Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.
Minha família gosta de futebol. Eu, não muito, mas como no almoço eles assistem ao programa “Jogo Aberto”, da Band, acabo me envolvendo com isso (razão pela qual acabei escrevendo a coluna “Direitos e Prioridades”, inclusive). Quem assiste ao programa sabe que, eles falam diariamente sobre o Corinthians e sua ida ao Japão em razão do mundial de clubes. Na verdade já é bem sabido que se a Band fosse renomeada para “Corinthians TV” não seria grande surpresa, mas mesmo assim: Pseudo-discussões e pseudo-notícias são inventadas, criando motivos imaginários para que a equipe de filmagens e de comentaristas visite o clube todo santo dia, e todo dia a jornada ao Japão seja comentada nos mínimos pormenores.
Isso não tem só a ver com a popularidade do clube. Se prestarmos atenção ao conteúdo do programa veremos que a grande pergunta é: Quem o técnico escolherá para levar ao Japão? Mas afinal, o que tem de tão especial essa “seleção corinthiana”?
Ela é especial porque é um mito. Não no sentido de que não existe, mas no sentido de que é um símbolo. O que se fala o tempo inteiro – todo dia, aliás, repete-se como se o telespectador não tivesse memória – é que no Corinthians existe meritocracia. Só vai para o Japão quem estiver jogando bem. Mais do que jogando bem, jogando melhor do que os outros. Ainda mais do que jogando melhor do que os outros, dando tudo de si, jogando com “raça”, mostrando que vai se sacrificar ao máximo pelo time quando estiver (se ganhar o privilégio de estar) do outro lado do mundo.
Essa é a razão social maior pela qual a Band exibe de novo e de novo e de novo essas matérias com essa mesma história. Porque o Corinthians, sendo o fenômeno popular que é, tem uma capacidade como nenhuma outra coisa atualmente de gerar um “mito maior” que dê legitimidade ao (que faça “ficar bem na foto” o) sistema em que vivemos. Que sistema é esse? A ideia de que a competição entre indivíduos independentes gera progresso e melhoria de vida para todos – a ideia fundante do liberalismo econômico. A ideia pela qual muitas pessoas enxergam a natureza humana (sobre a qual já falamos aqui antes) e pela qual economias inteiras ao redor do mundo são organizadas. Ao falar do Corinthians a Band está mostrando: “Vejam, vejam como o mundo funciona! É assim, minha gente: quando você tem competição, você extrai o melhor que os seres humanos têm a oferecer!”. A forma como essa ideologia é marretada com o martelo corinthiano ajuda a amarrar a fortalecer, na cabeça de todos (mesmo quem não é corinthiano) esse grande esquema de coisas como um esquema natural, ou no mínimo o melhor.
Se isso funciona a nível simbólico, não funciona tão bem no nível prático quando olhamos para a realidade social. A competição traz à baila uma série de problemas, mas numa atmosfera controlada e específica como o esporte eles são escondidos ou realmente minimizados por causa de características próprias. A justiça, por exemplo, é algo que não existe no mundo natural e se faz presente de forma incompleta e imperfeita no mundo social. No mito corinthiano da competição perfeita, no entanto (assim como acontece no mundo da tecnologia, outra frente de ataque daqueles que querem fazer acreditar na competição como motor do mundo), é mais do que sorte: há vários critérios que vão garantir a justiça do processo. Curiosamente, um deles é a confiança no julgamento de um suposto líder supremo, a figura paterna e justa do técnico.
Embora pareça que para a Band ninguém tem memória, na verdade faz o que faz justamente porque temos memória: a repetição é efetiva a nível simbólico justamente porque causa uma sensação de onipresença dessa ideia — o que a torna, pouco a pouco, mais forte. Damos significado às experiências que podem parecer mundanas e específicas, e sem pensar cada vez mais nossa interpretação das coisas é moldada ao que é útil para quem está no poder. E é exatamente por não refletirmos sobre isso que acabamos caindo em armadilhas de pensamento e interpretação, respirando a ideia de que a competição – veja o exemplo do Corinthians, ora! – é sempre uma coisa linda que nos leva ao topo do mundo. Agora, só imaginem o quanto mais não vamos ouvir falar desse sistema de pensamento se o Corinthians ganhar esse mundial.