Atenção: tentarei “anonimizar” a história o máximo possível, embora creio que qualquer um, tendo determinadas informações contextuais, possa saber do que estou falando, talvez até de quem eu esteja falando. De qualquer forma, o importante é o conteúdo das ideias; meu objetivo foi refletir um pouco sobre a conexão entre algumas coisas que estou lendo ultimamente e esse pequeno contato com uma experiência prática.
Recentemente enviei um email para um coletivo ativista perguntando como colaborar com suas atividades. Eles me convidaram para um debate sobre as práticas de autogestão de um centro acadêmico (CA), que estavam sendo questionadas por um grupo de estudantes do curso. O debate, no caso, foi convocado por esses estudantes, não pelo CA.
Cheguei no local sem conhecer ninguém, e por isso resolvi ficar “só observando”, quieto no meu canto. Não é só uma questão de “lugar de fala” ou coisa parecida; uma conversa de início teórica (caso em que eu certamente teria subsídios para participar) foi lentamente adquirindo nuances mais concretos quando se começou a discutir os problemas e a realidade específica daquele CA, sobre o qual eu nada sabia.
Alguém teria quinze minutos para falar em defesa da autogestão, outro alguém quinze minutos para uma fala contrária, e todos teriam oportunidade de falar por dois minutos, caso se inscrevessem. Havia com folga mais de quarenta pessoas na sala, então o pouco tempo individual justificou-se (e era possível falar mais de uma vez de qualquer forma). Apesar disso, não posso deixar de observar que essas regras me pareceram mais apresentadas que propostas.
Lados e temas
No começo, ninguém falou nada em defesa da autogestão; leu-se apenas uma nota seca do CA, o que não levou nem um minuto. Parecia ter sido feita por um assessor de imprensa; eu não discordava de seu conteúdo, em princípio, mas ele vinha num pacote extremamente formal e brando. De início fiquei preocupado: será que não havia ninguém para defender a autogestão? Um debate de um lado só foi arranjado por direitistas?? Não é contraditório estar disposto ao debate e não fazê-lo de fato??!! Oh, céus, que diabos estava acontecendo?????
De qualquer maneira, a representante de uma entidade estudantil fez uma fala que se resumiu a:
- Uma crítica da Revolução Espanhola, em que os anarquistas aparentemente se renderam ao governo burguês em vez de destruí-lo porque lhes faltou, num momento crítico, uma proposta de organização que pudesse substituí-lo – no mínimo um engano, no limite uma mentira; a CNT e a FAI “entregaram seus cargos” no Estado republicano precisamente porque não concordavam com sua existência e julgaram que possuíam força suficiente para levar a cabo a autogestão. Que foi, aliás, muito bem sucedida antes de sofrer uma derrota militar.
- Uma crítica ao processo decisório com base em consenso como se ele fosse uma votação unânime – o que é outra caracterização enganosa – e como se ele não apenas exigisse muito de cada indivíduo, sendo excludente na prática, como também fosse ineficaz.
- Uma defesa da democracia como um processo adversarial de debate de ideias, legitimado pelo consentimento materializado no processo eleitoral, e salpicado com uma pitada de idealismo em relação à ideia de representação de mandato imperativo (ou “de base”).
Depois disso, vários defensores do CA começaram a fazer colocações contrárias a essa fala. Os partidários de outros modelos organizativos começaram a ficar mais específicos, dizendo o que não estava lhes agradando no CA. Muitos – todos, na verdade – que defendiam a autogestão admitiram que um dos elementos preponderantes para seu bom funcionamento é justamente a autocrítica, e que é preciso sanar os problemas levantados. Apesar da especificidade, a reunião não necessariamente tornou-se um muro de lamentações, e os defensores de modelos gestionários alternativos (mainstream em qualquer outro espaço, na verdade) ainda defenderam algumas coisas positivas que estes poderiam trazer e que, ao seu ver, não estavam sendo contempladas.
