Existe uma aversão corrente entre anarquistas à ideia de “modelos” de sociedade. Será possível, assim, pensar uma teoria política – que trabalha principalmente com modelos – anarquista?
Comentando um modelo teórico de uma economia sem dinheiro, democrática e participativa elaborado por Michael Albert, Graeber escreveu que ele “é uma conquista importante” não por acreditar “que esse modelo exato, rigorosamente da forma como ele o descreve, poderia ser instituído um dia, mas porque faz com que não se possa mais dizer que uma coisa desse tipo é inconcebível”. Parece haver uma contradição nessa defesa dos modelos, que ou são aplicáveis à realidade e por isso são eficazes… Ou não são, e nesse caso podem até se tornar munição dos detratores. O simples fato de que um modelo foi pensado não diz muito.
Graeber não faz boa defesa dos modelos porque não gosta deles, e isso é lugar-comum entre anarquistas. No Anarchist FAQ encontramos que leis constituem um “corpo morto” de instituições que separa o controle social da força moral, e deveriam ser substituídas por costumes. Na crítica à democracia feita pelo coletivo Ex-workers lemos não uma crítica de um modelo organizacional particular, mas uma exigência de que todos os modelos sejam vistos como provisórios, sendo continuamente reavaliados e reinventados.
Uma teoria política ácrata poderia ser pensada como uma busca analítica por possíveis consequências de modelos institucionais, dialogando não num sentido prescritivo, mas “dadivoso”, com as comunidades, e as fundamentações do conceito de path dependence me inspiram a defender a relevância de tal teoria. No livro “Politics in Time”, de Pierson, encontro a concepção de path dependence como algo que “se refere a processos dinâmicos envolvendo feedback positivo, que geram múltiplos resultados possíveis dependendo da sequência particular em que os eventos ocorrem”. Margaret Levi explica de um modo um pouco mais simples: “path dependence tem que significar […] que uma vez que um país ou uma região começou a seguir um caminho, os custos de reversão são altos”. Depois de um período de positive feedback e de compromissos acumulados sobre o caminho que se decidiu percorrer, mudanças serão mais difíceis, e mesmo novas mudanças vão ter seu formato condicionado por essas “primeiras” decisões.
Entender os possíveis efeitos de diferentes modelos políticos, para fazer escolhas mais bem informadas, seria então a razão de ser de uma teoria política anarquista. Estudar teoria sob a luz do path dependence justifica essa razão de ser pois evidencia o quão importante é estar bem informado para fazer escolhas, uma vez que é ressaltada a relevância de cada passo em uma cadeia de decisões políticas. É claro que pensar em termos de path dependence não torna óbvias todas as consequências de uma escolha institucional a partir do ponto de partida. Afinal, nem sempre as instituições promovem o que os projetistas pensaram que promoveriam; as motivações iniciais por detrás das primeiras escolhas, aliás, “se perdem”; os atores muitas vezes não conseguem mais controlar as instituições que criaram.
De qualquer forma, sim, há uma imprevisibilidade essencial no futuro, mas os aspectos estruturais que emergem a partir de nossas escolhas podem ser estudados. A importância do momento inicial exige o aproveitamento máximo de toda potência que a teoria possa oferecer frente a um cenário de tanta imprevisibilidade.
Mas o que é o momento inicial? E de que forma é feita a escolha que se dá neste momento inicial?
Em termos retrospectivos – quer dizer, na forma como o conceito de path dependence é utilizado pela ciência política – Pierson fala de uma dificuldade metodológica na “escolha” do “momento inicial”… Uma discussão de pouco interesse agora. Já em termos prospectivos, especialmente à medida que pode-se fazer recortes temáticos quanto aos modelos (um modelo de “família”, um modelo econômico, um modelo político, etc), o momento inicial faz referência a um momento em que pode haver uma mudança modelar significativa. De interesse para anarquistas, mudanças que levam a sociedade para mais perto da efetivação de valores e ideais ácratas.
A escolha dos modelos, contudo, é uma questão mais sutil. Tilly, por exemplo, escreve que “as pessoas realmente constroem a democracia… [Mas] constroem tem a conotação enganosa de plantas baixas e carpinteiros”, e na verdade a mudança é muito menos planejada que isso. “Quando foi que alguma mudança social já aconteceu de acordo com o projeto de alguém?”, ecoa Graeber. As pessoas não param para analisar calmamente modelos de teoria dos jogos em momentos de transformação social, comparando duas possíveis escolhas institucionais antes de qualquer decisão coletiva maior. Elas simplesmente fazem coisas. No entanto, disso não se pode depreender a futilidade de atentar a modelos teóricos — ocorre precisamente o contrário, primeiro porque o fato de as pessoas “simplesmente fazerem coisas” não indica a ausência de modelos, abstrações da mente humana referentes a padrões de comportamento – que existirão, independente da disponibilidade de alguém que os queira estudar. Uma vez que se adote um procedimento, gera-se uma expectativa que as próximas decisões sigam o mesmo caminho, ou que todas as pessoas sejam tratadas do mesmo jeito, etc. Em segundo lugar, evitar pensar e defender modelos específicos no contexto da luta política de ideias não necessariamente incentiva o pensamento não-modelar, porque esse pensamento é absolutamente incomum no pensamento humano em geral.
