Este foi um texto publicado como coluna do jornal Folha de Santa Catarina.
Para muitos, o capitalismo é para a sociedade o que a alma é para o corpo: não é uma coisa física, então não pode ser tocada, vista ou medida. Apesar disso, anima os corpos. Parece estar atrelada ao que somos, ao modo como funcionamos: o que seria, afinal, um corpo sem alma?
Essa visão é circunstancial: o capitalismo “move” a nossa (nossa, não todas) sociedade, mas ele não pode ser confundido com essência humana. Essa perspectiva costuma vir da falta de uma definição melhor para o capitalismo, mas para isso um estudo básico não serve muito; há quase tantas definições de capitalismo quanto tipos diferentes de estudos sobre ele.
Junto com essa definição vem uma percepção de que há muitos problemas com o capitalismo – um conjunto de efeitos sociais, como a extrema desigualdade econômica entre os podre de ricos e os podre de pobres (não só dentro de um país, mas a nível global), e um conjunto de efeitos pessoais, como a ideia de que nos tornamos mais mesquinhos, que perdemos certas noções de contato com as pessoas, perdemos a preocupação com o bem comum. Seria o capitalismo o grande inimigo da sociedade?
Há controvérsias. O capitalismo é um fenômeno tão cultural quanto econômico, e também político. A alienação e a mais-valia, lá no processo de produção das coisas que consumimos, passando pelo foco na própria ideia de consumo e como isso afeta nossas vidas e nossa relação com o tempo, com os objetos, com as pessoas (a vida líquida de Bauman), tudo isso faz parte do capitalismo. Mas ele necessariamente piora nossa vida? Estaríamos melhores sem o capitalismo? Não se pode esquecer de seu aspecto técnico, afinal. As conveniências da civilização contemporânea, a divisão social de trabalho, a higienização, a grande engenharia, a globalização e tudo o que ela traz de bom – a internet, os computadores! O que quer que o capitalismo venha a gerar de ruim, de qualquer forma, pode ser controlado e minimizado através da ação política e da educação, asseguram seus defensores.
Talvez esses aspectos ditos “técnicos” do sistema é o que não podemos perder de vista. O que importa, acima de tudo, é a eficiência. Tudo pode ser quantificado e traduzido em valor monetário. Com isso, em especial com a questão da eficiência, já não nos surpreendemos: crescemos sendo ensinados que essas duas coisas são mesmo o jeito como as coisas devem ser. Mas o que significa poder alugar pessoas? Isso é muito diferente do modo como o trabalho era conduzido nos tempos que precedem o capitalismo. E note que não há muita escolha: esse “aluguel” é o que gera lucro para uma minoria, e foi forçado garganta abaixo de gerações passadas para abrir caminho para o capitalismo como ele é hoje. Se tudo pode ser quantificado, o que significa poder comprar liberdade, personalidade, felicidade e até, como diria Nelson Rodrigues, amor verdadeiro? a noção de competição é o messias inescapável dessa jornada; aquilo que se deve abraçar como princípio de vida.
Mas, argumenta-se, não há nada melhor para pôr no lugar do capitalismo de qualquer maneira. A questão não é bem essa: é que ao olhar para as coisas com o desejo de que elas sejam “melhores”, perdemos o foco do que realmente importa: nossa experiência e a autonomia de nossos valores. Esperar uma melhoria absoluta é uma armadilha: melhores de acordo com que critério? Podem ser melhores aqui e piores ali; isso vai depender dos valores, os seus e os sociais também.
As lutas contra o capitalismo têm que reconhecer um aspecto fundamental da vida, afastando-se da esperança progressista que pautou as lutas sociais do século XIX: nada nunca será perfeito. Lutamos com as imperfeições esperando ter que lidar com outros tipos de problemas, não na esperança de que um dia recriaremos o paraíso na terra. Se uma maior e efetiva participação política tirar de todos nós mais tempo, tudo bem: qual é o valor que norteará nossa vida? Passar o tempo cuidando da comunidade, decidindo seu futuro para promover bem-estar com igualdade e justiça, ou terceirizar a cidadania, como na política tradicional, para gastar mais tempo trabalhando como cavalo e consumindo como rebanho?
Podemos nos perguntar, por outro lado, se aqueles que lucram com o capitalismo assistiriam, quietos, à ascenção de um cenário mais igual e mais livre. Historicamente, passividade é o que menos sobra nesse caso.