Perdida é um conto de fadas contemporâneo interessante. É estruturalmente super sólido e bem amarrado. Mesmo com uma ou outra coisa pouco polida (alguém teve uma impressão nítida sobre a personalidade da irmã de Ian? Que personagem mais bidimensional, se-nhor! A Teodora foi mil vezes mais interessante.), todos os “beats” são martelados quase à perfeição, e o ritmo é ótimo, medindo bem coisas que podem ser problemáticas em outras histórias (por exemplo: quanto tempo alguém leva pra parar de pensar que está maluco e aceitar logo uma situação impossível? Demore demais e a história fica chata; demore de menos e fica pouco realista (cof cof Crepúsculo cof…) ou surreal, como Alice no País das Maravilhas). Os clichês são reciclados tão bem que funcionam redondamente. A heroína é órfã? Claro. Tem um personagem Dumbledore-Gandalf-Mestre-dos-magos guiando o protagonista? Certamente. O interesse romântico é tão perfeito em suas imperfeições que até seu peido deve cheirar a lavanda? Óbvio. (Não. Mas quando ele fala “porra” é super fofinho).
Analisado tematicamente, o livro segue sendo sustentável… Uma crítica à tecnologia se interlaça sem problemas com o despertar do amor romântico em meio a um mundo cínico. Só que a narrativa fica sim um pouco retalhada no final.
Veja, esse é um conto de fadas feito após o feminismo, mesmo que informado por uma vertente mais liberal e senso comum do movimento: a heroína se vira sozinha e é independente. Quer trabalhar e ganhar seu próprio dinheiro no século XIX. Mais do que isso, não só a protagonista encara o sexo de forma bastante liberal como efetivamente quebra convenções dos contos de fadas de outrora. Isso é maravilhoso, sim, mas o céu vai começando a nublar depois de um certo tempo: Ian se torna “a vida” da protagonista. Nada mais – nada mais! – importa. Bem, não que ela fosse a rainha da Inglaterra no tempo presente – seu trabalho não lhe despertava tanto interesse assim a ponto de ser um grande sacrifício ela ter ficado no passado… Mesmo assim, qual é a mensagem que mais retumba depois do ponto final? O amor é mais importante que tudo? OK. Mas que tipo de amor? Você deve mudar completamente sua vida para poder ficar com quem você ama? Indo direto ao ponto: é uma boa ideia para uma mulher no século XXI deixar de investir em sua vida, sua carreira, seus amigos, sua cultura até, para ficar ao lado de um homem? Dá pra conservar o poder da primeira pergunta sem ser contaminado pelo germe da resposta “sim” à última?
E vamos falar do “amor”, outro ponto fraco do final do livro: o desenvolvimento da relação entre Ian e Sofia é adorável e num ritmo extremamente acertado. A gradação é realmente impecável! Mas no fim, as consequências parecem grandes demais pra combinar com o que foi apresentado: Sofia basicamente deixa pra trás sua vida (que, novamente, pelo menos a autora mostrou que não era nada demais… Se ela tivesse que deixar pra trás um filho, uma mãe doente ou coisa parecida AÍ O BICHO IA PEGAR) por causa de duas semanas com um cara gostoso, educado e cheio da grana – mas principalmente gostoso, isso fica bem claro. A mensagem responsável e sem tabus que o livro passa sobre o sexo é louvável, mas por outro lado mostra um ponto de inflexão muito interessante entre “Perdida” e “Orgulho e Preconceito”: sem qualquer tipo de contato físico, o que transparece da relação entre Elizabeth e Darcy é principalmente aprendizado e admiração. O que transparece da relação entre Ian e Sofia é… Tesão (até a última página do livro, diga-se de passagem). Tem a hora em que ele deve acreditar nela e sua verdade sobre a viagem no tempo, mas isso foi um plot point necessário e, bem, a mão dele foi forçada devido às evidências. Se em ambos os livros as mulheres só se realizam na vida quando casam, só um livro tem circunstâncias históricas que justificam um “pano de fundo” como esse. Se as heroínas de Austen e Rissi são semelhantes, a da primeira parece ascender a essa posição, enquanto a da segunda parece regredir.
