo de fato??!! Oh, céus, que diabos estava acontecendo?????

De qualquer maneira, a representante de uma entidade estudantil fez uma fala que se resumiu a:

  • Uma crítica da Revolução Espanhola, em que os anarquistas aparentemente se renderam ao governo burguês em vez de destruí-lo porque lhes faltou, num momento crítico, uma proposta de organização que pudesse substituí-lo – no mínimo um engano, no limite uma mentira; a CNT e a FAI “entregaram seus cargos” no Estado republicano precisamente porque não concordavam com sua existência e julgaram que possuíam força suficiente para levar a cabo a autogestão. Que foi, aliás, muito bem sucedida antes de sofrer uma derrota militar.
  • Uma crítica ao processo decisório com base em consenso como se ele fosse uma votação unânime – o que é outra caracterização enganosa – e como se ele não apenas exigisse muito de cada indivíduo, sendo excludente na prática, como também fosse ineficaz.
  • Uma defesa da democracia como um processo adversarial de debate de ideias, legitimado pelo consentimento materializado no processo eleitoral, e salpicado com uma pitada de idealismo em relação à ideia de representação de mandato imperativo (ou “de base”).

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UghPhoto by Alex W McCabe

Depois disso, vários defensores do CA começaram a fazer colocações contrárias a essa fala. Os partidários de outros modelos organizativos começaram a ficar mais específicos, dizendo o que não estava lhes agradando no CA. Muitos – todos, na verdade – que defendiam a autogestão admitiram que um dos elementos preponderantes para seu bom funcionamento é justamente a autocrítica, e que é preciso sanar os problemas levantados. Apesar da especificidade, a reunião não necessariamente tornou-se um muro de lamentações, e os defensores de modelos gestionários alternativos (mainstream em qualquer outro espaço, na verdade) ainda defenderam algumas coisas positivas que estes poderiam trazer e que, ao seu ver, não estavam sendo contempladas.

Como escreve Graeber em The Utopia of Rules, as burocracias também têm suas vantagens. Elas podem ser produtivas. Um estudante disse que “uma das maiores dificuldades da autogestão é que é um sistema que depende das pessoas envolvidas nele”. Isso reflete algumas observações minhas sobre a simetria entre o anarquismo e o (neo)republicanismo: em vez de ser um sistema “autorreplicante” (que não depende de nenhuma atuação individual; em certo sentido, uma burocracia bem lubrificada), o anarquismo é um sistema de incentivos que depende de iniciativas individuais para se manter. Adoraria mostrar o texto que fiz sobre isso, mas ainda pretendo publicá-lo em formato acadêmico (colocarei o link aqui quando ele estiver disponível um dia).

Mais tarde, alguém que observou o quanto esse debate entre diferentes propostas de modelo organizacional tem a ver com – surgiu a partir de – uma degeneração de mais longo prazo nas relações de proximidade entre as pessoas. Esse argumento, defendido de forma um tanto quanto carismática (“chapa é só pra cabeça, galera”), é essencial. Antes de me voltar para isso de maneira teórica, assinalo que na prática do encontro me parece que todos, ou ao menos muitos, reconheceram a importância de refletir como a organização horizontal do CA, que em tese deveria ter favorecido precisamente isso, acabou falhando nesse aspecto.

Liderança e circulação de informação

“A liderança sempre vai existir, mas depende do que está sendo discutido (do contexto)”. Isso aqui também é extremamente importante. Um dos argumentos da representante da entidade estudantil foi que sem uma estrutura rígida, grupinhos informais acabariam operando como autoridades de facto e os indivíduos ficariam a mercê dessas estruturas menos transparentes de poder. Em suma, ela, como aliás muitos outros, não entenderam Jo Freeman. Novamente, eu não poderia recomendar The Utopia of Rules mais, e sinto que fará bem citá-lo (traduzindo-o; no link há três parágrafos você encontra o original):

Quase todo mundo que não vem de um pano de fundo explicitamente anti-autoritário […] leu o ensaio de Freeman de maneira completamente errada, e o interpretou não como um apelo por mecanismos formais que garantam a igualdade, mas como um apelo por uma hierarquia mais transparente. Leninistas são notórios por esse tipo de coisa, mas liberais são tão ruins quanto eles. Perdi a conta de quantas discussões já tive sobre isso. Primeiro, o argumento de Freeman sobre a formação de panelinhas e estruturas de poder invisíveis é visto como uma defesa da ideia de que qualquer grupo com mais de vinte pessoas sempre terá panelinhas, estruturas de poder, e pessoas em cargos de autoridade. O próximo passo é insistir que se você quer minimizar o poder de tais panelinhas, ou quaisquer efeitos deletérios que essas estruturas de poder possam ter, a única forma de fazê-lo é institucionalizá-los: pegar o grupinho que já existe na prática e transformá-los num comitê central […]. É preciso tirar o poder das sombras – formalizar o processo, inventar regras, fazer eleições, especificar exatamente o que o grupinho pode e não pode fazer. Dessa forma, ao menos, o poder será transparente e deve “prestar contas” […]. Ele não será de modo algum arbitrário.

De um ponto de vista prático, militante, essa prescrição é obviamente ridícula. É muito mais fácil limitar o poder que panelinhas informais podem obter ao não lhes conceder status formal algum, e portanto nenhuma legitimidade; quaisquer “estrutura formais de prestação de contas” que se imagina que irão conter as panelinhas-que-viraram-comitês são muito menos eficazes quanto a isso, principalmente porque acabam legitimando e portanto aumentando enormemente o acesso diferencial à informação que permite pessoas em grupos que de outro modo seriam igualitários a ter mais poder para começo de conversa. […] Estruturas de transparência inevitavelmente começam a se tornar estruturas de burrice no momento em que isso ocorre.

Voltando ao que o próprio aluno comentou sobre a questão, é exatamente isso que eu quis dizer no meu post sobre liderança. A liderança não se trata de pessoas e suas características, mas de contextos de decisão; ela é um fenômeno coletivo, não um traço de personalidade ou um trabalho a ser feito, um cargo. Definir de maneira rígida quem deve exercer esse papel é perder a potência de fazer com que líderes emerjam organicamente em cada contexto, o que torna os processos de decisão e execução inclusive mais eficientes.

Algo que Graeber também comenta com frequência (em Um Projeto de Democracia, por exemplo) é a questão do acesso às informações e como isso é importante para manter uma estrutura horizontal e igualitária. Muitos estavam reclamando da existência de um grupo [de facebook] fechado, inclusive com publicação de atas nele em vez de em espaços abertos, deliberações feitas por meio dele – e, aliás, que muitas vezes não era publicada uma pauta prévia das reuniões, apenas a ata posterior. Não tenho como avaliar a exatidão de todas essas acusações; isso não ficou claro pra mim a partir da interação entre os estudantes, e alguns disseram que o grupo era puramente logístico e não se deliberava nada por meio dele. Contudo, se alguma parte disso for verdade, isso é obviamente execrável e claramente constitui um obstáculo à operação saudável de um grupo autogestionado.

No entanto, defender que a solução para isso é oficializar precisamente essas práticas negativas – o grupinho que se arroga o poder decisório – é bizarro. É trocar a liberdade (que não se dá aqui necessariamente na chave negativa de Berlin) pela esperança de que pelo menos, quem sabe, o grupinho no poder será o meu.

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Photo by pittaya

A diferença entre representação e modelo representativo

Muitos criticaram o CA, por exemplo, por ter reuniões em horários ruins, deixando alunos do curso noturno, na maior parte, impossibilitados de participar. Esses alunos que não iam às reuniões gostariam de ter uma forma de colocar pautas e conseguir influenciar decisões, diziam – sentir-se, enfim, representados. “A autogestão não exclui a representação”, replicou uma aluna. Como brilhantemente recupera Cohn em seu ótimo livro, embora os anarquistas reconheçam certos perigos com um modelo político baseado em representação, eles não rejeitam o conceito em si. A estudante em questão, se não me engano hoje na pós, mencionou que diversos interesses e pautas podem ser representados junto ao CA – e que, aliás, sua estrutura atual permite uma porosidade muito maior a uma diversidade de pautas do que um esquema com representantes rigidamente definidos, chapas, eleições, etc. Como isso acontece, e por que não parece estar sendo o caso desse CA, ao menos para os estudantes que não se sentem representados?

Deixando de lado a possibilidade de sugerir pautas remotamente ou por meio de colegas, o problema poderia ser amenizado com mais reuniões, variabilidade nos horários – há uma série de coisas que se poderia fazer nesse sentido, na verdade; não é como se faltasse criatividade para o brasileiro quando se quer resolver um problema. O que não faz sentido é alterar o sistema de gestão, uma vez que isso não efetiva a participação dos desafetados mas pelo contrário a torna desnecessária: quero poder votar em pessoas que façam as coisas por mim, para que eu não precise (embora possa) ir às reuniões e ter o trabalho de colaborar para obter os resultados que eu quero.

Seria generoso demais dizer que a representante da entidade estudantil falou de “prestação de contas” no sentido de um mecanismo de recall, como se poderia esperar de alguém que cita o mandato imperativo, porque em nenhum momento ela disse com todas as letras que, caso o programa da chapa não seja cumprido, a chapa deveria perder o poder; apenas que, havendo um programa eleito, os eleitores podem “cobrar” sua execução (o que deve nos trazer os mesmos efeitos de ter dito “fica, mas melhora” para a Dilma no topo de um carro de som ou assinar petições da Avaaz para o Congresso). Mas aí as armadilhas e os alçapões de sempre vêm à tona: se os eleitos não cumprem o programa, tentativas de substituí-los antes do próximo momento eleitoral oficial podem ser vistas como golpes, não como a base cobrando seus representantes que façam o que prometeram (e não importa se na próxima eleição eles saírem: na prática, o resultado de qualquer jeito é a falta dos efeitos prometidos, e a esperança por mais sorte da próxima vez, o único remédio). Justamente pelo efeito de panelinha (que só tende a se acentuar, se formalizado), a diferença no acesso à informação cria o efeito de estupidez burocrática que Graeber menciona acima, e permite aos eleitos que se posicionem como representantes fiduciários, o que é na verdade bastante lógico e racional: “vocês me escolheram para representá-los, então confiem em mim quando digo que, estando aqui nesse cargo, eu sei de coisas que vocês não sabem. Eu estou envolvido, e vocês não. Então ouçam, e confiem, porque eu sei o que é melhor para vocês”.

Não se trata de burocratizar, nem de tomar o poder, nem de tornar o CA autoritário, responderam alguns. Trata-se de organizar melhor, só. Mas a questão é que não importa o quanto a boa vontade dos eleitos vai fazer com que o CA continue aberto (a novas ideias), vibrante, diverso; a eleição estabelece um enorme trunfo que pode ser usado, se não violentamente mas a nível de retórica, para calar o dissenso e contrariar a base. Imagine uma regra jurídica determinando que o testemunho de um policial, por si só, deva ser considerado suficiente como prova condenatória em processos penais. Não me venha dizer que os policiais serão bonzinhos e não vão usar isso contra pessoas das quais eles não gostem (e eles não costumam ir muito com a cara da população negra): a questão é que não é bom que essa seja a regra!

Oh, espera… Essa regra existe. Libertem Rafael Braga.

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Um exemplo menos deprimente. No prédio onde moro, o regimento interno não costumava especificar um período de “perdão” de advertências e multas. Mantendo o mesmo regimento por dois, cinco, dez anos, temos uma situação em que eu posso levar hoje uma advertência escrita por um determinado comportamento, e fico sujeito a levar uma multa se repeti-lo daqui a dois, cinco ou dez anos, porque a advertência nunca expira. Será que o síndico me daria uma multa nesse caso? Não sei, provavelmente não. É o que o bom senso preconiza, espero. Mas não se pode esperar que o bom senso funcione contra a regra escrita – porque se o síndico não vai com a minha cara, ele encontrará respaldo nessa “falha estrutural” para me prejudicar. E mesmo que eu consiga me defender com sucesso numa assembleia – o melhor é não ter que passar por essa situação toda, não é mesmo?

Mas tudo bem, e se houver recall? Se o mandato for realmente imperativo? Bem, ocorre que a própria tensão inerente à representação (como nos revelou Pitkin há décadas) é que o representante que não tem a prerrogativa de contrariar sua base não é de fato um representante; e se não o for, a “praticidade” de não ter que participar ativamente da política para obter o que se quer vai pelas cucuias (os alunos vão ter que participar do mesmo jeito, exatamente aquilo que reclamam que é muito difícil de fazer porque trabalham, têm outros compromissos, etc). E mesmo se os eleitos cumprem com o programa, outras pautas, que podem surgir inclusive após a eleição, vão ter (naturalmente) mais dificuldade de se enraizar e se desenvolver. O que um programa eleito, fechado e obrigatório tem a dizer sobre uma nova demanda, que não constava no programa? Os alunos vão fazer um plebiscito? Mas se for assim, por que não uma democracia plebiscitária de uma vez? Aliás, uma das ideias que o próprio CA já tinha considerado, segundo uma aluna, era periodicamente eleger programas, e não cargos. Pode ser um meio-termo interessante. De qualquer modo, há ainda outros problemas associados à alternância: projetos de longo prazo podem se perder se a administração muda (não só pelo overhead, mas porque às vezes quem chegou não tem interesse, mesmo, em dar continuidade ao que estava sendo feito). O que estou dizendo é que a democracia que se quer alcançar com o modelo autogestionado, como apontou a estudante da pós, é estruturalmente mais pervasiva e aberta. Não é preciso que o modelo seja estruturado a partir da representação para que esta ocorra.

Princípios versus eficiência

Uma outra colocação de um aluno (o que se liga, de certo modo, à importância da iniciativa individual e das relações entre os indivíduos em um sistema autogestionado) foi a do “desenvolvimento pessoal”: quando a estrutura exige em si a participação ativa dos indivíduos para que funcione, há um incentivo e uma necessidade de participação que os desenvolve por meio dessa participação, dessa responsabilidade. Isso na verdade é muito importante, pois discutir modelos de gestão implica discutir em alguma medida ideais normativos em relação ao engajamento dos alunos e ao relacionamento entre eles. Que tipo de aluno queremos que a passagem pela universidade ajude a formar? Com que tipo de valores e experiências queremos que eles entrem em contato? Não há neutralidade; não há modelo que “deixe” de fazer isso, que deixe de ser ideológico, enquanto outros seriam. Não: todo modelo tem esse mesmo efeito produtivo, e são valores que sempre estão em jogo. A eficiência do CA, e o quanto ele está respondendo aos anseios dos alunos, obviamente é algo que também conta, e os alunos frustrados não são nem bolsominions nem agentes da CIA tentando desestabilizar um modelo político (eu acho). Mas não há como afastar esse importante aspecto da questão, ao qual retornarei daqui a pouco.

Alguns alunos mencionaram que às vezes certas decisões não são tomadas por falta de uma estrutura decisória em que haja um representante que possa tomá-las (numa instância decisória superior ao CA, no caso). Uma decisão específica foi mencionada como exemplo, e uma aluna então esclareceu que o CA absteve-se da decisão precisamente porque não foi feita uma discussão ampla com a base em relação a isso. Muito se falou sobre a questão da pressa: há um trade-off entre não ouvir ninguém e ser capaz de tomar decisões com velocidade recorde, e ouvir a todos mas demorar semanas para fazer algo. Qual é o ponto de equilíbrio com o qual os alunos estejam confortável – algo razoável, que dê tempo o suficiente para jogar a responsabilidade também nas costas de quem teve toda oportunidade de participar da discussão, mas não o fez – não é algo objetivamente verificável e todo grupo deve lidar com isso, especialmente se há um desejo de ser inclusivo e igualitário (se o modelo já pressupor o poder de uma minoria de tomar as decisões, a tendência é, como nota Graeber, deixar de considerar a base). Embora é preciso pensar recursos e ferramentas para não tornar os procedimentos ineficazes, não se pode “atropelar” o processo de forma a matar essa inclusividade a qualquer custo. Aliás, se por um lado os estudantes frustrados reclamavam da pressa com a qual algumas decisões eram tomadas (“alguns ‘ok’ nos comentários do facebook e pronto, a decisão tá tomada”; alguns estudantes contestaram que o processo seja esse), por outro queriam marcar já para dali a duas semanas uma assembleia que decidisse entre os modelos de gestão. Menos de um mês para decidir pela reversão de um modelo político que funcionava bem há uma década, sendo inclusive elogiado pela representante da entidade estudantil?

As raízes da frustração

O que compreendi em geral, especialmente mais para o fim da roda de conversa, é que há uma frustração por parte de muitos alunos por não estarem sendo ouvidos, por não sentirem que têm poder efetivo por meio desse modelo de gestão. Há três razões pelas quais isso poderia estar acontecendo, duas delas sendo na verdade variações possíveis de uma só.

Em primeiro lugar, a acessibilidade e a transparência das reuniões e dos mecanismos decisórios. Quanto a isso, todo o grupo concordou que é preciso refletir e melhorar. E, diga-se de passagem, adotar um modelo de gestão eleitoral faria pouco para corrigir esse problema.

Em segundo lugar, alguns acusaram o CA, em resumo, de “groupthink”: uma grande resistência a ideias divergentes por conta de um pensamento convergente de uma maioria (ou maioria percebida), que reforça a si mesmo e acaba conectado inclusive à identidade dos membros (divergências podem ser vistas como rudes, hostis, ofensivas, até mesmo mal-intencionadas). Não tenho a mínima condição de saber se isso está mesmo acontecendo, embora isso não seja incomum em qualquer agrupamento. Contudo, se essa for uma leitura errada ou uma retórica enganosa, há ainda uma terceira possibilidade: a maioria simplesmente não concorda com as ideias divergentes. Talvez elas nem sejam tão boas assim para começo de conversa.

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Photo by Richard Masoner / Cyclelicious

Agora, vejam: seria muito injusto não dizer, mais uma vez, que não faço ideia de qual dessas duas opções está mais próxima da verdade. Não quero pintar nenhum estudante frustrado como um ser malévolo que, não conseguindo efetivar sua vontade no grupo, busca mudar suas regras para ter o que deseja. Ainda que esse fosse o caso, veja, não é uma questão de o bem contra o mal: isso faz parte da política.

Então é possível que, do contingente de pessoas que vá às reuniões do CA, certas ideias minoritárias encontrem uma resistência teimosa e preconceituosa, o que frustra aqueles que possam ser até hostilizados por dizerem o que pensam. Mas é possível também que esses estudantes simplesmente foram derrotados no debate de ideias. As outras pessoas da reunião, que não têm obrigação de fazer o que não querem (this is precisely the point!), não querem fazer o que está sendo sugerido, ou ao menos não pensam que o CA, como grupo, deva endossar essa sugestão.

O que aconteceria se a chapa desses estudantes frustrados perdesse a eleição? Será que tentariam voltar ao método autogestionário para ter mais chance de efetivar suas ideias? Isso tudo é curioso porque a única coisa diferente que a eleição providencia é uma espécie de critério matemático que os faz aceitar melhor a derrota. Sem resultados obtidos a partir de um método circunscrito, eles podem continuar culpando outras coisas, e outras pessoas, por seus fracassos. Podem sentir que é tudo uma conspiração, já que há “muita gente” insatisfeita e quem sabe toda essa gente seja, na verdade, uma maioria (!) que está sendo aviltada pelos usurpadores antidemocráticos acomodados com seus sombrios privilégios.

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ABRAM OS ÓLEOS! Photo by Sikachu!

Armados com essa retórica, o “verdadeiro sistema democrático” seria aquele que, por coincidência, eles sentem que lhes daria mais chances de conseguir efetivar seus planos. O que é mais democrático? Precisar chegar a um consenso quanto a uma proposta que seja razoável para todos (isto é, que não ofenda fundamentalmente os princípios de ninguém), ou precisar apenas de 50% + 1 do grupo para adquirir o direito de levar uma ideia ou projeto adiante, em nome de todos, apesar de objeções, algumas possivelmente profundas?