Como escreve Graeber em The Utopia of Rules, as burocracias também têm suas vantagens. Elas podem ser produtivas. Um estudante disse que “uma das maiores dificuldades da autogestão é que é um sistema que depende das pessoas envolvidas nele”. Isso reflete algumas observações minhas sobre a simetria entre o anarquismo e o (neo)republicanismo: em vez de ser um sistema “autorreplicante” (que não depende de nenhuma atuação individual; em certo sentido, uma burocracia bem lubrificada), o anarquismo é um sistema de incentivos que depende de iniciativas individuais para se manter. Adoraria mostrar o texto que fiz sobre isso, mas ainda pretendo publicá-lo em formato acadêmico (colocarei o link aqui quando ele estiver disponível um dia).
Mais tarde, alguém que observou o quanto esse debate entre diferentes propostas de modelo organizacional tem a ver com – surgiu a partir de – uma degeneração de mais longo prazo nas relações de proximidade entre as pessoas. Esse argumento, defendido de forma um tanto quanto carismática (“chapa é só pra cabeça, galera”), é essencial. Antes de me voltar para isso de maneira teórica, assinalo que na prática do encontro me parece que todos, ou ao menos muitos, reconheceram a importância de refletir como a organização horizontal do CA, que em tese deveria ter favorecido precisamente isso, acabou falhando nesse aspecto.
Liderança e circulação de informação
“A liderança sempre vai existir, mas depende do que está sendo discutido (do contexto)”. Isso aqui também é extremamente importante. Um dos argumentos da representante da entidade estudantil foi que sem uma estrutura rígida, grupinhos informais acabariam operando como autoridades de facto e os indivíduos ficariam a mercê dessas estruturas menos transparentes de poder. Em suma, ela, como aliás muitos outros, não entenderam Jo Freeman. Novamente, eu não poderia recomendar The Utopia of Rules mais, e sinto que fará bem citá-lo (traduzindo-o; no link há três parágrafos você encontra o original):
Quase todo mundo que não vem de um pano de fundo explicitamente anti-autoritário […] leu o ensaio de Freeman de maneira completamente errada, e o interpretou não como um apelo por mecanismos formais que garantam a igualdade, mas como um apelo por uma hierarquia mais transparente. Leninistas são notórios por esse tipo de coisa, mas liberais são tão ruins quanto eles. Perdi a conta de quantas discussões já tive sobre isso. Primeiro, o argumento de Freeman sobre a formação de panelinhas e estruturas de poder invisíveis é visto como uma defesa da ideia de que qualquer grupo com mais de vinte pessoas sempre terá panelinhas, estruturas de poder, e pessoas em cargos de autoridade. O próximo passo é insistir que se você quer minimizar o poder de tais panelinhas, ou quaisquer efeitos deletérios que essas estruturas de poder possam ter, a única forma de fazê-lo é institucionalizá-los: pegar o grupinho que já existe na prática e transformá-los num comitê central […]. É preciso tirar o poder das sombras – formalizar o processo, inventar regras, fazer eleições, especificar exatamente o que o grupinho pode e não pode fazer. Dessa forma, ao menos, o poder será transparente e deve “prestar contas” […]. Ele não será de modo algum arbitrário.
De um ponto de vista prático, militante, essa prescrição é obviamente ridícula. É muito mais fácil limitar o poder que panelinhas informais podem obter ao não lhes conceder status formal algum, e portanto nenhuma legitimidade; quaisquer “estrutura formais de prestação de contas” que se imagina que irão conter as panelinhas-que-viraram-comitês são muito menos eficazes quanto a isso, principalmente porque acabam legitimando e portanto aumentando enormemente o acesso diferencial à informação que permite pessoas em grupos que de outro modo seriam igualitários a ter mais poder para começo de conversa. […] Estruturas de transparência inevitavelmente começam a se tornar estruturas de burrice no momento em que isso ocorre.
Voltando ao que o próprio aluno comentou sobre a questão, é exatamente isso que eu quis dizer no meu post sobre liderança. A liderança não se trata de pessoas e suas características, mas de contextos de decisão; ela é um fenômeno coletivo, não um traço de personalidade ou um trabalho a ser feito, um cargo. Definir de maneira rígida quem deve exercer esse papel é perder a potência de fazer com que líderes emerjam organicamente em cada contexto, o que torna os processos de decisão e execução inclusive mais eficientes.
