Uma resenha anarquista de “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, de Steven Pinker

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 5 de março de 2018. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

O livro “Os Anjos Bons da Nossa Natureza”, de Steven Pinker, é praticamente um clássico instantâneo dos últimos anos. Seu tamanho impressiona – necessário, segundo o autor, para embasar bem suas afirmações, o que ele faz não só com teoria mas também com dados. A ideia fundamental é que a violência tem diminuído ao longo do tempo em todas as dimensões da vida humana; ela não cessou, obviamente, mas não só estamos em uma situação bem melhor do que no passado como a tendência é decrescente (embora não inevitável). Através do livro ele argumenta pela factualidade da afirmação de que a violência diminuiu, e elicita os elementos que levam os humanos à violência e que os afastam dela (os “anjos bons”), descrevendo por fim algumas explicações para o declínio da violência, isto é, que tipo de coisas organizaram os humanos nos últimos tempos de modo a favorecer nossos bons instintos e contrabalançar a influência dos maus.

Como anarquista, minha primeira reação a esse “resumo” foi uma mistura de sentimentos. Frequentemente temos que combater insinuações a respeito de como os seres humanos são ruins por natureza, razão pela qual o anarquismo jamais seria “possível” ou “sustentável”. Qualquer estudo que mostre como os seres humanos não são inerente e inevitavelmente monstruosos parece algo a se verificar rigorosamente mas, a princípio, de braços abertos. Pinker tem a visão que considero mais razoável (e, francamente, mais óbvia) acerca da psicologia humana: não somos nada em si; podemos ser, potencialmente, qualquer coisa. Não digo individualmente – é uma questão de entender a natureza humana em geral como capacidade. É preciso estudar as estruturas de incentivo e os padrões de comportamento e relacionamento mútuo – as instituições sociais, culturais, políticas e econômicas que delimitam nossa percepção, automatizam certas ações, priorizam e valorizam certas ideias – para entender quem somos, e sempre em determinados contextos.

Por outro lado, anarquistas opõem-se ao estado de coisas atual porque grande parte do que vivemos é influenciada pelo capitalismo ou pelo Estado (ambos amplamente concebidos) de uma forma que anarquistas consideram prejudicial. Em outras palavras, estamos sempre apontando pras coisas que estão ruim e mostrando que parcela de culpa pode ser atribuída a essas questões mais gerais, em contraposição à tendência corrente de reduzir tudo a uma questão individual (“ele a matou por ciúmes mas não tem nada a ver com machismo não, ele que tinha doença mental”) ou a voluntarismos (“mas o capitalismo é só o que as pessoas fazem dele”; “acabar com a corrupção é só uma questão de eleger os políticos certos”). Com isso, parece que nos focamos demais em dizer que está tudo uma bela de uma bosta; se alguém chega dizendo que na verdade a vida melhorou, um alerta máximo de senso crítico parece ser ativado. No caso de Pinker, o aparente aliado revela-se um adversário: um dos motivos que o autor cita como explicativos para o declínio da violência, por exemplo, é justamente a criação e a proliferação dos Estados nacionais; e assim, aquele que vem somar à defesa da ideia de que uma coexistência pacífica é possível o faz precisamente com base naquilo que os anarquistas dizem que está nos impedindo de alcançá-la. Dizer que o Estado e a expansão do mercado causaram uma queda de violência constitui basicamente um hobbesianismo light: se não fosse o Leviatã, estaríamos nos matando mais.

Mas não é verdade que, quando algo bom acontece, nossos oponentes adquirem uma nova arma (“Aqui o capitalismo funcionou. Aqui a democracia representativa funcionou”). O fato de que alguma coisa melhorou no mundo, por si só, não diz nada a priori sobre o papel que os Estados nacionais ou a dinâmica do mercado desempenharam na melhoria. Faltando uma análise cuidadosa, pode ser que de fato os mercados e os Estados contribuíram, mas pode ser também que as coisas melhoraram a despeito deles, ou que poderiam ter melhorado mais se não fosse por eles, ou antes se não fosse por eles. Pode ser que o problema sequer teria começado se não fosse por eles.

