Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.
Nós costumamos pensar bastante na nossa “natureza”. Qual é a natureza humana, afinal? Somos bons? Somos maus? Nenhum dos dois, algo entre eles, os dois ao mesmo tempo?
Mesmo tratando desse assunto indiretamente, cada um dos “fundadores” da sociologia tinha como fundamento alguma noção de natureza humana quando pensou em entender a sociedade. Durkheim via a todos nós como peças de um mecanismo, órgãos de um corpo: partes de um todo construídos de acordo com a nossa participação na sociedade, moldados pelas pressões da cultura, da moral, dos hábitos incucados. Weber, por outro lado, punha maior ênfase na capacidade que o ser humano tem de dar significado àquilo que faz. Marx falava de como o fato de que nós modificamos a natureza – através do trabalho – e como nos socializamos diz algo sobre nós.
Os teóricos clássicos da filosofia política, no entanto, voltaram-se para a questão de maneira mais obcecada. Hobbes supôs um mundo mecânico, de causa e efeito, em que os homens só pensam no próprio interesse e, se deixados sem um comando autoritário (cujo único direito a não possuir é o de tirar a vida de alguém), matariam uns aos outros em uma guerra de todos contra todos. Locke, floreando o pessimismo, pensou que o homem não era exatamente tão ruim, mas que mesmo assim a vida “antes” da sociedade traria inconvenientes. Para proteger a própria vida, a propriedade e a liberdade, os homens se reuniriam sob um contrato (assim como em Hobbes, mas um contrato diferente). Rousseau pensou também num contrato: um contrato, no entanto, que libertasse os homens, fazendo uso da política – que não é exatamente o ideal, mas o ideal já não seria mais alcançável uma vez que os homens se “perverteram” em relação ao estado de natureza de outrora.
Há grandes problemas com essas concepções de natureza humana. Elas supõem um “estado de natureza” que não existe no sentido pessoal (quando somos bebês não vivemos sem ligações com outras pessoas) e tampouco no sentido histórico, já que as sociedades humanas nunca foram “inventadas”. O homem sempre viveu em sociedades, das pequenas às grandes, e não existe um “verdadeiro eu” que se revelaria se nós não vivêssemos juntos a outras pessoas. As características que esses pensadores viam nos homens da época – e que também nós vemos nos nossos – são produtos de um longo processo histórico. A ideia de que somos indivíduos independentes e separados, lutando uns contra os outros devido à nossa natureza, é um subproduto do capitalismo (sobretudo industrial), que transformava selvagemente as sociedades à medida que se alastrava pela Europa após o fim da Idade Média. Foucault desenvolve ideia semelhante, embora sua explicação para o surgimento da ideia de “indivíduo” seja um tanto mais elaborada.
Quem mais tem a contribuir para a questão é a antropologia. Os pensadores políticos tomaram europeus como modelos únicos de seres humanos, igualando as duas coisas. Mas a verdade é que, ao percorrer os cantos do mundo e encontrar povos completamente diferentes, é difícil acreditar em algumas dessas frases feitas sobre o que é ser humano – o que é ser homem, mulher, jovem, idoso, branco, negro, heterossexual, homossexual. Cada um desses estatutos (e instituições, como família, propriedade, religião) é trabalhado de maneira tão diferente por cada povo que nada resiste: das bases de nosso entendimento sobre o mundo (com o perspectivismo ameríndio nos mostrando como nem todos os povos veem as ideias de “natureza” e “cultura” do mesmo jeito) às prescrições políticas (como Pierre Clastres expõe ao contar a história das sociedades não apenas sem, mas contra a autoridade centralizada, no estilo de nosso Estado, de nossos governos).
É por essas e outras que Bourdieu é o sociólogo mais citado (e segundo intelectual francês mais citado) no mundo. Ele desenvolveu a teoria do habitus, em que aquilo que somos é na verdade uma ponte entre nossa liberdade de agir e a estrutura da sociedade, que nos conforma à realidade social. Jogando a natureza humana pela janela, Bourdieu de certa forma nos faz olhar para aquilo que estamos, ao invés daquilo que somos. Se não traz respostas definitivas, parece ser – face a tudo que já vimos nesse mundo – a forma mais honesta de indagar, afinal, quem somos nós.