Agora, vamos lá: Perdida é (merecidamente) um fenômeno pop, e Orgulho e Preconeito é uma obra de Arte com A maiúsculo à qual Perdida presta muita homenagem. E eu não acho que a culpa da relação de Ian e Sofia parecer superficial (como tudo que é grudado pelo “destino”, em vez de por vontade e luta, invariavelmente é) seja do sexo em si; eu não ia me importar muito se rolasse um “perdemos a linha, sr. Darcy” no final de Orgulho e Preconceito. Mas é curioso pensar nisso porque, afinal, juntando os pontos, você acaba com a impressão de que “O amor é mais importante que tudo” pode ser trocado, como lema de Perdida, por “Os hormônios são mais importantes que tudo”. O que acontece com a Sofia que escolheu ficar no passado pra sempre e, quando percebe que Ian na verdade não é tão interessante assim depois da 500a transa seguida, lembra-se que não tem facebook pra aliviar o tédio do século XIX? Bem, que bom que não temos que nos perguntar, já que existem continuações e talvez elas resolvam algumas dessas coisas que estou escrevendo sobre esse primeiro livro (que, aliás, é autossuficiente e esse é outro ponto positivo).
Há outros problemas. A escritora é hábil em não tornar a heroína uma “damsel in distress” por qualquer razão tola – mas vamos lá: Sofia nunca foi descrita como uma guerreira, portanto… Faz sentido que Santiago a domine fisicamente. É compreensível que suas condições físicas e psicológicas depois de uma noite de chuva a pusessem de cama por dois dias. É logicamente aceitável que, tendo aparecido no século XIX de um minuto pra outro, ela tenha que depender da ajuda de seu benfeitor para conseguir fazer basicamente qualquer coisa. Mas com quantos “é compreensível” ou “é aceitável” se faz uma suspensão de descrença? Uma hora o leitor tem que perceber que ela basicamente só exerce sua agência quando Ian permite, e raramente é algo que tem importância na história.
O mais engraçado é perceber como a autora tem que dar um “spin” apropriado para algo que seria simplesmente abusivo e, sinceramente, bem amedrontador (me peguei pensando uma ou duas vezes ‘ei carai, agora que o machão desce a mão nela…’): o homenzarrão pega Sofia pelo braço e a força a ouvir ou falar alguma coisa… Mas tá tudo bem, porque ela gosta da pegada dele e não quer realmente sair dali. Bom, que ótimo pra ela, né, porque se quisesse tava frita…
Em suma, o que eu acho é que o livro é realmente muito, muito bom em ser o conto de fadas que ele é. Ele funciona, é super bem escrito e faz duas coisas positivas: apresenta uma mensagem interessante do papel que o sexo tem numa relação que se baseia (assim deveríamos acreditar) no amor romântico, que tantas vezes no storytelling pop é um “puppy love” chato e casto que começa, eu desconfio, a não funcionar mais com adolescentes (O filme “divergente” é diferente, mas foi feito pros americanos puritanescos anyway). Outra coisa que faz bem é provocar uma discussão sobre agência, amor e desigualdade de gênero. Amor é entrega; é vulnerabilidade, diálogo, confiança e principalmente transigência, mas… Haveria algum modo de escrever essa história de um jeito que A) Sofia não se tornasse psicologicamente dependente do futuro marido; e ao mesmo tempo B) O final fosse igualmente feliz e romântico?
Não sei. Acho que sim, mas não sei. Não acho que “Perdida” seja um livro machista; longe disso. Mas acho que ele joga um jogo cujas regras foram escritas quando o mundo era muito diferente. Assim como há certos limites para uma mulher independente no século XIX, há certos limites, ao que tudo indica, para um conto de fadas realmente popular nos anos 10.