Algo que Graeber também comenta com frequência (em Um Projeto de Democracia, por exemplo) é a questão do acesso às informações e como isso é importante para manter uma estrutura horizontal e igualitária. Muitos estavam reclamando da existência de um grupo [de facebook] fechado, inclusive com publicação de atas nele em vez de em espaços abertos, deliberações feitas por meio dele – e, aliás, que muitas vezes não era publicada uma pauta prévia das reuniões, apenas a ata posterior. Não tenho como avaliar a exatidão de todas essas acusações; isso não ficou claro pra mim a partir da interação entre os estudantes, e alguns disseram que o grupo era puramente logístico e não se deliberava nada por meio dele. Contudo, se alguma parte disso for verdade, isso é obviamente execrável e claramente constitui um obstáculo à operação saudável de um grupo autogestionado.
No entanto, defender que a solução para isso é oficializar precisamente essas práticas negativas – o grupinho que se arroga o poder decisório – é bizarro. É trocar a liberdade (que não se dá aqui necessariamente na chave negativa de Berlin) pela esperança de que pelo menos, quem sabe, o grupinho no poder será o meu.
A diferença entre representação e modelo representativo
Muitos criticaram o CA, por exemplo, por ter reuniões em horários ruins, deixando alunos do curso noturno, na maior parte, impossibilitados de participar. Esses alunos que não iam às reuniões gostariam de ter uma forma de colocar pautas e conseguir influenciar decisões, diziam – sentir-se, enfim, representados. “A autogestão não exclui a representação”, replicou uma aluna. Como brilhantemente recupera Cohn em seu ótimo livro, embora os anarquistas reconheçam certos perigos com um modelo político baseado em representação, eles não rejeitam o conceito em si. A estudante em questão, se não me engano hoje na pós, mencionou que diversos interesses e pautas podem ser representados junto ao CA – e que, aliás, sua estrutura atual permite uma porosidade muito maior a uma diversidade de pautas do que um esquema com representantes rigidamente definidos, chapas, eleições, etc. Como isso acontece, e por que não parece estar sendo o caso desse CA, ao menos para os estudantes que não se sentem representados?
Deixando de lado a possibilidade de sugerir pautas remotamente ou por meio de colegas, o problema poderia ser amenizado com mais reuniões, variabilidade nos horários – há uma série de coisas que se poderia fazer nesse sentido, na verdade; não é como se faltasse criatividade para o brasileiro quando se quer resolver um problema. O que não faz sentido é alterar o sistema de gestão, uma vez que isso não efetiva a participação dos desafetados mas pelo contrário a torna desnecessária: quero poder votar em pessoas que façam as coisas por mim, para que eu não precise (embora possa) ir às reuniões e ter o trabalho de colaborar para obter os resultados que eu quero.
Seria generoso demais dizer que a representante da entidade estudantil falou de “prestação de contas” no sentido de um mecanismo de recall, como se poderia esperar de alguém que cita o mandato imperativo, porque em nenhum momento ela disse com todas as letras que, caso o programa da chapa não seja cumprido, a chapa deveria perder o poder; apenas que, havendo um programa eleito, os eleitores podem “cobrar” sua execução (o que deve nos trazer os mesmos efeitos de ter dito “fica, mas melhora” para a Dilma no topo de um carro de som ou assinar petições da Avaaz para o Congresso). Mas aí as armadilhas e os alçapões de sempre vêm à tona: se os eleitos não cumprem o programa, tentativas de substituí-los antes do próximo momento eleitoral oficial podem ser vistas como golpes, não como a base cobrando seus representantes que façam o que prometeram (e não importa se na próxima eleição eles saírem: na prática, o resultado de qualquer jeito é a falta dos efeitos prometidos, e a esperança por mais sorte da próxima vez, o único remédio). Justamente pelo efeito de panelinha (que só tende a se acentuar, se formalizado), a diferença no acesso à informação cria o efeito de estupidez burocrática que Graeber menciona acima, e permite aos eleitos que se posicionem como representantes fiduciários, o que é na verdade bastante lógico e racional: “vocês me escolheram para representá-los, então confiem em mim quando digo que, estando aqui nesse cargo, eu sei de coisas que vocês não sabem. Eu estou envolvido, e vocês não. Então ouçam, e confiem, porque eu sei o que é melhor para vocês”.
