A intervenção sociológica

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 30 de junho de 2012. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Há algumas semanas o prefeito de Nova York propôs uma nova lei municipal que visa proibir restaurantes e bares de vender refrigerantes em copos maiores que os de meio litro. A indústria de fast-food reagiu rapidamente, montando uma foto em que o prefeito está vestido como uma babá. Enquanto eles reclamam que a lei vai limitar a liberdade dos consumidores, muitos aplaudem a medida, que sentem como urgente para melhor a saúde pública. Nos EUA a obesidade é um problema cada vez mais sério. O comissário de saúde de Nova York, Thomas Farley, pensa ser possível salvar cerca de 500 vidas por ano ao reduzir o número de pessoas obesas na cidade em 10%.

Uma das mais interessantes defesas dessa lei, no entanto, é encontrada na coluna “Evolution’s Sweet Tooth”, publicada no New York Times por Daniel Lieberman, professor de biologia de Harvard. O artigo pode ser lido, no original em inglês, no endereço http://tinyurl.com/artigonyt.

A obesidade é causada por um desequilíbrio entre a energia que ingerimos e a que gastamos. Uma das melhores formas de ingerir energia, e então armazená-la (na forma de gordura) caso não a usemos, é o açúcar. Humanos evoluíram para desejar açúcar, que sempre foi escasso na dieta humana. O argumento de Lieberman é que agora nós vivemos em uma época com açúcar barato e em grande quantidade, mas nossos corpos desejam o açúcar da mesma maneira que antigamente.

Ao estudar as alternativas – que seriam fazer nada, ou educar o povo, ou coagir o povo – Lieberman se posiciona ao lado da última, que parece ser o que o governo nova-iorquino está tentando fazer. Seu argumento é sólido, mas precisa de ressalvas que a sociologia pode e deve fornecer. É interessante ouvi-lo dizer que, enquanto humanos, evoluímos para cooperar e ajudar uns aos outros a sobreviver e triunfar. Mas é amedrontador ouvi-lo dizer que evoluímos para precisar de coerção.

Ao tratar de um assunto eminentemente social como um assunto puramente biológico o colunista norte-americano nos apresenta o ser humano como um vampiro de açúcar que precisaria ser repelido com o “alho” da lei. A educação não funcionaria bem pela mesma razão de que não adiantaria tentar educar vampiros a não beber sangue. Está na natureza deles serem assassinos; na nossa, sermos preguiçosos.

Essa visão engendra vários perigos. Qualquer visão sobre o comportamento humano que explique nossas atitudes unicamente através de alguma espécie de essência imutável pode nos levar a uma situação em que discriminemos pessoas a partir dessa concepção pré-suposta. Que digam todos os grupos minoritários de nossa sociedade que sofreram e sofrem com preconceito. Com um pouco de exercício de linguagem, logo poderíamos considerar que os gordos foram erros do processo evolutivo: seres que não conseguem controlar a ânsia por açúcar. Obesos seriam, portanto, aberrações.

Em segundo lugar, isso mascara o real contexto da obesidade, que é muito mais complexo. Temos uma dieta desbalanceada por causa de nosso próprio modo de vida e produção. O stress engana o corpo: faz pensar que precisamos de energia – uma das razões pelas quais muitas pessoas comem mais quando ficam ansiosas. Criamos tecnologias que tornam mais prático consumir o lixo industrial que são os refrigerantes do que comidas e bebidas saudáveis. Temos menos tempo e oportunidades razoáveis para nos exercitarmos. Vivemos de uma forma a consumir mais açúcar; não somos de uma forma tal que consumiremos sempre quanto açúcar pudermos. Isso sem falar de educação, a simbologia das refeições (acontecimentos sociais por excelência) e todo tipo de costume que poderia vir a restringir culturalmente o consumo de açúcar.

Em terceiro lugar, o que mais preocupa é o adágio final da coluna. Não evoluímos para sermos coagidos. Vivemos em uma sociedade em que é muito lucrativo forçar (na prática) milhares de pessoas a hábitos alimentares prejudiciais, sociedade que é largamente ignorante disso. Nós evoluímos sim para cooperar uns com os outros. Não para competirmos desmedidamente, prejudicando a saúde de tantos no processo. A luta contra a obesidade é a luta contra todo um modelo de sociedade. De outra forma, será uma luta eternamente fadada à incompletude.