Pierson cita um estudo de Blais e Massicotte em que explica-se a dominância de sistemas políticos de representação proporcional na América Latina. Não se trata de considerações estratégicas (como se outros sistemas políticos jamais, em toda a região, pudessem ter beneficiado as elites), mas sim do fato de que os advogados constitucionais da região receberam educação formal na Europa continental (e não, digamos, na Inglaterra), e portanto esse era o modelo a que estavam intelectualmente afiliados.
Evitar discutir os modelos, mesmo que se for para condená-los em favor de princípios, implica confiar que cada indivíduo suficientemente afiliado aos princípios consiga deles derivar modelos de ação social coerentes e funcionais. Mas isso traz o grande perigo de que modelos anteriores acabem sendo preferidos, já que os princípios, menos rigidamente definíveis que modelos, podem ser “flexibilizados” para que aparentem ser coerentes com os modelos. Esta é, aliás, uma crítica que alguns anarquistas fazem à defesa do termo “democracia”: se um anarquista defende suas ideias como se fossem “democráticas”, o que o público leigo pode ouvir e assimilar é que se deve defender, por exemplo, o “voto majoritário”, já que no modelo democrático que o grande público conhece a tradição do voto majoritário já está bem consolidada.
De certa forma, o anarquismo já reconhece a noção de path dependence. Os comunistas, por exemplo, mesmo admitindo que depois da “ditadura do proletariado” o Estado desapareceria (colocando essa sociedade sem hierarquias como um objetivo, portanto), ainda desejam usar o Estado, isto é, um modelo hierárquico de mobilização social e sociedade, como meio para se chegar a um fim oposto. Isto é duramente criticado pelos anarquistas porque, afinal, as escolhas importam. Uma vez que se escolhe a manutenção da estrutura estatal, geram-se interesses, padrões de comportamentos, estruturas que construirão resistência contra qualquer força contrária. Esse é (sendo generoso ao falar de “resistência” na última frase) o resultado que encontramos nos casos da União Soviética, da China, de Cuba, entre outros.
Mas anarquistas também são conhecidos por uma característica oposta: uma espécie de “path independence”, uma tendência a não reconhecer a conjuntura como determinante em suas práticas. Há quem diga que a possibilidade de uma sociedade anarquista é tão impensável no cenário atual quanto (se não mais que) a volta do sorteio como método de escolha de representantes políticos. Mesmo assim, ao contrário de qualquer possível advogado do sorteio como método, isso não impede os anarquistas de agirem politicamente.
Isso é o que mais ameaça fazer ruir a utilidade de uma teoria política entre os anarquistas: afinal, não importa se o modelo político adotado inicialmente pelo movimento não estiver “dando certo”; numa sociedade anarquista, os indivíduos podem livremente mudá-lo a hora que quiserem justamente pelo fato determinante de que o que caracteriza uma sociedade anarquista é essa disposição insurrecional para negar estruturas; uma cultura de ser path independent.
É verdade também que é preciso relativizar minha caracterização anterior dos anarquistas como “odiadores” de modelos. As várias escolas de pensamento anarquistas se distinguem por visões diferentes de sociedade em termos de modelos políticos, econômicos, jurídicos, entre outros. O problema é que enquanto a liberdade for entendida como um “experimento contínuo”, como citado anteriormente, escolhas sistemáticas não parecem consequentes. Depois de fazer o elogio ambíguo ao modelo econômico de Michael Albert, Graeber diz que está “menos interessado em decidir que tipo de sistema econômico devemos ter em uma sociedade livre do que em criar os meios para que as pessoas possam tomar essa decisão”. Esse é o ímpeto do path independence: acreditar que não importa tanto o que se escolhe; a escolha (livre) sempre pode ser refeita.
O caminho de uma teoria política anarquista passa por um cálculo: por um lado, deve reconhecer que o mesmo argumento que dá suporte à coincidência entre meios e fins (como na questão do Estado no limiar revolucionário) aplica-se a todo e qualquer modelo, mesmo um adotado temporariamente. Por outro, não pode representar uma transformação de “ser” em “dever-ser” (como numa virada em que se advoga que, por causa do peso de decisões históricas, escolhas do passado não devem ser reavaliadas e reinventadas), tampouco o estabelecimento de um papel vanguardista para quaisquer teorias anarquistas.
O conceito de path dependence veio da economia, mas quatro elementos da política a tornam passível de estudo por um ângulo de positive feedback segundo Pierson: o papel central da ação coletiva, a alta densidade das instituições, as possibilidades de uso da autoridade política para aumentar assimetrias de poder e uma complexidade e opacidade intrínsecas a ela. Se analisarmos cada um desses aspectos podemos verificar a relevância de contar com boas análises modelares ao longo de processos decisórios.