Não se trata de burocratizar, nem de tomar o poder, nem de tornar o CA autoritário, responderam alguns. Trata-se de organizar melhor, só. Mas a questão é que não importa o quanto a boa vontade dos eleitos vai fazer com que o CA continue aberto (a novas ideias), vibrante, diverso; a eleição estabelece um enorme trunfo que pode ser usado, se não violentamente mas a nível de retórica, para calar o dissenso e contrariar a base. Imagine uma regra jurídica determinando que o testemunho de um policial, por si só, deva ser considerado suficiente como prova condenatória em processos penais. Não me venha dizer que os policiais serão bonzinhos e não vão usar isso contra pessoas das quais eles não gostem (e eles não costumam ir muito com a cara da população negra): a questão é que não é bom que essa seja a regra!
Oh, espera… Essa regra existe. Libertem Rafael Braga.
Um exemplo menos deprimente. No prédio onde moro, o regimento interno não costumava especificar um período de “perdão” de advertências e multas. Mantendo o mesmo regimento por dois, cinco, dez anos, temos uma situação em que eu posso levar hoje uma advertência escrita por um determinado comportamento, e fico sujeito a levar uma multa se repeti-lo daqui a dois, cinco ou dez anos, porque a advertência nunca expira. Será que o síndico me daria uma multa nesse caso? Não sei, provavelmente não. É o que o bom senso preconiza, espero. Mas não se pode esperar que o bom senso funcione contra a regra escrita – porque se o síndico não vai com a minha cara, ele encontrará respaldo nessa “falha estrutural” para me prejudicar. E mesmo que eu consiga me defender com sucesso numa assembleia – o melhor é não ter que passar por essa situação toda, não é mesmo?
Mas tudo bem, e se houver recall? Se o mandato for realmente imperativo? Bem, ocorre que a própria tensão inerente à representação (como nos revelou Pitkin há décadas) é que o representante que não tem a prerrogativa de contrariar sua base não é de fato um representante; e se não o for, a “praticidade” de não ter que participar ativamente da política para obter o que se quer vai pelas cucuias (os alunos vão ter que participar do mesmo jeito, exatamente aquilo que reclamam que é muito difícil de fazer porque trabalham, têm outros compromissos, etc). E mesmo se os eleitos cumprem com o programa, outras pautas, que podem surgir inclusive após a eleição, vão ter (naturalmente) mais dificuldade de se enraizar e se desenvolver. O que um programa eleito, fechado e obrigatório tem a dizer sobre uma nova demanda, que não constava no programa? Os alunos vão fazer um plebiscito? Mas se for assim, por que não uma democracia plebiscitária de uma vez? Aliás, uma das ideias que o próprio CA já tinha considerado, segundo uma aluna, era periodicamente eleger programas, e não cargos. Pode ser um meio-termo interessante. De qualquer modo, há ainda outros problemas associados à alternância: projetos de longo prazo podem se perder se a administração muda (não só pelo overhead, mas porque às vezes quem chegou não tem interesse, mesmo, em dar continuidade ao que estava sendo feito). O que estou dizendo é que a democracia que se quer alcançar com o modelo autogestionado, como apontou a estudante da pós, é estruturalmente mais pervasiva e aberta. Não é preciso que o modelo seja estruturado a partir da representação para que esta ocorra.
Princípios versus eficiência
Uma outra colocação de um aluno (o que se liga, de certo modo, à importância da iniciativa individual e das relações entre os indivíduos em um sistema autogestionado) foi a do “desenvolvimento pessoal”: quando a estrutura exige em si a participação ativa dos indivíduos para que funcione, há um incentivo e uma necessidade de participação que os desenvolve por meio dessa participação, dessa responsabilidade. Isso na verdade é muito importante, pois discutir modelos de gestão implica discutir em alguma medida ideais normativos em relação ao engajamento dos alunos e ao relacionamento entre eles. Que tipo de aluno queremos que a passagem pela universidade ajude a formar? Com que tipo de valores e experiências queremos que eles entrem em contato? Não há neutralidade; não há modelo que “deixe” de fazer isso, que deixe de ser ideológico, enquanto outros seriam. Não: todo modelo tem esse mesmo efeito produtivo, e são valores que sempre estão em jogo. A eficiência do CA, e o quanto ele está respondendo aos anseios dos alunos, obviamente é algo que também conta, e os alunos frustrados não são nem bolsominions nem agentes da CIA tentando desestabilizar um modelo político (eu acho). Mas não há como afastar esse importante aspecto da questão, ao qual retornarei daqui a pouco.
