Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.
Há dois problemas distintos quanto ao aborto: a prática em si, ou seja, a decisão da mulher grávida de não ter mais um bebê, e a legalização do aborto, ou seja, as políticas públicas voltadas para as práticas de aborto. É possível dizer que o mesmo ocorre quanto à polêmica das drogas leves: uma coisa é consumi-las, outra é o que o governo faz em relação ao consumo.
Tenho minhas opiniões pessoais quanto a essas duas faces do aborto. A maioria das pessoas transfere a resposta de um problema para o outro: se são contra o aborto e, são contra a legalização dele. Se são a favor, também costumam ser a favor de sua legalização. É possível tomar caminhos mistos: ser favorável ao aborto, mas não a sua legalização, ou ser desfavorável ao aborto enquanto decisão pessoal, mas pensando que não o governo não deveria coibi-lo. Enquanto sociólogo, me interesso pela verdadeira e única questão social quanto ao aborto, uma questão que estes estranhos caminhos mistos silenciosamente nos revelam.
Atualmente é certo para nós que o governo nunca deveria interferir na vida de um casal, mas até recentemente o adultério ainda era crime. A sociedade como um todo mudou de ideia: traição não é algo que o grupo deve levar em conta; isso é problema dos indivíduos, tidos isoladamente.
Qual é a linha, então, que divide os problemas individuais dos públicos? Qual é o critério? Se não lavo as mãos, fico mais vulnerável a doenças respiratórias, mas isso é problema meu; no entanto, o governo se sente no dever de tratar isso como uma questão de saúde pública, interferindo nos hábitos dos cidadãos. Uma questão antes colocada como individual, agora é tratada como pública.
Não estou dizendo que isso é arbitrário ou aleatório: realidades sociais diferentes geram razões diferentes para que diferentes decisões culturais sejam tomadas. Há argumentos para que um assunto seja ou levado aos cuidados públicos ou mantido fechado dentro de uma residência. Se apenas um indivíduo deixa de tomar as precauções devidas contra gripes fortes, vulnerabiliza todo um grupo de pessoas. É justamente por haver argumentos que há debate.
A verdadeira questão quanto ao aborto, que junta suas duas facetas em uma única moeda, é: a quem cabe determinar o aborto? Quem tem o direito de decidir sobre ele? O indivíduo ou a sociedade, esta corporificada no governo? Por quê? Qual é o critério?
O critério, aliás, é outro elemento importante desses cabos-de-guerra em que se puxa o pensamento mais para o lado privado ou mais para o público. Isso porque, ao transportar a opinião que se tem quanto ao aborto para a opinião quanto às políticas públicas sobre o aborto, o que se está fazendo é tentando tratar de maneira moralista algo que não tem nada a ver com moralidade – ou seja, “abortar é errado, então é claro que o governo não deveria permitir que isso aconteça”. Ora, o governo deve adotar outra perspectiva; deve fazer o que é melhor para a população, seja lá o que isso for. Quem quer que use a moralidade como justificativa para a proibição do aborto não está de fato justificando a proibição. Está, contudo, mesmo que inconscientemente, respondendo à questão implícita: isso é da conta do governo? Deveria ele – deveria a sociedade – intervir quando o assunto é aborto?
A linha que separa o público do privado e como ela está sendo flexibilizada neste exato momento por uma grande variedade de movimentos sociais é de extremo interesse para os cientistas sociais. Aqueles que estudam discursos, por exemplo, procuram entender como diferentes grupos sociais se envolvem nestes debates, e por quê se envolvem em primeiro lugar. Cientistas políticos querem entender melhor a relação entre a sociedade civil e as instituições de política, justiça e aplicação da lei. Destrinchamos o aborto, mas poderíamos ter igualmente discutido a legalização da maconha, a proibição do cigarro ou mesmo a intervenção nova-iorquina sobre os refrigerantes de que há algum tempo falei aqui no jornal. Todos esses debates estão em nossas cabeças, e são nossas cabeças que irão legitimar o espaço que julgamos ser o adequado para a linha entre público e privado. O papel dos cientistas sociais é, ao compreender melhor a cabeça de todo mundo, levar esse conhecimento a cada cabeça para que todas elas, juntas, possam pensar melhor que cabeças separadas.