Por acaso poderíamos descartar de saída o terceiro aspecto acima, já que os anarquistas defendem justamente a abolição de assimetrias de poder e negam a legitimidade de autoridades baseadas na força? Pelo contrário. Ele é exatamente uma razão para que em qualquer situação em que se esteja tentando estruturar instituições políticas (ou de outros tipos) respeitando princípios anarquistas a atenção quanto ao modelo geral da instituição deva ser redobrada: qualquer assimetria de poder que se permita subsistir pode engatilhar uma dinâmica de positive feedback que engendraria desigualdade e dominação – e, ainda pior, poderia tornar as mesmas relações de poder menos visíveis ao longo do tempo.
O fato de a “ação coletiva” ser um elemento central da política significa dizer que “as consequências das minhas ações são altamente dependentes das ações dos outros”. Já a “alta densidade” significa que nosso envolvimento com instituições nos incentiva a buscar uma espécie de estabilidade. “Em contextos de interdependência social complexa”, explica Pierson, “novas instituições e políticas frequentemente geram altos custos fixos, efeitos de aprendizado, efeitos de coordenação e expectativas adaptativas. Instituições e políticas podem encorajar indivíduos e organizações a investir em habilidades especializadas, aprofundar relações com outros indivíduos e organizações, e desenvolver identidades sociais e políticas específicas. Essas atividades aumentam a atratividade de arranjos institucionais existentes relativos a hipóteses alternativas. Em ambientes institucionalmente densos, ações iniciais levam o comportamento individual a rotas que são difíceis de reverter”. As pessoas assumem compromissos com base em instituições e políticas existentes, e “à medida que o fazem, o custo de reversão da rota se eleva dramaticamente”. O último elemento, a complexidade e a opacidade intrínsecas à política, representa a “dificuldade de medir aspectos importantes da performance política” – o que dificulta esforços para pensar em melhorias caso exista a percepção de que um determinado modelo não está funcionando.
O que esses elementos significam? Basicamente, uma razão para não tratar escolhas estruturais com leveza, como se as decisões pudessem ser facilmente revertidas depois: uma vez que decisões são tomadas e os atores sociais se movem numa direção, as pessoas vão começar a criar expectativas quanto a essas decisões. As complicações são inúmeras; as pessoas assumem compromissos de longo prazo, a complexidade do campo político faz com que seja difícil diagnosticar a fonte exata da insatisfação das pessoas quanto às instituições, e mesmo fazer algo quanto a elas não é necessariamente uma questão de escolha individual. Simplesmente sair das instituições, então, pode exigir um custo proibitivo para o indivíduo…
Resumidamente, há uma dinâmica de estabilidade inerente a toda organização social institucional. Essa estabilidade se reforça rapidamente (“a cada aperto de mãos, a força dessa norma social aumenta”) e não está sob controle de indivíduos isolados — os processos desencadeados por decisões passadas se tornam progressivamente mais difíceis de ser interrompidos para que possam ser “reinventados”. “Se um grupo de pessoas decide que quer operar por voto majoritário”, questiona Graeber, “quem vai impedi-los?”. Não é coerente, é óbvio, que um anarquista impeça um grupo de fazer isso (especialmente um do qual ele não faça parte). Mas a questão não é essa: uma vez que o voto majoritário seja escolhido, ele vai dar início a processos de positive feedback que poderão dificultar o processo de mudança de modelo que seria necessária para evitar processos de acumulação de poder por parte de um grupo social.
Uma teoria política anarquista não se preocuparia com uma definição quanto a se uma sociedade deve ou não deve, pode ou não pode operar com dinheiro, ou que um grupo deve ou não deve, pode ou não pode funcionar politicamente por meio de voto majoritário. O conceito de path dependence tampouco afirma que é impossível mudar o status quo das instituições. O que o estudo desse conceito traz é a consciência de que mesmo em “condições de liberdade” como entendidas por anarquistas as instituições produzem estabilidade, e tendem a ser menos controláveis com o passar do tempo. Qualquer tipo de instituição.
No fundo e de maneira simples, é quase possível dizer que isso se trata de uma defesa do poder que os seres humanos têm de racionalmente pensar em soluções políticas; uma defesa da necessidade de tomar as rédeas do destino nas mãos, mesmo reconhecendo as dificuldades disso e a natureza social em última instância dessa “tomada de rédeas”. Bakunin chegou a dizer, sobre a importância do início de uma revolução anarquista, que era necessária a “melhor base possível”, que “impediria a recaída e garantiria uma revolução progressiva”. Ele insistia “na necessidade de um começo sólido”, e não confiava “nem na espontaneidade nem no acaso”.
Ou seja… Há definitivamente um espaço para o engenho na formação de instituições ácratas. Nos piores casos, em que são escolhidos modelos com grandes “problemas” (do ponto de vista dos anarquistas), ao menos existirão análises sobre essas falhas, o que providenciaria ideias quanto a como combater estruturas de dominação. Afinal, esta já é a utilidade de uma teoria política anarquista em uma sociedade como a nossa, que ainda não é anarquista.