Marx, o político

Eu tive um professor na UFSC, Jean Castro, que frequentemente comentava como Marx era um pensador bem menos moralista do que a maioria das pessoas o presumia. Por esse prisma, ele não teria sido tão intelectualmente movido por compaixão em relação à situação da classe trabalhadora, por um senso de que a situação dela era imoral, mas por uma análise mais fria de que o capitalismo ruiria sob o peso do proletariado.

Eu acho essa análise particularmente interessante porque colabora com a retirada de Marx do pedestal dos profetas no qual ele é frequentemente colocado. Isso na verdade o aproxima de pessoas como os estrategistas políticos dos partidos contemporâneos, que, no contexto da tarefa de “chegar ao poder” – de acumular poder – estudam, hoje, questões como “como conquistar o público evangélico”, ou “como captar o eleitorado feminino”. No próprio 18 de Brumário, em que ele aprofunda sua análise de classes (que de outro modo é apenas um rascunho), ele basicamente mostra como o Bonaparte alavancou uma determinada classe para chegar ao poder; suas próprias análises basicamente implicariam que, conforme os tempos mudam, será cada vez mais importante apelar para outra “classe” – ora, podemos até imaginar que ele teria usado o termo como hoje se falaria de “grupos”, “segmentos”, etc., ainda que o critério de classificação dele seja particularmente bom. O objetivo da acumulação de poder pode ser diferente para cada ator que contrata cada estrategista (com Marx no caso sendo ambos contratante e contratado nesse cenário), e isso certamente afeta a análise, mas o propósito da análise é semelhante. Pode-se pensar, por exemplo, que a tese do estrategista Marx sobre o proletariado industrial como público-alvo chave ou falhou ou simplesmente não é mais verdadeira; que é imprescindível, hoje, enfocar o precariado ou explorar clivagens raciais.

Que Marx tenha sido um revolucionário não invalidaria essa perspectiva. A despeito de se ou quando ou com que intensidade tenha se convertido em social-democrata, em algum momento apoiou a revolução da classe trabalhadora como um todo num sentido socialista do termo. Mas a completa legitimação de governos representativos burgueses não ocorreria até o pós-segunda guerra; pode-se dizer que o terreno político em que o estrategista se movia era outro, com golpes de estado e guerras civis no menu do dia o tempo inteiro. O próprio movimento do marxismo em direção à social-democracia é justamente a atualização da análise conforme a topologia foi mudando: o proletariado industrial até pode ser a chave, mas a porta agora tem duas fechaduras, e só abre junto com eleições.

Analisar Marx como uma amálgama de político profissional e do estrategista que hoje em dia é um profissional contratado pelo primeiro é uma forma de reenquadrar a contribuição do marxismo para o socialismo. Ele não é um “irmão”, com quem brigamos mas temos afinidades fundamentais, mas sim uma espécie de chefe paternalista. Além, claro, de tornar muito mais natural e óbvia a acusação de eurocentrismo que pesa sobre seu arcabouço teórico. Como teórico aclamado das leis das Sociedades Humanas, isso causa polêmica – mas se ele é simplesmente um político & publicitário, é muito normal. Afinal, ninguém espera que Lula vença uma eleição na Índia, ou que João Santana rode uma campanha na Islândia. Marx queria ganhar poder no lugar que conhecia, onde nasceu e foi criado, e é claro que suas análises políticas serviam (quando muito) à sua região. Isso não significa que sua análise do capitalismo esteja errada, nem que seu eurocentrismo a torne inútil – afinal, de fato uma dominação global deste sistema econômico, de modo que, por conta disso, mesmo que ela seja eurocêntrica ela ainda é fértil. Não obstante, em relação ao que se deveria fazer uma vez que se compreenda a situação, ele se torna muito pouco distinguível de um político profissional.

Não estou dizendo que ele seria um fisiocrata, um membro do Centrão; ele certamente era idealista. A liberdade marxista consiste na superação da imposição da natureza (entendida aqui como arbitrariedade, aleatoriedade; o oposto do controle racional humano); isso em nada contradiz toda a ideologia eurocentrada de progresso que bem conhecemos. O futuro, dizia, se parece mesmo com uma grande fábrica; quem falou em desaparecimento do Estado no futuro comunista foram outros – Marx mesmo via no máximo o fazia desaparecer retoricamente, no sentido de que uma vez que o Estado fosse usado legitimamente pela classe trabalhadora (esta desaparecendo também enquanto classe), ele seria completamente absorvido no âmbito da sociedade e deixaria de ser uma força opressiva sobre ela. Mas isto não quer dizer a desaparição da burocracia, das relações hierárquicas que conformam o Estado como instituições de governo – ele deixar de ser opressivo é basicamente uma interpretação de como as pessoas se relacionariam com ele, não uma observação sobre diferentes formas de sociabilidade e organização da tomada de decisões.

Sim, ele falou sobre o futuro dever ser obra dos próprios trabalhadores. Mas o que isso exatamente significa? Lembremos que o primeiro congresso da AIT deliberou sobre a presença de “intelectuais” na organização; pra muitos delegados só deveria estar ali quem estava de fato trampando em alguma fábrica ou com algum ofício. Se esta resolução tivesse sido aprovada Marx acabaria tendo que sair. Há várias formas de dizer que um movimento coletivo foi “obra dos trabalhadores”: várias desculpas pra fazer com que alguns indivíduos os representem. Pode-se até pensar na crítica que Bakunin fez sobre, sim, um trabalhador pode ascender ao poder, mas aí deixará de ser trabalhador, sim? Um antídoto antecipado ao veneno gramsciano do intelectual orgânico.

Estou dizendo que Marx poderia muito bem ser compreendido como um político profissional, um estrategista, um publicitário, ainda que idealista, cheio das melhores intenções – alguém que buscou a ciência de quem governa, como colocou Malatesta; a busca por aliados entre o povo contra as classes, e entre as classes contra as massas. Estou dizendo isso aqui, e não num periódico acadêmico, porque não estou com saco pra fundamentar com citações paginadas tudo que digo, nem de pesquisar quem já fez esse argumento antes, já que não é possível que eu tenha sido o primeiro – mas certamente é preciso observar que não o faço para desqualificar a esquerda em geral. Muito pelo contrário: estou dizendo isso porque, como anarquistas, temos sempre os dois pés atrás em termos de reforçar projetos e iniciativas que acabem servindo de trampolim para políticos profissionais. Nos guardamos contra isso o tempo todo; alertamos as pessoas quanto a isso. Acho que valeria a pena nos guardarmos também contra a possibilidade de sustentarmos o culto à personalidade de Marx, ainda que os efeitos não sejam os mesmos, estando ele morto há muito tempo. Ocorre que está muito vivo em muitas iniciativas com as quais podemos colaborar, mas a colaboração pode ser esperta em termos de não reforçar uma imagem que ele não merece, assim como não quisemos reforçar a imagem do Getúlio pai dos pobres, ou do Lula, etc. A ideia do grande teórico das ciências sociais que dá a linha de parte substancial de toda análise socialista – do vocabulário mais fundamental que usamos, muitas vezes – pode ser desconstruída à esquerda.