O autor baseia muitos de seus argumentos em cenários da teoria dos jogos. Para dar um exemplo, temos o famoso dilema da cooperação. Dois agentes racionais e maximizadores de recursos podem forjar uma aliança cooperativa, mas, estando ainda em competição por recursos, não podem depender demais um do outro, pois embora alguma cooperação traga mais benefícios que nenhuma cooperação, assim que um dos aliados deixa de reciprocar o último ato de cooperação, obtém vantagem sobre o outro. Em tese, o maior beneficiado será aquele que antecipar a “traição” de seu aliado imediatamente antes dessa traição — tendo colhido não só tanto benefício quanto possível da aliança como também uma vantagem em seu término. No entanto, se cada aliado antecipar que a estratégia do outro será a mesma, a recursividade do raciocínio leva à impossibilidade de estabelecer a aliança em primeiro lugar: se meu aliado me trairá assim que eu colaborar com o acordo antes dele, não devo fazê-lo de todo. Nesse cenário hobbesiano, como coloca Carole Pateman, “o medo do que a outra pessoa fará (ou não fará) significa que pactos provavelmente não serão cumpridos”. A solução proposta neste caso é um contrato estabelecendo uma autoridade superior, cujo uso da violência contra traidores é legitimado pelas partes e, assim, os aliados podem aproveitar os benefícios da cooperação.

Isso tudo, é claro, é uma construção abstrata extremamente distante da realidade. O “individualismo abstrato é […] uma abstração da realidade social”, diz a Pateman; em outras palavras, abstração da “economia de mercado, capitalista, e [d]o Estado democrático liberal”. É interessante como essa própria dinâmica se perpetua: uma vez instalada (e principalmente se for lida como imutável), os jogadores percebem que a melhor maneira de maximizar seus recursos é ocupar a posição de poder; isso aumenta as probabilidades de alcançar seus objetivos, especialmente se o jogo for de soma-zero; assim, a partir da subjetividade que se constrói através da experiência prática dessa dinâmica relacional, transformar o cenário é menos interessante que trabalhar dentro dele. A concentração de poder não só cria uma dinâmica em que certos mecanismos facilitam para alguns indivíduos (através da força) o direcionamento da capacidade coletiva, como também, por essa própria possibilidade que cria, incentiva-os a não engajar-se em outro tipo de organização. Assim, as próprias regras do jogo que as pessoas estão supostamente sempre jogando (que a teoria dos jogos presume) fazem diferença. Ademais, a racionalidade perfeita só pode ser a premissa de um modelo de ação cujo objetivo é prever o comportamento, pois somente o comportamento racional é previsível. A despeito do fato de que talvez nenhuma outra ciência tenda a participar tanto do mundo que ela descreve, como coloca Graeber, Milton Friedman teria dito que as premissas de uma teoria não são importantes, desde que façam previsões acuradas; quanto a isso, no entanto, teorias econômicas que preveem comportamentos racionais por parte dos seres humanos falham catastroficamente.

De qualquer modo, problemáticas e inerentemente ideológicas como podem ser as análises de teoria de jogos, mesmo o papel do Estado é lido de maneira ingênua nesses cenários. Pinker negligencia como os Estados podem institucionalizar a predação ao invés de impedir que ela aconteça, ao definir e garantir quais grupos terão sua dominação legitimada (vide Foucault; vide Graeber). Pinker faz uma divisão entre empatia e compaixão, o primeiro denotando apenas a capacidade de adivinhar o que um outro agente estaria pensando ou sentindo; mas o que uma lógica de mercado (que, para o autor, “recompensa a empatia”) postula são indivíduos que só podem encontrar uma única utilidade na empatia: dominar adversários. Pinker mobiliza Elias para mostrar como o processo civilizatório diminui níveis de agressão e proclividades para a violência ao aumentar a capacidade de autocontrole, mas deixa de mencionar que parte das conclusões do autor é que a civilização refinou e burocratizou a violência. Progressos nominais são celebrados, e talvez devam ser, mas embora a escravidão seja ilegal em todos os países do mundo, isso não impede que mais de 40 milhões de escravos existam no mundo todo, segundo estimativas (Sobre alguns problemas em relação à formulação das estimativas, ver este texto); mais (em números absolutos) que em qualquer período da história humana.