Mas, de novo, isso é normal: querer levar a cabo seus planos, seus projetos. É política. Mas são valores que se tem também; prioridades. Agora, se eles defendem o modelo eleitoral como mais democrático por princípios, por estratégia ou por cansaço, tanto faz: o que importa é que isso tudo é causado por um problema de relacionamento dentro do grupo. É uma falha de execução se, durante a deliberação, certas pessoas sintam-se tão frustradas que cogitem “dar um golpe na autogestão” (hahahaha, BRINCADEIRA! Ai ai…), independente se há ou não groupthink. Se os frustrados não estão sendo ouvidos porque não são respeitados, não são levados a sério, porque as pessoas não vão com suas caras… Isso é um grande problema, mas é algo que um modelo eleitoral não vai consertar. Na verdade, é mais provável que só faça piorar. Especialmente porque o problema já começa quando a lógica de vitória / derrota, de soma-zero – própria do sistema eleitoral! – torna-se prevalente dentro do sistema de consenso, que busca justamente ser uma alternativa a isso.

Mas é importante ressaltar, retornando agora à questão do tipo de aluno, e comunidade, que se quer construir, de que maneira o modelo autogestionário não só depende de relações de um tipo específico entre as pessoas mas também ajuda a construí-las. Por exemplo: apesar da má reputação que o “bloqueio de uma única pessoa contra todo mundo” tem (e, de novo, isso é geralmente um espantalho), há um certo quê de lógica nela que é importante analisar: se eu sei que qualquer um tem o poder de bloquear uma decisão, eu não posso me dar ao luxo de não levá-lo a sério, de não respeitá-lo, de não tentar entendê-lo e não tentar, também, de alguma forma, contemplá-lo. É claro que há limites de bom senso; se o mecanismo estiver sendo usado de má-fé, de maneira leviana, de modo a sequestrar o processo com vistas a conseguir vantagens pessoais, o grupo vai fazer bem em passar por cima dele. Mas se o mecanismo do bloqueio for respeitado tanto quanto possível; se for presumida uma boa fé em relação a essa benesse que ele traz; se ele for parte forte da cultura política a ponto de ser considerado rude e ofensivo não levar as pessoas a sério em suas divergências; então tal modelo gestionário tanto exigiria a construção de relações amistosas entre as pessoas quanto ajudaria a construí-las, tanto exigiria pessoas participativas e responsáveis quanto ensinaria na prática a participar e a assumir responsabilidades.

O sistema eleitoral é construído sobre premissas completamente diferentes. Privilegia o exercício individual e atomizado de reflexão, incentiva a competição (e groupthink, aliás, só que na forma de bolhas e câmaras de eco) quando às vezes ela nem faz tanto sentido, implica a terceirização da ação política, torna supérflua a construção de laços entre as pessoas e se apresenta como se fosse óbvio, científico, neutro e natural, quando na verdade é tão contingente e arbitrário, ao nível abstrato, quanto qualquer outro método. A organização do grupo importa. Como Graeber comenta, novamente em The Utopia of Rules, o mesmo punhado de pessoas que, estatisticamente falando, usa muita droga recreativa, pode votar, em sua maioria, para torná-las ilegais; o modo como somos organizados nos incentiva a pensar, agir e nos relacionar uns com os outros de certas maneiras, e oculta de antemão outras possibilidades, moldando em grande medida o horizonte de nossos comportamentos.

É comum ouvir que o processo decisório baseado por consenso ignora que a política – que a vida – é feita de conflito. Eu acho que Habermas é um pouco culpado disso – Luis Felipe Miguel que o diga – mas ele não é anarquista (e aparentemente “consenso” é uma tradução errada, pelo que ouvi dizer). Se o que o consenso tenta fazer – atingir uma matriz de colaboração mesmo entre pessoas que pensam diferente, sem tentar “conquistar” mentes, como observou uma estudante ao rechaçar essa metáfora militar – o que o processo eleitoral ignora é que o conflito existe lado a lado com o entendimento mútuo, com a colaboração. É como ter um namoro em que as brigas não são vistas como partes do processo de voltar a estar bem, mas o estar bem torna-se parte do processo de arranjar novas brigas.

A prova da existência do pudim está em comê-lo

Esse “apresentar-se como natural” do modelo eleitoral, aliás, apareceu de forma pungente quando, mais para o final da reunião, a representante da entidade estudantil comentou que os estudantes deveriam ter a chance de escolher qual modelo de gestão adotar – escolher, é claro, a partir de uma eleição. Obviamente, um estudante comentou que isso é definir a eleição como um processo decisório “raiz” em relação aos processos decisórios. Ou seja, é o mesmo debate, só que no andar de baixo.

Os estudantes já tem a oportunidade de definir as eleições como processo decisório. Exceto que estão fazendo isso por meio de um processo não-eleitoral.

Isso lembra a clássica comparação, viralizada na internet quando Bolsonaro elogiou Brilhante Ustra na televisão, entre defender a democracia na ditadura e defender a ditadura na democracia. Obviamente a analogia não é em grau, e não estou tentando dizer que defensores do modelo eleitoral querem torturar estudantes, por favor. No entanto, a diferença entre modos de relação e sistemas de incentivo de um modelo para outro, como descrevi acima, é sintomático. Uma coisa é defender eleição por meio da autogestão. Outra coisa é defender autogestão por meio da eleição.

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Tecnicamente isso não é uma aplicação da lei de Godwin. Ou é? Photo by Robert Couse-Baker

Uma vez que você troque para um modelo eleitoral e alimente a ideia de que democracia é eleição, você está, digamos, “jogando pra galera” – validando o bem-estar de estudantes que agora sentem que estão fazendo a diferença sem fazer quase nada. E essas pessoas, no contexto de um curso de graduação, são a maioria – ou costumam ser, de qualquer modo; talvez nesse curso seja diferente. Só que a questão é: isso não quer dizer que os interesses delas serão melhor representados, ou que o CA será mais eficiente. O que quer dizer é um reforço cultural ao cultivo de relações mais fracas e menos substantivas entre os estudantes (não que as eleições determinem que esse seja o resultado; apenas o influencia, por si só, nessa direção). E quando isso estiver mais cimentado, será possível, eu me pergunto, que, numa eleição, a maioria dos estudantes vote para mudar para um sistema que exija mais deles, de modo que aqueles que não participavam antes, e vão continuar não participando, perderiam a única coisa que mantinha a ilusão de que estão fazendo alguma coisa?

Difícil.

E essa é a chave para entender por que, no começo da reunião, ninguém quis defender a autogestão, escolhendo deixar passar 13 minutos de tempo de fala e permitindo que o “outro lado” expusesse seus argumentos. Politics in Time, my friends: o passado importa. Cada decisão gera um reforço positivo (positive feedback); eleição reforça eleição, assim como autogestão reforça autogestão.

Essa é a importância de conquistar e construir espaços. Ninguém defendeu a autogestão porque não era necessário: ela tornou-se, naquele espaço, o status quo. Quando Paulo Coelho deu uma mijada em James Joyce, o crítico britânico Stuart Kelly citou Samuel Johnson: “uma mosca pode picar um cavalo, mas o cavalo continua a ser um cavalo, e a mosca não mais que uma mosca”. É isso: a autogestão, nesse CA, tornou-se um cavalo.

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Um belo de um potranco. Mas, é claro, é preciso alimentá-lo bem. E levá-lo ao veterinário (ou, bem, imagino que o veterinário venha até ele? Eu nunca tive um cavalo). E dar-lhe amor e carinho. Photo by Infomastern

A serenidade para encarar os críticos vem da ciência de que a cultura de autogestão criou raízes e é forte. Aliás, é por isso que mesmo estudantes assíduos do CA foram à reunião que não foi oficialmente convocada pelo CA; por isso que o tom da conversa foi sempre bastante respeitoso; por isso que buscou-se entender do que se tratava toda a frustração, por isso que admitiu-se erros, por isso que se buscou pensar o que fazer para melhorar e incluir aqueles que não se sentiam incluídos, contemplados, respeitados. Porque isso é processo decisório baseado em consenso, oras bolas; isso é solidariedade, isso é o tipo de coisa que anarquistas defendem. Se essa reunião tivesse acontecido no contexto de um modelo eleitoral, o que seria bem possível de ter acontecido, como vemos tantas e tantas vezes por aí? Ou, que tipo de atitudes o modelo eleitoral inerentemente torna mais provável que aconteçam? Acusações de que quem reclama do processo é antidemocrático; abstenção em massa por parte dos apoiadores do modelo eleitoral, já que a reunião não foi oficial e não tem legitimidade (e já que o poder de convocar reuniões está na patota eleita, e quem reclama das eleições é antidemocrático, é bem provável que nenhuma reunião oficial seja convocada); e, principalmente, seria preciso vencer eleições para aboli-las em nome de uma revolução no processo democrático. Há razões, como discutido acima, pelas quais as eleições, por natureza, não favorecem esse resultado. Razões pelas quais uma revolução comunista dificilmente passa por uma eleição burguesa. Razões pelas quais Schumpeter, aliás, só julgou que o socialismo é compatível com a democracia se esta for competição entre elites, elites estas que devem ser deixadas em paz para fazer o que bem entenderem, sob a pena de quem sabe não serem mais a elite das elites na próxima eleição.

Um só coração – pero la cabeza soy yo

Em suma, foi possível ter uma discussão enriquecedora que não descambou em, por exemplo, acusações de fascismo por conta de divergências que nada tem a ver com isso. Ah, claro, exceto por uma: um orgulhoso membro do Partido dos Trabalhadores, que dizia que os alunos “tem o direito” de exigir eleições pra decidir entre o modelo eleitoral e o autogestionário (o próximo passo lógico é chamar a polícia, presumo, já que direitos devem ser garantidos?). Ele, membro de uma comissão eleitoral (de outra coisa, que não o CA), brincou que impugnaria uma chapa do MBL (para constrangimento de um dos estudantes frustrados, que estava tentando ganhar troféu de republicano do ano). Quando falavam sobre os problemas do modelo eleitoral, ele me vem com essa: “não é possível que o mundo inteiro esteja errado!”

Olha, eu fiquei quieto o tempo inteiro. Eu juro. Mas, aproveitando que ele estava do meu lado, não aguentei e disse: “não sei se você reparou, mas o mundo inteiro meio que está uma merda”. E emendei: “não é como se não houvesse uma catástrofe ambiental em escala planetária sobre nossas cabeças ou coisa parecida, não é mesmo?”

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Foto obrigatória de um urso polar sozinho numa ilha de gelo para falar de aquecimento global. Aliás… Se os White Walkers em Game of Thrones (SPOILERS!) basicamente representam o aquecimento global, quão simbólico foi que Jon Snow e sua turma tenham ficado presos em uma ilha de gelo enquanto esperavam a Daenerys chegar? Photo by Christopher.Michel

Ele, é claro, vira pra mim e diz: “E quem é você, que nunca te vi aqui na bio?” (confirmando que fiz bem em não falar ao grande grupo). “Não sou da bio”, respondi, “mas estou aqui falando com você, não disse nada na reunião porque não sou daqui”. “Essa gente quer dividir a esquerda”, disse ele, fazendo um gesto com a mão que deixou meio no ar se ele me incluía nessa gente; “mais vale ser sincero e colar logo o adesivo do Aécio e do Bolsonaro no peito”. Eu fui obrigado a rir dessa.

Ao fim da reunião ele me deu uns tapinhas camaradas nas costas, dizendo coisas como “temos que nos juntar para combater o golpe”, etc. A esperança pode ser a última que morre, mas instinto eleitoreiro vem antes dela por pouco: vai ver era isso que a representante da entidade estudantil tinha em mente quando comentou que as eleições não dividem os grupos, mas, pelo contrário, promovem um debate que no fundo os aproxima (… Ela vive no Planeta Terra mesmo ou num artigo da Nádia Urbinati?).

Mas essa carícia de político que beija criancinha, essas boas intenções de quem quer unidade desde que seja sob o seu comando, eu dispenso. Não é esse o tipo de relação que se constrói em um grupo realmente livre e solidário.

Em defesa da (refletida) agência humana

A ideia de que a partir das liberdades a razão prevalecerá não é falseável, uma vez que o tempo pode ser considerado para mais ou para menos para que ela se prove verdadeira. Além disso, o futuro não é conhecido: e se nada der certo? Se estivermos só no começo de uma longa queda em direção à mais sombria das escuridões?

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Photo by mhobl

Não é o caso de pessimismo, nem de deixar o medo ditar nossas ações, nem de trocar grande liberdade por máxima segurança – mas qualquer análise complexa do mundo vai aceitar que, sim, às vezes agimos por medo, e sim, às vezes trocamos um pouco de liberdade por outras coisas, dentre elas, segurança.

Fish lembra que a confiança cega no valor da liberdade de expressão lembra muito o retorno de Jesus. Trocar parte da liberdade de expressão por repressão a formas de ação e discurso que ofendam a igual dignidade essencial dos humanos seria uma troca em direção à conservação da liberdade. Ou seja, é preciso presumir que às vezes certas instituições estão em risco, e é preciso defender os princípios sobre os quais elas foram fundadas (como no caso da liberdade e da igualdade, porquanto tal defesa não avance contra esses princípios). No entanto, o mais importante de tudo é que esses princípios estejam em efeito e guiem de fato a cultura das pessoas – daí a necessidade de princípios substantivos nos procedimentos políticos, talvez – porque se não qualquer lei, qualquer iniciativa nesse sentido vai restar enfraquecida. É um ponto de contraste entre anarquistas e republicanos, que visam mecanismos, uma política separada da sociologia; ideal, que vista governar “seres humanos em geral” desingenuamente defendendo que não são pressupostas várias coisas contingentes e discutíveis sobre a natureza humana. Tais iniciativas deveriam combater cânceres; impedir, mas de forma mais humana possível a disseminação de um discurso e de atitudes contrárias a esses princípios.

“Sinédoque, Nova Iorque” e o pós-modernismo

“Sinédoque, Nova Iorque” (2008) é o primeiro filme dirigido por Charlie Kaufman, conhecido por seu trabalho como roteirista em obras como “Eterno Brilho De Uma Mente Sem Lembranças” (2004) e “Quero Ser John Malkovich” (2000). Estrelado por Philip Seymour Hoffman, o filme foi declarado o melhor de sua década por Roger Ebert, e em Hermione Hoby afirmou no The Guardian que ele é tão “caleidoscopicamente inteligente quanto um livro”, mas que pode ter “vencido a literatura pós-moderna em seu próprio jogo”.

“Sinédoque” é uma obra pós-moderna em um sentido mais genuíno do que o que por vezes se passa por pós-moderno entre “compilações” na internet, que incluem sugestões assim rotuladas por causa de referências a mundos oníricos ou imaginários (como “A Origem”), interações complexas entre humanos e máquinas (como “Ghost in a Shell” ou “Ela”) ou técnicas de edição e estrutura não-linear (como “Pulp Fiction”). Obras como essas podem ter uma apresentação visualmente inovadora, mas sua essência ainda é “cartesiana”, por assim dizer. Por mais confuso que os universos de “A Origem” ou “Ghost in a Shell” possam ser a princípio, faz-se um grande esforço para explicar tudo, e daí decorre a possibilidade de uma interpretação correta do filme. “Sinédoque” não convida a uma compreensão simples; o diretor afirmou não só que não fornecerá uma interpretação oficial – como também que uma não poderia sequer existir em primeiro lugar.

Embora ele possa não trabalhar com uma trajetória inequívoca, suas possibilidades interpretativas geram maneiras de analisar como se incorporam sensibilidades e perspectivas a partir de como determinados temas são abordados. Embora avalio que, por exemplo, não seja possível dizer com certeza se Caden Cotard estava morto desde o início ou se ele foi uma mulher transexual o tempo inteiro, o filme certamente fala sobre tempo, morte, performance; sobre relações. A forma como essas categorias aparecem no filme dizem algo tanto sobre a sociedade que o proporcionou, e que (em certa medida) o consumiu e consome, quanto sobre seu idealizador, que dispôs de uma liberdade autoral nesta obra sem precedentes em sua carreira – o que também diz algo sobre o tipo de análise a ser empreendida, e a razão pela qual muitos filmes pop da indústria de Hollywood são tidos por pós-modernos: quando a lista é compilada por cinéfilos cujas trajetórias não cruzam com a filosofia ou as ciências humanas, o que tende a ser analisado é menos o “conteúdo” e mais a técnica, como a fotografia e a edição. Certamente isso não é pouco, mas “Sinédoque” contempla este ponto e vai mais longe.

Descrição e prescrição

Existem diferentes “pós-modernismos” no discurso contemporâneo, dois em especial: enquanto pode-se dizer que os pós-modernos são aqueles que apoiam ideias pós-modernas, há quem diga que pós-modernos somos todos nós, que vivemos num tempo caracterizado por certas ideias. E quanto mais a época em que vivemos exibe indícios de características pós-modernas, mais o pós-modernismo passa de militância filosófica a tradição analítica; se antes prenunciava-se a transformação das perspectivas (“não é válido pensar em metanarrativas”), com elas transformadas (“ninguém mais pensa em metanarrativas”) resta oferecer quadros de referências mais úteis para abordar a realidade social. Afinal, o modernismo não morreu – mas para Maffesoli ele é incapaz de “apreciar o que está nascendo”, uma “mutação” que joga por terra certezas e impossibilita aceitar valores que se apresentem como universais. Perspectivas modernas não seriam mais capazes de estudar o fenômeno social; só fazem negar ou condenar essa mutação.

Esta é então a primeira característica a ser destacada no pós-modernismo em suas duas faces: o universalismo está ultrapassado. Há uma crítica à racionalidade e ao “subjetivismo” (no sentido da noção moderna do sujeito enquanto indivíduo racional livre, que provoca uma sobredeterminação da individualidade ao custo da contextualidade), ao “totalismo” (a crença na possibilidade de uma narrativa universal) e ao “fundacionalismo” (a tentativa de basear o pensamento em construções metafísicas, racionais ou científicas). Em outras palavras, leva-se o aspecto “crítico” do modernismo às últimas consequências. O otimismo progressista ficou para trás: a pós-modernidade convida a pôr em dúvida a grande marcha do Progresso, escreve Maffesoli. Mas a “negatividade” do pós-modernismo’, explica Hatab, não deveria ser tomada como uma negação de qualquer sentido de verdade, ordem ou significado, mas a negação de certas presunções “hiperbólicas” que distorcem, escondem ou anulam o desenvolvimento da verdade, da ordem e do significado no mundo. Maffesoli concordaria, já que a pós-modernidade para ele se relaciona à “importância do complexo”. Ele se interessa em estudar o novo mundo que se descortina, com toda sua corporalidade; seu localismo em sentido epistemológico (contra o universalismo) e material (um apego ao espaço local); o sentimento de pertencimento tribal (ou comunitário) em oposição a um certo individualismo; a oposição que também se liga ao enfraquecimento da divisão entre sujeito e objeto, indivíduo e mundo, entre outros.

Transformação ou conformação

David Graeber sugere que a sensibilidade (e, como veremos, o projeto) pós-modernista “pode ser melhor entendida como uma meditação prolongada quanto a um nível de progresso tecnológico que não aconteceu”. Em vez de escolha inovadora, é justificativa retroativa na impossibilidade de um desejo anterior. O tempo cíclico como simples admissão da incapacidade de alterar significativamente, mediante insurreições, os rumos da história. A falta de narrativa universal não como insight revolucionário, e sim um derrotismo diante do poder de fogo de uma organização social estatal e capitalista, que impediria a criação de uma narrativa universal libertadora – embora certamente aplaudiria o universalismo da falta de uma grande narrativa, conquanto disso obteria vantagens.

