Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.
Há uma tendência quanto a programas de televisão no estilo “caça-talentos musical”. Esse tipo de programa existe há tempo, mas agora a internet ajuda a amplificar o alcance: o público de programas desse molde tornou-se mundial ao invés de continuar praticamente restrito a uma nacionalidade.
Se seguirmos algumas noções sociológicas de distinção cultural vamos lembrar que (a grosso modo) costumamos construir identidades em torno de fenômenos culturais, incluindo a música (ser “do rock” ou “do pagode”). No entanto, pertencer a um grupo geralmente significa que, em algum nível, a identidade é construída não só a partir de uma positividade (algo que o grupo gosta ou faz) mas a partir de uma negatividade (o que o grupo não é ou não faz). Integrantes de um grupo fortalecem a conexão entre si não só por atos e discursos que afirmem que são iguais, mas que afirmem que eles todos, juntos, são diferentes dos que não estão no grupo. Não basta para alguns roqueiros dizer que gostam de rock: é preciso dizer que pagode é detestável.
O público que assiste a tais programas não parece obedecer a esse padrão. Os “X Factor”s e congêneres não são, à primeira vista, um “produto” cultural que gera esse tipo de divisão, muito menos uma que tenha a ver com questões sociopolíticas (“funk é coisa de pobre”, por exemplo). Quem não gosta, tampouco fala mal: não assiste e, se perguntado, diz não ter o hábito de fazê-lo. E se esse tipo de show não gera grandes reações negativas, do outro lado da cerca também não parece produzir uma identidade positiva: não porque não seja adorado por muitos, mas porque essa adoração não acaba fazendo surgir um grupo de identidade ao redor dele: é fácil encontrar um “grupinho” de “roqueiros” ou de “futeboleiros” em cada canto de cada bairro, mas um grupo centrado ao redor de uma cultura “X-factor”? Mais difícil.
É, contudo, justamente por não causar esse tipo de comoção que os programas desse tipo são populares. Se falamos nele agora há pouco como um “produto”, é porque é exatamente isso que ele é – algo feito por quem tem dinheiro para gerar mais dinheiro. Adorno (de quem já falamos aqui antes) nos diz que a indústria cultural não é nem alta cultura nem cultura popular – mas uma coisa intermediária e sem substância. De certa forma, programas de talentos não têm mesmo uma substância definida: são formatos, cascas nas quais uma série de coisas diferentes são postas. Não é lucrativo que identidades sejam geradas ao redor deles (até certo ponto, é claro; ser esquecido não é bom) porque isso significa se fechar para um público menor. Não tomar lados, ficar em cima do muro, tentar agradar o máximo número de pessoas – essa é a estratégia padrão. O resultado, com a exceção dos ritmos considerados ofensivos demais para o gosto médio da média das classes médias, é um show com um pouco de cada coisa. Como efeito colateral a mensagem que o programa passa é mais do que a tolerância, é estímulo à variedade: é preciso gostar de tudo um pouco, evitando a identificação exagerada por um estilo e excludente de outros. Afinal, quanto mais coisas para se gostar, mais coisas para se vender.
Mas o programa oferece algo a mais: a própria casca que quer ser, o “formato” universal dos programas de calouros, é algo que tem força: a pessoa que passa por todo um processo para estar ali, o que inclui sua história de vida, tem sua “história” apresentada. A história, mostrada de maneira editada e dramática (ainda que, na maioria das vezes, despretensiosa – parte do realismo que se quer vender) tem o papel de criar uma conexão instantânea com o personagem o mais rápido possível: fazer o espectador se identificar com ele, torcer por ele, chorar com ele. É uma fórmula pronta que ataca uma forma de sensibilidade ocidental – nossa forma de sentir e de se relacionar com as coisas da vida – que foi sendo aprimorada por essa indústria cultural ao longo de sua existência no último século e além.
Interessante também é a própria performance que vem após a história: todo programa tem uma série de jurados que são colocados como autoridades no assunto, e aquele que busca a fama deve se submeter ao julgamento deles. O formato ritual da submissão à autoridade gera uma robusta imagem do processo social a ser passada adiante: é preciso ser legitimado pelos detentores do poder e, mais do que poder legítimo, a palavra autoridade nesse caso também quer dizer acesso ao conhecimento: até mesmo o gosto musical transformado em algo compreensível, julgável, e hierarquizado.