Alguns alunos mencionaram que às vezes certas decisões não são tomadas por falta de uma estrutura decisória em que haja um representante que possa tomá-las (numa instância decisória superior ao CA, no caso). Uma decisão específica foi mencionada como exemplo, e uma aluna então esclareceu que o CA absteve-se da decisão precisamente porque não foi feita uma discussão ampla com a base em relação a isso. Muito se falou sobre a questão da pressa: há um trade-off entre não ouvir ninguém e ser capaz de tomar decisões com velocidade recorde, e ouvir a todos mas demorar semanas para fazer algo. Qual é o ponto de equilíbrio com o qual os alunos estejam confortável – algo razoável, que dê tempo o suficiente para jogar a responsabilidade também nas costas de quem teve toda oportunidade de participar da discussão, mas não o fez – não é algo objetivamente verificável e todo grupo deve lidar com isso, especialmente se há um desejo de ser inclusivo e igualitário (se o modelo já pressupor o poder de uma minoria de tomar as decisões, a tendência é, como nota Graeber, deixar de considerar a base). Embora é preciso pensar recursos e ferramentas para não tornar os procedimentos ineficazes, não se pode “atropelar” o processo de forma a matar essa inclusividade a qualquer custo. Aliás, se por um lado os estudantes frustrados reclamavam da pressa com a qual algumas decisões eram tomadas (“alguns ‘ok’ nos comentários do facebook e pronto, a decisão tá tomada”; alguns estudantes contestaram que o processo seja esse), por outro queriam marcar já para dali a duas semanas uma assembleia que decidisse entre os modelos de gestão. Menos de um mês para decidir pela reversão de um modelo político que funcionava bem há uma década, sendo inclusive elogiado pela representante da entidade estudantil?
As raízes da frustração
O que compreendi em geral, especialmente mais para o fim da roda de conversa, é que há uma frustração por parte de muitos alunos por não estarem sendo ouvidos, por não sentirem que têm poder efetivo por meio desse modelo de gestão. Há três razões pelas quais isso poderia estar acontecendo, duas delas sendo na verdade variações possíveis de uma só.
Em primeiro lugar, a acessibilidade e a transparência das reuniões e dos mecanismos decisórios. Quanto a isso, todo o grupo concordou que é preciso refletir e melhorar. E, diga-se de passagem, adotar um modelo de gestão eleitoral faria pouco para corrigir esse problema.
Em segundo lugar, alguns acusaram o CA, em resumo, de “groupthink”: uma grande resistência a ideias divergentes por conta de um pensamento convergente de uma maioria (ou maioria percebida), que reforça a si mesmo e acaba conectado inclusive à identidade dos membros (divergências podem ser vistas como rudes, hostis, ofensivas, até mesmo mal-intencionadas). Não tenho a mínima condição de saber se isso está mesmo acontecendo, embora isso não seja incomum em qualquer agrupamento. Contudo, se essa for uma leitura errada ou uma retórica enganosa, há ainda uma terceira possibilidade: a maioria simplesmente não concorda com as ideias divergentes. Talvez elas nem sejam tão boas assim para começo de conversa.
Agora, vejam: seria muito injusto não dizer, mais uma vez, que não faço ideia de qual dessas duas opções está mais próxima da verdade. Não quero pintar nenhum estudante frustrado como um ser malévolo que, não conseguindo efetivar sua vontade no grupo, busca mudar suas regras para ter o que deseja. Ainda que esse fosse o caso, veja, não é uma questão de o bem contra o mal: isso faz parte da política.
Então é possível que, do contingente de pessoas que vá às reuniões do CA, certas ideias minoritárias encontrem uma resistência teimosa e preconceituosa, o que frustra aqueles que possam ser até hostilizados por dizerem o que pensam. Mas é possível também que esses estudantes simplesmente foram derrotados no debate de ideias. As outras pessoas da reunião, que não têm obrigação de fazer o que não querem (this is precisely the point!), não querem fazer o que está sendo sugerido, ou ao menos não pensam que o CA, como grupo, deva endossar essa sugestão.