Críticos marxistas costumam levantar exatamente esta bandeira contra o pós-modernismo; a ideia de uma suspeita sem limites sobre proposições ditas “racionais” ou científicas pode levar a uma recusa ao engajamento político consequente. O “dizer sim à vida apesar de tudo” pode significar o que Terry Eagleton chamou de “fetichização da diferença”, ponto de vista segundo o qual as diferenças não podem ser superadas, e assim em última instância reforça-se a autoridade do Estado liberal. Outros autores marxistas, como David Harvey, seguem uma tradição de análise menos focada em conceitos e mais voltada a algo parecido com o que Maffesoli fez: reconhecem a pós-modernidade como uma realidade social, mas a estudam como um produto que emerge das transformações do capitalismo – Fredric Jameson, por exemplo, caracteriza a pós-modernidade como uma “lógica cultural do capitalismo tardio”; numa economia transnacional baseada em alta tecnologia, lutas políticas e econômicas se tornariam lutas identitárias, e a falta de engajamento com grandes narrativas relacionadas à economia e ao poder tornariam os pós-modernos cúmplices de relações de dominação e exploração.

Assim como podemos falar de duas facetas do pós-modernismo, podemos falar de suas duas críticas. Pensadores ligados à tradição moderna, iluminista, obviamente discordam de todo o projeto intelectual. Outros criticam, especialmente à esquerda, tanto as características de uma sociedade pós-moderna quanto as consequências políticas de subscrever a ela; de vê-la com bons olhos. O pós-modernismo é descrito por seus críticos como uma lógica que favorece o status quo, e portanto não é realmente uma mudança (ou “mutação”) significativa, mas simples conformação a uma lógica de dominação que, embora tenha evoluído (avançado, crescido), permanece a mesma. A ideologia pós-moderna abre caminho para uma sociedade vista como uma máquina em que o prazer das engrenagens individuais dentro do sistema substitui qualquer desejo coletivo de liberdade; “um paradigma que trata como problemática qualquer identidade além do nível individual arrisca reduzir as pessoas a uma consciência superficial e atomizada de suas existências”, sem que se vejam como pertencendo essencialmente a comunidades, à espécie humana ou à natureza.

Por outro lado, é difícil entender como um projeto que valoriza o espírito crítico e sensibilidades que desafiam metanarrativas justamente pelos aspectos “totalitários” que podem advir de seus “totalismos” poderia levar a atitudes que não problematizam também outras estruturas de dominação denunciadas por movimentos modernos – em resposta às preocupações anarquistas, por exemplo, a história do capitalismo e do Estado-nação como modelos de organização social incontornáveis não deixa de ser uma metanarrativa. Maffesoli jamais poderia concordar com as alegações de que o pós-modernismo leva ao isolamento dos indivíduos: reconhecer a complexidade por detrás do aparente envolve, por exemplo, entender que “só existimos pelo e sob o olhar do outro […] cada um (pessoa plural em sua tribo de escolha), vai ser o que é a partir das ligações que o constituem”. E o mesmo foco na vida quotidiana foi o combustível dos situacionistas de maio de 68, pioneiros na análise do “capitalismo tardio” nos países industrializados de então. Textos situacionistas denunciavam a forma como os “simulacros” tendiam a reproduzir (e invisibilizar) formas de dominação, ou seja, constituíam uma forma pós-moderna de crítica à realidade social que tem potencial contestatório – e certamente a perspectiva dos simulacros não se reduzem a buscar uma “real realidade”; Baudrillard abre seu texto com os seguintes dizeres: “O simulacro nunca é o que esconde a verdade – é a verdade que esconde o fato de que não existe. O simulacro é verdadeiro”. Além disso, a partir de um quadro de referências pós-moderno pode-se formular perspectivas críticas que levem em consideração as especificidades e a variedade de culturas não-ocidentais.

Talvez uma chave de análise seja justamente o reconhecimento de que ao pós-modernismo como projeto filosófico não se segue, necessariamente, uma sensibilidade pós-moderna como a da mutação que Maffesoli identificou – ou mesmo que tal mutação de costumes, hábitos e inclinações não está vinculada ao projeto filosófico em questão. Maffesoli parece indicar que tais mudanças se devem à natureza cíclica da história (em oposição a uma concepção linear tão característica da modernidade); certos conceitos que chamamos pós-modernos agora simplesmente “retornaram”, e esse retorno não precisa ser resultado de desígnios racionais ou intencionais. Além disso, sem apego a uma grande narrativa geral, mesmo o apreço por certos valores (libertários, por exemplo) não encontra potência para abalar significativamente estruturas de dominação já organizadas (organização oriunda, talvez, justamente da efetividade, no passado, de uma grande narrativa). Assim, desconfiança em relação a narrativas totalizantes não seria o bastante; sem uma “contranarrativa”, a narrativa instituída se adapta e, mantendo relações de dominação, gera a ilusão de que o pós-moderno vive uma vida fundamentalmente diferente.

Um resumo da trama de “Sinédoque, Nova Iorque”

Caten Cotard vive em Schenectady com sua esposa, Adele Lack, e a filha de quatro anos, Olive Cotard. Adele é uma artista especializada em pinturas em miniatura. Caden é um diretor teatral, atualmente trabalhando na peça “A Morte do Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller; a atriz principal se chama Claire, e Hazel trabalha na bilheteria. Hazel deixa implícitos sentimentos românticos em relação a Caden. Fica evidente que ele e Adele não têm um bom relacionamento; tratam-se com certa indiferença e fazem terapia de casal. Adele falta à estreia da peça de Caden, e depois de assisti-la, critica-o por não produzir uma peça original e relevante. No outro dia, Adele diz a Caden que deseja fazer uma viagem já planejada a Berlim apenas com Olive, sugerindo que seria bom para os dois passar algum tempo separados.

Caden sente-se solitário e pensa com frequência na própria morte. Adele passa muito mais tempo que o previsto na Alemanha e não se comunica; após uma crise epiléptica, um médico diz que Caden tem uma síndrome que prejudica suas funções automáticas (como salivação e produção lacrimal). Na sala de espera, ele lera que Adele está ganhando reconhecimento como artista, e aparentemente está muito mais feliz do que quando estava junto a ele.

Hazel convida Caden para ir até sua casa mas, incapaz de esquecer de seu problemas, ele não consegue fazer sexo com ela. Algum tempo depois, ele é agraciado com uma espécie de bolsa para uma produção artística, e discute com a psicóloga que tipo de peça quer fazer com o dinheiro: “algo grande e verdadeiro” em que ele possa “finalmente colocar [a si mesmo] em alguma coisa”. Cotard aluga um gigantesco galpão e pede a ajuda de Hazel, que recusa, ainda magoada. Depois de uma conversa com os atores sobre a peça que pretende fazer, Caden se encontra com Claire (contratada por ele para a peça); eles se casam e têm uma filha, que já tem alguns anos quando Caden descobre que Olive, agora tendo entre dez e onze anos, fez uma tatuagem que percorre o corpo inteiro. Para desespero de Claire, ele decide ir à Alemanha encontrar sua (primeira) filha.

Ele consegue somente se encontrar com Maria, amiga de Adele, e os dois brigam. Ela foge, e ao tentar segui-la ele vê, jogada no lixo, uma caixa rosa que havia enviado para Olive como presente. Para que possa chorar, despeja lágrimas artificiais nos olhos.

De volta a Nova Iorque, separado de Claire e com mais problemas de saúde, encontra Hazel, que está casada e tem três filhos. Ao vê-la com a família, tenta se matar, mas um homem impede o suicídio. Caden pede para voltar para Claire, que o aceita. Quando o pai de Caden falece, podemos ver que o diretor sente falta de Hazel – no velório, tenta ligar para ela. Caden descobre que sua filha está fazendo performances em cabines de masturbação; vai até lá e tenta falar com ela, mas não é ouvido através do vidro; ela o ignora.

De volta aos ensaios da peça, Cotard diz que não aceitará “nada menos que a verdade brutal”. Avisa que todo dia entregará um pedaço de papel a cada ator, e nele estará escrito um acontecimento que eles deverão desenvolver. Um dos atores, nervoso, exige saber quando a peça estreará, já que os ensaios já estão acontecendo há dezessete anos. Cotard o ignora e prossegue com seu plano, dizendo que nem ele mesmo escapará – e que ele contratará um ator para interpretar a si mesmo. Hazel diz que foi demitida e pede um emprego a Caden, que a contrata como assistente.

Sammy Barnathan revela que há vinte anos tem seguido Caden, e por isso sabe tudo sobre ele e é perfeito para interpretá-lo. Ao longo do filme até então, Sammy de fato aparece no fundo de várias cenas, espionando a vida de Caden. Ele é contratado. Caden determina que Claire passará a interpretar a si mesma na peça, com Sammy interpretando Caden num cenário igual ao do apartamento de Claire. Durante estas cenas, nota-se que há algo de errado com Nova Iorque; há um clima opressivo, uma imagética caótica, além de um dirigível sobrevoando a cidade.

Sammy entrega a Caden o endereço de Adele em Nova Iorque. O diretor vai até lá, e se faz passar por uma pessoa chamada Ellen Bascomb, a diarista de Adele, para ter acesso ao apartamento. Adele não está, e Caden limpa o apartamento da ex-esposa. Claire não gosta do sumiço de Caden, e gosta menos ainda de estar vivendo a si mesma na peça. Caden contrata uma atriz para interpretar Hazel, e Claire não aguenta a situação, demitindo-se e expulsando Caden de casa. Adele oferece a Ellen que durma no closet do apartamento, e lá Caden descobre que Olive está doente. Ele a visita no hospital e ela explica que as flores de sua tatuagem estão morrendo, assim como ela própria. Ela força Caden a pedir perdão por abandoná-la por um romance homossexual com um homem chamado Eric. Ele pede perdão, apesar de negar que tenha feito aquilo, mas ela não o perdoa e morre. Uma pétala seca cai de uma de suas tatuagens, e ele a leva consigo.

Caden então pede ao produtor de cenários que construa um modelo do apartamento de Adele; ele contrata uma atriz chamada Millicent Weems para o papel de Ellen. A mãe de Caden falece, e ele leva Tammy (a atriz que interpreta Hazel) para o funeral, já que Hazel estava em um jantar com Sammy. Caden e Tammy fazem sexo, e após admitirem seus casos e resolverem diferenças, Caden e Hazel se beijam, para o ciúme de Sammy, que pula do topo de um prédio cenográfico. A primeira reação de Caden, contudo, é ralhar que aquilo não estava correto, uma vez que ele não havia pulado de verdade; alguém havia impedido o suicídio na vida real.

Caden tem uma revelação de que todas as pessoas são atores em suas próprias vidas, mas não “extras” como em sua peça; cada um é um ator principal. Hazel e Caden dormem juntos na casa de Hazel, e na manhã seguinte descobre-se que ela morreu por inalação de fumaça (a casa em que ela vive sempre esteve em um constante incêndio; já ao comprá-la, no começo do filme, ela exibe preocupação por este aspecto da casa, mas a compra mesmo assim).

Caden então diz que precisa de alguém para interpretá-lo, e Millicent Weems (que interpreta Ellen) pede para fazê-lo. Quando o diretor original diz se sentir cansado, sugerem que descanse. Como ele não quer deixar de ter contato com a peça, Millicent sugere que ele interprete Ellen, cujo papel está vago. Com Millicent no comando total da peça, ela envia alguém para entregar a Caden um ponto eletrônico para que ela o oriente a distância. Ela fala da história da verdadeira Ellen (incluindo um relacionamento com um homem chamado Eric), e o dirige para fora do quarto da personagem Ellen até as ruas no galpão principal (que estão em completa ruína). Caden, interpretando Ellen, encontra a atriz que interpretou a mãe de Ellen quando mais jovem em um sonho, e Millicent dirige cada ação de Caden na forma de imperativos (“apoie a cabeça nos ombros dela”, “diga que a ama”, “peça perdão”, etc). Quando ele diz que finalmente sabe como a peça deve ser feita, Millicent lhe ordena que morra.

Tempo, realidade e performance

Na primeira cena do filme, um relógio digital aparece na tela a partir da cor cinza; são 7:44 e o programa de rádio anuncia a data (22 de setembro). Uma professora lê um poema sobre o outono, que representa “o começo do fim”. Caden acorda e acompanhamos a rotina matinal da família. Quando ele toma café, o programa de rádio anuncia que é 8 de outubro. Depois de recolher a correspondência, é 15 de outubro. O obituário do jornal indica que estamos no dia 17. O leite estragou, e a data da validade é o dia 20 de outubro. Quando Olive come seu sanduíche, o radialista deseja um feliz dia das bruxas para a cidade.

Essa é uma tendência ao longo do filme. Árvores de natal estão montadas no consultório do médico que lida com o ferimento de Caden. Quando ele vê um oftalmologista, já na próxima cena, agradece-o por recebê-lo com rapidez, mas lê-se no calendário ao fundo que já estamos em março.

O tempo tem todo tipo de significado no filme. Ele está ligado à morte; morrer sem ter vivido bem, morrer sem ter deixado um legado, morrer sem ter sido compreendido – morrer de repente, sem aviso prévio. Tudo decorre do tempo; na cena inicial vemos o título surgir suavemente à frente do relógio digital, como a vida que luta para vir a ser, e então desaparecer num corte seco quando a hora passa de 7:44 a 7:45. Como veremos ao final do filme, 7:45 é o horário da morte de Caden.

Retratar o tempo como ligeiro é um dispositivo narrativo: estabelece o desespero da urgência associada a sua passagem tendo em vista a morte (e sabemos que Caden revisita o tema frequentemente, lendo-o nos jornais matutinos e vendo-o sempre na televisão), mas também faz supor que devemos entender, como audiência, que a família tem uma rotina tão parecida em todas as manhãs que as datas se “fundem”, deixando de ser particularmente notáveis. O café da manhã acontece numa manhã, mas poderia ser em qualquer outra; não faria diferença. A “compressão do tempo” é uma característica marcante da pós-modernidade, mas para além de uma experiência diferente do mesmo tipo de tempo (linear), Maffesoli nos diz que o “segredo da pós-modernidade” é “a concepção cíclica do mundo”. Kaufman nos apresenta um tempo comprimido (na rapidez com que passa) e distorcido (pela inconstância e irregularidade com que passa) que resulta na angústia, uma das matérias-primas do filme. Mas nas repetições, mesmo diante de alguma dinâmica, ele imprime uma diversidade de ciclos; voltarei a este ponto adiante.

Ao falar do “ressurgimento do cotidiano”, Maffesoli está falando tanto de uma revalorização do local (das comunidades, relações interpessoais), dos pequenos fatos (no lugar de grandes narrativas) e nas pequenas histórias (como no caso da publicidade); consequentemente advoga também que o projeto analítico pós-moderno preste atenção ao cotidiano. E é justamente pelo ângulo cotidiano que o tempo se desenrola diante de nós, assim estranho como retratado, na vida de Caden – e em sua trama encontramos as raízes dos problemas entre Caden e Adele: eles não desenvolvem uma conexão interpessoal que vá além da individuação tradicional moderna.

Kaufman apresenta essa desconexão ao usar a ideia do “egoísmo humano inerente” que não raro encontramos em discursos modernos; o motor de todas as ações do indivíduo racional livre seria seu próprio autointeresse, e esse egoísmo se traduz na trama como a questão da atenção em relação ao outro. Adele nunca se importa seriamente com os problemas de Caden (ou mesmo Hazel); em uma das cenas da sequência da “rotina matutina”, Caden fala que não se sente bem, e enquanto Adele o ignora, ele também ignora o sofrimento de todas as pessoas mortas em um terremoto (o assunto da conversa entre Adele e Maria por telefone). Não são só estes dois personagens que têm este problema; veremos como Kaufman aplica a mesma lógica a Hazel, Caden em relação a Claire, o primeiro médico que o atende (reclamando insensivelmente da dor de outro paciente), e mesmo qualquer um (o padre na cena simulada do funeral do pai de Caden, que diz que “ninguém quer ouvir falar da minha tristeza, pois cada um tem a própria”). A falta de conexão é martelada por vias indiretas: ao longo do filme há o tema da “falta no grupo de três” (está faltando um retrato, de um conjunto de três, na cozinha; um banco de jardim, de um conjunto de três, está tombado, etc); no enredo, Caden diz ter visto sangue em suas fezes (embora não pareça haver nada nelas), mas não percebe quando urina um líquido escuro – isto é, Caden se preocupa com as coisas erradas; ao invés de focar a vida ao seu redor, com todas as pessoas com as quais pode desenvolver relações significativas, resolve se preocupar consigo mesmo e a própria morte.

Voltando à questão dos ciclos, uma das poéticas da trama é o uso da ideia de que o “fim está embutido no começo”. Não só Caden morre no mesmo horário em que o filme começa, mas o filme termina com a tela preenchida com a cor cinza, a mesma do começo. Na primeira vez que Adele aparece, ela tosse, e Olive grita “mommy, done!” do banheiro (ela terminou de fazer suas necessidades, mas a expressão poderia ser traduzida, em um outro contexto, como “mamãe já era!”) e Adele morre de câncer de pulmão ao final do filme. Os exemplos são muitos, mas o mais importante ocorre com a personagem de cujos lábios sai a frase a que faço referência – Hazel, que compra uma casa em chamas (um incêndio que nunca termina, mas tampouco destrói a casa); ela diz à corretora que gostou da casa, mas está preocupada em morrer no fogo; a corretora responde que “é uma grande decisão, como se prefere morrer”. O simbolismo é provavelmente uma homenagem a uma citação do dramaturgo Tennessee Williams: “todos vivemos em uma casa em chamas, e não há bombeiros para chamar; não há saída, apenas a janela do andar de cima por onde olhar enquanto o fogo consome a casa com cada um de nós dentro, trancados”. Ela sabe do fogo e decide viver (e morrer, eventualmente) ali; o fim está embutido no início. Cada casa que se compra pode ser a casa em que se vai morrer. Se a história se move em ciclos, o início coincide com o fim, bem como cada início é outro fim e cada fim é outro início.

A sinédoque e os fractais não deixam de ser análogos linguísticos e espaciais a essa ideia. Sinédoque é uma figura de expressão em que a parte é usada no lugar do todo, ou o todo, no lugar da parte. Assim como o filme torna-se uma sinédoque para a vida, e cada personagem uma para cada um de nós, Caden tenta construir na sua peça uma representação da realidade – o todo pela parte. Contudo, a tentativa resulta num simulacro (ele cogita, inclusive, nomear sua peça assim); o filme nos prega peças em relação a onde estamos (o que parece ser a casa de Claire, num dado momento, acaba se revelando um cenário) mas é principalmente nas relações humanas que a questão da inexistência de uma verdade última torna-se mais presente (a realidade do simulacro – apesar de toda sinceridade brutal, não havia um mundo real para Caden retratar), e o faz através de três elementos: a constante miscommunication (desentendimentos sobre o que as pessoas falam, especialmente nas cenas entre Caden e os médicos, mas também frequentes explicações sobre o que se “quer” dizer, o que foi entendido, etc); a “atuação” decorrente de motivações sociais tipicamente humanas, o que impede uma transparência maior entre as pessoas; e o apagamento das linhas entre realidade e performance.