Outra curiosidade é que as prisões não contam como “violência” para o autor (que faz um esforço para ser o mais inclusivo possível quanto à constituição dessa categoria); são, ao contrário, elogiadas como superiores às punições corporais e efetivas na diminuição da criminalidade. Dispensando o que Foucault diz sobre prisões e delinquência urbana por conta de seu aspecto histórico (enquanto Pinker trata de cenários mais contemporâneos), é preciso muita acrobacia retórica para afirmar que enjaular seres humanos não é em si uma forma de violência. Além disso, prisões tendem a afetar desproporcionalmente os mais pobres e as minorias. Só para citar o exemplo dos Estados Unidos, embora muito possa ser dito sobre nossa própria realidade, não só assessores presidenciais parecem ter confirmado que a chamada Guerra às Drogas foi intencionalmente projetada para perseguir inimigos políticos, numa dinâmica que se perpetua ainda hoje, como havia em 2007 mais adultos negros no sistema penitenciário (em números absolutos) do que escravos em 1850; além disso, em quase todos os Estados há formas de restrição ao voto por parte de pessoas que de algum modo passaram pelo sistema prisional.

Uma visão bastante comum sobre o livro é o de que a discussão é fútil, uma vez que Pinker vai além da pífia cognição dos meros acadêmicos de humanas – ele tem a matemática ao seu lado, o que comprova tudo que ele diz; o resto é resto. Essa defesa vulgar e estúpida desconsidera a imperiosidade da interpretação em toda a empreitada científica – obviamente contar com dados, sempre que possível, é melhor que não fazê-lo; mas não existem fatos brutos, como rochas puras a serem descobertas, dentro das quais escondem-se minúsculos pergaminhos em que o próprio Deus nosso senhor escreveu a Verdade eterna. De considerações internas a externas quanto ao uso enviesado da ferramenta matemática para revindicar autoridade sobre os fatos, fica claro que há várias possibilidades de que Pinker esteja errado. Quem se acha muito “científico” contrapondo “números” a investigações qualitativas, teóricas, históricas, entre outras, está prestando um desserviço à própria ciência, cujo ideal é precisamente de que o conhecimento avança quando confrontamos as conclusões de outras pessoas – a autoridade, à medida que pretende silenciar o debate, prejudica a ciência (e não é preciso ser um anarquista para concordar que incentivar o desafio a verdades estabelecidas, na ciência, é imprescindível). Não estou reclamando aqui de quem se convenceu com os números; estou falando de quem rejeita sumariamente qualquer tipo de crítica que não os questione direta e unicamente.

Se as estatísticas contemporâneas empregadas no livro parecem ser relativamente sólidas, há questionamentos às presunções e generalizações feitas sobre o passado: por exemplo, o descuido metodológico fundamental que embasa, entre outros elementos, seu argumento de que o século XX não foi particularmente violento e sua repetição acrítica da ladainha sobre os instrumentos medievais de tortura, que provavelmente nunca existiram. Além disso, sua forma de comparar proporções de violência (à população) entre diferentes épocas não representa o maior sofrimento humano envolvido em maiores números absolutos: em termos estatísticos, sim, certamente uma pessoa específica tem menor chance de morrer violentamente hoje (se os números estiverem corretos), mas por outro lado isso implica que a morte de dez pessoas em um grupo de mil é o mesmo que a morte de dez milhões em um grupo de um bilhão — uma asserção no mínimo questionável. É conspícuo, aliás, que a “melhor” maneira de interpretar esses dados envolva uma referência ao ponto de vista do indivíduo singular. O autor costuma frequentemente empregar representações da realidade como algum tipo de testemunho histórico (a presença do conto do Rei Salomão e o “bebê com duas mães” na Bíblia, por exemplo, seria evidência de uma maior tolerância à violência no passado). A própria estimativa das mortes violentas como consequência de guerras envolve “questões complexas de causa e efeito, que nem sempre podem ser separadas de julgamentos morais”, escreve John Gray; não se sabe se são incluídos, entre as vítimas da guerra, “aqueles que morrem de fome ou doença durante a guerra ou em período posterior”, ou vítimas de tortura que “sucumbem anos mais tarde a partir do dano mental e físico que lhes foi infligido”, entre outros.

A paz alcançada pode durar se o mesmo curso for mantido, o autor argumenta — a existência do arsenal atômico em sua atual magnitude não seria um problema, dada a improbabilidade de que caia nas mãos de terroristas (quanto a isso, ele faz um bom argumento) ou sejam de fato usadas por superpotências, já que a distribuição de armas nucleares faz com que todos evitem usá-las. Mas não só há quem argumente que esperar que a violência diminua quando seu potencial cresce é absurdo, como hoje sabemos que uma guerra nuclear não foi evitada por negociações racionais durante a Crise dos mísseis de Cuba em 1962, mas sim pela desobediência de um oficial soviético.