O que aconteceria se a chapa desses estudantes frustrados perdesse a eleição? Será que tentariam voltar ao método autogestionário para ter mais chance de efetivar suas ideias? Isso tudo é curioso porque a única coisa diferente que a eleição providencia é uma espécie de critério matemático que os faz aceitar melhor a derrota. Sem resultados obtidos a partir de um método circunscrito, eles podem continuar culpando outras coisas, e outras pessoas, por seus fracassos. Podem sentir que é tudo uma conspiração, já que há “muita gente” insatisfeita e quem sabe toda essa gente seja, na verdade, uma maioria (!) que está sendo aviltada pelos usurpadores antidemocráticos acomodados com seus sombrios privilégios.
Armados com essa retórica, o “verdadeiro sistema democrático” seria aquele que, por coincidência, eles sentem que lhes daria mais chances de conseguir efetivar seus planos. O que é mais democrático? Precisar chegar a um consenso quanto a uma proposta que seja razoável para todos (isto é, que não ofenda fundamentalmente os princípios de ninguém), ou precisar apenas de 50% + 1 do grupo para adquirir o direito de levar uma ideia ou projeto adiante, em nome de todos, apesar de objeções, algumas possivelmente profundas?
Mas, de novo, isso é normal: querer levar a cabo seus planos, seus projetos. É política. Mas são valores que se tem também; prioridades. Agora, se eles defendem o modelo eleitoral como mais democrático por princípios, por estratégia ou por cansaço, tanto faz: o que importa é que isso tudo é causado por um problema de relacionamento dentro do grupo. É uma falha de execução se, durante a deliberação, certas pessoas sintam-se tão frustradas que cogitem “dar um golpe na autogestão” (hahahaha, BRINCADEIRA! Ai ai…), independente se há ou não groupthink. Se os frustrados não estão sendo ouvidos porque não são respeitados, não são levados a sério, porque as pessoas não vão com suas caras… Isso é um grande problema, mas é algo que um modelo eleitoral não vai consertar. Na verdade, é mais provável que só faça piorar. Especialmente porque o problema já começa quando a lógica de vitória / derrota, de soma-zero – própria do sistema eleitoral! – torna-se prevalente dentro do sistema de consenso, que busca justamente ser uma alternativa a isso.
Mas é importante ressaltar, retornando agora à questão do tipo de aluno, e comunidade, que se quer construir, de que maneira o modelo autogestionário não só depende de relações de um tipo específico entre as pessoas mas também ajuda a construí-las. Por exemplo: apesar da má reputação que o “bloqueio de uma única pessoa contra todo mundo” tem (e, de novo, isso é geralmente um espantalho), há um certo quê de lógica nela que é importante analisar: se eu sei que qualquer um tem o poder de bloquear uma decisão, eu não posso me dar ao luxo de não levá-lo a sério, de não respeitá-lo, de não tentar entendê-lo e não tentar, também, de alguma forma, contemplá-lo. É claro que há limites de bom senso; se o mecanismo estiver sendo usado de má-fé, de maneira leviana, de modo a sequestrar o processo com vistas a conseguir vantagens pessoais, o grupo vai fazer bem em passar por cima dele. Mas se o mecanismo do bloqueio for respeitado tanto quanto possível; se for presumida uma boa fé em relação a essa benesse que ele traz; se ele for parte forte da cultura política a ponto de ser considerado rude e ofensivo não levar as pessoas a sério em suas divergências; então tal modelo gestionário tanto exigiria a construção de relações amistosas entre as pessoas quanto ajudaria a construí-las, tanto exigiria pessoas participativas e responsáveis quanto ensinaria na prática a participar e a assumir responsabilidades.
O sistema eleitoral é construído sobre premissas completamente diferentes. Privilegia o exercício individual e atomizado de reflexão, incentiva a competição (e groupthink, aliás, só que na forma de bolhas e câmaras de eco) quando às vezes ela nem faz tanto sentido, implica a terceirização da ação política, torna supérflua a construção de laços entre as pessoas e se apresenta como se fosse óbvio, científico, neutro e natural, quando na verdade é tão contingente e arbitrário, ao nível abstrato, quanto qualquer outro método. A organização do grupo importa. Como Graeber comenta, novamente em The Utopia of Rules, o mesmo punhado de pessoas que, estatisticamente falando, usa muita droga recreativa, pode votar, em sua maioria, para torná-las ilegais; o modo como somos organizados nos incentiva a pensar, agir e nos relacionar uns com os outros de certas maneiras, e oculta de antemão outras possibilidades, moldando em grande medida o horizonte de nossos comportamentos.