É preciso explorar os últimos dois pontos. A questão da “atuação” é, de certa forma, explorada em mais detalhe pelo próprio diretor. Quando Adele está deixando Caden para ir à Alemanha, ele pergunta se a decepcionou. Ela responde que “todo mundo é decepcionante… Quanto mais você conhece alguém…”. Kaufman escreveu letras para algumas faixas da trilha sonora, composta por Jon Brion. Na cena em que Adele diz que “todo mundo é decepcionante”, as letras da trilha leem: “ninguém vai amar você por tudo que você é / e então você constrói camadas de enganações / e deixa coisas de fora para alterar percepções” – o desejo de ser amado impele tanto à construção de nossa persona perante os outros (um simulacro, assim) quanto nosso apego por papeis acima das pessoas em si mesmas – pelo emitido, acima do emissor – o que leva ao próximo ponto: assim que Claire “se demite” da peça de Caden, Hazel liga para alguém imediatamente para pedir uma “Claire substituta”. Após a morte de Sammy, outro ator é contratado para retratá-lo. Em suma, no grande teatro sinédoque das relações humanas (brutalmente sinceras, ao que parece), o que importa é o papel e sua performance. Ao contratar Millicent Weems para viver Ellen Bascomb, Caden pergunta se ela sabe faxinar, já que será sua tarefa enquanto Ellen. Ela então lista suas credenciais; diz que foi uma proficiente faxineira em outras produções teatrais. Ele contrata uma atriz, mas sequer se interessa por suas habilidades interpretativas, o que lança a questão – se ela é uma atriz interpretando uma faxineira, ela é uma atriz ou uma faxineira? Da mesma forma, nossas performances diante dos outros, e especialmente a função que exercemos nas vidas dos outros, preenchem uma definição de quem somos uma vez que não existe uma definição a priori disso – “só existimos pelo e sob o olhar do outro”.

Um dos mais complexos e brilhantes exemplos dessa conexão profunda e difusa entre realidade e performance, e ao mesmo tempo da falta de conexão de Caden (marcada justamente pela separação essencial que nos incentiva a ver a figura do outro através de uma esquemática egoísta e “funcionalista”), é a relação entre Caden e Claire. Depois de Caden expor para seus atores, pela primeira vez, o que está planejando para a peça, ele e Claire vão a um encontro. Ela pergunta: “talvez você queira falar o que você quer de mim?”. Caden fica um pouco surpreso (de novo, miscommunication), e pergunta, “hm?”; ela explica: “é, por exemplo, do meu personagem”. Ele diz: “oh, ah… Bem, vamos construí-lo com o tempo, juntos. Tentar achar uma pessoa de verdade, talvez, para servir de modelo”. Mais tarde Claire passará a interpretar a si mesma, sim, mas há outra lógica em jogo aqui. Ao longo das próximas cenas, em um ou dois minutos, Claire e Caden se casam e têm uma filha (Ariel). Num corte rápido, vemos que ele manda outro presente para Olive; como se isso não bastasse, é interessante lembrar que “Lack”, sobrenome de Adele, significa “falta” em inglês; Caden ainda é consumido pela dor da perda de sua (primeira) família, e Claire funciona para ele como uma substituta para Adele assim como Ariel apenas faz o papel de Olive. Daí a escolha deliberada, em termos de roteiro e edição, de ignorar anos da vida dos dois enquanto casal – isso dá destaque ao papel de Claire como repetição, essencialmente, mas também como algo de menor importância na vida de Caden. Daí sua próxima miscommunication, em que ele se refere a Olive como sua “filha real“, para indignação de Claire; depois, corrige-se (primeira filha). Claire era usada por Caden enquanto atriz, e agora é usada novamente, mas para fazer o papel de sua esposa. E acontece de novo, aliás, quando ele pede para voltar para ela após sua tentativa de suicídio – ele vê Hazel feliz, em família, e quer alguém que preencha essa vaga em sua vida de novo (ninguém melhor que a atriz que já conhece a personagem), mas, para dificultar só um pouco mais o retorno, mais uma vez a linguagem lhe prega uma peça e ele diz que quer cuidar “de você [Claire] e de Olive. Ariel”, corrige-se, “Ariel…”. O diálogo supracitado, entre ele e Claire, ganha todo um novo significado: “o que você quer […] do meu personagem?”; “Vamos construí-lo com o tempo, juntos. Tentar achar uma pessoa de verdade, talvez, para servir de modelo”.

Caden pode ser melhor entendido como a figura de quem se agarra a princípios modernos em um mundo pós-moderno; daí toda sua frustração, seu fracasso. Caden e Adele são diferentes em muitos sentidos; entre eles, suas artes. Enquanto Adele se preocupa com o mínimo, e ao longo do tempo suas pinturas vão ficando cada vez menores (o localismo, a abordagem do cotidiano), Caden aspira a algo impossivelmente grande; o mapa borgiano do império que é tão grande quanto o império, o realismo que impele a uma recursividade eterna, a honestidade brutal que, seguida à risca como método, levaria ao sonho moderno da apreensão total da “realidade externa” pelo sujeito racional (ou à racionalidade que não é razoável, como aponta Graeber). Mesmo que Caden queira retratar o cotidiano, sua perspectiva é totalizante, e daí a frustração frente ao simulacro que se impõe. Ele constantemente incita a espontaneidade e a acurácia dos atos apresentados, e quando Sammy realiza a transgressão irreversível ao se matar, desencadeia a mais virulenta reprimenda por parte do diretor. Controle aqui é chave: não se trata apenas de representar bem a realidade, mas no caso de Caden, controlar sua própria vida. Todos os ensaios se resumem a “segundas chances” que ele dá a si mesmo – como se quisesse a oportunidade de voltar no tempo e reviver a realidade da vida que passa, e para chegar a essa realidade tenta de tudo. Mas só o que consegue é a réplica.

Caden não consegue aceitar seu corpo sem a mediação dos aparatos racionais – nem sua mente; submete-se ao sistema clínico e à psicologia. Um dos livros que Hazel lê e comenta ao longo do filme é “O Processo”, de Franz Kafka – e o clima dessa obra foi primorosamente transposto, ainda que em miniatura, para o que acontece com Caden e sua saúde. A psicóloga várias vezes começa a falar antes que Caden termine a frase, uma forma de mostrar o domínio que ela tem sobre ele através da autoridade científica. Em ambos os casos, Caden precisa de produtos (máquinas, remédios, cursos, livros) para se sentir bem e se adequar novamente.

Adele quebra o ciclo a que estava submetida e nesse início gera um novo – mas é a personagem pós-moderna que aceita o hedonismo e segue as emoções. Caden é informado de que suas “funções autonômicas estão descontroladas”, e portanto ele não consegue chorar. Ao ver o presente que enviou para Olive jogado no lixo, precisa de lágrimas artificiais para expressar sua dor – a tristeza que enfim encontra o momento apropriado para ser expressa. Caden chora de novo em duas outras ocasiões, mas sem usar lágrimas artificiais (embora ele não pareça ter as naturais tampouco). Todas elas, depois que sua vida cruzou com a de Ellen Bascomb.

O enigma de Ellen Bascomb e a morte de Deus

A falta de conexão com os outros, uma espécie de auto-obsessão de Caden (que, no entanto, nunca é retratada ou encarada como patológica, importante que se note) vai além de relações interpessoais próximas e atinge uma esfera mais ampla. Caden, preocupado com seus problemas, não é capaz de perceber os problemas que a cidade ao seu redor parece desenvolver. Explosões e tiros podem ser ouvidos ao fundo com muita frequência (quando ele está presumivelmente fora do galpão), veículos do exército abordam pessoas, muitos passantes usam máscaras de gás e uma mulher, inclusive, leva um homem nu na coleira pelas ruas. Em outra cena, quando Caden sai do galpão com Claire, Ariel e Sammy, a situação nas ruas é sombria e opressiva. Um homem pergunta a Caden quando a peça ficará pronta porque “as coisas estão ficando ruins por aqui”. Mas Caden nunca parece consciente do que está havendo; se está, não demonstra.

O individualismo de Caden pode ser codificado em termos de gênero de uma maneira relevante: as mulheres da vida de Caden (Adele, Claire, Hazel) podem ser vistas como fontes de validação para ele (não é apenas que Claire estava fazendo o papel de Adele, mas Adele estava cumprindo também esse papel antes). A transformação final de Caden na última parte do filme ocorre justamente quando ele consegue superar a separação individual – vendo a vida pela perspectiva de Ellen, uma mulher; compartilhando de suas dores, percebendo convergências. Desempenhando seu papel.

Através da performance de Ellen, Caden torna-se ela. No entanto, o filme planta indícios de uma trama muito mais complexa: Caden e Ellen podem sempre ter sido a mesma pessoa.

Caden é por várias vezes “confundido” com Ellen. Quando Adele está na Alemanha e recebe uma ligação de Caden, não o ouve direito por estar numa festa; Caden diz seu nome quando ela pergunta quem está falando, e ela verifica: “Ellen?”. Caden começa a interpretar Ellen, aliás, quando vai ao apartamento de Adele e a vizinha entrega a chave para ele (“você é Ellen Bascomb?”; “o quê?” “Eu deveria entregar essa chave a Ellen Bascomb”; “Sim, eu sou Ellen Bascomb”). Quando Caden tem um ataque epilético, ele liga para a emergência e a atendente do outro lado da linha pergunta, ao não entendê-lo direito, algo como “… Senhora?”. Quando Caden volta da primeira noite em que “interpretou” Ellen (na “vida real”, no apartamento de Adele), Claire pergunta por que ele está com cheiro de produtos de limpeza; de menstruação. Antes de fazer sexo com Tammy, a atriz contratada para interpretar Hazel, ela pergunta: “você gostaria de ser uma menina?”; ao que ele responde algo como “às vezes eu acho que eu teria sido melhor se eu fosse”. Antes de visitar o apartamento de Ellen em Nova Iorque, Caden visita a exposição dela; a única pintura que pode ser vista sem os óculos especiais é a do próprio Caden, aparentemente pintada em 2015, ano (de acordo com o roteiro oficial publicado) em que ele esteve na Alemanha ao descobrir que Olive estava tatuada. Na pintura, ele aparece de costas, ocultando o que parece ser uma mulher. A pintura faz parte da série “Mulheres que eu amo”. O “sonho” de uma Ellen mais jovem com sua mãe, um piquenique em pastos verdes, aparece mais cedo no filme, como uma peça publicitária numa televisão a que Caden assiste – e ele próprio está nestes pastos.

Os elementos mais contundentes em relação a essa teoria são também os mais confusos, ou ocultos, após uma única visualização do filme. Quando Caden recebe a notícia do falecimento de seu pai, não se pode ouvir muito do outro lado da linha telefônica, mas o que se pode inferir do áudio do filme (prestando muita atenção – muito dessa análise devo a uma análise, que inclusive está incompleta até hoje [ha] feita por um canal do youtube) é algo como “Ellen… Não tenho muito tempo para falar… É o pai dele…”. É perturbador porque é um detalhe que passa absolutamente despercebido, e mesmo assim não faria sentido naquele contexto a não ser que algo muito complexo envolvendo as identidades de Ellen e Caden estivesse ocorrendo.

Outro elemento importante é a cena em que Olive, já mais velha e morrendo em uma cama de hospital, nega o perdão ao pai depois de acusá-lo de ter um romance com um homem chamado Eric. A princípio, quando se vê o filme pela primeira vez, isso não faz nenhum sentido. Mas as cenas no fim do filme, em que Millicent Weems narra partes da vida de Ellen para Caden (que no momento está interpretando Ellen) mostram que o marido de Ellen se chamava Eric.

Acima de tudo, Ellen é a única personagem que nunca vemos. Não podemos sequer saber se ela existe de verdade, pois Adele só interage com ela indiretamente (e a pintura de referência que Adele teria supostamente feito dela se parece muito com Caden, pelo menos em seus últimos dias) e, no dia em que ela deveria aparecer no apartamento da pintora, foi Caden quem apareceu e tomou seu lugar. O mais estranho é que Caden resolve contratar uma atriz para interpretar alguém que ele nunca conheceu, o que seria uma falha enorme em seu plano de retratar com fidelidade em seu galpão a realidade – na primeira cena em que Weems atua, ela não faz o papel de Ellen, e sim de Caden tomando o lugar de Ellen. A única Ellen que conhecemos é a que Caden finge ser enquanto limpa o apartamento de Adele.

Essa construção é, de todas as transversalidades do filme, uma das mais essenciais, mas nem por isso ajuda a criar uma espécie de interpretação inequívoca. Na verdade, suscita mais questões do que responde. É possível que Caden tenha sido uma interpretação de Ellen esse tempo todo – e que Caden tenha uma vida dupla em uma sociedade transfóbica, suas doenças sendo manifestações psicossomáticas de seu trauma cotidiano.

De qualquer forma, a importância da contiguidade entre Caden e Ellen vem do fato de que é ao juntar as duas narrativas – estejam elas onde estiverem a nível ontológico – que Caden descobre uma ligação profunda entre as subjetividades; que é capaz de ver além do que nos separa e, no que nos une, descobrir comunidade. “Caden vem a descobrir que ele é Ellen”, comenta o crítico literário Siron, “e também que é Adele, Hazel, e qualquer número de pessoas que povoa a Terra. […] Eles são indivíduos que, em si mesmos, representam o todo da humanidade. Kaufman está nos dizendo que esses indivíduos são sinédoques da espécie humana […]. Caden não é único, então ele não deveria olhar para suas próprias circunstâncias como únicas”. Ele pode até sofrer, mas todos sofrem. Ocorre aqui uma dissolução da metanarrativa da personalidade individual moderna.

Há uma outra figura importantíssima no filme: Sammy Barnathan. O fato de Ellen (a “real”, caso uma exista) não ter aparecido no dia em que Caden tomou seu lugar pode significar, na verdade, que ela não existe – e que tenha sido uma invenção de Sammy.

É Sammy quem fornece a Caden o endereço de Adele em primeiro lugar. A atenção às minúcias, que como já vimos têm muito a informar, é de grande valia: Adele mora no apartamento 31Y de seu prédio; a inscrição dos números das unidades é feita no material (na madeira, no metal), mas abaixo do 31Y, foi registrado à caneta um outro apartamento, 32Z, no nome de “Samuels”. Samuel vem do hebraico “nome de Deus”, ou “Deus ouviu” (… Que Adele estava em Nova Iorque, e buscou seu endereço). Quando Caden entra no elevador, podemos ver que do lado do botão para o 31º andar há um botão do alarme. Um homem pede que ele segure o elevador; ele pensa em fazê-lo, mas não aperta o botão e o elevador acaba fechando. Por que a câmera precisaria mostrar essa atitude de Caden – ou, ainda, por que o roteiro precisaria de um homem que pede para segurarem o elevador? Para que pudéssemos ver que alguém trocou o botão (do andar) “32” pelo de alarme.

Embora isso possa indicar que Sammy “inventou” Ellen (por exemplo, para a vizinha – embora isso não explicaria a relação entre Adele e sua empregada), que outros indícios há para indicar no mínimo um forte simbolismo quanto à “divindade” de Sammy? A “invenção” de Ellen, junto à entrega do endereço de Adele, formam já bons indicativos: é Sammy quem dá a Caden a oportunidade que ele quer (reencontrar Adele, ou o papel que ela exercia em sua vida, de alguma forma) e também a que ele precisa (de interpretar Ellen e ter uma experiência de aprendizado). Mas há mais: quando da contratação de Sammy, ele diz que “tem seguido Caden” não a vida toda, mas “há vinte anos”. O roteiro do filme indica que a entrevista de emprego aconteceu em 2025, e o início do filme se passa em 2005. Ou seja, a primeira cena em que vemos Sammy – quando Caden sai de casa para buscar a correspondência – é a cena em que Sammy começa a segui-lo, assim como a cena em que nós, os espectadores, começamos a seguir os personagens. E temos, de fato, um poder “divino” em relação aos personagens; podemos parar o filme, ou reprisar seu ciclo definido em que o fim, pronto, já está embutido no início.

Todas as outras características e atitudes de Sammy apontam para paralelos importantes: Sammy é um observador aparentemente “onisciente” que segue Caden em todos os lugares, fica oculto e só é visto quando deseja, genuinamente o entende e se importa com ele, conhecendo todos os seus pensamentos e desejos, e a oportunidade que fornece ao diretor teatral é nada mais nada menos que a salvação a partir da purificação (faxina).

Isso não quer dizer que Sammy seja literalmente Deus, ou que esse seja o papel que Caden lhe atribui mentalmente (embora ele pareça surpreendentemente calmo quanto à ideia de que alguém o tem seguido por 20 anos). Indica, não obstante, um simbolismo mais amplo, sistemático, uma vez que a salvação de Caden não passa pela obediência a Sammy, e sim pela redenção através de uma conexão com a alteridade. Sammy se mata, essencialmente, porque Caden não consegue (ainda) se importar com ninguém além de si mesmo – e é notável que nenhuma preocupação genuinamente religiosa possa ser encontrada nos personagens do filme. A morte de Sammy é, afinal, a morte de Deus; não havia espaço para ele entre Caden e Hazel, assim como não há espaço para o Deus dos monoteísmos semíticos na pós-modernidade. E enquanto ninguém estava disponível para impedir que Sammy pulasse, alguém impediu que Caden pulasse. O humano ainda pode ser salvo.

Considerações finais

Sinto que a análise não aborda metade do que o filme tem a oferecer. A forma “pós-moderna” de “ler” este filme não é necessariamente a correta – mas justamente a forma (… pós-moderna?) como o filme é construído exclui a possibilidade de que exista uma leitura correta, total e última. O que há são diferentes perspectivas e como a obra reflete de volta as indagações que se lhe podem aplicar a partir delas – as características que vimos presentes nas várias instâncias da pós-modernidade estão presentes no filme, mas mais que isso, estruturam a trama, conduzem-na.

Caden é o moderno: o indivíduo racional livre, leal à família nuclear burguesa, confiante no conhecimento universal científico e na possibilidade de representação da realidade. O tempo, linear, não o liberta; aprisiona-o, ameaça-o, gera a expectativa de ascendência que ele não sabe dizer se está conquistando ou não (daí sua necessidade de validação). Ele passa o filme inteiro sentindo-se mal – sim, é verdade que por causa de suas doenças, mas tudo que foi dito acima são abstrações; as doenças podem ser abstraídas também, como símbolos para algo maior, a saber, o mal estar das ideias modernas, que se revelam mais e mais “infecundas”, lembrando Maffesoli.

E que bem lhe fazem? Levam a comportamentos autocentrados. Há indícios de que Adele queria mais da vida e por isso o deixou, mas não faltam outros que apontam para ações por parte dele que contribuíram para isso. Sua busca por validação, pela sensação de que está vivendo uma vida de acordo com determinados padrões, o levam a buscar mais do mesmo modelo (refazendo sua família com Claire e Ariel), negando a subjetividade por detrás das funções e papeis (projeções) que ele poderia ter descoberto se estivesse mais aberto a fazê-lo. A medicina não o ajudou, mas não porque infelizmente sua doença era terrível demais; o filme indicou certa confusão por parte dos próprios médicos em relação ao que estava acontecendo – para não mencionar a psicóloga.

Ele só encontra melhoria à medida que o filme avança e ele abraça outras ideias e práticas. Faz sexo casual com Tammy (absorve, talvez, a “corporalidade” que ela domina); abandona, até certo ponto, seu projeto universal (deixa de ser diretor); aceita seu papel como Ellen e passa a vivenciar suas memórias (a dissolução da barreira do indivíduo). É verdade que Adele morre também; e também Hazel. Também os outros, que não morreram ainda, morrerão no futuro. Mas Adele, pós-moderna desde o início, viveu a vida que quis – assim como Hazel, que comprou a casa em chamas e morreu como quis. A morte da Hazel faz com que, inclusive, antes de deixar de ser diretor, Caden escolha reproduzir em seu teatro não sua espécie peculiar de realismo “brutal”, e sim a alegria do último dia que ele passou com ela – é hora da emoção, do não-racional, entrar em cena. “Sinédoque” joga luz sobre o “clima” da pós-modernidade ao contrastá-la (positivamente) com o moderno. Não se trata de impossibilitar a busca pela verdade, ma de abandonar as referências modernas que justamente complicam o alcance de análises interessantes. A morte não é um universalismo barato – é o ingrediente comum a todo vivente que qualifica nossas experiências e nos permite tomar consciência, a partir dessa comunidade, de outras possíveis. Se Caden chegasse a essas conclusões antes, teria tido uma vida diferente? Vivido uma vida melhor?