A “ideologia” pode ser um “anjo mau” da natureza humana, mas não a do próprio autor: recuperando o ideal kantiano de paz global através do comércio, não há nenhuma consideração da ameaça de violência necessária à proteção da propriedade privada dos meios de produção num mundo cada vez mais desigual e excludente, ou a forma como o orçamento militar consome recursos que poderiam de outro modo ser aplicados para aliviar o sofrimento humano e salvar vidas. Mais que isso, Pinker rastreia a maioria dos fatores de diminuição da violência no planeta (como percebida por ele) à racionalidade, especificamente à valorização iluminista da razão. Mas, como aponta John Gray em outro momento, os autores selecionados por ele para representar seu “humanismo iluminista” escreveram teorias bastante díspares entre si, alguns pouco liberais, a maioria não tão humanista quanto a povos não-europeus — e da seleção ficam de fora autores e movimentos que igualmente valorizavam a razão, como Marx e os jacobinos franceses, que acabam na sacola alternativa de “ideologia”, culpada pelas atrocidades reais. Atrocidades cometidas em nome da razão foram “interpretações erradas do verdadeiro evangelho, ou sua corrupção por influências externas”; o que está em jogo é em última instância um “artigo de fé”. Aqui encontramos a dupla natureza que a ideia de razão adquiriu ao longo da história do pensamento ocidental: por um lado, os “poderes da razão existem, acima de tudo, para restringir nossos instintos mais básicos” e animalescos; eles formariam a base da moralidade, comenta Graeber em The Utopia of Rules. Por outro lado, houve quem atribuísse à racionalidade um caráter “puramente técnico”, como o de “um instrumento, uma máquina, um meio para calcular como mais eficientemente alcançar objetivos que não poderiam eles próprios ser aferidos em termos racionais”. Nesse caso, a razão perderia qualquer capacidade de “nos dizer o que deveríamos querer”, podendo apenas “nos dizer como melhor alcançar” nossas vontades. Graeber divaga:

um argumento racional pode ser definido como um que é simultaneamente baseado na realidade empírica, e logicamente coerente em seu formato. […] Mas se este é o caso, chamar alguém, ou um argumento, de “racional” significa quase nada. […] Você só está dizendo que eles não são obviamente malucos. Mas […] reivindicar que as próprias posições políticas se baseiam em “racionalidade” é uma frase extremamente forte. De fato, é extraordinariamente arrogante, uma vez que significa que aqueles que discordam de tais posições não estão apenas errados, mas são loucos. De maneira similar, dizer que se deseja criar uma ordem social “racional” implica que os arranjos sociais atuais poderiam ter sido projetados pelos habitantes de um hospício. Certamente, todos nós nos sentimos assim uma vez ou outra. Mas essa é no mínimo uma posição extraordinariamente intolerante, uma vez que implica que seus oponentes não estão apenas errados, mas em um certo sentido, sequer saberiam o que significa estar errado, a não ser que, por algum milagre, eles viessem a aceitar a luz da razão e decidissem aceitar o seu enquadramento conceitual e ponto de vista.

O uso das expressões “milagre” e “luz da razão” não é coincidência, uma vez que a primeira escola de pensamento a ver a razão como um valor em si (e a se considerar racionalista) foi a pitagórica. Apesar da associação contemporânea (e justificada) do nome à matemática, os pitagóricos eram essencialmente místicos: suas descobertas de razões matemáticas presentes na geometria, na música e no movimento dos planetas fundamentou não só quase todas as escolas filosóficas posteriores como também a “religião cósmica” da antiguidade tardia, cujo credo principal era a identidade entre Deus, Razão e Cosmos (o que seria adaptado mais tarde à doutrina católica). Assim como Arendt descreve o contraste entre a ordem política imperial em voga e a solidificação do conceito individualista de liberdade, associado ao livre-arbítrio, Graeber compara dois períodos: no primeiro, ainda no contexto do Império Romano (em que “uma única — e aparentemente eterna — ordem legal e burocrática regulava os assuntos públicos”), os intelectuais da “religião cósmica” aspiravam “transcender sistemas terrenos completamente”; já no contexto de um medievo europeu politicamente fraturado, os intelectuais da época “debatiam a exata divisão de poderes dentro de um único e unificado sistema cósmico de administração grandioso e imaginário”; por exemplo, as exatas patentes hierárquicas e atribuições dos anjos. Sua investigação desse legado filosófico-conceitual o leva à conclusão de que a valorização de uma racionalidade “burocrática” (um mero meio, completamente desassociado de um fim) “nunca parece conseguir conter a si mesma a meras questões de raciocínio dedutivo, ou mesmo eficiência técnica”, levando invariavelmente a algum “esquema cosmológico grandioso”; ou seja, a dissociação entre meios e fins é uma artificialidade que não pode ser facilmente mantida. Como observa Lyotard, a forma como o discurso científico procurou legitimar a si mesmo na pós-modernidade deu origem à valorização da própria eficiência como critério de legitimação, conclusão não muito distante da supracitada percepção de Friedman.

