Uma historieta sobre ciência

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 12 de novembro de 2012. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

Anthony Giddens é um sociólogo britânico contemporâneo que cunhou a expressão “sistema perito”: o tipo de coisa que, por causa da autoridade adquirida através de especialistas, nós não sabemos bem como funciona, mas acreditamos naquilo mesmo assim.

Certa feita precisei fazer uma operação para retirar os sisos. Fiz um exame que geraria um modelo 3D da minha arcada dentária, e com ele o dentista poderia ver se a extração não teria grandes riscos para mim. O médico me conduziu a uma sala totalmente dedicada a uma única máquina, uma grande roda grossa de plástico, metal e sabe-se lá o que mais. Deitei-me à maca fria, estilo tomografia, e um carrinho robótico começou a girar pela parte interna do círculo, como que fazendo o movimento de um compasso no papel que o ar representava, aquele barulhinho de “cyborg” atiçando com mil raios verdes na névoa seca a minha imaginação brincalhona.

Eu não fazia ideia do que aquela máquina fazia – ou melhor, como fazia o que fazia. Mas confiei; nela e no médico que a operou. Confiei na autoridade de órgãos governamentais que (acreditei e confiei eu) avaliaram a máquina para ver se ela funcionava mesmo, se aquela unidade em particular não estava com defeito, e confiei que ela não era parte de uma conspiração para dominar o mundo e não fritaria meus miolos, nem me transformaria num zumbi, nem controlaria meus pensamentos dali em diante até me transformar em algum tipo de escravo voluntário.

Esses sistemas peritos estão por toda a parte, e as relações sociais que os sustentam são fortes, na maioria das vezes bem consolidadas em nossa tradição de vida. Como Steven Shapin aponta, pouco importa que quem não conheça as minúcias da ciência medicinal reclame que não acredita nela; quando a coisa aperta, a maioria vai aos mesmos médicos e tomam as mesmas pílulas. Socialmente falando, a pessoa acredita.

Um papel que a sociologia exerce (e que o Steven Shapin, citado ali em cima, faz de maneira magistral em minha opinião) é justamente examinar esses sistemas peritos e publicar o resultado dessa examinação para que a sociedade veja quais são essas raízes sociais que sustentam esses sistemas. Esse conhecimento vai, com sorte, gerar um debate para que possamos juntos dirigir a sociedade.

Isso me faz lembrar uma história que ouvi na aula de epistemologia. Diz-se que um estudo foi feito na África, não me lembro exatamente quando, em que os pesquisadores testaram um novo método para evitar que o vírus da AIDS fosse transmitido da mãe grávida para o filho que ainda estava por nascer. O método da época era muito caro, e o novo prometia ser mais barato.

Para quem não está acostumado a procedimentos científicos, em todo experimento é preciso ter um grupo controle, ou seja, um grupo que não está sujeito ao experimento e, ao invés disso, permanece em uma situação padrão. Assim é possível comparar os resultados do novo método, por exemplo, com os do método antigo. Se não houvesse grupo padrão, não haveria como saber se o experimento foi ou não um sucesso; é preciso fazer uma comparação com o método padrão.

No entanto, regras internacionais de conduta ditam que o grupo controle pode ser feito de duas formas: as cobaias desse grupo podem receber o tratamento normal ou o tratamento com placebo (remédio de açúcar que, quimicamente falando, não tem efeito algum – como a homeopatia). O placebo foi escolhido. Como resultado, metade das mães receberam o tratamento novo (que, no fim das contas, se provou eficaz), mas metade recebeu placebo. Na prática, metade dos bebês foram condenados ao vírus HIV quando poderiam, com o financiamento que podia ter sido feito, ter sido poupados disso.

Esse caso ilustra questões éticas, é claro, mas isso não está separado das questões sociais. Não conto a história porque desejo pintar uma imagem ruim do cientista; muito pelo contrário: o faço para demonstrar que a consciência quanto ao mundo que nos rodeia é essencial para que possamos construir um mundo melhor. Fazer entender aquilo que agora não se entende – no caso da sociologia, o emaranhado de relações sociais que o mundo contemporâneo é: eis um objetivo dos, e desafio para os, cientistas sociais.