Mas a questão da perspectiva sobre o filme se volta contra o pós-modernismo também. Por que deveria ser mais válido o ponto de vista individual, e em particular do personagem principal? A sutileza é que o personagem pode até ter aprendido algo a mais, mas mesmo assim fo a nível individual, e não comunitário – no script oficial, as cenas finais contém um trecho que não foi transposto ao audiovisual: Caden diz à atriz que interpreta a mãe de Ellen que tudo que ele quer é “alguém que [o] veja com gentileza. Ser a pessoa mais especial do mundo para uma pessoa só”. Mas isso não é o bastante – não em Nova Iorque, cidade que aparentemente está caindo aos pedaços quanto mais o filme avança. Morte, destruição, a ruína da sociedade; coisas que Caden acompanha, mas com as quais parece não se importar. A perspectiva individual pode estar sendo superestimada.

Mesmo que esse elemento seja encarado de outra maneira – a ruína sendo apenas a forma como ele, em avançada idade, vê o mundo, por exemplo – o ideário pós-moderno não faria mais que ajustá-lo melhor às condições de sua vida, fossem elas quais fossem. Talvez ele pudesse controlar melhor sua vida, se apenas tivesse acesso a melhores ferramentas (modernas). A médicos melhores; a pensamentos e práticas que melhor orientassem suas relações e suas perspectivas; a objetivos, com sua arte, que visassem sim deixar um legado, mas um legado mais tradicionalmente político. Uma leitura moderna da obra – que, como dito acima, não pode ser descartada em favor de outras pela própria natureza pós-moderna do filme – vê no pós-modernismo uma estratégia de conformação. Funcional, sim, mas uma conformação.

A sensação que se tem, ao terminar o filme, é de que seriam necessárias muitas visualizações para entendê-lo realmente. Mas, como diria Roger Ebert, não se trata disso; é preciso vê-lo muitas vezes para apreciar sua complexidade. Assim também é o caso da vida social. É provável que nenhum aumento no número de estudos e estudiosos possa fazer com que se descortine diante de nossas mentes uma imagem completa de quem nós somos. Mas no acesso a obras de ficção como esta, fruto de seu tempo e de uma mente que busca imprimir sensibilidades contemporâneas à matéria da imagem e do som, e também de obras de não-ficção que buscam imprimir verdades à matéria da retórica, podemos ver como certas categorias e signos operam e se inter-relacionam. Aqui a pós-modernidade é fato que se impõe (na impossibilidade do teatro universal) e conquista a ser buscada (na dissolução do sujeito racional individuado que possibilita a redenção); é panaceia que negligencia a força da agência racional e, por isso, perigosa (o mundo se acaba sob o peso do hedonista que rejeita metanarrativas), ou talvez aquela que vá realmente ao fundo da realidade em busca de verdades que alimentem a razão: a última ideia de Caden sobre como fazer a peça começa com “se todo mundo…”.

Se todo mundo o quê, Caden? O que a sua sabedoria pós-moderna recém-adquirida indica que façamos, todos (juntos?), para viver bem, ou no mínimo construir uma boa representação de realidade?

Talvez intencionalmente, jamais saberemos.

“Um mundo sem trabalho seria assim tão ruim?”, por Ilana E. Strauss

Tradução de “Would a Work-Free World Be So Bad?”, publicado no The Atlantic.

O medo de um ócio a nível de civilização se baseia demais nas consequências negativas do desemprego numa sociedade baseada no conceito de emprego.

As pessoas têm especulado há séculos quanto a um futuro sem trabalho e hoje não é diferente, com acadêmicos, escritores e ativistas mais uma vez alertando que a tecnologia está substituindo trabalhadores humanos. Alguns imaginam que o mundo sem trabalho que está por vir será definido pela desigualdade: alguns poucos ricos vão possuir todo o capital, enquanto as massas passarão dificuldade numa terra empobrecida.

Uma previsão diferente, menos paranoica porém não mutuamente exclusiva, mantém que o futuro será um desastre de um tipo diferente, caracterizado pela falta de propósito: sem empregos para dar sentido à vida, as pessoas vão simplesmente se tornar preguiçosas e deprimidas. De fato, os desempregados de hoje não parecem estar se dando muito bem. Segundo uma pesquisa da Gallup, 20 por cento dos estadunidenses que estão desempregados há pelo menos um ano disseram ter depressão, o dobro da taxa entre empregados. Além disso, algumas pesquisas sugerem que a explicação para taxas mais altas de mortalidade, problemas de saúde mental e vícios entre pessoas de meia-idade com menos educação formal é a falta de trabalhos com bons salários. Outro estudo mostra que as pessoas são frequentemente mais felizes no trabalho do que em seus tempos livres. Talvez seja essa a razão por que tantos se preocupam com o tédio agonizante de um futuro sem trabalho.

Mas a partir dessas descobertas não necessariamente se conclui que um mundo sem trabalho seria um mundo de mal-estar. Tais visões de futuro são baseadas nas consequências negativas do desemprego em uma sociedade baseada no conceito de emprego. Na ausência de trabalho, uma sociedade projetada com outros objetivos em mente poderia produzir circunstâncias enormemente diferentes em termos de trabalho e lazer. Hoje, a virtude do trabalho pode estar sendo um pouco superestimada. “Muitos trabalhos são chatos, degradantes, insalubres, um desperdício de potencial humano”, diz John Danaher, pesquisador da Universidade Nacional da Irlanda, em Galway, que escreveu sobre um mundo sem trabalho. “Pesquisas globais têm descoberto que a vasta maioria das pessoas são infelizes no trabalho”.

Atualmente, já que o tempo para lazer é relativamente escasso para a maioria dos trabalhadores, as pessoas usam o tempo livre para contrabalancear as demandas intelectuais e emocionais de seus trabalhos. “Quando eu chego em casa de um dia puxado de trabalho, eu geralmente me sinto cansado”, Danaher diz, adicionando que “em um mundo em que eu não tenho que trabalhar, eu posso me sentir de outra forma” – talvez de modo a investir em hobbies ou paixões com a intensidade que geralmente se reserva para assuntos profissionais.

Ter um trabalho pode assegurar um pouco de estabilidade financeira, mas além de se estressar com as necessidades da vida, os desempregados de hoje são frequentemente marginalizados. “Pessoas que evitam trabalhar são vistas como parasitas”, diz Danaher. Talvez como resultado dessa atitude cultural, a auto-estima e a identidade da maioria das pessoas estão intimamente ligadas aos seus trabalhos, ou à falta de um.

Ademais, em muitas sociedades contemporâneas, o desemprego pode ser simplesmente chato. Muitas cidades americanas de pequeno e médio porte não são de fato organizadas com uma abundância de tempo livre em mente: espaços públicos tendem a ser pequenas ilhas no oceano da propriedade privada, e não há muitos lugares gratuitos em que adultos possam conhecer novas pessoas ou entreter uns aos outros. As raízes desse tédio podem ser ainda mais profundas. Peter Gray, um professor de psicologia na Boston College que estuda o conceito de brincadeira [play], pensa que se os empregos desaparecessem amanhã, as pessoas poderiam ficar confusas quanto ao quê fazer, ficando entediadas e deprimidas porque esqueceram como brincar. “Ensinamos crianças a distinção entre brincadeira e trabalho”, Gray explica. “Trabalho é algo que você não quer fazer mas é obrigado a fazer”. Ele diz que esse treinamento, que começa na escola, eventualmente “extrai a brincadeira” das mentes das crianças, que viram adultos que ficam sem saber o que fazer quando têm tempo livre.

“Às vezes as pessoas se aposentam, e não sabem o que fazer”, afirma Gray. “Elas perderam a habilidade de criar suas próprias atividades”. Isso aparentemente nunca é um problema para crianças pequenas. “Não há nenhuma criança de três anos de idade que vai ficar preguiçosa e deprimida porque não têm uma atividade estruturada”, diz ele.

Mas as coisas precisam ser assim? Sociedades sem trabalho são mais do que apenas um experimento mental – elas existiram ao longo da história humana. Considere os caçadores-coletores, que não têm chefes, salários, ou oito horas de trabalho por dia. Há dez mil anos, todos os humanos eram caçadores-coletores, e alguns ainda são. Daniel Everett, um antropólogo na Bentley University, em Massachusetts, passou anos estudando um grupo de caçadores-coletores na Amazônia, os Pirahã. De acordo com Everett, enquanto alguns consideram que a caça e a coleta seriam uma forma de trabalho, os Pirahã não o fazem. “Eles pensam nessas coisas como uma diversão”, ele diz. “Eles não têm um conceito de trabalho da forma como temos”.

“É uma vida bem tranquila na maior parte do tempo”, diz Everett. Ele descreve um dia típico para os Pirahã: um homem acorda, gasta algumas horas andando de canoa e pescando, depois faz um churrasco, nada um pouco, traz o peixe de volta para sua família, e brinca até a noite. Esse tipo de vida com base em subsistência certamente não deixa de ter seus problemas, mas o antropólogo Marshall Sahlins argumentou num ensaio em 1968 que caçadores-coletores pertencem à “sociedade afluente original”, uma vez que eles “trabalhavam” apenas algumas horas por dia; Everett estima que os adultos Pirahã trabalham em média 20 horas por semana (sem contar que não têm chefes olhando por cima de seus ombros). Enquanto isso, de acordo com estatísticas oficiais, o Estadunidense médio empregado, com filhos, trabalha cerca de nove horas por dia.

Essa vida divertida leva à depressão e à falta de propósito que observamos entre tantos que hoje têm emprego? “Eu nunca vi nada remotamente parecido com a depressão lá, exceto pessoas que estão fisicamente doentes”, diz Everett. “Eles se divertem pra caramba. Eles brincam o tempo todo”. Enquanto muitos consideram que o trabalho é um fundamento da vida humana, o trabalho como ele existe hoje é uma invenção relativamente nova nos milênios de anos de cultura humana. “Pensamos que é ruim ficar sentado por aí sem nada para fazer”, diz Everett. “Para os Pirahã, é uma coisa bem desejável”.

Gray compara esses aspectos do estilo de vida caçador-coletor com as aventuras despreocupadas de muitas crianças em países desenvolvidos, das quais espera-se que em algum ponto de suas vidas deixem essas coisas infantis de lado. Mas nem sempre foi assim. De acordo com o livro A Social History of Leisure Since 1600, publicado em 1990 e escrito por Gary Cross, o tempo livre nos Estados Unidos era bastante diferente antes dos séculos XVIII e XIX. Fazendeiros – uma maneira bastante razoável de descrever um enorme número dos estadunidenses daquela época – misturavam trabalho e brincadeira em seus cotidianos. Não havia gerentes ou fiscais, então eles trabalhavam, faziam pausas, jogavam com vizinhos, faziam pegadinhas, e gastavam tempo com a família e os amigos conforme quisessem, trocando de atividade com fluidez. Sem contar os festivais e outros eventos: a França, por exemplo, tinha 84 feriados por ano em 1700, e o clima tornava o trabalho impossível por mais ou menos outros 80 dias por ano.

Isso tudo mudou, escreve Cross, durante a Revolução Industrial, que ajudou a substituir as fazendas com fábricas e os fazendeiros com empregados. Os donos das fábricas criaram um ambiente mais rigidamente controlado que claramente separava o trabalho do lazer. Enquanto isso, relógios – que estavam se disseminando na época – começaram a dar um ritmo mais acelerado à vida, e líderes religiosos, que tradicionalmente aprovavam as festividades, começaram a associar o lazer com o pecado e tentaram substituir festivais agitados por sermões.

À medida que os trabalhadores começaram a se mudar para as cidades, as famílias não passavam mais seus dias juntos na fazenda. Em vez disso, os homens trabalhavam nas fábricas, enquanto as mulheres ficavam em casa ou trabalhavam nas fábricas, e as crianças iam para a escola, ficavam em casa, ou trabalhavam nas fábricas também. Durante o trabalho as famílias ficavam fisicamente separadas, o que afetou a forma como se entretinham. Adultos pararam de participar de jogos e esportes “infantis”, e a diversão foi em grande parte eliminada das ruas à medida que famílias de classe média e alta consideravam as atividades do proletariado, como brigas de galo e jogos de azar, desagradáveis. Muitas dessas diversões foram logo banidas por lei.

Com as velhas válvulas de escape dos trabalhadores desaparecendo em meio à fumaça industrial, muitos deles se voltaram para atividades novas, mais urbanas. Bares se tornaram um refúgio em que trabalhadores cansados bebiam e assistiam a shows ao vivo com música e dança. Se tempo livre significa cerveja e TV para a maioria das pessoas nos Estados Unidos, esse pode ser o motivo.

De vez em quando, sociedades desenvolvidas produziram, para alguns poucos privilegiados, estilos de vida que eram quase tão brincalhões quanto o dos caçadores-coletores. Através da história, aristocratas que ganhavam dinheiro simplesmente por possuírem terras gastavam apenas uma porção minúscula de seu tempo preocupados com exigências financeiras. De acordo com Randolph Trumbach, professor de história na Baruch College, os aristocratas ingleses do século XVIII passavam seus dias visitando amigos, comendo refeições elaboradas, sediando eventos, caçando, escrevendo cartas, pescando e indo à igreja. Eles também passavam um bom tempo participando da política, sem serem pagos. Seus filhos aprendiam a dançar, tocar instrumentos, falar outras línguas e ler latim. Nobres russos frequentemente se tornavam intelectuais, escritores e artistas. “Como um aristocrata do século XVII disse, ‘nos sentamos para comer e nos levantamos para brincar, porque o que é um cavalheiro sem seu prazer?”, diz Trumbach.

É difícil pensar que um mundo sem trabalho seria abundante o bastante para prover a todos tais estilos de vida generosos. Mas Gray insiste que injetar qualquer quantidade adicional de brincadeira nas vidas das pessoas seria bom, porque, ao contrário do que dizia aquele aristocrata do século XVII, a brincadeira é mais do que puro prazer. Através da brincadeira, diz Gray, as crianças (assim como os adultos) aprendem a criar estratégias, formar novas conexões mentais, expressar a criatividade, cooperar, superar o narcisismo, e conviver bem com outras pessoas. “Mamíferos machos tipicamente têm dificuldade em viver muito perto uns dos outros”, ele diz, e brincar promove a harmonia, o que pode explicar por que isso pôde se tornar tão central às sociedades de caçadores-coletores. Mesmo que a maioria dos adultos de hoje tenha esquecido como brincar, Gray não acredita que é uma habilidade irrecuperável: não é incomum, ele diz, que avôs re-aprendam o conceito de brincadeira depois de passar algum tempo com jovens netos.

Quando as pessoas refletem sobre a natureza de um mundo sem trabalho, elas geralmente transpõem premissas atuais sobre o trabalho e o lazer para um futuro em que elas podem não mais fazer sentido; se a automação acabar tornando uma boa parte do trabalho humano desnecessária, a sociedade pode existir segundo termos completamente diferentes das sociedades de hoje.

Então com o que os Estados Unidos sem trabalho poderia se parecer? Gray tem algumas ideias. A escola, por exemplo, seria muito diferente. “Eu penso que nosso sistema de escolarização cairia por terra”, afirma Gray. “O propósito primário do sistema educacional é ensinar as pessoas a trabalhar. Eu não acho que as pessoas iriam querer fazer nossas crianças passarem pelo que fazemos elas passarem agora”. Em vez disso, Gray sugere que os professores poderiam construir aulas com base no que as crianças mais têm curiosidade. Ou, talvez, a escolarização formal desaparecesse completamente.

Trumbach questiona se a escolarização estaria mais relacionada a ensinar crianças a serem líderes, em vez de trabalhadores, através de disciplinas como filosofia e retórica. Ele também pensa que as pessoas podem participar mais da vida política e pública, como os aristocratas de antigamente. “Se um maior número de pessoas estivesse usando seus tempos livres para governar o país, isso lhes daria um sentimento de propósito na vida”, diz Trumbach.

A vida social poderia ser bastante diferente também. Desde a revolução industrial mães, pais e crianças geralmente passam seus dias separados uns dos outros. Num mundo sem trabalho, pessoas de diferentes idades podem se reencontrar. “Ficaríamos muito menos isolados uns dos outros”, imagina Gray, talvez um pouco otimista demais. “Quando uma mãe está tendo um bebê, todos na vizinhança iriam querer ajudar aquela mãe”. Pesquisadores descobriram que ter relacionamentos próximos é o elemento determinante mais importante para a felicidade, e as conexões sociais que um mundo sem trabalho possibilitaria poderiam deslocar a falta de propósito que muitos futuristas preveem.

Em geral, sem trabalho, Gray pensa que provavelmente as pessoas seguiriam suas paixões, se envolveriam com as artes, e visitariam amigos. Talvez o lazer deixaria de estar relacionado a relaxar depois de um longo período de trabalho duro, e em vez disso se tornaria algo mais variado e colorido. “Não teríamos que ser auto-centrados como achamos que temos que ser hoje”, ele diz. “Eu acredito que nos tornaríamos mais humanos”.

Liderança como fenômeno coletivo: hierarquia como salsicha enlatada

Ano passado fui fiscal do ENEM e do Vestibular da UFSC, e uma das coisas que mais me chamou atenção foi a estrutura organizacional de cada um no que tange aos fiscais. No ENEM, assim como na UFSC, havia dois fiscais de sala em cada grupo; no entanto no ENEM um era o “chefe de sala”, tendo mais obrigações e recebendo maior pagamento que seu “auxiliar”. Na UFSC qualquer um dos fiscais de sala podia exercer qualquer das funções que lhes competia; geralmente (e falo no presente pois é o que vejo já há 3 vestibulares) ocorre uma “ajuda mútua” de acordo com o contexto, e/ou o revezamento de funções.

O que leva a uma decisão governamental com vistas a dividir responsabilidades, criando o cargo de “chefe de sala”? Me parece, ainda mais que minha participação no ENEM foi a primeira e depois de duas com a UFSC, uma mesquinharia tão grande – numa coisa tão pequena que é um grupo de provas, fazer questão de dividir as tarefas, criar uma distinção, e ainda etiquetá-la com esse título pomposo e ridículo de “chefe de sala”. De onde vem isso?

Uma resposta mais “sociológica” seria provavelmente a cultura organizacional. Inércia, path-dependence ideológico, costume – a opção padrão, a escolha naturalizada e instintiva que ninguém ousa questionar ou cogita repensar. Mas me pergunto aqui num sentido mais amplo; para além do ENEM e dos vestibulares, a estrutura (psicológica, até) dessa instituição que é o cargo de chefia, de autoridade, de responsabilidade – três palavras que se amarram numa só, ao menos para o leigo, na maior parte do tempo.