As coisas são complexas, e obviamente não é necessário julgar o livro como completamente certo ou completamente errado. É possível que ele tenha de fato percebido uma queda nas taxas de violência, mas que elas não se deram pelos motivos que ele concluiu. É possível que alguns motivos sejam razoáveis, enquanto outros não. E é possível também que a violência como definida por ele, por mais razoável e suportada pelos dados que seja, não leve em conta outros aspectos da violência ou outras consequências negativas em geral do fenômeno que ele descreve, de modo que mesmo que ele esteja certo, uma resposta anarquista à sua conclusão não precise passar por uma “refutação” de seu argumento, mas sim por uma complementação, como uma espécie de adendo: sim, a violência diminuiu. Mas não significa que nossas vidas estejam melhores. De fato, não é porque a violência manifesta diminuiu que nossa vida não seja em grande medida estruturada por uma ameaça de violência constitutiva que não precisa ser efetivada para ser efetiva. Nossa liberdade pode ter diminuído – e, como coloca Gelderloos, a não-violência funciona como uma ideologia extremamente útil à manutenção do status quo. Colocar no mesmo saco de coisas a serem comemoradas a diminuição da violência doméstica e de revoluções armadas contra Estados nacionais é bastante discutível.

Eu tenho até aqui descrito minha relação com o livro em termos bastante ideológicos. Deixo minha posição de leitor anarquista clara desde o início e como me relaciono com a obra em termos de como ela potencialmente afeta as ideias anarquistas como as conheço. Parece, no entanto, que já decidi que o livro é meu inimigo e que estou procurando razões para odiá-lo. Isso seria, na verdade, cair numa das consequências particularmente negativas de teorias pós-modernas ou pós-estruturalistas segundo as quais tudo, principalmente o conhecimento, resume-se a um conflito. Eu entendo como pode parecer que é isso que estou fazendo: em vez de lendo um livro de ciência social enquanto um cientista social, procurando vencê-lo para que meus projetos políticos avancem. Tudo é poder, tudo é ideologia.

Embora eu goste de vários elementos do pós-modernismo, não acho que é preciso ir tão longe. Não entendo que o livro de Pinker seja ideologia nesse sentido simplório – o cara escreveu porque está alinhado ao imperialismo, porque tem motivações nefastas, e daí por diante. Para mim, a ideologia funciona mais a nível de seleção – a ideologia prevalente contribuiu para que o livro tenha sido mais circulado em certos espaços, mas aceito pelas pessoas que o leram; ora, para que o livro tenha sido publicado em primeiro lugar – e também na formação de discursos de modo que algumas coisas podem advir de um senso comum não-questionado, de algum viés de seleção difícil de detectar. Nesse caso, acho que o aspecto ideológico aqui é relativamente transparente: o Estado se apresenta como a possibilidade de uma conciliação e resolução das contradições da vida, o que estaria funcionando espetacularmente bem no caso da violência entre indivíduos e entre grupos. Na medida em que a racionalidade, contudo, é vista como um valor intrínseco e superior a todos os outros, ela pode facilmente ser associada à justificação da violência: vide a questão prisional acima, ou a também supracitada questão da ameaça de violência: o neoliberalismo tratou justamente de privilegiar a criação de um senso de imutabilidade do sistema, e de fortalecer as tecnologias de segurança e vigilância que embasam tal sentimento. A autoridade reforça a confiança na razão: “É apenas o hábito de comandar que permite a alguém imaginar que o mundo pode ser reduzido a algo equivalente a fórmulas matemáticas”, afirma Graeber, “fórmulas que podem ser aplicadas a qualquer situação, independentemente de suas reais complexidades humanas”.

Sendo assim, concluo que a obra reúne insights e observações dos mais diversos campos de conhecimento, e é um esforço admirável; contudo, ela fracassa em suas raízes ideológicas mais profundas – o que constitui a violência, qual é o seu valor e seu lugar na experiência humana, e como interpretá-la como fenômeno que vai além de sua manifestação evidente em nossa organização social.