Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.
Uma das áreas de maior interesse para mim nas Ciências Sociais é a investigação que se faz quanto às bases do nosso pensamento, ou seja, pensar quais estruturas e agentes da sociedade são responsáveis pela forma como pensamos. O sociólogo francês Durkheim (a despeito do que já falamos sobre ele aqui há algumas colunas) já sugeria que as religiões sempre refletiam a realidade social de um grupo — que todas as diferentes religiões eram, portanto, verdadeiras. Na verdade, resumir nisso suas ideias seria uma grosseria: o que ele sugeriu, na verdade, é que o pensamento simbólico depende da realidade social de um grupo.
Certa vez um monitor de ciência política me disse: para os gregos antigos nós não pensamos, nós somos “tomados pelo pensamento”. Entre alguns nativos das ilhas Trobriand as pessoas acreditam que uma criança já existe antes de nascer e é ela, na verdade, quem “decide vir ao mundo”. Esses sistemas de pensamento têm raízes fortes na vida desses povos. Mas quais são as raízes da nossa maneira de pensar?
Quando pensamos em uma ideia, logo a conectamos com quem a inventou. Mesmo as mais gerais e com longas ramificações, como capitalismo ou comunismo, costumam ter “donos”. Marx escreveu o comunismo; Adam Smith formulou o capitalismo. A vida acadêmica contribui pra isso: nas escolas ou nas universidades, somos levados a pensar em quem pensou o quê primeiro. Se desmistificamos origens, é só para cair no mesmo abismo: Marx precisou de outras ideias para formular o comunismo, mas todas elas também tinham dono: Engels, Hegel, Fourier…
Quanto mais voltamos no tempo, mais vemos como isso não pareceu ser tão relevante em outras épocas e em outras culturas. Mas pode ser que isso dependa da natureza daquilo que é pensado: Palavras raramente entram no léxico popular trazendo seu dono com a mão firme na coleira. Mas, se observarmos bem nossa época, veremos que mais e mais catalogamos a origem de palavras já pensando em quem as disse pela primeira vez, não apenas onde e como elas surgiram.
Uma das coisas que podem ter influenciado esta posição em relação às ideias foi a concepção particular de história que herdamos dos gregos. A imortalidade, para eles, estava nos grandes feitos registrados na história. Nem todos os povos possuíam uma noção tão arraigada de acurada continuidade histórica. Não é difícil pensar que as histórias de grandes personalidades possam ser transmitidas por tradição oral em povos sem um código de escrita, mas, como Mauss nos mostra, existem grupos humanos em que você só passa à condição de pessoa ao assumir uma personalidade, uma espécie de “máscara”, que muitas vezes passa para frente através de gerações — é como se você assumisse a identidade dos seus antepassados, sendo aquela pessoa durante sua vida ou durante parte dela. Com essências tão interconectadas e inexatas é difícil imaginar que a posse de ideias seja valorizada: o que significa dizer que “João” teve uma ideia tal se João foi uma personalidade assumida por dezenas de seres humanos? Significa algo profundo e interessante, certamente, mas nada útil para um sistema social em que possuir ideias é fundamental.
E por que em nosso sistema social possuir ideias é algo interessante? Ora, lembremos do sistema de patentes, e o quanto ele se tornou importante nos países capitalistas. Uma ideia é uma fonte potencial de lucro; é preciso proteger uma ideia, tornar conhecido e oficial quem é seu dono. Mas há quem comece a repensar isso. Em um mundo colaborativo, alguém pode realmente ser considerado o dono de uma ideia? Para que uma ideia surja, uma série de relações sociais é necessária; um sem-número de pessoas e conceitos prévios, inspirações acidentais ou propositais. É assim que o conhecimento humano é construído: passo a passo, tijolo a tijolo. Ser dono de uma ideia seria algo absurdo.
Mas, por enquanto, uma antiga cosmologia, a moderna economia e o direito contemporâneo influenciam, de maneira profunda, o modo como pensamos. Do jeito como lidamos com nossa imagem perante o mundo, ter e manter ideias é essencial. Para nós, nem ideia de bêbado fica sem dono.