O cargo de chefia serve para definir, para atribuir, responsabilidade. Essa frase, que poderia fazer parte de um livro introdutório a um curso de administração, pode ser lida como axiologicamente positiva; neutra, no máximo. No entanto, a tenciono como negativa – e de qualquer forma, esse valor só pode ser entendido num contexto de outros valores e, principalmente, objetivos (e o fato de que ele pode ser com frequência lido como positivo mostra apenas quais objetivos e valores estão presumidos de partida, compondo o plano de fundo do nosso pensamento). Em outras palavras, o que se ganha com um cargo de chefia é a capacidade de dizer: “foi ele”. “Ela é a causa disto que deu errado”. “É tal pessoa que devemos culpar e punir por nosso infortúnio”. É verdade que também atribuímos bons feitos a pessoas em cargos de autoridade (como o aumento dos empregos ou a queda da inflação a presidentes), mas do que é bom todos querem compartilhar: todos tiveram uma parte a desempenhar, um papel a fazer; foi um feito coletivo (o presidente não teria feito nada sozinho). Já o que é ruim; a marca da incompetência, da antissociabilidade ou do egoísmo, queremos afastar como a peste, atribuindo ao agente mais próximo nossas faltas como a alma enfraquecida de Voldemort agarrou-se à testa de Harry Potter. Além disso, estruturas hierárquicas costumam se prestar bem ao repasse de culpa de baixo para cima: alguém sempre pode alegar que só cumpriu ordens, e estenderemos nossa simpatia a ela a depender do castigo que a esperava em caso de descumprimento. Já “bons resultados”, advindos raramente de ordens específicas de chefes e mais do funcionamento normal das operações institucionais, não são tão passíveis a esse tipo de operação.

O fato é que essa atribuição de responsabilidade / culpa não é meramente facilitada pela criação do cargo de chefia, e sim convencionada, inventada, estabelecida enquanto objeto de um contrato entre as partes. Porque a responsabilidade real é extremamente difícil de atribuir. Como expõe Bruno Latour, acerca das associações que fazemos,

Quem mata cerca de 40 mil pessoas por ano em acidentes de carro nos Estados Unidos? Os carros? O sistema viário? O Ministério do Interior? Não, os motoristas bêbados. ¡) Quem é responsável pelo excesso de consumo de álcool? Os comerciantes de bebidas? Os fabricantes? O Ministério da Saúde? A Associação dos Donos de Bares? Não, o indivíduo que bebe tanto. Entre todas as possibilidades, só uma é sociologicamente admitida: os indivíduos que bebem demais são a causa da maioria dos acidentes de trânsito. Esse nexo causal é uma premissa, ou uma caixa-preta para quaisquer outros raciocínios no assunto. Admitido isto, a controvérsia ulterior é em torno das razões que levam os motoristas a beberem tanto. São doentes que devem ser tratados e mandados para um hospital, ou criminosos que devem ser punidos e mandados para a cadeia? Depende da definição que se dá ao livre-arbítrio, do modo como se interpreta o funcionamento cerebral, da força que se atribui à lei.

Essa é em parte a razão pela qual as ciências humanas, as sociais em particular, são tão difíceis, e também porque pode sempre haver leituras tão diversas de um momento particular sem que elas cancelem uma à outra necessariamente: as pessoas fazem atribuições diferentes de responsabilidade, e antes que o debate possa fornecer com mais clareza uma avaliação mais informada da situação, a situação já é outra. O tempo voa.

Mas então o que se ganha com o estabelecimento de cargos de autoridade? Paz de espírito, sabendo que caso alguma coisa dê errado todos saberão a quem culpar? Se for esse o caso, essa é uma troca covarde: a verdade e a complexidade do mundo acabam barganhados pela tranquilidade. Isso é o que podemos, o que devemos almejar em nossas estruturas organizacionais – sociais, culturais, políticas?

Há um cálculo de que com estes cargos estimula-se uma vigilância maior – afinal, quem está em um cargo de chefia, por não querer que nenhuma “bomba” estoure em sua mão, vai “cuidar” para que ninguém sob sua “tutela” arranje problemas. O problema, é claro, é que isso é tratar o sintoma ao invés da causa. Um certo realismo ontológico nos exige a aceitação do fato de que “shit happens”, e portanto não se trata aqui de opor o “tratamento do sintoma” à “erradicação da doença” (uma ladeira que muito frequentemente desliza à eugenia) mas, em vez disso, de ver que não adianta querer vigiar e punir se não houver um esforço coletivo para mitigar e eliminar o quanto possível incentivos sistêmicos a “fazer o errado” em primeiro lugar – se não esses mesmos incentivos, ou predisposições, farão resistência à autoridade em nome de algo que pode ser contraproducente, não obstante o valor intrínseco que o choque contra a autoridade em si mesmo tenha para um anarquista. Em outras palavras, a função de um cargo de chefia é servir como bode expiatório, independente em grande medida da realidade das “agências” envolvidas no caso, que tanto podem se sentir compelidas à obediência quanto podem aperfeiçoar as artimanhas de que dispõem para burlar o comando do chefe.

Há uma série de outros problemas e realidades envolvidas na questão hierárquica. Por ser submetido a uma lógica de obediência, tanto perde-se a prática, bem como a própria percepção da importância, do exercício da consciência individual – de julgar por si mesmo tanto os “seres” quanto os “dever-seres” da vida. Podemos estar “condenados a sermos livres” o quanto quisermos, mas isso não fará diferença alguma na prática enquanto a hierarquia for prevalente num dado grupo. A própria “ação normal” de um grupo pode ser extremamente deletéria – como a da polícia militar, no Brasil, ou de empregados da indústria petroleira, no mundo inteiro, indústria que contribui ativamente contra medidas de combate à catástrofe ambiental que se avizinha – e mesmo assim a pressão pela continuidade e conformação dificultará o tipo de discussão e decisão transformadora capaz de melhorar as coisas. Não é só o medo da punição que inibe uma determinada pauta: o próprio efeito cognitivo dos cargos de chefia constringe o pensamento, porquanto equaciona-se discutir “política” com discutir o que pode ou não ser atribuído à agência de atores poderosos num campo todo moldado pelas próprias instituições hierárquicas – e essa discussão sobre quem colocar num cargo de chefia (em quem votar) rouba, suga as energias da discussão sobre como resolver nossos problemas.

É sintomática a diferença no desenvolvimento dos trabalhos no ENEM e no Vestibular da UFSC – em que pese que ambos são uma merda por definição, é claro, não porque são piores entre seus pares, mas por toda a lógica que eles contribuem para manter e avançar, uma lógica de escola, de inteligência medida, de meritocracia (conceito ao qual logo voltaremos), etc. Apesar disso, e apesar do fato de que obviamente os fiscais, assim como eu, são sempre todos gentis e cordiais entre si (e também com os candidatos), uma diferença. No ENEM os fiscais “auxiliares” trocam de grupo em torno das “âncoras” chefes-de-sala – isto é, os chefes-de-sala ficam, no domingo, na mesma sala que ficaram no sábado; o outro fiscal de sala, o auxiliar, é que troca. Já vai embutida aí uma desconfiança, mais uma expressão de mesquinharia tosca, que não se vê na UFSC, em que a mesma equipe trabalha no mesmo grupo, com o mesmo grupo de fiscais de corredor, por três dias.

Mas isso é detalhe. O mais interessante é que o ENEM faz algo que não vi acontecer na UFSC: os coordenadores passaram um vídeo, e fizeram um apelo, para “conscientizar” os fiscais da importância que tem o ENEM na vida das pessoas e por que era importante que o processo seguisse sem problemas. Isso é até compreensível, até certo ponto louvável – mas o curioso é que no início do segundo dia, já na entrada da sala de organização, tivemos que deixar os celulares com a coordenação – coisa que só fizemos, no sábado, ao caminharmos para o grupo de atuação. A justificativa é que houve erros e dúvidas no sábado que não teriam acontecido se as pessoas tivessem prestado atenção no vídeo de orientações (um dump megalomaníaco, ineficaz e tedioso de informações) que foi exibido no sábado. Por isso, a retirada dos objetos. Não estou reclamando, tanto quanto percebendo como o clima é diferente – na organização privada que organiza o ENEM em SC (Cesgranrio) certamente a cobrança é maior (a estrutura é nacional em comparação com a local Coperve) e cada chefe, de cada escalão, é repreendido por cada potencial problema num processo que já é conhecido por escândalos (e, devido à escala, não podia ser diferente – o ENEM é todo megalomaníaco). Isso derrama para o chefe de sala, que recebe ainda mais pressão – “os outros também têm sua importância”, desculpa-se a coordenadora após puxar a orelha dos chefes de sala, “mas os chefes de sala têm uma responsabilidade maior”.

Preciso deixar uma coisa bem explícita antes de prosseguir: nada do que estou dizendo aqui é novo. Diferente. Original. Isso sobre autoridade e culpa pode ser encontrado em quase qualquer pensador que valha a pena desde Nietzsche, e todo o mais eu no mínimo suspeito que alguém mais tenha dito, ainda que não amarrando na mesma sequência e da mesma forma como eu neste post – e daí minha motivação específica para escrevê-lo, organizando minhas anotações nesse sentido. Além disso, é óbvio que a dimensão da hierarquia enquanto fiscal de vestibular não significa porra nenhuma – fazer essas comparações é só uma questão de “nostalgia” quanto a manter no texto final a “fonte de inspiração” para essas teses. Apesar disso, elas conservam sua potência quanto ao resto das coisas. Quanto ao resto do mundo.

Muitas vezes – continuando – a questão da chefia vem amarrada à da liderança. Se necessariamente os grupos humanos precisam de líderes, especialmente em processos decisórios, então precisamos de chefes. Enquanto animais sociais, necessitamos de líderes e os cargos de chefia são basicamente uma corporificação formal desse princípio.

Isso não poderia estar mais incorreto, pois vem de uma concepção errada de liderança.

A liderança é algo que acontece, não um atributo pessoal que alguém possui. Um líder é o que alguém acaba sendo, como numa função emergencial, e não o que alguém nasce para ser ou deve construir em si mesmo como sendo. É o que surge do processo social dos grupos, sempre em contexto, de forma episódica, não o que é necessário para seu funcionamento. Líderes são consequência. Não causa.

Ao longo do parágrafo a definição foi escorregando de liderança para líderes, e o fiz em nome do didatismo – mas para explicar melhor vamos retroceder e atacar o fenômeno: a liderança. O que ocorre numa situação de liderança? Alguém – ou um grupo de pessoas, a depender da escala, talvez – exerce considerável influência sobre uma quantidade de pessoas, de modo a causar efeitos no status quo. A questão é que esse “evento” em que a liderança se manifesta é composto de várias partes. Nosso ponto de vista, embutido no vocabulário da questão, faz com que enxerguemos os líderes como diabinhos sedutores exercendo (mais uma vez em que o vocabulário e suas limitações são cruciais) influência nas pessoas – como em marionetes, talvez. Não lidemos ainda com a distinção entre líderes e chefes, mas pensemos que o líder não obriga: ele inspira. Portanto esse exercício de poder é linguístico; é gramático, é xamanístico. O fenômeno da liderança, pelo menos nessa forma “pura” que estudamos para fins de exemplo, não tem nada a ver com o uso da força, da coerção.

O que esse quadro que pintei exclui são dois elementos cruciais: os liderados e o contexto em que ocorre essa liderança. A liderança acontece em tópicos, em assuntos: a cada momento (da vida pública ou individual) em que um tema recebe foco, em que vira “pauta”, abre-se uma oportunidade para que o fenômeno ocorra e o estereótipo de antropólogo clássico anote em seu caderninho o que ocorreu: a pessoa tal e tal usou de seus dons persuasivos para liderar, convencendo as pessoas a adotar tais e tais atitudes. Mas essa descrição das coisas confere literalmente nenhuma agência aos liderados, que aparecem como ovelhas (têm opinião, mas não forte o bastante), como hipnotizados (têm opinião, mas não faz diferença porque o hipnotizador consegue sobrescrevê-las a partir de seus dons) ou como completamente incapazes de atuar (não têm opiniões, por isso precisam que alguém lhes dê uma).

Além disso, fica de fora uma análise contextual que, embora perigosa de defender, vou ousar fazê-lo mesmo assim: algumas ideias podem simplesmente… Ser melhores. Não digo objetivamente – e nisso certamente é preciso incluir os liderados na análise – mas pode ser que, dada a percepção geral da realidade (da qual ninguém tem totalitário domínio, por mais totalitária que seja a sociedade) e do que está disponível como caminho de ação, o líder seja aquele que argumente bem em favor de uma ideia que já tinha bastante força, e foi, digamos, mais uma “peça” – um catalisador, talvez – de uma transformação que, embora tenha sido acelerada ou melhorada a partir de sua participação, não necessariamente estava bloqueada enquanto contingência da história. Ou, ainda por outro ângulo, sim, o líder é uma parte de cada momento de atuação de um determinado grupo. Uma parte decisiva. Mas todos aqueles que fazem parte dessa atuação também o são, e no entanto uma certa ideologia de “culto ao líder” completamente enviesa a percepção sobre o que realmente acontece quando um grupo toma uma decisão – especialmente em processos decisórios amplos, horizontais, com base em consenso – e nos faz perceber a coisa de forma incoerente; no limite, incompleta.

Esse “culto ao líder”, túnel-realidade em que o contexto mais amplo do fenômeno da liderança é ignorado em favor de alguns poucos indivíduos, promove uma “essencialização” do líder: é algo que você é. Claro que essa essência é geralmente revelada através de atos – um grande líder é um grande líder porque fez coisas que grandes líderes fazemtendo sido, portanto, um grande líder. Mas isso é uma bobagem: embora claramente as nossas experiências fazem de nós quem somos em grande medida, não existe uma “essência” de líder, especialmente não uma pregressa à atividade enquanto tal, como um “coquetel” de traços de personalidade que faça de alguém um “líder nato” (assunto ao qual voltarei em breve).

Em relação à conexão entre liderança e chefia, um “cargo de chefia” é justamente a tentativa de institucionalizar a liderança – formalizá-la, buscando isolar aquilo que se percebe como seus efeitos (por exemplo, catalizar a ação coletiva) investindo-a de autoridade. A diferença é gritante: o fenômeno da liderança diz respeito ao fato de que, quando um determinado grupo discute possibilidades de ação coletiva, alguns indivíduos terão mais recursos relevantes que outros à disposição (seja de fala, de experiência, materiais, etc), além de mais interesse no assunto e disposição a curto, médio ou longo prazo. Esses indivíduos podem usar do espaço livre de fala e convencimento para expor suas visões e, caso o grupo concorde, seus indivíduos vão formar agendas e planejamentos para ajudarem uns aos outros a tornar realidade essa visão que, por acaso, este “líder” inicial ajudou a tornar mais explícita, a descobrir, ou quem sabe a definir mesmo, em contraposição a alguma outra possibilidade. Veja, existe uma liderança aí; o fenômeno ocorre. Mas ele é mais uma consequência lógica da diversidade existente entre indivíduos em qualquer grupo humano e se adapta (aparecendo com mais ou menos força) a determinados temas, situações, contextos, etc. A chefia é a tentativa de pegar esse “roteiro” e forçá-lo a acontecer sempre, retirando a espontaneidade tanto do contexto (a intensidade da liderança é sempre a mesma, independente da situação), como do líder (que não é qualquer um que seja mais apto a sê-lo numa determinada situação, e sim uma pessoa institucionalmente investida com tal atribuição) quanto dos liderados (que devem obedecer o chefe, independente de suas vontades, perspectivas, ou mesmo potencial para serem eles mesmos líderes ou competir por essa função num dado contexto). Aliás, a essencialização é uma besteira porque é assimétrica: considera apenas os sucessos de alguém como critério para caracterizá-la como líder (como algo que faz parte de sua personalidade, ou pelo menos de sua persona pública), mas esquece convenientemente todos os momentos em que alguém fracassou enquanto líder – não enquanto chefe, mas quando defendeu publicamente uma posição e não conseguiu adesão, isto é, tentou exercer essa função e não conseguiu. Não se trata de dizer que deveríamos considerar os fracassos igualmente – classificando, assim, em não-líderes incorrigíveis e eternos aqueles que dão de cara na lama da história – mas de entender que todo líder (uma vez que um líder é líder em contexto, em situação, e portanto alguém pode ser líder centenas de vezes ao longo da vida) foi também já, muito provavelmente, um líder frustrado, um não-líder, um tentou-liderar-mas-não-conseguiu – e certamente já foi também um liderado.

A liderança é uma potência humana aberta a todos – e não digo isso tentando re-essencializar a liderança, já que há dois ou três parágrafos tenho tentado arrancá-la do pedestal em que foi posta enquanto função social. Estou apenas dizendo que é uma função que qualquer um pode exercer, em grupos de qualquer tamanho e qualquer (?) natureza, a qualquer momento. É a potência que temos de mudar mentes, de mudar opiniões, valores, sentimentos, e não depende tanto de nossa individualidade como de nossa generalidade – do fato de que é assim que funcionamos enquanto animais que interagem uns com os outros: nos influenciamos mutuamente o tempo inteiro. Uma confluência de fatores – do tempo, do espaço, da escala, das ideias – torna possível um momento em que alguém é catalisador de uma atitude coletiva mais ampla, mais direcionada, coesa. Essa pessoa é um líder, mas ela não teria sido uma se cada uma das pessoas não preenchesse um papel igualmente decisivo na estrutura de uma ação coletiva. Os liderados não são levados. São levantes.

Recuperando a questão do “líder nato”: não é verdade que algumas pessoas são simplesmente fodas demais? Que nasceram pra sublevar as massas com suas intonações e dicções perfeitas, seus sorrisos safados, seus atributos físicos que coincidem perfeitamente com o padrão estético corrente? Talvez, sim, mas algumas dessas qualidades – a desenvoltura no falar, a coragem necessária para endereçar seus companheiros iguais como tais em público, a dignidade e a auto-estima para ser seguro de si, entre muitas outras coisas – podem ser estimuladas em todos, de modo a serem no mínimo mais amplamente distribuídas, num sentido estatístico, na população (em outras palavras, não é porque existem poucas pessoas de um tipo x ou y no momento que essa proporção se repete em toda sociedade e se repetirá para todo o sempre). Além disso, as características dos líderes, quando em falta num indivíduo, previnem não só a liderança como a própria vida associativa livre. Muito se fala dos tímidos inveterados, mas não é à toa que pessoas que são tímidas a ponto de não sair na rua procurem ajuda psicológica – porque eles mesmos entendem essa condição como dificultosa. Tirando isso – casos extremos de falta de características específicas – qualquer pessoa que possa conversar e se relacionar de igual pra igual com seus pares livres (seus amigos, sua família, seus vizinhos) pode perfeitamente, dado um contexto estimulante o bastante, ser um líder. E, por fim – e o que é crucial – a própria rejeição a fazer o papel de líder tem a ver com mais um erro que se dá através da coincidência ideológica da ideia de líder com a de chefe: porque, afinal, quando se é chefe, você é responsável por tudo – você está na sua função, em enorme medida, para levar a culpa quando algo dá errado. Nesse sentido, é compreensível que muitas pessoas (que têm o mínimo de senso pra entender que é assim que as estruturas hierárquicas funcionam – embora haja um contraditório daqui a pouco, só um instante) se abstenham de, por exemplo, tomar a dianteira (a liderança) até mesmo pra organizar um encontro com os amigos. Porque entendem que, caso algo dê errado, caso seja em qualquer medida insatisfatório, é o líder quem sairá culpado; é dele de quem os amigos, no caso, falarão mal pelas costas, reclamando de sua atuação, por vezes até exigindo que fossem feitas coisas que poderiam ter sido feitas pelas próprias pessoas que falam mal – isto é, o que é liderança é tomado por chefia, e a iniciativa já morre através dessa psicologia deturpada que aprendemos desde crianças. Isso é um problema enormemente comum nas nossas relações mais próximas; é o tipo de desgraça que vemos reproduzida em textos de facebook quando alguém diz que somos basicamente, enquanto humanos, todos um bando de filhos da puta – mesmo que obviamente essa não é a única sociabilidade que nos é acessível.