É comum ouvir que o processo decisório baseado por consenso ignora que a política – que a vida – é feita de conflito. Eu acho que Habermas é um pouco culpado disso – Luis Felipe Miguel que o diga – mas ele não é anarquista (e aparentemente “consenso” é uma tradução errada, pelo que ouvi dizer). Se o que o consenso tenta fazer – atingir uma matriz de colaboração mesmo entre pessoas que pensam diferente, sem tentar “conquistar” mentes, como observou uma estudante ao rechaçar essa metáfora militar – o que o processo eleitoral ignora é que o conflito existe lado a lado com o entendimento mútuo, com a colaboração. É como ter um namoro em que as brigas não são vistas como partes do processo de voltar a estar bem, mas o estar bem torna-se parte do processo de arranjar novas brigas.
A prova da existência do pudim está em comê-lo
Esse “apresentar-se como natural” do modelo eleitoral, aliás, apareceu de forma pungente quando, mais para o final da reunião, a representante da entidade estudantil comentou que os estudantes deveriam ter a chance de escolher qual modelo de gestão adotar – escolher, é claro, a partir de uma eleição. Obviamente, um estudante comentou que isso é definir a eleição como um processo decisório “raiz” em relação aos processos decisórios. Ou seja, é o mesmo debate, só que no andar de baixo.
Os estudantes já tem a oportunidade de definir as eleições como processo decisório. Exceto que estão fazendo isso por meio de um processo não-eleitoral.
Isso lembra a clássica comparação, viralizada na internet quando Bolsonaro elogiou Brilhante Ustra na televisão, entre defender a democracia na ditadura e defender a ditadura na democracia. Obviamente a analogia não é em grau, e não estou tentando dizer que defensores do modelo eleitoral querem torturar estudantes, por favor. No entanto, a diferença entre modos de relação e sistemas de incentivo de um modelo para outro, como descrevi acima, é sintomático. Uma coisa é defender eleição por meio da autogestão. Outra coisa é defender autogestão por meio da eleição.
Uma vez que você troque para um modelo eleitoral e alimente a ideia de que democracia é eleição, você está, digamos, “jogando pra galera” – validando o bem-estar de estudantes que agora sentem que estão fazendo a diferença sem fazer quase nada. E essas pessoas, no contexto de um curso de graduação, são a maioria – ou costumam ser, de qualquer modo; talvez nesse curso seja diferente. Só que a questão é: isso não quer dizer que os interesses delas serão melhor representados, ou que o CA será mais eficiente. O que quer dizer é um reforço cultural ao cultivo de relações mais fracas e menos substantivas entre os estudantes (não que as eleições determinem que esse seja o resultado; apenas o influencia, por si só, nessa direção). E quando isso estiver mais cimentado, será possível, eu me pergunto, que, numa eleição, a maioria dos estudantes vote para mudar para um sistema que exija mais deles, de modo que aqueles que não participavam antes, e vão continuar não participando, perderiam a única coisa que mantinha a ilusão de que estão fazendo alguma coisa?
Difícil.
E essa é a chave para entender por que, no começo da reunião, ninguém quis defender a autogestão, escolhendo deixar passar 13 minutos de tempo de fala e permitindo que o “outro lado” expusesse seus argumentos. Politics in Time, my friends: o passado importa. Cada decisão gera um reforço positivo (positive feedback); eleição reforça eleição, assim como autogestão reforça autogestão.
Essa é a importância de conquistar e construir espaços. Ninguém defendeu a autogestão porque não era necessário: ela tornou-se, naquele espaço, o status quo. Quando Paulo Coelho deu uma mijada em James Joyce, o crítico britânico Stuart Kelly citou Samuel Johnson: “uma mosca pode picar um cavalo, mas o cavalo continua a ser um cavalo, e a mosca não mais que uma mosca”. É isso: a autogestão, nesse CA, tornou-se um cavalo.
