A (variada) liberdade

Então, veja bem... Esse texto foi publicado em 15 de julho de 2012. Como nada realmente desaparece na internet, não faz tanto sentido deletá-lo; mais fácil mantê-lo, nem que seja pra satisfazer alguma curiosidade posterior... Apenas saiba que há uma boa chance de ele estar desatualizado, ser super cringe, ou conter alguma opinião ou análise com a qual eu não concordo mais. Se quiser questionar qual dos três é o caso, deixe um comentário!

Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.

O que significa ser livre? Em geral, fala-se nos movimentos, nas decisões, na vontade: fazer o que dá na telha, sem que ninguém ou nada impeça. Sem interferência.

Esse ideal de liberdade fica em cima de um muro que divide o “eu” do “resto do mundo”. Quanto mais o mundo me pressiona, menos eu sou livre. Para que eu seja livre eu tenho que ampliar as minhas possibilidades, a minha “liberdade de escolha”. Mas esse conceito de liberdade vai ainda mas fundo: ele divide a nós mesmos. Nós somos vistos como um amontoado de partes: nossos sentimentos, nossas razões, nossa força de vontade… Mas perceba que o uso do possessivo “nossos” já pressupõe que alguém possui essas coisas. Quem é esse verdadeiro “eu”? Os desejos fisiológicos e impulsos emocionais? Ou nossos pensamentos, nossa razão? Quando o que sentimos atravessa a frente dos nossos planos, temos que nos libertar do controle dos nossos impulsos ou chutar a razão de lado?

Esse conceito de liberdade, que considera o indivíduo em relação a si mesmo e todo o resto do mundo, foi duramente criticado por Hannah Arendt. Para ela, essa ideia de liberdade surgiu a partir de um ponto de vista filosófico. Na Roma e na Grécia antigas, a liberdade não era um problema da filosofia. Era um problema da política. Uma pessoa só era livre em uma situação especial: quando estava discutindo o futuro da cidade junto às outras. Não é que alguém era mais livre em Atenas quando conseguia ter mais possibilidades de ação que os outros. Alguém só era livre quando participava da construção e da manutenção da sociedade, junto com todos, dentro da interferência de todos. Mais ou menos o que está em pauta quando (nas raras vezes que) ouvimos alguém dizer que só é livre de verdade quem vota. O voto, na nossa sociedade, é a maneira legal e reconhecida de participar dessa construção pública da vida.

Essa ideia foi criticada duramente por Isaiah Berlin em um clássico ensaio chamado “Dois conceitos de liberdade”. Ele chama a ideia de liberdade dos gregos antigos, que Arendt muito admira e defende, de conceito “positivo” — não porque ele é bom, mas sim porque exige do indivíduo certas condições para considerá-lo livre, isto é, exige uma presença de algo. Trocando em miúdos, é preciso ser alguma coisa e fazer alguma coisa específica para ser livre. Tudo que é preciso é pensar no ser humano como tendo uma natureza pronta e definida, e logo se tem um conceito positivo de liberdade.

Isso lembra os discursos da modernidade, para os quais chama atenção Foucault: ser um ser humano é ser saudável, é não ter vícios, é ser eficiente. Ações educadoras e punitivas de toda sorte visam libertar alguém de maus hábitos higiênicos, alimentares ou comportamentais; são restritivas, mas são vistas como cavaleiros da liberdade porque esses hábitos estariam impedindo a pessoa de ser aquilo que ela deve ser, ou seja, de atingir seu máximo potencial como ser humano.

A outra ideia de liberdade (a negativa) se relaciona com o que dissemos antes sobre a não-interferência. Isso é especialmente importante para Berlin, um pensador político pluralista, ou seja, que acredita que não existe apenas uma finalidade para a vida humana — que os homens não precisam todos escolher ser a mesma coisa, ter o mesmo “molde”. Estilos de vida diferentes precisam de uma ideia de liberdade que reconheça que ser livre é poder ser diferente.

Mas isso não é tudo. Há também o conceito republicano de liberdade. Para explicá-la, convém uma parábola: suponha que você seja um escravo. Seu dono, no entanto, é muito bom com você. Deixa você fazer o que quiser, e não exige nada de você, nem mesmo trabalho. Te dá até mesmo dinheiro para que você não precise trabalhar para mais ninguém. Você pode fazer o que quiser. A pergunta é: Você pode se considerar livre? Se disser que sim, está entendendo a liberdade a partir do conceito negativo. Mas se você acha que não, está pensando num conceito republicano: sua liberdade, nesse cenário, depende da “boa-vontade” de alguém. Tente discordar de seu dono e ele terá todo o direito reconhecido e instituído de te prender numa cela para o resto da vida se assim ele desejar. Para os republicanos, a liberdade é um status mais do que (ou antes que) a quantidade de possibilidades.

Esse debate todo, contudo, é bem recente. Há muito espaço para discussão e ideias novas sobre este ideal tão distinto que é a liberdade. Variada, multi-facetada e mutante liberdade.