Dê uma olhada na forma como o Louis C. K. defende seu voto em Hillary Clinton… Ele dá várias razões engraçadas, na verdade, mas preste atenção na que começa em 1:50. (Dica: pare em 3:00 se não quiser ouvir ele falar merda e perder a graça).

Só pra retificar uma observação do parágrafo anterior: sim, é verdade que dizer que as estruturas hierárquicas funcionam de modo a “punir” os chefes é ser extremamente generoso com eles; é quase uma frase burguesa. Mas estou aqui avaliando o cargo de chefia e suas relações com a liderança em contextos mais micro, especialmente tomando o ponto de vista de um visualizador externo, talvez um com algum poder institucional de avaliar responsabilidades e fazer um julgamento consequente. Importa também, provavelmente, que a inspiração seja uma coisa tão banal quanto a estrutura de cargos de fiscais de vestibular. Mas, de qualquer forma, vale a pena dizer que é óbvio que o real problema com a hierarquia não é nem tanto, como se disse no início do texto, que ela “fixa” para onde os olhares devem ir na hora de atribuir responsabilidades para eventos negativos, mas justamente que, embebida em coerção e autoridade, ela faz com que os chefes possam manipular a percepção do que realmente houve de errado de modo que quem “pague” as consequências dos erros sejam justamente os subalternos, independente de uma apuração mais acurada que se possa fazer dos fatos (mas mesmo assim, assumindo uma postura filosófica, que fatos? Se é um empregado ou o próprio chefe que faz uma merda, do ponto de vista de alguém que está avaliando a atuação do chefe, tanto faz: é sempre possível estar disposto a culpá-lo, já que ele deveria ter cuidado melhor do empregado, vigiado-o mais, ensinado-o melhor. E essa possibilidade de culpa constante que recai sobre o chefe é aberta necessariamente pela própria instituição do cargo de chefia).

Voltando ao que eu falava sobre a questão de “vigiar e punir” – de instituir chefes como forma de controlar os desvios por meio da cautela e do medo da retaliação autoritária, e de como o melhor seria trabalhar com as “vontades” na fonte, na própria origem dos atos que se quer evitar: isso não seria, de alguma forma, totalitário? Não seria a “ditadura da maioria” no sentido cultural de que Tocqueville e Mill tinham medo, no sentido de execração, de linchamento moral, de exílio com corpo presente, de ostracismo, de corpo apagado da visão via implante distópico a la Black Mirror?

Creio que, pelo contrário, esse é o único procedimento que de fato aceita e respeita as liberdades individuais, de consciência, mas trabalha com a possibilidade gregária de que as pessoas podem trabalhar juntas para resolver problemas e conviver. A liderança, afinal de contas, é isso – um fenômeno em que se consegue uma determinada harmonia (que não precisa ser 100%, incluir a humanidade inteira, rejeitar dissenso como o diabo) forte o bastante para causar consequências; em que se consegue uma intersecção de pensamentos, de vontades, de ideias que criam laços e, mais que isso, promessas e expectativas. Se isso soa totalitário é porque a liderança é sempre pintada como um Lênin – ou algum “populista”, momento em que a figura do líder é novamente extraída de seu contexto e entendida como um personagem sobrenatural que promove a união ao ponto de promover também a perseguição aos dissonantes (coisa que é sempre possível mas não tem a ver com o fenômeno da liderança em si, e sim com outros componentes culturais e históricos muito mais profundos – a perseguição purificadora como método pode acontecer como pano de fundo, e em vários formatos, mesmo que não adquira força majoritária integrada por uma liderança específica… Da mesma forma como, pelo jeito como a polícia militar age no Brasil, vivemos num constante estado de de exceção há décadas, mesmo sem ter tido um estado de exceção formal, como se reconhece nos dicionários, desde a redemocratização federal em 88/89).

Como entender então o fenômeno da liderança dentro do anarquismo, entre anarquistas? Da mesma forma como em qualquer outro grupo, pelo menos enquanto ele não for confundido com o fenômeno da chefia. E para não sê-lo, acima de todas as outras características já mencionadas anteriormente, creio, a mais importante é o status da responsabilidade em si. Se a chefia (novamente, além dos muitos outros efeitos e propósitos da hierarquia em termos de manutenção de uma ordem desigual) significa poder dizer “a responsabilidade é daquele ali, ó, o chefe“, a liderança implica em justamente assumir essa responsabilidade, mas num contexto, num ambiente coletivo em que todos a assumem concomitantemente. É preciso que os liderados vejam a si mesmos como levantes também, como eu os caracterizei antes (mas felizmente essa é a regra, não a exceção). É preciso que eles se entendam no processo como ativos na construção desse líder que é mais símbolo e conveniência que qualquer outra coisa: dali em diante, naquilo que o coletivo resolva fazer no que diga respeito a esse assunto em que se deu o fenômeno da liderança, a responsabilidade é de todos, a culpa é de todos, a agência é de todos.

E as consequências disso são mais do que discursivas. Porque não são só os louros que são compartilhados, assim como as derrotas e os erros: trata-se mais de uma atitude em relação aos erros do que necessariamente quem vai ficar com eles. Porque se alguém errou, o ambiente cultural dessa coletividade não vai ter como foco o apontar de dedos – o dizer “foi o líder, pois ele deveria ter prestado mais atenção, vigiado mais, sido um líder melhor, mais eficiente”, mas também não o dizer “foi aquele ali, que traiu a todos nós, foi ele que foi o culpado pela desgraça, ele e mais ninguém, eu não tenho nada a ver com isso”. Não, desde o princípio até o momento da ação e depois, enquanto houver o estar junto no agir direto com os outros, todos são responsáveis sim, a partir do mesmo princípio que confunde tudo: o que errou poderia ter sido melhor auxiliado por todos. Mas o mais importante não é que errou, mas sim como não errar mais; não é que deu problema, mas que todos trabalhem juntos para consertá-lo. A ação coletiva, intuo, pode acontecer sem o fenômeno da liderança (e quando grupos como as ocupações escolares, ou certos protestos, dizem não ter líderes, eles geralmente querem dizer que não tem chefes; têm líderes sim, e não tem problema nenhum com isso, pela minha definição nesse texto), mas com ou sem ele o que se espera de uma produtiva ação coletiva é que ela se foque menos em seus agentes particulares e mais na resolução de problemas a partir da qual foi constituída: no que precisa ser feito, nos processos sociais relacionados ao problema e à solução, nos acordos necessários pra criar soluções aceitáveis, razoáveis, e na contínua autocrítica pra garantir o bem-estar e os princípios durante a execução dos afazeres.

É verdade quando certos gurus de administração reclamam que no mundo sobram chefes e faltam líderes: só que é uma questão social, cultural, política – e não psicológica!

Daí a importância também de entender como funciona a liderança no caso de professores, de pais, de mestres de todo tipo – posso estar expondo algo até, inclusive, antitético ao que encontramos em obras importantes como “O mestre ignorante”, de Ranciére, mas tanto faz: acho que a liderança que surge nesses casos vem de um reconhecimento tácito entre os indivíduos quanto a um diferencial de saber que justifica o convencimento mais frequente que ocorre do professor ao aluno do que no sentido contrário. Como disse Graeber, a “autoridade” do professor erode a si mesma, pois a atividade do professor consiste em transformar o aluno até o ponto em que ele (o professor) não seja mais necessário – um bom professor, assim, promove cada vez menos sua autoridade. Nesse caso, seu potencial para liderança não diminui, pois é sempre latente, mas certamente as condições que o tornam mais pronunciado e provável vão deixando de existir ao longo do tempo, até que se estabeleça uma igualdade de conhecimentos (além da que já existia antes, de intelectos, eu sei, Ranciére…). O que é que a chefia, no sentido de hierarquia e autoridade, tem a adicionar de bom na relação entre professores e alunos, ou entre pais e filhos? Muito pouco ou nada. Creio que venha mais da vontade de dominação, ou do medo mais profundo mesmo, mais ulterior, de que uma inovação venha da parte das novas gerações e desloque o papel de autoridade (a posição que, como eu argumentei, confere aos pais e professores mais oportunidades de razoavelmente assumir a liderança nas relações com filhos e alunos) – em outras palavras, é uma tara por controle e manutenção de estruturas que me parece que essa própria ideia de liderança de que lancei mão ajuda a combater, embora mantenha uma cumplicidade potencial inalienável – afinal, também não é arbitrária a ligação que se faz ordinariamente entre liderança e chefia. A mesma coisa não acontece com outros termos; há obviamente um paralelismo, uma afinidade aí que convida comparações e, no nosso caso, confusões nem tão acidentais e inocentes quanto posso estar fazendo parecer.

Acho que a ideia de chefia, os cargos de responsabilidade, enfim, a instituição chamada “hierarquia”, é uma tentativa de capturar formalmente e reproduzir em massa o fenômeno da liderança. É engraçado – as críticas que se pode fazer à artificialidade do mundo industrializado, sua ideologia estúpida de consumismo, etc: tudo isso se volta justamente contra a tentativa de empacotar, rotular e vender o que é genuíno no mundo; justamente aquilo que não pode ser contido, racionalizado, contabilizado, estocado. É essa violência, às vezes simbólica, às vezes palpável, contra uma experiência mais livre e mais artística da vida que gera tanta revolta – e no entanto tudo começou não na revolução industrial ou na origem do capitalismo, e sim nessa linha de produção mais primária, mais ancestral, de tecnologias humanas: a reprodutibilidade técnica da liderança, sua cínica transformação laboratorial em chefia, e o uso que se fez dela para converter e redesenhar gigantescas estruturas humanas ao redor do planeta ao longo do tempo (e, claro, a gourmetização recente na figura do cool boss).

Vale lembrar alguns detalhes adicionais. Acho que o quadro de ação coletiva que pintei deixa pouco espaço para a retratação da falha grosseira – inclusive quando não é falha, mas ação no intuito de machucar de fato. Não vou fazer como os adversários do anarquismo que universalizam uma maldade de vilão de novela, monstrolizando a espécie humana de forma tão estúpida que até Hobbes sentiria vergonha. Mas é preciso reconhecer que não há regra sem transgressão, nem caminho humano sem contramão. E no entanto, ainda é possível encontrar uma outra forma de lidar com esses casos. A justiça restaurativa (vejam essa matéria muito interessante da Pública) é uma experiência radical de entender de forma diferente mesmo o fenômeno de responsabilidade pessoal que, apesar do que eu expus nesse texto inteiro, jamais é verdadeiramente apagada. E não creio que precisei argumentar nesse sentido tampouco: embora eu tenha dito de fato que a responsabilidade não se encontra num lugar só, não quer dizer que não exista – e se existe mesmo em muitas pessoas, compartilhada ou coincidentemente nelas colocada, existe ainda, e as pessoas precisam lidar com elas entre si. Mas acho que, dentro do processo de ação coletiva que descrevi, a justiça restaurativa é um modelo muito positivo e coerente para lidar com esse tipo de coisa. Além disso, vale a pena lembrar que valorizar a união total de um determinado grupo acima de tudo, em qualquer circunstância, é a cegueira do nacionalismo (que vale também para grupos menores, embora nesse caso tenha nomes diferentes). A dissolução de um grupo frente ao reconhecimento de que já não existe união produtiva, união que respeite as liberdades e individualidades, não é o fim do mundo.

Por último, uma curiosidade: e aqueles que não passam sem responsabilidade pessoal? A galera que não engole essa história de responsabilidade compartilhada, da fatal indeterminação de culpabilidade a partir da falta de um critério fora do “jogo de significados” – isto é, universal, inegável, neutro, absoluto – que julgue e atribua sem dissenso de quem é a responsabilidade pelo quê: como fica esse pessoal?

Bem, não sei como ficam, mas o fato é que esse é um discurso complicado. Curiosamente, eu o ouço mais vindo dos “republicans” dos Estados Unidos (do partido republicano), pelo menos a partir das notícias e matérias que consumo vindo de lá. Eles (apesar da hipocrisia que se vê em três segundos) alegam ser o partido da responsabilidade pessoal – isso aparece muito ao discutir os empréstimos estudantis universitários; quando se fala em renegociação dessa dívida, ou cancelamento ou, enfim, qualquer coisa que vá aliviar a vida dos jovens naquele país, imediatamente se rebate que eles escolheram fazer universidade porque quiseram, e agora têm que arcar com as consequências – responsabilidade pessoal.

Foi engraçado perceber que esse conceito é a imagem-espelho da “meritocracia” no Brasil. Do lado de cá, a responsabilidade pessoal (o mérito) servindo como álibi para a manutenção de privilégios nas mãos dos mesmos poucos de sempre. Do lado de lá, a responsabilidade pessoal como atributo de culpa para a manutenção de ônus nas mãos dos mesmos muitos de sempre. Não é curioso? De qualquer forma, o discurso é (não por acaso) o mesmo encontrado no cerne da estrutura da chefia: aquele que promove a separação do indivíduo do grupo, isolando-o tanto analiticamente quanto na prática. A diferença é que, no caso da chefia, essa separação se dá no plano da delegação (do acúmulo) de poder, de autoridade. No caso dos discursos sobre “responsabilidade pessoal”, o indivíduo é separado do grupo sem que isso acarrete para ele mais poder. O poder que lhe sobra nesse cálculo cognitivo é o poder do indivíduo atomizado, que se resume ao consumo: a liberdade que não é autonomia de fato, e se resume a uma atividade essencialmente passiva.

Assim, essa operação de divisão é executada de acordo com a conveniência do momento – o que acaba fazendo com que apareça como desonesta e cruel. Todos vivemos juntos, em sociedade; alguns mais juntos de uns que de outros, geograficamente, culturalmente, politicamente. Mas de todo modo nossas vidas se cruzam e há muita responsabilidade que se cruza na construção delas – que são nossas, não só minha, dele, dela; sua. Nessa construção é muito complicado escolher momentos para dizer “não, não tenho nada a ver com aquele ali ou aquela lá; não, sua situação atual é completamente derivada de suas escolhas pessoais, as quais não se conectam comigo em momento algum, sob nenhuma perspectiva, e portanto não é legítimo que façamos nada em relação a isso – se fizermos, que seja no máximo a separação ainda mais radical de nossas vidas a partir do uso do aparato de força para mantê-las tão apartadas quanto possível”.

Entender o fenômeno da liderança pela ótica mais inclusiva de “ações coletivas libertárias” é parte de um entendimento mais profundo sobre a fecundidade não só dessas ações coletivas como estratégia de luta transformação social, mas também da união entre meios e fins. Está no caminho de compreender a positividade de estabelecer como horizonte a reorganização da sociedade em termos de comunidades libertárias compostas por dezenas, centenas, milh- o número que for preciso – de ações coletivas.

Uma resenha em profundidade de “Nature, Essence and Anarchy”, de Paul Cudenec

Uma versão em inglês dessa resenha pode ser lida aqui.

Estou dividido quanto ao livro “Nature, Essence and Anarchy” (“Natureza, Essência e Anarquia”, em tradução livre), título recente do anarquista Paul Cudenec pela Winter Oak, disponível na Amazon. Quis ler esta obra justamente para conhecer melhor os argumentos de um anarquista contemporâneo que defende a ideia de “essência” – coisa rara hoje em dia. E se por um lado não me sinto confortável falando negativamente deste livro  porque não concordo com algumas de suas ideias – e o formato do texto, como nas outras coisas que Paul Cudenec escreve, é bem agradável – há algumas coisas que me incomodaram mais profundamente aqui. Eu gostaria de discuti-las.

O objetivo desta coletânea de textos é apresentar uma filosofia (não apenas política, mas holística) contrária ao capitalismo; uma que sirva, intelectualmente, a tarefa de combatê-lo. O autor considera que ela deve atacar o pós-modernismo, que tem um efeito doentio sobre nosso sistema intelectual, criando uma “paralisia” em ampla escala; há ao longo do livro uma conjunção total entre “pensamento pós-moderno” e “capitalismo”. Para Cudenec, a noção de um mundo “construído” é essencialmente proveniente do capitalismo: para o mundo capitalista construído, tudo o mais também foi construído.

Aware on some level of its own fundamental falsity, it defends itself by projecting that falsity on to everything else that exists, in order to level the playing field and create a theoretical realm in which its own artifice no longer stands out as aberrant, alien, toxic. It becomes impossible to accuse capitalism, in particular, of being fake if you accept its big lie that everything, in general, is fake, and that there is no such thing as truth, meaning, origin, essence and nature. (p. 2)

Assim, a solução para escapar ao capitalismo passa também por rejeitar a ideia de que toda realidade é socialmente construída – aceitando que somos parte da natureza (e que uma natureza real e independente ao qual nos apegar) e, em segundo lugar, que a forma como deveríamos nos organizar, se entendermos corretamente nosso lugar enquanto parte da natureza, é o anarquismo.

Mas o pós-modernismo surgiu justamente em parte porque não ter entendido a realidade como socialmente construída foi causa de muitos problemas. Como lembra Graeber, “Stalinistas e sua corja não matavam porque sonhavam grandes sonhos […] mas porque achavam erroneamente que seus sonhos fossem certezas científicas”. Mas é possível dizer que embora os positivistas e afins tivessem afirmado um entendimento do real, fizeram-no mediante uma separação entre humanidade e natureza que é em Cudenec (de forma acertada) objeto de crítica. Nesse sentido, Cudenec advoga não apenas a consideração do “real”, mas um “real” para além do humanismo instrumentalista exacerbado dos tempos modernos.

É tão estranho assim admitir que “somos parte da natureza” e que “a natureza é algo real, e nem tudo é socialmente construído”? Claro que não. Mas isso é um truísmo, e o diabo está nos detalhes – com os quais Cudenec infelizmente não lida. Se teóricos pós-modernos apenas dissessem “não há natureza, apenas subjetividade”, isso também, de certa forma, seria uma afirmação fraca. É preciso mostrar, argumentar – como faz Derrida, por exemplo, na longa e deliciosa surra que dá em Lévi-Strauss, e toda sua teoria ao redor da proibição do incesto, em “Gramatologia”. A natureza é real, tudo bem, mas o que é a natureza? Cudenec não nos dá uma definição. Pelo menos não uma com a qual se possa trabalhar sem cair numa lógica circular a partir da qual não se pode estar errado nunca. Em um momento, a natureza é o meio-ambiente; em outro, é a essência humana; em outro, é outra coisa – a definição de Paracelso que ele cita é o mais perfeito cop-out: a natureza seria “de fato tudo que vemos diante de nossos olhos: árvores, minerais, animais, doenças, nascimento, morte… Mas o que ela nos dá é sempre algo a mais também: a manifestação de uma realidade ‘mais profunda’ – ainda que no momento não possamos definir essa profundidade mais claramente”. É irônico parafrasear a crítica feita por Sahlins a ninguém menos que Foucault, mas cai como uma luva: quando tudo é natureza, nada é natureza.

Não há nuance no entendimento que Cudenec faz do próprio pós-modernismo. Acho razoável que se diga que ele acaba colaborando com várias instituições que os anarquistas combatem; mas é um passo a mais tratá-la não só como epifenômeno do capitalismo, mas como desenvolvimento deliberado dele. O pensamento pós-moderno é equacionado com o estado de coisas em que vivemos de forma tão agressiva que poderíamos facilmente imaginar que os autores mais conhecidos dessa “tradição” (ha!) não sejam Derrida, Deleuze ou Spivak, mas sim Bill Gates, George Soros ou Rex Tillerson.