A serenidade para encarar os críticos vem da ciência de que a cultura de autogestão criou raízes e é forte. Aliás, é por isso que mesmo estudantes assíduos do CA foram à reunião que não foi oficialmente convocada pelo CA; por isso que o tom da conversa foi sempre bastante respeitoso; por isso que buscou-se entender do que se tratava toda a frustração, por isso que admitiu-se erros, por isso que se buscou pensar o que fazer para melhorar e incluir aqueles que não se sentiam incluídos, contemplados, respeitados. Porque isso é processo decisório baseado em consenso, oras bolas; isso é solidariedade, isso é o tipo de coisa que anarquistas defendem. Se essa reunião tivesse acontecido no contexto de um modelo eleitoral, o que seria bem possível de ter acontecido, como vemos tantas e tantas vezes por aí? Ou, que tipo de atitudes o modelo eleitoral inerentemente torna mais provável que aconteçam? Acusações de que quem reclama do processo é antidemocrático; abstenção em massa por parte dos apoiadores do modelo eleitoral, já que a reunião não foi oficial e não tem legitimidade (e já que o poder de convocar reuniões está na patota eleita, e quem reclama das eleições é antidemocrático, é bem provável que nenhuma reunião oficial seja convocada); e, principalmente, seria preciso vencer eleições para aboli-las em nome de uma revolução no processo democrático. Há razões, como discutido acima, pelas quais as eleições, por natureza, não favorecem esse resultado. Razões pelas quais uma revolução comunista dificilmente passa por uma eleição burguesa. Razões pelas quais Schumpeter, aliás, só julgou que o socialismo é compatível com a democracia se esta for competição entre elites, elites estas que devem ser deixadas em paz para fazer o que bem entenderem, sob a pena de quem sabe não serem mais a elite das elites na próxima eleição.
Um só coração – pero la cabeza soy yo
Em suma, foi possível ter uma discussão enriquecedora que não descambou em, por exemplo, acusações de fascismo por conta de divergências que nada tem a ver com isso. Ah, claro, exceto por uma: um orgulhoso membro do Partido dos Trabalhadores, que dizia que os alunos “tem o direito” de exigir eleições pra decidir entre o modelo eleitoral e o autogestionário (o próximo passo lógico é chamar a polícia, presumo, já que direitos devem ser garantidos?). Ele, membro de uma comissão eleitoral (de outra coisa, que não o CA), brincou que impugnaria uma chapa do MBL (para constrangimento de um dos estudantes frustrados, que estava tentando ganhar troféu de republicano do ano). Quando falavam sobre os problemas do modelo eleitoral, ele me vem com essa: “não é possível que o mundo inteiro esteja errado!”
Olha, eu fiquei quieto o tempo inteiro. Eu juro. Mas, aproveitando que ele estava do meu lado, não aguentei e disse: “não sei se você reparou, mas o mundo inteiro meio que está uma merda”. E emendei: “não é como se não houvesse uma catástrofe ambiental em escala planetária sobre nossas cabeças ou coisa parecida, não é mesmo?”
Ele, é claro, vira pra mim e diz: “E quem é você, que nunca te vi aqui na bio?” (confirmando que fiz bem em não falar ao grande grupo). “Não sou da bio”, respondi, “mas estou aqui falando com você, não disse nada na reunião porque não sou daqui”. “Essa gente quer dividir a esquerda”, disse ele, fazendo um gesto com a mão que deixou meio no ar se ele me incluía nessa gente; “mais vale ser sincero e colar logo o adesivo do Aécio e do Bolsonaro no peito”. Eu fui obrigado a rir dessa.
Ao fim da reunião ele me deu uns tapinhas camaradas nas costas, dizendo coisas como “temos que nos juntar para combater o golpe”, etc. A esperança pode ser a última que morre, mas instinto eleitoreiro vem antes dela por pouco: vai ver era isso que a representante da entidade estudantil tinha em mente quando comentou que as eleições não dividem os grupos, mas, pelo contrário, promovem um debate que no fundo os aproxima (… Ela vive no Planeta Terra mesmo ou num artigo da Nádia Urbinati?).
Mas essa carícia de político que beija criancinha, essas boas intenções de quem quer unidade desde que seja sob o seu comando, eu dispenso. Não é esse o tipo de relação que se constrói em um grupo realmente livre e solidário.