Procuro apreciar o pós-modernismo como uma forma de revisar profunda e seriamente nosso aparelho cognitivo, nosso ferramental conceitual. Pode ser que muitos tenham ido longe demais nesse revisionismo? Sim, claro. Como alguém que, por saber que sempre é útil revisar o carro antes de viajar, nunca consegue viajar porque assim que termina uma revisão, começa outra. E, como ouvi uma vez Ricardo Silva dizer, a ausência de assepsia absoluta não justifica que um médico faça uma cirurgia no esgoto. Existe uma impossibilidade prática de considerar que não há realmente uma “realidade” lá fora, e que tudo é uma ilusão, pois fazemos cálculos pragmáticos a cada segundo de nossas vidas. Apesar disso, nossa “necessária subjetividade” força a admitir que, no fundo, no fundo, podemos estar sonhando, ou vivendo uma realidade simulada: apesar da corretíssima regra quanto ao “ônus da prova”, o fato de que algo não é falseável só coloca a afirmação além do alcance da ciência, não além do campo do possível. E sim, eu entendo que isto é um agnosticismo perfeitamente criticável também – mas mesmo sem cair nesse cenário extremo, “erros” cognitivos de toda sorte, práticos e consequentes, são muito frequentes. Pessoalmente, considero cem vezes menos prejudicial um pós-moderno convicto do que um positivista / racionalista / dialético que se convenceu de que sabe a verdade e exatamente como se chegar a ela (é tão curioso como a galera da “dialética é tudo na vida” acha que o fato de que fundamentalistas religiosos e “Bolsonaros” estão errados os separa mais do que os une). Se parece óbvio que o desejável mesmo é nem um, nem outro, então o mesmo vale para uma abordagem razoável sobre a cognição humana. A melhor voz que já ouvi (li) discorrer sobre isso é a de Robert Anton Wilson, em Quantum Psychology.

Mas minha defesa do pós-modernismo não se dá apenas por essa malandra tentativa de me apegar ao que há de bom nele e ignorar o que há de ruim; aponto também como são fracas as tentativas de criticá-lo. Na maioria das vezes, o argumento é pragmático – o que é absolutamente ilegítimo do ponto de vista científico. “Se todo mundo acreditar no pós-modernismo, coisas ruins vão acontecer” – mesmo que isso fosse verdade (discutível), não significa que ele está incorreto, infelizmente. “Até Bruno Latour se arrepende de ter dado munição aos anticientíficos” – ele preferiria não ter contribuído, então, com as ciências sociais? Hmm. Talvez seria melhor Darwin não ter publicado sua teoria sobre a transformação das espécies, para não dar munição aos eugenistas? “A visão de que após a morte não há nada é muito amedrontadora, portanto não deve estar certa” – quase literalmente o que Cudenec afirma mais ao final do livro.

Uma visão crítica interessante engendrada por ideias pós-modernas é aquela que enxerga a conexão entre da definição de “naturezas” e “essências” (não importa quão benevolentes e não-“naturofóbicas”) até o julgamento dos que são “contra a natureza”. O autor mobiliza, por exemplo, uma concepção positiva de liberdade (sigo a classificação de Berlin, nesse caso), e há muitas coisas interessantes que ele diz ao fazê-lo; quando advoga, por exemplo, que a “negatividade” de um anarquista – aquilo que é geralmente considerado ruim por estar associado a, digamos, reações agressivas e destrutivas à dominação e à autoridade – é uma positividade uma vez que se relaciona à afirmação de determinados ideais e valores. Ou quando isso serve de crítica ao self liberal de um Rawls. Mas, em última instância, o problema permanece: a mesma estrutura de pensamento, os mesmos argumentos, o mesmo vocabulário de apelação à essência já foi usado com sucesso por grupos com objetivos muito diversos dos nossos – como no fascismo.

O autor fala de Kropotkin, que aparece no primeiro ensaio condenando de forma política a teoria da evolução de Darwin; um pouco depois, mostra-se como sua teoria de evolução a partir da ajuda mútua leva à conclusão de que “o anarquismo é natural – que, deixados por si sós, pessoas e outros animais tendem a cooperar com outros para o benefício coletivo” (p. 9). Hoje – talvez exceto na cultura popular, o que é um grande problema por si só – a biologia leva em consideração a cooperação como um fator importantíssimo do processo evolutivo. Mas a competição, principalmente aquela que não se dá necessariamente a nível consciente (isto é, não um leão violentamente atacando uma gazela, mas uma vegetação que infelizmente não é suficiente para uma população muito grande de animais) não pode ser descartada. Afinal, o que isso equivaleria a dizer? Que a cooperação é natural, mas a competição é antinatural? Se a natureza, ou a realidade, ou O Universo (como no último ensaio), são “tudo que existe”, então como aquilo que é poderia ser de tal forma que deveria não ser? A partir de que categoria deveríamos entender a competição? Pessoas e animais tendem a cooperar – que pessoas? Que animais? Em toda e qualquer situação? É verdade que muitos casos de violência entre seres humanos são usados como propaganda para avançar a ideia de que somos “naturalmente ruins” (e isso é burrice), mas o contrário é igualmente absurdo. E perigoso, também.

O que poderia garantir que nós, anarquistas, estamos certos sobre uma determinada racionalidade acerca da natureza humana? A introspecção, descreve-se (em termos meio místicos) em “Essência e empoderamento”, um dos textos da obra. Temos que olhar fundo para dentro de nós mesmos para descobrir nossa essência. O problema, é claro, é que este olhar não vai estar fora de um determinado contexto. Cudenec acusa o pós-modernismo de ser uma máquina de produzir silêncio (já que não há essência, não se pode falar dela), mas isto é estranho; é claro que se pode. O pós-modernismo não é uma máquina de silêncio – de “sensorial deprivation”, como começa o ensaio – mas uma máquina de “sensory overload”; seu problema é que há um certo estímulo a falar demais, sem foco, e não menos. Justamente por investigar fatores que influenciam o olhar que se empreende em busca da essência, e como os resultados dessa busca serão contingentes e contextuais a depender desses fatores, o pós-modernismo pode fazer parecer que a busca é inútil – mas não é; é preciso apenas se acostumar com a forma como certos critérios não-racionais (como nossos valores) a influenciam. Em outras palavras, o pós-modernismo não impede a introspecção; só avisa que ela jamais será pura.

O autor parece incorporar uma intuição em relação à insuficiência de “razão e introspecção” como caminho para encontrar a essência humana na própria estrutura do texto, especificamente na forma como cita outros autores. No primeiro ensaio, por exemplo, Cudenec está basicamente dizendo: “existe uma realidade objetiva, ela é a (ou faz parte da?) natureza (que é a realidade objetiva, ou faz parte dela – eu não sei!), e aqui está Paracelso, um pensador cujas ideias devemos recuperar, porque… Porque ele concorda comigo!“. Cudenec não argumenta de fato em favor da existência da tal “realidade objetiva” (exceto pela perspectiva pragmática que critiquei acima), e tampouco traz Paracelso à tona para que ele possa fazê-lo! Não há, de fato, argumentação, aqui, por parte de nenhum dos autores: separados por séculos, eles afirmam várias coisas, mas nada necessariamente com mais propriedade que seus adversários.

Quando Cudenec argumenta que há sim uma “realidade objetiva”.

Sim, estou perfeitamente em paz com a ideia de que há uma realidade à qual respondemos – mas é preciso ser exigente ao analisar ideias, e os pós-modernos são muito mais efetivos, mesmo quando argumentam o absurdo que é a negação disso, porque lidam em profundidade com as imensas dificuldades encontradas sempre que se tenta dizer uma letra sequer sobre o que esta realidade é. Se afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias, não é muito impressionante quando alguém vem dizer que é capaz de produzir um conhecimento útil e objetivo sobre a realidade humana se não vier com argumentos e indícios bem amarradinhos quanto a isso. Isso é algo que Graeber, por exemplo, ao beber da fonte de décadas de pesquisas antropológicas, faz de forma bem mais contundente (embora ainda reconheça no começo de “Fragmentos de uma antropologia anarquista”, citado acima, o perigo de uma disposição intelectual segura de si em demasia).

Mas o problema mais fundamental com a premissa de Cudenec é seu enquadramento crítico. Ele se pergunta: como podemos chamar o capitalismo de falso se tudo é falso e se não há mais significado, verdade, natureza, essência, etc? A resposta é simples: porque não precisamos chamá-lo de falso. Podemos chamá-lo de ruim. De contraproducente. E de anti-ético. Jesse Cohn demonstrou, no livro que mencionei acima, como o pós-modernismo é incapaz de produzir uma crítica ética da atualidade, uma vez que abandona este tipo de parâmetro ao relativizar tudo (e nisto Cudenec acerta em cheio). Contudo, isso não tira o mérito da crítica que ele promove aos riscos agudos da representação – uma operação necessária no pensamento que afere as “essências” e as “naturezas” dos seres. Por exemplo, uma parte muito boa do livro está na página 14:

in a world that sees only atomised individuals creating their own subjective realities, what place is there for this collective level of human life […]? In our capitalist world of separation, any authentic communal belonging has to be destroyed so that each isolated individual has to turn to the system for their sense of identity, which is sold back to them in fake form as part of a lifelong process of exploitation based on dispossession.

Essa é uma crítica muito bem colocada, mas a forma geral do argumento ao longo do ensaio não se sustenta. A construção da figura do ser humano como separada dosuperior ao resto da natureza vem de no mínimo Descartes, e é justamente o tipo de coisa que o pós-modernismo condena. No entanto, numa conjunção muito mal explicada, essa separação entre humanidade e natureza é equacionada à ultrassubjetividade pós-moderna, como se a ideia de um ser humano independenteacima da natureza surgisse com Lyotard em 1979. A própria ideia de um “humanismo instrumentalista” como muito recente é estranha, considerando que a própria noção cristã de mundo é uma em que a terra e os animais foram criados por Deus para a satisfação das necessidades humanas. Certamente isto tudo não é um “lapso” por parte do autor: é mera consequência lógica da equalização de saída que se faz entre a filosofia pós-moderna e o capitalismo contemporâneo.

Na página 16, ao final do artigo, temos outra boa parte:

If our everyday experience is of traffic jams, shopping malls and office blocks, if our minds are constantly filled with images of consumerism, domination and war, how are we to see the world as “a vast organism in which natural things harmonise and sympathise between themselves”? The answer is in our imagination. As anarchists have long understood, another world is always possible and will flourish in our collective mind long before it becomes a physical reality. We need to imagine ourselves out of the suffocating confines of industrial capitalism, leaping over all the barriers of lies that it has erected around us.

Isto é muito bom; não só em termos retóricos, mas também lógicos. Sim, nossa imaginação encontra-se sob assalto – não só da mesma forma como toda imaginação é constrangida pela experiência e as estruturas sociais às quais ela se relaciona, mas também como na análise de Graeber acerca do “assalto à imaginação”, no qual o neoliberalismo basicamente se resume. E a consideração do mundo do possível é essencial: é uma realização acerca da hermenêutica e da estética anarquistas conforme expostas por Cohn, embora, curiosamente, elas tenham muito em comum com a tríade conceitual de “real”, “atual” e “virtual”, de Deleuze e Guattari. No entanto, este belo parágrafo logo cai em uma nova armadilha à medida que a construção dessa imaginação se dá através de um “sonho” com a “autenticidade”:

We need […] to allow nature to dream itself into the core of our inner being. “Freedom for Paracelsus is anything but the arbitrary will of the subject,” says Braun. “It is not defined on the basis of the subject, of the will of the subject. Instead, it’s an act of letting-be, letting nature illuminate itself in us”.

O que seria ótimo, se apenas a ideia de natureza não fosse ela mesma sempre contingente e socialmente construída! É ótimo que Cudenec pense na natureza humana dessa forma – mas isso é filosofia política; e enquanto ideia sobre as atitudes dos seres humanos, não tem força nenhuma a não ser que esteja operante em suas cacholas. A “natureza” não vai iluminar ninguém espontaneamente na direção do anarquismo a não ser que os anarquistas tenham sucesso em convencer as pessoas de que a natureza funciona dessa forma – porque até que o façam, a natureza vai dizer (e está dizendo) coisas distintas – aliás, para pessoas distintas.

Mas consideremos também, por um momento, o argumento pragmático; mesmo que se possa considerar o capitalismo e o pós-modernismo em seus termos, como fenômenos não automaticamente idênticos, ainda resta a possibilidade (como dito acima, bastante razoável), de que ele mais “atrapalhe” do que “ajude”. É nesse sentido que Cudenec cita a famosa obra de George Orwell: já que o “pós-modernismo” (ou uma versão antecipada de sua versão mais caricata) contribui com o governo autoritário descrito na ficção distópica, em nossa própria distopia atual ele também seria prejudicial.

Contudo, creio que há uma perda de foco quanto à mensagem do livro; quem sabe até uma inversão entre causa e consequência que impede que o pós-modernismo possua algumas qualidades redentoras. Não é que o “pós-modernismo” esmague a possibilidade de revolta e transformação: quem faz isso, em 1984, é a violência, a força; o poder concentrado na autoridade e disposto em um sistema hierárquico intensamente repressor. Cudenec trata como causa (o personagem principal, no fim do livro, acreditando que não há realidade objetiva), ou mesmo condição mínima, o que deveria ser compreendido como consequência incidental (não é à toa que esta parte é a última do livro).

Não é que o governo deseja que as pessoas parem de olhar pra realidade e passem a encarar tudo como relativo; não, é que ele tem o poder de machucá-las, de controlar o fluxo de informações (efetivamente destruindo-as, parte do trabalho de Winston) e controlar recursos, o que ajuda a manter e perpetuar este controle. Se não fosse por todo esse controle exercido à força, o pensamento pós-moderno teria sido absolutamente inconveniente, pois a factualidade, e principalmente as intenções do que o governo está dizendo seriam questionados.

O problema aqui não é tanto o pós-modernismo, mas a lógica mais profunda da dominação, que usaria para o mesmo objetivo palavras que Cudenec tanto adora: diria que a natureza humana é assim ou assada, da maneira como lhe convém. E não me parece muito histórico, em termos dos exemplos que temos, dizer que se uma concepção de natureza humana é errada ela simplesmente não vingará: tendo definido a realidade de uma certa maneira, e apoiando-se em algumas ferramentas de controle ideológico, de recursos e de violência, grande parte do que aparece depois, mesmo coisas de cunho científico, será vista de forma enviesada, que reforce aquilo em que se acredita. Por isto que digo, ainda, que o “pós-modernismo” acaba sendo uma consequência “incidental”: O’Brien leu o diário de Winston. A tortura à qual o personagem principal é submetido pode ter sido “customizada” para ele: quando a ideia de uma realidade objetiva é o que ancora Winston a uma fagulha de esperança e rebeldia, é isso que tem que ser destruído. Mas para outro detento – alguém cuja rebeldia vem de um questionamento profundo e conceitual sobre todo o mundo que foi construído ao seu redor – a melhor tática pode ser reforçar justamente a ideia de que certas coisas fixas e imutáveis, e que o governo está simplesmente promovendo-as, guardando (mesmo que com “remédios amargos”) seus cidadãos de males maiores, as coisas “antinaturais”.

Em ambos os casos, o que há em comum é o Estado e o controle totalitário que exerce. Mas apesar da leitura de 1984, que considero um pouco limitada, a relação entre o pensamento pós-moderno e este controle em pelo menos uma narrativa possível do mundo que Orwell criou é clara, e nos força a pergunta: o maior inimigo do anarquismo ainda é um conjunto de concepções fixas sobre o que o mundo é, o que as pessoas são, e como tudo funciona? Ou a tendência do pós-modernismo a dissolver certezas é ainda pior? Cudenec está triste porque acredita que o pós-modernismo dissolveu as certezas de que ele gosta; mas o poder das ideias de relativização e da desconstrução serve para dissolver qualquer uma, inclusive algumas ideias modernas que ele condena (como as próprias religiões organizadas – ou o Estado!). De minha parte, ainda creio que o poder dessa dissolução pode ser mobilizado de forma produtiva. Mas a questão estratégica maior que Cudenec põe através desse ataque frontal a algumas formas improdutivas dessa dissolução é fascinante.

Há, assim, dois eixos de discussão que o livro levanta, e que considero ser grandes méritos dele: não só a questão sobre qual é a maior ameaça à construção da autonomia popular, mas também até que ponto nossa relação com a ideia de construção não informa nossa estratégia de maneira singular. O autor tem um grande problema, parece, com coisas “construídas” em oposição a “naturais”. Mas, se a “essência humana” é de fato tão anárquica, por que, após centenas de milhares de anos vivendo no planeta Terra, nos encontramos, enquanto espécie, na situação em que nos encontramos? O autor acaba preso num certo paradoxo de Godwin – se o poder corrompe a verdade, como pode a verdade derrubar o poder? Em Cudenec, temos uma construção intelectual que corrompe a essência humana, mas a essência humana ainda pode ser usada para derrotar essa construção (… mas como, se foi corrompida? Foi ou não foi corrompida?). Claro que Cudenec é mais “dialético” (o que o crítico alemão Bode diz que falta a Godwin), mas ele precisaria, para sair do paradoxo, admitir que é preciso mais do que a existência de uma natureza humana objetiva; é preciso que ela seja efetivamente construída enquanto tal para que tenha efeito enquanto tal, o que deslegitima qualquer asserção mais contundente sobre o que ela é independente daquilo que a fazemos ser. Pior do que isso, aliás, é não só sua aproximação ao grande problema filosófico de Godwin, mas ao pragmático de Marx. Quanto mais se pinta a natureza humana como dotada de um poder extraordinário de permanência e identidade, menos é necessário, suponho, que façamos algo para que ela supere as restrições artificialmente impostas sobre ela pelo capital e o Estado.

Tendo dito isto, me pergunto se realmente posso criticar Paul Cudenec de forma tão abrasiva. Afinal, o que é que estou observando? Um trabalho de filosofia? De teoria política? Ou um panfleto? Como questionou-se Cohn, objetando a ideias como as de Fish e Rorty sobre textualidade: como convencer alguém de alguma coisa reconhecendo que ela não é uma verdade absoluta? Isso me lembra, por outro lado, do que Graeber diz sobre o valor da experiência e como é muito mais difícil convencer as pessoas na teoria de que algo é possível – é geralmente mais eficaz fazê-lo de fato, mostrando na prática que é possível. E efetivar uma possibilidade não significa um monopólio sobre o entendimento da natureza humana (se o Occupy Wall Street foi possível, então somos todos anarquistas); prova apenas que uma possibilidade em relação à natureza humana foi efetivada a partir dos nossos esforços conscientes, que foram empreendidos com base em valores éticos que consideramos bons através dos nossos valores, valores estes cultivados a partir de experiências (embora seja possível passar por uma experiência e não gostar dela… O que acabaria reafirmando outro valor, suponho?).

Não é que a realidade não exista e que não haja uma tendência maior por parte dela, e assim da “natureza humana”, para que certas possibilidades sejam realizadas. Mas, pelo menos de minha “natureza” enquanto acadêmico (ha!), procuro ter muito cuidado ao fazer essas afirmações, e o ceticismo pós-moderno pode ajudar um pouco no sentido de que quando empregamos nossa racionalidade para definir e entender exatamente essa natureza, não raro cometemos erros que custam caro. Não estou dizendo que Cudenec está errando em suas concepções sobre a natureza, ou a essência humana, e especialmente não estou dizendo que quaisquer erros seus custem caro – mas talvez sua falta de inibição, de um certo cuidado cuja afeição pelo pós-modernismo seja compreensível por ser academicista, é justamente o recurso que lhe permite construir um panfleto poderoso, um discurso inspirador que possa efetivar possibilidades humanas anarquistas. Nessa perspectiva, seu discurso aparece realmente como algo potente: poético, sonhador e aguerrido. Não o tipo de coisa que cientistas políticos dizem, mas o tipo de coisa que constitui objeto de estudo da disciplina; os feitos e dizeres daqueles que tiveram a coragem de defender grandes ideias de um jeito grande. Como é que eu vou falar mal de uma coisa dessas?